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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.1 Belém Jan. 2017

 

Artigo

 

Multiplicidades em formação continuada: o que pode uma escola pública na modalidade de jovens adultos?

 

Multiplicities in continuous formation: what can a public school in youth and adults modality?

 

Multiplicidades en formación continua: ¿Qué puede una escuela pública en la modalidad de jóvenes y adultos?

 

Ozilene Pereira Clemente, Ana Paula Figueiredo Louzada

Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)

 

 


RESUMO

O artigo aborda a dimensão da formação continuada de uma escola pública na modalidade de jovens e adultos: "EMEF EJA Admardo Serafim de Oliveira". Tal formação se expressa por meio de uma prática ética-estética-política em produzir educação pública, cujos desafios escolares cotidianos são problematizados semanalmente com professores, equipe gestora, pesquisadores e convidados. Nesse modo, a micropolítica formativa se faz intensiva em meio a modos de vidas arborescentes e rizomáticos no processo de formar, desformar em meio a múltiplas forças; provocando análises e implicações dos próprios atos; propondo maneiras outras de potencializar a vida e, criando um campo de ação analítico e ativo com a educação pública.

Palavras-chave: Educação; Formação Continuada; Multiplicidade; Rizoma.


ABSTRACT

The article discusses the extent of the continuous formation of a public school in youth and adults: "EMEF EJA Admardo Serafim de Oliveira." Such training is expressed through an ethical-aesthetic-political practice in producing public education, whose school everyday challenges are problematized weekly with teachers, management team, researchers and guests. In this mode, the micropolitics of the formation is done through intensive modes of arborescent and rhizomatic lives in the process of forming, deform amid multiple forces; provoking analysis and implications of their own actions; proposing other ways to enhance life and creating an analytical and active field of action with public education.

Keywords: Education; Continuing education; Multiplicity; Rhizome.


RESUMEN

El artículo aborda la dimensión de la formación continuada de una escuela pública en la modalidad de jóvenes y adultos: "EMEF EJA Admardo Serafim de Oliveira". Tal formación se expresa por medio de una práctica ética-estética-política en producir educación pública, cuyos desafíos escolares cotidianos son problematizados semanalmente con profesores, equipo gestor, investigadores e invitados. De este modo, la micropolítica formativa se hace intensiva mediante modos de vidas arborescentes y rizomáticos en el proceso de formar, desformar en medio de múltiples fuerzas; provocando análisis e implicaciones de los propios actos; proponiendo otras maneras de potencializar la vida y, creando un campo de acción analítico y activo con la educación pública.

Palabras-clave: Educación; Educación Continua; La multiplicidad; El rizoma.


 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte da dissertação de mestrado, cujo título é "Escritos narrativos de uma produção desejante com a EMEF EJA Admardo Serafim de Oliveira". A pesquisa visou analisar a ética e a produção desejante em fluxo com os professores, estudantes, equipe gestora e pesquisadores desta escola pública na modalidade de jovens e adultos. E movida por uma indagação: O que pode uma educação de jovens e adultos como potência diferir-se em um país no qual ainda se luta por acesso e permanência na escola pública, em que se encontram fragilizadas as condições para o exercício dos direitos à escolarização? Tal pergunta problematiza as práticas produzidas no cotidiano escolar aliadas ao conceito de Ética em Espinosa, por meio da leitura de Deleuze e de desejo na leitura de Deleuze, Guattari e Rolnik e, também com a produção de subjetividade em suas capturas, utilizando tecnologias da culpabilização, segregação e infantilização, que subjuga e segmenta a vida nas relações de poder

Narrativas foram produzidas para expressar a maneira como a Escola Admardo em sua produção desejante gera "curtos-circuitos" a essa lógica, em seus enfrentamentos cotidianos. Narrativas que captam o já dito; reúnem "que se pôde ouvir ou ler" (Foucault, 2006, p.149) com um campo de pesquisa, cujo processo se coengendrou por meio de "uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido" (Deleuze, 2011/1983, p.11) através uma escrita titubeante e inacabada.

A escola é comumente denominada por seus integrantes por "Escola Admardo". Ela foi fundada em 22 de dezembro de 2010, com o objetivo de garantir o direito público do Ensino fundamental aos jovens e adultos que residem e/ou trabalham em Vitória/ES, tendo por base a pedagogia de Paulo Freire. Ao se apropriar da experiência do Núcleo de Jovens e adultos da Universidade Federal do Espírito Santo – NEJA/UFES a escola propôs o trabalho em duplas de professores, cujo objetivo é diversificar as experiências e ampliar os encontros docentes com diferentes áreas de conhecimento, por um período de três meses.

De maneira distinta das escolas da rede pública da capital, a escola funciona em diferentes espaços na cidade como um modo de abrir espaços educacionais mais próximos aos cidadãos, acorda horários com os mesmos e apresenta uma proposta pedagógica que dialogue com a realidade vivida, por meio da descentralização da escola.

Neste artigo, destacaremos a análise da formação continuada da Escola Admardo como um espaço de problematizações, indagações e lutas que se constrói atravessado por uma política-ética-estética, no afirmar vidas por meio de um processo de educar inventivo e artístico, contrário à lógica capitalística de serialização subjetiva.

Na contramão de certa lógica educativa, professores, estudantes, equipe gestora e pesquisadores da Escola Admardo lutam e resistem pela educação pública na modalidade de jovens e adultos, os quais seguem no mover, no cuidar, no potencializar, no compartilhar o inacabado em construção..., se formando e transformando vidas. As formações continuadas ocorrem impreterivelmente às sextas-feiras. As aulas acontecem de segunda as quintas-feiras e para complementar o dia de formação, os estudantes fazem Atividades Complementares Curriculares (ACCs) que consistem em pesquisas feitas pelos estudantes em suas respectivas turmas acompanhados pelos professores, na qual as apresentações são realizadas no final do ano letivo.

 

COENGENDRAMENTOS FORMATIVOS

Gostaríamos de desenhar alguns movimentos, nos quais multiplicidades se engendraram na formação continuada, pela qual "cada elemento não para de variar e modificar sua distância em relação aos outros" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 57).

Como tratar as sextas-feiras, dia de formação continuada na escola referida, que literalmente atravessam as segundas, terças, quartas e quintas, que se espalham pelas salas de aula na cidade? A formação, que envolve docentes, pesquisadores, pedagogos, diretor e coordenadores da escola, que ocorrem impreterivelmente nos três turnos, é uma prática educativa que visa à efetivação de uma política pública, de partilhas de fazeres e saberes.

Aulas, planejamentos, seminários compareceram como espaços efetivos de encontros que ganham vias de expressão e mesmo de força de existir, pelo modo como as formações ocorrem, pois nelas há uma experimentação de coletivo (em que o ato silenciar ou de dizer, em que apontar para um tema que venha do grupo ou que se forja por ele são exercícios políticos).

Para além dos maniqueísmos, dos posicionamentos que podem forçar rasamente a localizar onde e com quem está a verdade, interessa-nos aqui realçar os movimentos, as construções, as apostas empenhadas contínua e processualmente na efetivação do Projeto Político Pedagógico (PPP, 2014) da escola. Ousamos dizer que as formações maquinam para a vivacidade e a concretude do PPP (2014), na medida em que não abafa o diálogo e as contradições.

O investimento coletivo nesse espaço vai na contramão das maquinarias capitalísticas que segregam, tentam retirar as decisões dos atos de trabalho, e que parcelam seus sentidos. Como portar essa produção desejante e fugir das capturas modelares, que têm suas máximas nos indivíduos? Como fazer dos fluxos desejantes novos arranjos parciais, em que vidas tornam-se ativas e pouco afeitas às paixões tristes1?

Gostaríamos de convidá-lo, leitor, a problematizar um coletivo em seus movimentos. Sem realizar juízos, sem apregoar déficits, apenas no desafio de acompanhar seus fluxos, seus cortes e suas conexões. Se já tratamos de uma política, sem dúvida, há uma estética, uma produção ativa de uma escola sempre em vias de se fazer.

Para quem chega à escola, participar da formação é um convite, é entrar em cena com o trabalho já acontecendo, é ver-se em uma praça pública, na qual os atores são convocados a estar, a se fazer presentes, a se colocar a pensar e debater as diferentes e inusitadas questões que atravessam a Escola Admardo.

Desde como é servido o lanche aos ditames burocratizantes em forma de exigências e formalidades da SEME, há sempre muito a conversar naquela roda; em meio a questões quentes, por vezes, sem resoluções claras ou apaziguadoras, mas que nem por isso eram ignoradas, mas sim debatidas, em um esforço de coletivização.

De fato, o vivido nas formações é um convite (ou mesmo uma convocação) à análise, à produção coletiva de um modo de pensar e agir que propiciasse novos fazeres para a educação de jovens e adultos, com jovens e adultos e suas concretudes, em suas trajetórias de escolarização.

Acompanhamos as formações do turno matutino desta escola durante todo o ano de 2015. Ouvíamos dizer, seja pelos professores ou mesmo pelos pesquisadores, que cada turno produzia uma formação, com características do grupo que compunha o turno específico. Claro que o modo como se efetiva e os arranjos são sempre locais e móveis, mas há uma forte marcação democrática, tanto pela gestão quanto pelo grupo docente.

Sem dúvida, nas formações também há vetores de verticalização e hierarquização. Ora com capturas centralizadoras da gestão, ora com polarizações encampadas por docentes. E, talvez o mais interessante nesse processo, tenha sido acompanhar como esses vetores foram apontados e mesmo desmontados por diferentes agentes. Iremos nos ater, especificamente, a um momento em que isso fortemente ocorreu e como foi trabalhado.

Podemos dizemos que nos habituamos a um jeito de trabalho, de pensar e fazer a formação nas sextas, de modo que raramente sentíamos paralisia ou mesmo desânimo naquelas manhãs: nos momentos iniciais de trabalhos (conhecido como místicas, um momento de acolhimento ao grupo); nas pautas, em suas quebras e não cumprimentos; nos intervalos para o café, ou mesmo naqueles dias de debates mais acalorados, em que a ida à padaria da esquina atuava como um forte componente de recomposição e ativação de grupalidade); nas despedidas que marcavam impreterivelmente o fim da manhã de trabalho, mas não o fim das questões levantadas na formação.

Podemos afirmar que havia uma heterogeneidade muito presente ali: tempo diferentes de atuação na escola, práticas nem sempre consoantes, áreas e subáreas de conhecimentos, modos de viver a educação, modos de entender a própria prática como militância, e mesmo as diferenças de apropriação de discursos pedagógicos mais afinados com a pedagogia freiriana.

Por vezes, essa heterogeneidade formava blocos, como: um grupo falante versus grupo silencioso; grupo engajado versus grupo pouco engajado; grupo problematizador versus grupo pacífico; grupo militante versus grupo de direita. Esses blocos que por alguns momentos pareciam explicar os movimentos presentes na formação, estavam sempre em desfazimentos, desmanchando-se, não permitindo que essas polarizações perdurassem por muito tempo.

As formações continuadas têm uma pauta a conversar, a problematizar com estudos de textos, estudos de casos de estudantes, conselho de classe, diretrizes educacionais, alterações no PPP (2014), tema anual, formulação dos seminários, conversas com convidados etc. Essa pauta formativa, em geral, era elaborada pela equipe gestora, mas permanecia aberta a qualquer integrante, caso este quisesse sugerir um assunto, oficina grupal etc.

Não raro, a formação ganha destaque como uma característica da Escola Admardo. Ao contar como é trabalhar na escola, frequentemente pelos professores, ou mesmo nós pesquisadores, quando destacávamos para um dia semanal destinado à formação. Compreendia-se a exiguidade do tempo destinado às formações na carga horária docente nas escolas em geral. Assim, quase "um privilégio" a possibilidade de conhecer o grupo com quem se trabalha e discutir o modo como se exerce o ofício de professor, bem como as diretrizes que norteiam o estabelecimento, os encaminhamentos etc.

Porém, ao invés de privilégio, propusemos, junto com os profissionais que compõem e exercitam essa formação, dimensionar esse tempo/espaço para se pensar em práticas educativas não centralizadas, resultado de muita luta coletiva para a sua existência.

Percebemos claramente que o diálogo se constrói semanalmente na escola, o que não quer dizer que não haja embate, e sim que o mesmo pode produzir modos de se conduzir na contramão das serializações, culpabilizações e infantilizações, tão fortemente capitalistas.

Com efeito, uma palavra nos salta: multiplicidades, este é o viés de análise por meio do qual gostaríamos de nos referenciar ao como se produz formação continuada, pois com avarias e composições parciais uma formação é feita.

Para Deleuze e Guattari (2010/1972), as multiplicidades não se unificam, não se totalizam, mas o todo é produzido como uma parte ao lado, adjacentes das partes, "às quais se aplica instaurando comunicações aberrantes entre vasos comunicantes, unidades, transversais entre elementos que mantêm toda a sua diferença nas suas dimensões próprias" (Deleuze & Guattari, 2010/1972, p. 63), que também podem ser traduzidas como comunicações avariadas e ao mesmo tempo recompostas, restabelecidas, estados intensivos, contrários às lógicas, uma paisagem de cores vivas e fortes. E, além disso, elas são cortadas por uma transversal, como na viagem de trem, em que o viajante enlouquecido não consegue ver a totalidade daquilo que vê, nem a unidade dos pontos de vista, e assim ele traça uma transversal de uma janela a outra, "para reaproximar, para remendar os fragmentos intermitentes e opostos." (Proust como citado em Deleuze & Guattari, 2010/1972, p. 63).

As multiplicidades produzem enunciados, visto que "não existe enunciado individual, nunca há. Todo enunciado é produto de um agenciamento maquiníco, quer dizer, agentes coletivos de enunciação (por 'agentes coletivos' não se deve entender povos ou sociedades, mas multiplicidades)." (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 66).

Se todo enunciado é produto de um agenciamento maquínico, pouco importa quem diz o quê. Importa que os enunciados circulem, e que ao girarem na roda, ganhem novos sentidos, novos contornos coletivos. Na roda, modos de existir mulher, homem, professora, professor, estudante, homossexual, heterossexual, machismo, feminismo, violência, tráfico, destinos de vida, necessidades educativas especiais, juventude, adultez, pobreza, saúde mental, higiene pessoal, drogas, burocracias, avaliações, aprendizagem estiveram encarnadas. Modos de viver de cada um daqueles corpos e suas avarias quando compartilhadas: "me percebi machista"; "porque tenho essa opinião?"; "disse mesmo para o estudante, encapa o bicho e vai, quando ele me ligou de madrugada, perguntando como fazer sexo, já que suspeitava estar com doença venérea"; "me dói ver aquele estudante consumido pela droga"; "como fazer para não perder mais estudantes para uma vida do tráfico?"; "eu hoje estou esgotada"... Muitos enunciados pulverizados em uma escola, em seus desafios de escolarização, ao sustentar práticas heterogêneas. De fato, em seus desafios e inacabamentos, as formações continuadas provocam os agentes coletivos a pensar um modo ético-estético-político,

[...] ética porque abre para a possibilidade de fazer escolhas. No campo da formação, expressa uma dimensão que ao se fechar em dar forma ao futuro professor expande a possibilidade de se desformar, de se transformar. Estética como um dos caminhos possíveis, entre outros, pelos quais adultos, jovens e crianças realizam estilo de vida não conformados e não consensuais, como ensinou Foucault, afirmando a possibilidade de criar uma vida bela e livre. Política pela atitude de forjar novos encontros, sempre outros que se movem para se diferir daquilo que somos. (Dias, 2012, p.29).

Segundo Rocha e Aguiar (como citado em Dias, 2012), a dimensão formativa na perspectiva ético-estético-política adquire consistência micropolítica de produção de modos de subjetivação, evidenciada em três modulações: a primeira consiste em pensar a formação como criação de percursos em meio a múltiplas forças; a segunda remete à análise sobre nossos atos, nossas implicações com as instituições em jogo, propiciando caminhos que potencializam a vida; a terceira propõe desafios e a criação de um campo de intervenção problematizador e crítico, intensificador de encontros.

Se há multiplicidades, não cabe perguntar: o que foi compreendido das formações continuadas? Mas sim: como elas operam? Em conexão com o que elas fazem ou não passar intensidades? Por meio de que multiplicidades elas se metamorfoseia?

As formações evidenciam os modos como essas multiplicidades operam; campo intensivo, sob a forma de multiplicidades moleculares, multiplicidades singulares, corpos imanentes ao próprio desejo. Essas multiplicidades em formação se conectam pela conjunção "e", formando assim um rizoma: "aliança, unicamente aliança" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 48).

Estes autores "roubam" o conceito de rizoma da botânica. Rizoma é uma raiz ramificada. "O rizoma nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 22), ou seja, um emaranhado de linhas ligadas por intensidades. Eles criaram este conceito para subverter um pensamento hierárquico, vertical, linear, ou seja, um pensamento arborescente. Em outro sentido, o rizoma provoca repensar e romper com a estrutura e a organização, pois "não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 24).

O rizoma tem por princípios a conexão e a heterogeneidade, que indica que "qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p 22), independente de lugar, de pessoas e de temáticas.

Em plena ação, as formações continuadas ativam conexões entre professores, estudantes, pesquisadores, estudantes de docência em inglês, pesquisadores da educação, da psicologia institucional e convidados. Os saberes também se conectam entre professores das diferentes áreas e profissionais de outras instituições, como Unidades Básicas de Saúde, Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social – População de Rua (CREAS- POP), Escolas da rede pública de ensino, Centro Integrado da Cidadania (CIC) - Casa do Cidadão etc. A Escola Admardo, como rizoma, não cessa de "conectar, cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 23) em um funcionamento, por meio de rodas de conversas, cujos debates produzem avarias, falhas, desatinos nas multiplicidades.

Há modos de expressão ali circulantes que afirmam não gostar da formação, enquanto outros portam o contrário disso, pois, para eles, a intensidade das discussões não implica em ruptura das relações. Quando um pesquisador aponta o cuidado para não tornar aquele ambiente adoecedor, uma professora lembra: "depois se vai ao bar, após o expediente".

De fato, problematizações circularam, enunciados foram ditos, argumentados e contra argumentados em várias linguagens, circunstâncias que possibilitam tais encontros, tais conexões, pois os "agenciamentos coletivos de enunciação funcionam, com efeito, diretamente nos agenciamentos maquinícos" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 22), e permitiram uma heterogênese de dialetos, polifonia que atravessou uma micropolítica formativa, a qual "não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, 43).

No princípio da multiplicidade do rizoma, Deleuze e Guattari (1995) afirmam que a multiplicidade "não tem mais relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 23). Ela tem somente determinações, grandezas e dimensões que não cessam de aumentar sem que modifiquem de natureza, portanto, as multiplicidades são rizomáticas, elas não possuem um pivô, ou seja, uma raiz principal. Por outro lado, as pseudo multiplicidades arborescentes, "falsas" multiplicidades, sustentam um pensamento estrutural. Uma árvore cujos pontos e posições estão fixados.

Um rizoma não se justifica por nenhum modelo estrutural ou gerativo. O rizoma é mapa e não decalque, assim como a orquídea não copia o decalque da vespa, ela faz uma composição, um mapa com a vespa em meio a um rizoma, ou melhor, "a vespa e a orquídea fazem rizoma em sua heterogeneidade" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 26). Desse modo, um mapa constrói, conecta campos para uma abertura máxima de um plano de consistência, "o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 30).

Os sistemas arborescentes funcionam com ordenação de elementos ou distribuição 2017. 97 de poderes em ordem de importância, nos quais "comportam centro de significância e de subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, 36), consequentemente, o sistema arborescente produz indivíduos, sujeitos fixos, em suas multiplicidades arborescentes.

Em 2015, convidados estiveram nas formações para conversar temas específicos, como direitos das mulheres, juventude, redução da maioridade penal, entre outros. Contudo, em algumas ocasiões, os convidados trouxeram discursos prontos, apenas replicando-os ali, tal como um palestrante da área jurídica que trouxe enunciados relacionados à questão da redução da maioridade penal, portando temas desatualizados e pejorativos como "menor", referindo-se aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas; outro convidado trouxe a discussão sobre as "08 maneiras de mudar o mundo". Segundo ele, o projeto possuía vínculo com as Organizações das Nações Unidas (ONU) e estabelece parcerias com as prefeituras dos municípios para garantir saúde, educação, direito da mulher etc., essas garantias, entretanto, já são incumbências das prefeituras.

Quando os convidados apresentam discursos pouco atualizados ou mesmo atuando a favor de uma política desqualificadora de modos de vida, ou ainda fechados ao diálogo (e ao exercício da crítica), o grupo marca esse estranhamento, ora atuando na formação daquele que ali está ("olha, aqui fazemos diferente"), ora se posicionando na radicalidade ("discordamos desse modo de pensar"), na aposta do debate coletivo. Nesse contexto, os professores se posicionaram claramente com relação à comunicação e participação na escolha dos convidados.

Tais posturas de radicalidade com a formação, isto é, considerar que todos na roda estão em formação, independente de quem seja, favorece o surgimento de falas como: "é preciso respeito e cuidado ao falar com os convidados".

Pode-se afirmar que não se passa ileso das formações, exatamente por uma postura ativa de não verticalização do saber, o que nem sempre produz conforto. Se o confronto de modos de pensar caracterizam as formações, com o intuito de intervir nas práticas educativas, também há redes de solidariedade e reconhecimento do trabalho feito por cada um, ainda que não sejam tomados como prontos. Em diferentes momentos, percebíamos na roda o reconhecimento do percurso feito por cada um ao relatar o tempo de trabalho na escola, suas transformações e aprendizados. Assim como não é incomum a análise comparativa sobre o modo de trabalhar naquele espaço e em outros espaços de escolarização.

Em relação à radicalidade com a postura formativa, vê-se claramente que há nas multiplicidades rizomáticas posturas de não se deixar sobrecodificar. Assim, há uma atenção (independente de quem ocupe a fala no momento) com o compor ou não compor com uma educação feita e construída por meio de uma ética e política de uma educação pública. Uma atenção às composições, desse modo, poderíamos arriscar resumir o vivido em diferentes sextas-feiras.

Recordamo-nos de Espinosa a partir da leitura de Deleuze (2002/1981): o que convém ou não convém ao corpo? O que atua aumentando a potência de existir, o que a diminui? Uma atenção: o que nos desloca na produção de uma educação pública? O que temos feito que possa ser de outro modo? Em muitos momentos, sentíamos na formação as interlocuções claramente direcionadas aos pesquisadores: coloquem-nos problemas; mais do que apontar como fazemos, nos desloquem, façam conosco o que ainda não somos.

Essa radicalidade com uma postura formativa, uma atenção às composições e, sobretudo, um desafio de colocar problemas, deslocando dos modos habituais de agir, são tentativas de não sobrecodificação, de não deixar-se habitar apenas territórios já conhecidos.

Além disso, essas questões apontam para uma atenção a um não fechamento do grupo em torno de si, salientando que as multiplicidades estão correlacionadas com o fora, "'anéis abertos'. [...] multiplicidades planas a 'n' dimensões são assignificantes e assubjetivas. Elas são designadas por artigos indefinidos, ou antes, partitivos" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 25), como uma educação, uma escola, um professor, um estudante, um rizoma.

Essas correlações são variáveis, ora movem-se juntas ora movem-se em direções opostas com velocidades também variáveis, precipitações e transformações com o fora. É importante ressaltar que o rizoma é constituído por linhas de segmentaridade e linhas de estratificação, conforme sua dimensão, tamanho ou importância, "mas também por linha de fuga ou de desterritorialização, como dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se metamorfoseia, mudando de natureza" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 43).

Não raro questões cotidianas eram forçadas a ser ampliadas em suas análises, rachando as explicações individualizantes (seja do professor tal, do estudante tal, da turma tal, do segmento tal). Como aliar uma prática pedagógica (uma aula sobre arte, uma ida a campo, uma aula sobre corpo humano etc.) com esse fora? Com aquilo que não se reduz ao grupo, mas que todo o tempo o tangencia? ***

Que surpresa! O diretor fez a mística desta manhã de formação com o "Tai chi perfumado". Uma atividade física com música de inspiração oriental. Foram muitas risadas e brincadeiras durante a técnica grupal. Descontraímos e movimentamos o corpo, alongamos, rebolamos... Foi interessante relaxar e ver os rostos daquela equipe respirando de modo suave.

Esta acolhida, de certa forma, foi uma preparação para uma conversa mais burocrática e estratégica entre máquinas governamentais e máquinas desejantes docentes relacionadas à luta pelos direitos trabalhista dos professores e o futuro da educação de jovens e adultos, as ameaças de fechamento de turma, as visitas pelo administrativo da SEME para verificar se as cargas horárias docentes e discentes estavam sendo cumpridas.

A formação, excepcionalmente, terminou às 9h30min, pois os docentes foram participar de protestos contra as ações do governo, principalmente as represálias do governo do Paraná sob os colegas docentes. As conversas nessa formação circulavam sobre as ações e as práticas do governo estadual e municipal para a Educação. Preocupações pertinentes ao futuro da escola; questões sobre ações e organizações. Essa pauta formativa propôs pensar a seguinte questão: "Como resistir a essas práticas políticas?"

Nessa manhã perduraram as sensações da música e gestos, em uma aposta em produzir novas sensibilidades e, ao mesmo tempo, conectar com arranjos contínuos para as lutas por uma educação pública.

Multiplicidades... O rizoma faz conexões com linhas de segmentaridade, conforme as quais ele é "estratificado, territorializado, organizado, significado, atribuído, etc.; mas compreende também linhas de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar" (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 25). Tais linhas não param de investir umas às outras, incessantes ramificações, sem dualismo, sem dicotomia. Nesse emaranhar, é preciso prudência, há risco de (re) encontrar grupos e "indivíduos que contêm microfacismos sempre à espera de cristalização." (Deleuze & Guattari, 1995/1980, p. 26). Capturas de multiplicidades e microfacismos e suas arborescências. Capturas de produções desejantes, modos de vida que se fazem afeitos aos ressentimentos.

Deleuze e Guattari (1995/1980), portanto, versam que nesse mundo de platôs, entre multiplicidades arborescentes e multiplicidades rizomáticas, não há dualismo, não existe o bem e o mal, não existe mistura ou síntese do ser. Há elos, nós, amarrações de arborescências nos rizomas, impulsos rizomáticos de baixo para cima nas raízes; formações despóticas, de imanência, próprias aos rizomas; deformações anárquicas no sistema arborescente; e, raízes aéreas e hastes subterrâneas.

Nessa acepção, em meio às experimentações da formação continuada na Escola Admardo, permearam multiplicidades rizomáticas e arborescentes. Uma agiu como decalque transcendente, mesmo elaborando suas próprias fugas; a outra agiu como processo imanente: reverte-se o modelo e esboça-se um mapa, ainda que constitua suas próprias hierarquias e suscite um canal despótico. E-mail formação Escola Admardo:

Prezad@s educador@s,

Segue pauta da formação do turno matutino 23/10/2015:

- Continuidade/fechamento da elaboração dos Direitos de Aprendizagem por área de conhecimento/componentes curriculares;

- Avaliação do seminário LGBTTTI, e organização do próximo seminário;

- Avaliação da organização da escola;

- Informes gerais. Obs.: a formação terá início impreterivelmente às 7h, contamos com a presença de todas/os.

Atenciosamente,

Esta formação continuada não contou com técnica grupal, música, poesia, vídeo. Nós fomos direto à continuação da elaboração dos Direitos de Aprendizagem por área de conhecimento/componentes curriculares. O pedagogo, recém-chegado na Escola Admardo, de modo automático passou as orientações (com uma dicção confusa e atropelada na forma de se expressar), devendo realizar duas atividades simultâneas: encaminhar as proposições da escola em relação aos Direitos para a SEME, a seu pedido, e realizar as necessárias alterações no PPP (2014).

Para a leitura e alteração do documento, fomos divididos em grupos de áreas especificas. No grupo em que eu estava o debate foi abrasador. Trocamos algumas ideias e sugestões, enquanto o coordenador do primeiro segmento estava frenético em seu computador ao formular algumas proposições. Indagamos ao grupo algumas situações vividas em sala de aula. Uma das professoras relatou que tem um estudante já com 47 anos que perdera a mãe e a família o deposita na escola. "Quando o estudante começou a frequentar a escola ficava na porta segurando a grade para não entrar em sala de aula, com o tempo essa recusa passou, mas ele não faz nenhuma atividade", disse a professora. Diante dessa fala, perguntamos do que o estudante gosta. A professora prontamente disse que ele não falta e adora falar de mulher, de música e comentou: "Ele é bem assanhadinho". Apontamos para ela tentar alguma estratégia por essa via, trazendo um conto, um livro, talvez do escritor Nelson Rodrigues com essa temática, pela qual o estudante expressa interesse. Elas sorriram ao concordar com a ideia.

Uma professora, envolvida na conversa, expressou que não é possível inserir esses estudantes nos moldes de uma escola regular porque o tempo de aprendizagem deles é outro. Ela traz uma estudante que tem 53 anos e a mãe com seus oitenta e poucos possuem tutela sobre ela. E que a mesma está na escola há cinco anos e só agora aprendeu a escrever o próprio nome. O coordenador fez uma pausa em sua escrita e falou que os avanços dessa estudante foram incríveis com relação à autoestima, além de fazer questionamentos à mãe sobre o benefício que ela recebe mensalmente do governo. Ele questionou: "Vamos ter que enquadrar esses estudantes na lógica de diretrizes totalizantes, que não considera as pluralidades? Esta escola ainda aposta em outros modos de educar, ensinar?" Concordamos com ele e apontamos que é um grande avanço esse modo de pensar a educação e interessante como a estudante consegue escrever o próprio nome a partir do momento em que ela sente a própria força. Com isso, as professoras fizeram pequenos comentários sobre outros estudantes e seus modos singulares de existir no mundo.

À porta, o pedagogo avisou: "Já terminou o tempo para as alterações". Os professores pediram mais um tempinho, mas foi em vão. Mesmo assim, permanecemos um tempo conversando sobre a forma como um documento tão importante precisava ser produzido em curto tempo. Um professor expressou: "Agora estamos dentro do relógio do filme do Chaplin 'Tempos modernos'".

À porta, o pedagogo avisou: "Já terminou o tempo para as alterações". Os professores pediram mais um tempinho, mas foi em vão. Mesmo assim, permanecemos um tempo conversando sobre a forma como um documento tão importante precisava ser produzido em curto tempo. Um professor expressou: "Agora estamos dentro do relógio do filme do Chaplin 'Tempos modernos'".

O pedagogo, em meio a folhas de papel ofício, leu um cronograma da SEME a ser cumprido pela escola até o final do semestre. O que sobressaiu em sua leitura foram os ditames de cumprimentos de burocracias, no qual ele teimou em focar. Os professores o escutaram, e assim que ele terminou, de um jeito cuidadoso, disseram que não é desse modo que a escola trabalha. E então, o convidaram para compor os fazeres cotidianos e analisar os processos de divisão e ordenamento do trabalho.

O pedagogo escutou o convite, mas no instante seguinte falou sobre a importância em preencher o programa Sistema de Gestão Escolar (SGE). Os professores pontuaram perguntando se ele já conversou com os professores que estão em atraso e falaram da importância/urgência em problematizar os efeitos do uso de drogas por um estudante. Uma professora, com os olhos cheios de lágrimas, falou que não suportou ver o estudante daquele jeito, naquela situação, muito magro e transtornado, não dizendo coisa com coisa, em uma visita aos antigos colegas, um território no qual ele acabou de concluir o ensino fundamental. Ela disse que os estudantes ficaram sem ação diante da expressão dela e uma estudante comentou: "os professores gostam da gente e se importam com as nossas vidas. Por isso que a professora chora".

Uma professora se dirigiu ao pedagogo e, com voz ríspida, disse para ele que a SEME só quer saber do cumprimento de suas regras e não lê o que está escrito nesses relatórios, contudo "nós fazemos a nossa parte, mas não do jeito que a SEME quer, já foi acordado de fazer os lançamentos do relatório do que acontece em sala de aula, de como acontece às aulas em sala com a dupla de professores, a dupla de matérias, não tem como separar por disciplina, não é essa a política pedagógica da escola!".

Um professor falou que se a escola for igual a outras, não fazer a diferença de ensino e aprendizagem de uma educação pública, o mesmo prefere trabalhar em outra escola pública, não mais na modalidade EJA. Ele preferia trabalhar mais próximo da sua casa pela comodidade de localização, contudo, não é isso que ele acredita.

O coordenador do primeiro segmento, aproveitando o gancho, seguiu para a próxima pauta sobre a avaliação do Seminário LGBTTTI2, dizendo que ficou muito incomodado e triste com as falas homofóbicas, principalmente de uma estudante que o chama de "viadinho". O coordenador direcionou a fala para o pedagogo sobre essa questão, contudo ele não se pronunciou e continuou a escrever em seu caderno. No instante seguinte saiu da sala de formação.

No intervalo para o lanche, em todas essas afecções e afetos, o coordenador aponta que na reunião de equipe gestora não era isso que haviam acordado para essa formação. No momento da definição da pauta formativa, entretanto, o pedagogo concordou, mas minutos antes, ele fez como achou melhor para si mesmo. Diante disso, sugerimos marcarmos outra conversa com o pedagogo e a equipe gestora após essa formação. Como fazer a vida "gingar" em meio aos modos de existências que insistem em "endurecer"?

Arrepios nessa manhã. Em cena, em ato, segmentarizações: atender à SEME, atender ao cronograma, atender às normas, dividir o grupo, acabar o tempo, encerrar as discussões, estranhamentos produzidos pela condução do pedagogo. Segmentarizar a gestão, o pedagogo, o grupo, os subgrupos, os estudantes. Microfascismos e seus riscos de fazê-los caber em um indivíduo ou em uma função.

Foi interessante perceber o grupo se posicionando frente às questões consideradas urgentes e importantes: como se aprende? Que pode um corpo aprendente? Como agir em face de uma vida sendo consumida? Como a lágrima da professora é percebida pelos estudantes? Que sentidos disparam? Como um grupo pode trabalhar por sua autonomização, sua autogestão, de forma contrária às ingerências? Como um grupo age a favor de sua condução, de seu agir?

Manhã intensiva, multiplicidades rizomáticas e arborescentes, sem nenhuma nitidez em seus começos e fins. Ao final, cabia perguntar: o que produziu? O que fez ranger? Que modos educativos ali se afirmaram em ato?

Por fim, gostaríamos de tracejar deslocamentos feitos em duas formações específicas que tratavam de estudo de casos de estudantes: tentativas coletivas de deslocar a questão tão recorrentemente colocada como "estudantes-problema" para pensar novos modos de produzir aprendizagens; e entremear com as condições de ensino.

Em uma formação, as professoras da educação especial fazem apresentações de estudo de casos de estudantes, compartilhando diagnósticos que marcavam alguns deles. Como um estudante com Miotonia de Thomsen, de quem as professoras falam sobre seu apreço pela Geografia, Educação Física e as curiosidades trazidas para sala de aula por ele. Outras professoras comentaram sobre seu pouco asseio. Um professor falou que interviu sobre isso diretamente com o estudante, com perguntas provocativas a fazê-lo pensar sobre o seu cuidado pessoal e sua autonomia, sem depender dos pais ou do cuidador.

As professoras seguiram apresentando estudantes e suas especificidades de aprendizagem, de escolarização, de vida, enfim. Em ação, havia diagnósticos e as perguntas: como agir com os desafios colocados por cada um dos estudantes? Como fazer com que eles de fato sejam estudantes da escola e não da educação especial? Que desafios eles portam para que a escola e seus professores se reinventem?

Entre indagações para se conhecer melhor esses diagnósticos, os professores ficam "desatinados" após a apresentação não sabendo como agir, como ensinar, o que ensinar. Uma professora "atinou e desatinou" ao mesmo tempo, explanando que está cansada de repetir essa mesma apresentação todo ano. Ela quer uma resposta ao seu questionamento sobre a capacidade desses estudantes em aprender, principalmente uma língua estrangeira, pois ela sabe que eles são uns amores, sociáveis, contudo, essa questão do ensino e aprendizagem a deixa inquieta. No intervalo, ela conversou conosco novamente sobre isso, e foi questionada sobre o que pensa sobre o desempenho e as capacidades deles. Nervosa, ela desviou o assunto quando outra professora se aproximou, dizendo que irá pesquisar sozinha sobre essas doenças e se realmente há possibilidade de aprendizagem.

Sextas-feiras se passaram. Outra formação começou com estudos de caso. A violência e os efeitos sentidos quando isso arranha a prática docente. Como lidar? Principalmente quando essa questão aparece claramente por meio de uma professora que se sentiu ameaçada com a fala de um estudante e um professor diz que a mídia mostra os jovens negros e pobres como inimigos, indagando: "Vamos fazer o mesmo movimento de abandono de outras instituições?"

Seguindo essa indagação foi apresentado um texto produzido por um estudante do primeiro segmento que possui uma trajetória de moradia na rua. Houve visível empenho da professora ao trazer esse texto e situá-lo, apontando como ele tem se apropriado da linguagem escrita e de leitura de mundo. O grupo acompanhou a apresentação e sugeriu à professora modos de continuar o trabalho com ele.

Ao prosseguir os estudos de caso dos estudantes, uma reviravolta: o professor do primeiro segmento do Centro de Referência Especializado de Assistência Social para a População em situação de Rua (Centro POP) não quis trazer um estudo de caso de estudante, trouxe o estudo de caso da estrutura física do Centro POP. Ao trazer as fotografias do lugar, ele vai apontando as precariedades dos espaços nos quais deveriam funcionar oficinas. O professor falou que os estudantes que frequentam o espaço dizem que só a escola os atende e ele também solicitou a abertura de mais uma sala, pois estudantes em vários níveis de alfabetização frequentam esse espaço. Contudo, os iniciantes que querem ser alfabetizados ficam constrangidos em participar da aula, já que os outros estudantes expressam mais conhecimento de leitura e escrita e, desse modo, eles silenciam o restante da turma.

O professor apresentou também várias fotos de passeios pela cidade, principalmente no Centro da Cidade, onde a maioria dos estudantes fica durante a noite, pois o espaço do Centro POP funciona de 7h00min às 17h00min horas, ou seja, à noite o lugar é fechado, muitos deles dormem na frente da instituição e na região.

O professor contou que foi uma alegria para os estudantes entrarem no Teatro Carlos Gomes pela primeira vez. Na foto, isso é explícito, todos de braços levantados fazendo questão de mostrar que estão percebendo aquele espaço público de outro ângulo, ou seja, do lado de dentro do Teatro Carlos Gomes para a Praça Costa Pereira e não o inverso, nessa ótica comum de olhar o prédio histórico. Diante dessa realidade, o professor solicitou propostas para a situação do Centro POP relativos à questão do sucateamento e o horário de funcionamento para as pessoas que a frequentam.

As propostas apresentadas foram: propor um projeto especial referente à infraestrutura do espaço e o diálogo com a SEME para melhorar o funcionamento do espaço; fortalecer a associação de população de rua visando a protagonização daqueles sujeitos; analisar o projeto de atendimento do Centro POP intersetorial; criar e manter um espaço para atendimento educacional efetivo aos indivíduos em situação de rua; construir gradativamente com os estudantes o que eles almejam do processo educacional.

Todavia, o diretor apontou que o Plano Plurianual (PPA) da Prefeitura de Vitória na gestão vigente ignora o espaço, pois a redução de gastos está no "encolhimento em todas as secretarias nesta nova gestão, cujo lema é: 'Mais com menos'". Assim, o professor do primeiro segmento afirmou: "Precisamos pensar outras formas ampliadas de participação da população em situação de rua: Formações? Como melhorar para atender o que é direito deles? Como trabalhar direitos humanos se os direItos estão sendo violados no Centro Pop?"

Uma comissão entre professores e pesquisadores foi constituída para visitar e dialogar com os estudantes do Centro Pop.

Entre tentativas e tateios, a escola em 2016 deixa de ocupar uma sala no Centro Pop, mas segue com a população em situação de rua para outro território. Marcadamente se estabelecem e configuram alguns deslocamentos dessas formações: com estudantes "da educação especial" para estudantes da escola; de diagnósticos para histórias de vida; de problemas a reinvenções de estratégias e metodologias; de localizações serializantes nos indivíduos os desafios de produzir desarranjos e avarias; do pouco apaziguamento daí decorrente; e a viravolta: de estudo de caso para estudo do lugar, e como isso pode ser uma ferramenta coletiva de análise das condições de trabalho e das pactuações realizadas; de que a escola inventa outros modos de experimentar o educar, de viver a cidade, e que ela é um equipamento em uma rede.

Podemos afirmar que junto a essas multiplicidades vivemos uma formação continuada (de uma intensiva força-ação processual), em que não há um título no final, que não atende a um mercado de formação segundo os moldes capitalísticos, e muito aprendemos.

Desafiadas fomos em nossas práticas profissionais. Estivemos e estamos em formação por meio do exercício de uma atenção, por meio de um aprender a colocar os problemas e, precisamente, no exercício sempre inacabado (por se fazer) de pensar o modo como estamos e aquilo que ainda não somos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste processo formativo, deixamos pousar um tanto de afeto em nossos corpos..., por uma produção de modos de vidas ativas, de apostas afirmativas, cujo conjunto é composto por multiplicidades. Uma formação que problematiza e luta por uma educação pública, a qual se faz imbricada à criação e à arte. Resistências talhadas a cada encontro possibilita afirmar, evidenciar, trazer à cena as potências tão represadas pelas paixões tristes. Vidas acorrentadas em discursos de verdade, linguagens hegemônicas que com as narrativas foram torcidas e tensionadas, deixando escorrer da vida, a palavra (re)dimensionada, (re)significada, (re)sentida.

Mais do que nunca, temos a clareza da necessidade da luta cotidiana. Excitar linhas revolucionárias é preciso, afinal, o poder, em suas infindáveis configurações exercese por nós, por meio de micropolíticas que corroboram com práticas fascistas, "que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora" (Foucault, 1991, p. 83). Por isso, é imprescindível "desindividualizar-mos" por intermédio da multiplicação, dos deslocamentos, de problematizações, porque dessa forma se constrói uma paisagem educativa, uma produção de conhecimento cujo elo orgânico não seja hierárquico, não seja um pensamento arborescente, mas sim um conjunto de multiplicidades gerador constante de "desindividualização" (Foucault, 1991, p. 84). Dessa maneira se faz possível a vida"gingar" com uma educação pública.

E embrenhar-se nessa via é permitir-nos ligar à vida, às pequenezas que compõem a existência, delicadezas experimentáveis, as quais passaram, pulsaram, ganharam corpo, contorno e estilo por meio de uma poética da narratividade.

 

Referências

Deleuze, G.; & Guattari, F. (1995). Mil platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2. (A.L. Oliveira, S. Guerra Neto e C. P. Costa. Trad.). São Paulo: Ed. 34, vol. 1. (Obra original publicada em 1980).         [ Links ]

______. (2010). O anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia 1. (L. B. L. Orlandi. Trad.) São Paulo: Ed. 34 (Obra original publicada em 1972).         [ Links ]

Deleuze, G. (2002) Espinosa: Filosofia e prática. (D. Lins e F. P. Lins. Tradutores). São Paulo: Escuta. (Obra original publicada em 1981).         [ Links ]

______. (2011) A literatura e a vida. Crítica e Clínica. (P. P. Pelbart. Tradutor). São Paulo: Editora 34. (Obra original publicada em 1993).         [ Links ]

Dias, R. O. (2012) Formação inventiva como possibilidade de deslocamentos. In. R. O. Dias (Org.) Formação inventiva de professores (p. 35-41). Rio de Janeiro: Lamparina.         [ Links ]

Foucault, M. (1991) Anti-Édipo: Uma introdução à vida não-facista. In.Escobar, C. H. (Org.) Dossier Deleuze (p. 81-84). Rio de Janeiro: Hólon Editorial.         [ Links ]

______. (2006). 1983 – A escrita de si. In: Ética, Sexualidade, Política. (M. B. Mota. Trad., Ditos e Escritos V). Rio de Janeiro: Forense Universitária.

 

Projeto Político Pedagógico da Escola Municipal de Ensino Fundamental Professor Admardo Serafim De Oliveira: uma construção em movimento. (2014). Vitória: Secretaria Municipal de Educação.

 

Recebido em: 05/10/2016
Aprovado em: 15/12/2016

 

 

Notas sobre os autores:

Ozilene Pereira Clemente: Mestre em pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: lenny.preta@gmail.com.

Ana Paula Figueiredo Louzada: Professora Adjunta do Departamento de Psicologia Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional - Laboratório de Afetos e Biopolíticas - Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: paulalouzada27@gmail.com

 

 

 

 

1 É um conceito espinosano de acordo com Deleuze (2002/1981) que se refere a vida cuja potência de agir e pensar foi diminuída pelos encontros de uma produção de subjetividade capitalista, na qual se sustenta por meio de paixões tristes.
2 Sigla do movimento de luta por direitos a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, transgênero e Intersexo (LGBTTTI).

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