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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.1 Belém jan. 2017

 

Artigo

 

Mediniunidade e iniciação: notas sobre a iniciação de crianças na umbanda

 

Psychism end initiation: notes about the initiation of children in Umbanda

 

Mediumnidad y iniciación: notas sobre la iniciación de niño en la Umbanda

 

 

Marilu Marcia Campelo; Alef Monteiro

Universidade Federal do Pará (UFPA)

 

 


RESUMO

O artigo é um estudo sobre o imaginário religioso umbandista acerca da iniciação de crianças que apresentam ou não capacidades mediúnicas latentes. Ele explora as variadas posições de praticantes frente à experiência do transe religioso na infância. O objetivo não é fazer uma discussão sobre transe e êxtase religioso na infância, mas delinear em que medida as representações do imaginário umbandista se aproximam e se distanciam das representações ocidentais sobre a infância e demonstrar como a religião constrói um lugar para a criança a partir desses elementos simbólicos que nela interferem. Para tanto, utilizouse o método etnográfico que consiste em observação participante, entrevistas intensivas e análises documentais junto a um grupo de umbandistas no Rio de Janeiro. Constata-se que há uma série de contradições entre as concepções religiosas acerca de capacidades espirituais inatas de crianças e a ideia de infância da sociedade contemporânea, acarretando readequações na dinâmica do grupo.

Palavras-chave: Crianças; Mediunidade; Iniciação; Umbanda; Religiões de Matriz Africana.


ABSTRACT

The paper is a study about the umbandista religious ideal regarding the initiation of children which present or not latent psychic abilities. It discovers the many positions of observers before the religious trance experience in childhood. The aim is not about to create a discussion regarding religious trance and rapture in childhood, but outlining in what measure the representation of the umbandista ideal comes near or distances to the occidental representations about childhood and to demonstrate how the religion builds a place for the child from these symbolic elements which it interferes. For that, was used an ethnographic method that consists in participant observation, intensive interviews and documental analysis with a group of umbandistas in Rio de Janeiro. It is possible to find a sequence of contradictions between the religious conception about the innate spiritual abilities of the children and the contemporary society's idea about childhood, resulting in new adaptations on the dynamics of the group.

Keywords: Children; Psychic; Initiation; Umbanda; Religions of African Matrix.


RESUMEN

El artículo es un estudio de la imaginería religiosa de la Umbanda acerca de la iniciación de los niños que presentan o no las habilidades mediumnicas latentes. Él explora las diversas posiciones de los practicantes delante la experiencia de trance religioso en la infancia. El objetivo no es hacer una discusión de trance y el éxtasis religioso en la infancia, pero delinear el grado en que las representaciones del imaginario de la Umbanda se aproxima y se aleja de las representaciones occidentales de la infancia y demostrar cómo la religión construye un lugar para el niño a partir de éstos elementos simbólicos que interfieren en ella. Para esto, se utilizó el método etnográfico que consiste en la observación participante, entrevistas en profundidad y análisis documental con un grupo Umbandistas en Río de Janeiro. Parece que hay una serie de contradicciones entre las concepciones religiosas de las capacidades espirituales innatas de los niños y la idea de infancia de la sociedad contemporánea, lo que lleva readecuaciones en la dinámica de grupo.

Palabras-clave: Niños; Mediumnidad; Iniciación; Umbanda; Religiones de matriz africana.


 

 

INTRODUÇÃO

"Tia Maria, cadê Pai João?
Tá lá na roça, catando feijão.
Pula daqui, pula de lá.
Deixa as crianças que querem brincar."
(Ponto cantado para pretos-velhos, Considerados protetores das crianças)

 

Dentre as muitas modalidades de religiões afro-brasileiras, a Umbanda é das mais conhecidas e espalhadas no país. Sua gênese e formação remete ao início do século XX, quando aparece como uma nova modalidade de culto incorporando a prática kardecista às práticas africanas e indígenas existentes na cidade do Rio de Janeiro, berço de sua origem (Ortiz, 1978; Brown, 1985). O universo religioso umbandista está centrado na ação dos espíritos chamados de entidades ou guias - caboclos, pretos-velhos, exus, boiadeiros, mineiros, marinheiros, baianos, orientais crianças, mestres e ciganos - que incorporam nos médiuns para trabalhar e praticar a caridade. Os Orixás são equivalentes aos santos católicos e não baixam (incorporam) nos médiuns, antes, delegam essa tarefa aos guias sob seu poderio que são reunidos em falanges - espécie de linhas agrupadas por domínio da natureza e função no sistema umbandista.

A Umbanda é, portanto, uma junção de elementos africanos (Orixás e culto de antepassados), indígenas (culto de antepassados e elementos da natureza), elementos Católicos (santos sincretizados aos Orixás africanos), e Espíritas (fundamentos espíritas, reencarnação, lei do carma (ou de causa e efeito), progresso espiritual, missão e dom).

Por ser uma religião construída a partir da oralidade e da vivência, não havendo um livro base, é possível encontrar vários tipos de Umbanda. Elas estão classificadas, em geral, de duas maneiras: Umbanda Branca – com maior acréscimo de elementos do espiritismo e bens culturais que convencionamos chamar de ocidentais – e outra mais de terreiro, ou mesmo como dizem, traçada, voltada para práticas mais africanizadas. A questão é que a Umbanda é uma religião muito plástica, adaptável à região onde está situada, à classe social que a prática e, portanto, aos valores morais e sociais que são dados pelo grupo que organiza o espaço, chamados em geral de Centro, Tenda ou Terreiro.

Como é uma religião espiritualista, a ligação entre este mundo e o mundo dos espíritos se faz por meio dos médiuns. Na Umbanda existem várias classes de médiuns organizados de acordo com o tipo de mediunidade que cada um possui. Pode-se afirmar que a mediunidade é o pilar central que suporta todas as ações de um terreiro. Segundo creem os umbandistas:

A mediunidade na Umbanda é uma oportunidade de trabalho para evolução pessoal e resgate cármico do médium. Ninguém é médium para "pagar o que fez" em uma encarnação passada. É médium porque se propôs a colaborar com o trabalho divino no presente, em busca de um futuro melhor para todos [...] Médiuns todos são, embora alguns em grau mais suave. Mas ninguém pode se "candidatar" a médium de terreiro em algum momento da vida. Estas pessoas são escolhidas como instrumentos de trabalho antes de seu nascimento, sua encarnação nesta terra. Passam a ser cuidados e protegidos por seus guias até o momento de iniciar seu trabalho1.

Como todas as religiões de transe, na Umbanda é necessário uma série de ritos iniciáticos que transformam uma pessoa em veículo das divindades, isto é, a transforma em um cavalo dos espíritos ou deuses que são cultuados no espaço do terreiro.

A iniciação é sempre considerada um destino ou uma missão que deve ser cumprida. Em geral, ela acontece em duas circunstâncias: através da socialização do indivíduo no grupo religioso, neste contexto, a iniciação é marcador do modus vivendi adquirido pelo indivíduo em sua formação como parte do grupo: o(a) candidato(a) à iniciação já frequenta algum terreiro e decidi pela iniciação. Outras vezes, ocorre de maneira mais dramática: o indivíduo vivencia uma situação conflituosa de saúde e doença onde o quadro é identificado pela comunidade circundante como manifestação corporal de um dom a ser desenvolvido. Como diz a tradição: "entra-se na religião ou pelo amor, ou pela dor".

As diferentes modalidades das religiões de matriz africana têm aspectos bastante comuns em relação ao processo iniciático, porém, divergem quando se trata de iniciação de crianças. Geralmente, na Umbanda, a criança que nasce em uma família umbandista recebe o nome do seu protetor ou protetora em uma cerimônia celebrada pela mãe ou pai de santo do terreiro, durante uma sessão ou gira para pretos-velhos ou caboclos. O responsável ou a entidade guia, chefe do terreiro batiza utilizando uma série de elementos tais como água da cachoeira, azeite e ervas. Ela abençoa a criança e oferece proteção. A iniciação de fato, geralmente, só vai acontecer na fase adolescente ou adulta, quando a pessoa manifesta a vontade de seguir a religião.

Este exemplo mostra um ritual onde a criança passa a integrar uma família religiosa pelo processo da socialização, mas não se trata de uma iniciação de fato. A transmissão familiar ocupa um papel relevante na formação religiosa dos umbandistas e, em geral, de todos os afro-religiosos. A Umbanda mostra sinais evidentes de ter se transformado em processo de continuum religioso. É difícil para os adeptos falar do ingresso na religião, quando praticamente nasceu e foi criado dentro do espaço do terreiro. Não se observa a dicotomia do antes e depois. Contudo, quando esse processo ocorre na fase adulta há toda uma mudança no próprio indivíduo, na construção de sua identidade, nos seus referências e valores que passam a ser moldados pelo novo ser que nasce na iniciação.

E quando se trata de uma criança? Como é esse processo? Teoricamente não existe idade, sexo ou condição social que impeça a iniciação. Observando e conversando com umbandistas que desenvolvem seus rituais em terreiros ou em casa, e que formam uma parcela bem característica da Umbanda no Rio de Janeiro, é possível perceber que existe uma série de controvérsias sobre o assunto. Alguns adeptos questionam a idade certa para se ingressar na carreira religiosa, alegando a capacidade da criança em assumir as responsabilidades que o culto exige, a falta de maturidade para encarar o preconceito religioso em alguns casos, considerando mais sensato que a criança tenha liberdade de escolha por seguir ou não a religião dos pais. A vivência em campo também suscitou outro questionamento: estaria aí também embutida uma preocupação típica, principalmente dos teóricos umbandistas que escrevem livros e sites, acerca da possibilidade de falsificação do transe (como se as crianças fossem mais propensas a esses atos), o que acarretaria um grande prejuízo à legitimidade da religião?

Assim, o fulcro de nossas análises é o imaginário religioso de umbandistas sobre a socialização e iniciação de crianças na Umbanda. Enveredamos nas concepções que um determinado grupo possui sobre a infância e seu lugar na religião de tal maneira a demonstrar em que medida estas concepções se aproximam e distanciam daquilo estabelecido na sociedade contemporânea sobre o desenvolvimento e a capacidade psicossociais de crianças. Nossos interlocutores são um grupo de pessoas que pode ser considerado de classe média baixa e que apresentam por isso, uma característica interessante: vivem na fronteira entre o terreiro mais africanizado, mais voltado a uma identidade afro-brasileira e, um mundo mais voltado à cosmovisão espírita kardecista.

 

TRANSE E MEDIUNIDADE

Os fenômenos de transe sempre chamaram a atenção de pesquisadores, médicos e sacerdotes. De tal forma que cada campo do conhecimento construiu teorias explicativas que foram e ainda são sucesso na sociedade ocidental. Tratados como patologias pela psiquiatria e características das sobrevivências primitivas nos primórdios da antropologia foram alvo de um longo debate chegando-se a uma definição cultural do fenômeno. A necessidade de uma discussão e revisão aprofundada do conceito ainda é necessária, mas seguiremos aqui a perspectiva de Maués (2003), que trata a questão como um fenômeno composto de elementos psicofisiológicos e culturais. A discussão de transe aqui serve de suporte para a discussão sobre a iniciação de crianças, particularmente, as concepções sobre o que é ser criança e como ela poderá reagir a este fenômeno. Logo, o transe é tratado aqui a partir da visão de mundo dos umbandistas entrevistados: uma leitura sobre a mediunidade, um fenômeno descrito tanto por escritores como por sacerdotes em sua complexidade simbólica, mas com características singulares e nitidamente objetivas.

O transe na Umbanda é um princípio fundamental de seu funcionamento - a existência da noção de mediunidade. A sua prática designa uma série de ideias e atos, baseados na crença de que um ser humano é escolhido para ser possuído por um determinado espírito, que agem em favor dos seres humanos. Contudo, essa relação só pode ser estabelecida a partir do momento em que a pessoa aceite servir de veículo para este fim, isto é, seja iniciada. Neste caso, trataremos aqui das construções pelos umbandistas do que seja o transe mediúnico. Nas palavras de Welthon Cunha (2013):

O fenômeno mediúnico está presente em diversas formas de religiosidade brasileira, como a umbanda, candomblé, espiritismo kardecista, omolokô dentre outros. Sua importância é tão relevante que a bibliografia destas religiões e os depoimentos colhidos por inúmeros pesquisadores junto a praticantes e fiéis destas formas de religiosidade mostram que existe uma preocupação permanente com a legitimidade do fenômeno, ou seja, com o fato que as entidades, guias, ou orixás que se manifestam sejam 'reais' e não 'teatralizadas' ou 'falsificadas', consciente ou inconscientemente, pelos médiuns. Não existe, por exemplo, umbanda sem a manifestação ou incorporação dos caboclos, pretos-velhos, exus dentre outros. São eles que legitimam, confirmam e abençoam os rituais. São eles que trazem os conhecimentos e magias da aruanda -, o mítico mundo dos umbandistas, para o mundo dos vivos. (p. 11)

A mediunidade refere-se basicamente a um dom especial que uma pessoa tem para se comunicar com as entidades ou espíritos. Levando em consideração os aspectos psicológicos pode-se afirmar que o transe mediúnico caracteriza a manifestação de outra personalidade numa mesma pessoa. Porém, esta personalidade só surge nos momentos convencionais e constitui-se como um método de cura, uma terapia e uma forma de pedagogia que transmite ensinamentos essenciais à vida comunitária e a construção da individualidade (Bastide, 1973; Lima, 1979).

Para os umbandistas todas as pessoas são médiuns, ou seja, possuem mediunidade, porém apenas alguns têm a obrigação de desenvolvê-la ou iniciar-se. Nesse sentido, a mediunidade configura-se como uma capacidade existente dentro do organismo humano que necessita de estímulos sobrenaturais para ser utilizado:

A mediunidade é a abertura dos canais energéticos do corpo astral para o contato com a espiritualidade. Se o médium se afinar com seres de luz, isso é extremamente benéfico. Caso isso não aconteça, ele pode ser usado também pela espiritualidade negativa e se transforma em um instrumento da sombra. Por isso, o cuidado com o médium é tão importante, em todos os momentos de sua vida, não só no terreiro.2

Há diversos tipos de mediunidades. A mais comum é a incorporação, pela qual "o médium dá passagem a uma entidade, geralmente Guia Espiritual que vem trabalhar e evoluir"3 ao mesmo tempo. Pode ser classificada em:

a) a intuitiva ou de pressentimentos - na qual o médium sente ou recebe intuições de Guias Espirituais e Entidades, (sem vê-los e nem ouvi-los, propriamente);

b) a sensitiva- na qual o médium "sente" a presença de espíritos ou de energias extra-físicas, (sem vê-los ou ouvi-los);

c) a auditiva- na qual o médium apenas ouve as mensagens dos espíritos ou das Entidades;

d) a da clarividência- na qual o médium vê os seres e/ou energias astrais do local onde está ou de um lugar no espaço distante dali; ou visualizando "cenas do passado"; ou ainda pela psicometria, ("vendo" cenas do passado ou captando energias do passado, ao tocar objetos, roupas, etc.);

e) de desdobramento ou sonambúlica. Não confundir com sonambulismo, situação em que a pessoa adormece e fala, ela mesma, sobre o que está à sua volta. Porque no desdobramento o médium "se solta", desprende-se parcialmente do corpo físico, acessa e descreve o que está vendo da realidade não-material, podendo receber e passar as mensagens que os espíritos ou Entidades vão ditando (exemplo raro: Chico Xavier psicografava numa reunião mediúnica em Minas Gerais. Em desdobramento, participou de uma reunião mediúnica extra-física e lá também psicografou, transmitindo a mensagem de um filho desencarnado à mãe também desencarnada. Mãe e filho se encontravam em regiões astrais diversas, a mãe sofria por não ter notícias dele.);

f) psicografia- na qual o médium escreve textos ditados pelos espíritos e Entidades ou, então, sob a orientação deles, a partir de ideias básicas que recebe e desenvolve;

g) de cura- pela qual, mesmo sem incorporar, o médium pode aplicar passes que irradiam energias de cura, bem como fazer projeções de energias curadoras à distância;

h) a que permite falar ou entender línguas estrangeiras que não são do conhecimento do médium, que é a xenoglossia ;

i) a que permite pintar ou desenhar, sob a instrução de artistas já desencarnados; também chamada de pictórica ou pintura mediúnica;

j) a olfativa, que permite ao médium sentir perfumes e odores de uma realidade não-física;

l) a de materialização, pela qual os Guias Espirituais e Entidades se utilizam de energias do médium, (ectoplasma), para se materializar diante das pessoas ou para materializar objetos etc. Exemplo elevado é o de Jesus que, entre outros, materializou: pães e peixes para a multidão que o acompanhava; fez surgir uma abundância de peixes na rede dos pescadores ; transformou água em vinho, nas Bodas de Canaã.4

Alguns teóricos umbandistas, como Peralva (1987) e Silva (1983), que tentam divulgar suas doutrinas através dos livros, definem as fases da vida humana nas quais os sintomas da mediunidade são mais frequentes, listando apenas os aspectos mais gerais que identificam um médium em potencial: dor de cabeça frequente, enjoo constante, vômitos, náuseas, falta de sono, sistema nervoso descontrolado, bocejos constantes, falta de apetite, dores musculares, depressão melancólica, desejo de solidão, sonhos fúnebres, vida material amarrada, reações emocionais insólitas, sensação de enfermidade, calafrios, mal-estar e irritação.

Teoricamente, a mediunidade não depende de lugar, condição social ou sexo para manifestar-se. Ela pode surgir na infância, na adolescência, na idade madura ou na velhice (casos em que se torna mais rara). Tudo vai depender da relação entre os estímulos sobrenaturais e as pessoas. Mas, no geral, a mediunidade manifesta-se nas seguintes fases da vida, de acordo com Silva (1983):

a) na infância - que caracteriza aqueles que têm uma "missão" espiritual, os chamados "médiuns de berço". Esta fase inicia-se mais ou menos entre os sete anos de idade;

b) na fase adulta - quando ela manifesta-se na grande maioria das pessoas, mais ou menos entre os vinte e cinco e vinte e oito anos de idade;

c) na fase madura - entre os quarenta e cinco e cinquenta e dois anos de idade, desde que a pessoa possua boa saúde. Estes seriam os retardatários da fase adulta.(p. 44-45)

Se a mediunidade é um dom específico, médium é aquele que serve de intermediário entre os espíritos e os seres humanos. Ao lado deste termo adotado do espiritismo e difundido entre todos os umbandistas, existem outros dois termos mais frequentes entre os praticantes: cavalo e burro (este último termo em vias de desaparecimento).

O termo cavalo é utilizado quando se faz uma referência a uma pessoa no estado de transe com sua entidade, ai fala-se "fulano é cavalo de pai Benedito" - ou então, quando a frase é dita ao guia, "tomar conta" ou "não maltratar o seu cavalo" e, por fim, quando o próprio guia fala "o meu cavalo". Em alguns terreiros encontra-se, também o termo burro, utilizado para designar aquele que incorpora os exus. O importante é percebermos que a ideia de transformar-se em cavalo de um espírito torna claro uma referência à transformação do homem em um objeto manipulado por algo exterior a ele. O seu corpo e sua mente são apenas instrumentos a serem usados segundo fins determinados por esta ou aquela vontade.

A conversão às religiões matriz africana é considerada inicialmente como um chamado divino, um destino ou missão, que muitas vezes, como já dissemos, utiliza-se da doença para obter uma resposta. A doença é uma das razões mais apontadas pelos frequentadores das sessões umbandistas como a causa de sua adesão. Segundo Paula Montero (1985): "ao lado das adesões que se fazem sob influência familiar, o aparecimento de doenças ou distúrbios generalizados do comportamento e ou do bem-estar são as razões mais frequentemente levantadas" ( p. 100) para justificar as consultas e a adesão a esta religião. A autora divide as definições de doença em dois grupos:

1) doença material - de competência do médico;

2) doença espiritual - de competência religiosa.

Montero, demonstra, ainda, que existe uma relação de complementaridade entre as duas competências levando as pessoas a estabelecerem um mecanismo classificatório que define o que é "doença de médico" e o que é "doença do terreiro". No caso da doença material a pessoa opta ou por uma ação conjunta ou por uma das duas competências. Já no caso da doença espiritual existe um tipo de diagnóstico para saber que tipo de doença é; se é provocada por feitiço ou se é provocada pela mediunidade não desenvolvida.

Em ambos os casos, a doença é uma manifestação. E quando se trata de mediunidade não desenvolvida serve de veículo para obrigar uma pessoa a cumprir seu destino, principalmente quando esta não mantém um relacionamento mais estreito com esta religião. Nesse caso, a pessoa que se recusa mostrar suas potencialidades para comunicarse com os espíritos, tende a se tornar fraca e vulnerável às ações maléficas que têm como sintomas físicos as doenças.

Todavia, nem sempre os meios de conversão têm este caráter de liminaridade. Em muitas trajetórias de vida o ingresso na religião é mais tranquilo, pode-se dizer mais socializado. Muitos dos novos membros são filhos ou parentes dos médiuns de um terreiro.

Os sinais da mediunidade tornam-se manifestos principalmente quando a pessoa frequenta as sessões de terreiro. Nelas, o candidato começa a passar mal. No entanto, nem todos os que passam mal tem que ser iniciados. Segundo os próprios umbandistas: "muitos são os chamados, mas poucos são os escolhidos". Isso implica numa seleção entre os candidatos de acordo com o grau de mediunidade e sua capacidade de controlar o transe.

A iniciação é um ato que restabelece um contrato preestabelecido entre uma pessoa e um grupo de entidades. E caso o escolhido relute em aceitar o cumprimento desse compromisso, elas (as entidades) se encarregam de fazê-lo aceitar impondo-lhe sanções: as doenças físicas e mentais de causas desconhecidas e, às vezes, até a morte. Como diz um adepto: "Você não tem como fugir daquilo, você acaba caindo num Centro, às vezes por doença ou por vários motivos. O guia, o espírito, obriga você a chegar num terreiro".

 

MEDIUNIDADE INFANTIL

Conforme demonstrado nas linhas anteriores, todas as pessoas têm mediunidade que se manifesta em diferentes idades. Todavia, quando se trata de uma criança esta concepção genérica cede lugar a outras ideais. O umbandista não questiona que uma criança possa ter mediunidade, pelo contrário, muitas vezes é celebrada e é desejado que as crianças de terreiro manifestem cedo seus dons. Porém, alguns adeptos têm dúvidas quanto à validade do seu transe; da forma como a entidade vai atuar no terreiro (principalmente no caso de caboclos e exus, o uso da bebida e do cigarro, por exemplo), e outros mesmo chegam a temer a rejeição futura da criança quando se tornar adulta.

A criança que apresenta os sintomas da mediunidade é dita um médium de berço, geralmente tem visões, incorporam entidades sem nenhum ritual específico ou sofrem com doenças que a medicina não consegue identificar. Constata-se que tais sintomas não são diferentes do que acontece com um adulto, mas o seu processo iniciático não ocorre com a mesma simplicidade da de um adulto.

O discurso a favor não vê nenhum problema, valoriza a continuidade do grupo e a certeza da ancestralidade. O discurso contra considera que o desenvolvimento espiritual pode prejudicar o seu desenvolvimento físico e intelectual. Para eles, a criança tem um organismo frágil e imaturo, que nem sempre acompanha o seu desenvolvimento intelectual e vice-versa. Chegam mesmo a afirmar que a criança tem muita imaginação e inicia-la poderia ocasionar consequências perigosas ao seu equilíbrio espiritual e mental. Na concepção deste escritor umbandista, por exemplo:

Por influência dos próprios companheiros da mesma faixa etária, pode a criança querer brincar de mediunidade. [e] Espíritos perversos ou brincalhões podem aproveitar a fragilidade e a inocência infantil para exercerem assédio sobre os ainda pequeninos intermediários do mundo espiritual (Peralva, 1987, p. 139).

Assim, uma vez que a criança não tem controle sobre si mesma, não a consideram capaz de controlar as entidades que dela se acercam. No seu ponto de vista, a criança não corresponde a um dos papéis característicos do médium, que é o de ser capaz de transmitir a estes uma conduta moral adequada e também ser capaz de controlar a sua força. De acordo com os umbandistas, a criança é um ser puro e inocente que ainda não foi contaminada pelos valores negativos da sociedade e, portanto, não tem discernimento entre o certo e o errado.

A princípio o médium dever exercer sobre as entidades uma ação benéfica de doutrina e passar por essa mesma ação doutrinária por parte das entidades, formando uma relação ideal de troca, que permite que ambos evoluam conjuntamente. Mas na medida em que a criança não é considerada um parceiro ideal para esta troca, indaga-se como será a atuação dos chamados médiuns de berço.

Nos grupos observados, as opiniões sobre suas atuações rituais são contraditórias: uns apoiam a iniciativa, considerando que "se tem necessidade, o médium deve ser desenvolvido"; outros negam terminantemente corroborando as opiniões dos escritores umbandistas sobre o desenvolvimento intelectual e físico da criança.

Na fala de médiuns mais antigos, com mais tempo de iniciação, aparece a preocupação de se formar substitutos e continuadores dos terreiros. Assim, se entre os seus filhos ou frequentadores do terreiro houver crianças que demonstrem aptidões mediúnicas, elas são encaminhadas para as sessões de aprendizado que ocorrem em dias e horários específicos conforme relata este adepto:

havia uma sessão de desenvolvimento de crianças, eu não me lembro se era uma vez por mês, uma vez por semana na parte da tarde em que os grupos de crianças eram desenvolvidas. E eu cheguei a conhecer algumas dessas crianças já adultas depois, trabalhando no Terreiro. Na ocasião havia muita polêmica em torno da validade desse desenvolvimento de crianças. Havia algumas críticas, que as crianças estariam fumando charutos .... [...] Alguns anos depois eu não ouvi falar nesse assunto, mas até hoje eu conheço algumas crianças que foram desenvolvidas lá, se tornaram adultos e continuaram trabalhando lá na Umbanda. São babás de terreiro.

 

Outro exemplo que se segue é mais elucidativo:

No Centro mesmo, nós temos uma pessoa que começou com onze anos e ela recebia o preto-velho com onze anos e trabalhava. Hoje ela é uma grande chefe de terreiro. Me contaram que ela estava doente e ninguém sabia o que ela tinha. Que de repente ela caia, desmaiava e começava a falar uma porção de coisas e tal, até que levaram ela a presença do Pai João. Levaram a médico e os médicos não sabiam o que era que... Que estava acontecendo e tal ... Pai João disse que ela não tinha doença nenhuma. O que ela tinha era uma grande mediunidade e que ela já tinha que começar a trabalhar. Então ela, teve a mesma iniciação que nós tivemos: desenvolvimento quarta-feira, depois foi para a mesa, depois recebeu o preto-velho dela e com isso ela foi se desenvolvendo. E o Pai João disse: ela é um médium, ela tem compromisso muito grande porque ela vai ser babá [...] hoje ela tem um grande centro, [...] é uma grande umbandista.

Neste depoimento, dois aspectos devem ser observados: primeiro a manifestação da mediunidade através de uma doença misteriosa que não foi identificada pela medicina; e segundo, a imposição de ser chefe de terreiro, revelando um compromisso assumido antes do seu nascimento. Sobrepondo-se aos limites que este mesmo grupo colocou à iniciação de outras crianças, esta foi iniciada cumprindo o papel que lhe havia sido designado pelas entidades.

O depoimento que se segue mostra que nem sempre estes desígnios são atendidos. O mesmo grupo recusou-se a fazer uma iniciação e o resultado pode ser observado a seguir, na fala de um de nossos interlocutores:

Há alguns anos atrás, apareceu em nossa instituição uma família que passou a frequentar nosso Centro, existindo entre seus membros uma menina de oito a dez anos, mais ou menos, que passou a trabalhar no terreiro, causando verdadeira novidade. Pai João, do alto de sua experiência avisou: o médium muito jovem não deve se envolver no serviço de passes e consultas para não causar o seu enfraquecimento material. Foi o bastante, a família ofendida afastou-se do terreiro. Mais tarde, tomamos conhecimento que a mesma havia feito a passagem.

Um fator a ser observado nesta fala é o seu desfecho trágico: a morte da criança. Teria ela morrido porque sua família insistiu com a sua iniciação ou, porque interromperam bruscamente este processo? De um lado, se confirmou as ideias do grupo sobre os efeitos negativos da iniciação sobre o desenvolvimento físico; e de outro, o caráter liminar da iniciação: não fazê-la leva à morte.

Uma saída adotada nos últimos anos pela nova direção deste grupo é o retardamento da iniciação até a criança atingir a maturidade que possa compreender o que está acontecendo. Esse retardamento envolve rituais específicos chamados de malembe, que significa pedir perdão as entidades, e, ao mesmo tempo, um prazo através de um bori - um ritual de fortalecimento ou um presente ao Orixá, dono da cabeça.

Analisando os argumentos de que a "mediunidade acelera o metabolismo e pode prejudicar o desenvolvimento físico e intelectual da criança" considera-se que os rituais de retardamento encerram dois tipos de preocupação. A primeira relaciona-se com a concepção do grupo sobre a autoridade e o poder que o relacionamento com o sobrenatural confere a alguém. Uma pessoa quando se torna um médium adquire uma sabedoria e um poder individual que a diferencia dos demais. O iniciado é aquele que sabe, que conhece os mistérios e os segredos (Eliade, 2002).

Nesta perspectiva, a criança não constrói para os médiuns adultos e até mesmo para aqueles que procuram seus serviços, os clientes, um referencial de autoridade e maturidade espiritual que faça com que eles a respeitem. A própria sociedade fragiliza a criança como ser incapaz que só deve brincar e estudar para um futuro melhor: a criança não deve trabalhar. E à medida que ela é considerada um ser humano que não tem personalidade definida, não poderá imprimir sua marca pessoal na construção da identidade de suas entidades, isto é, não haverá uma interação entre as histórias de vida destes personagens e as experiências vivenciadas pela criança.

A segunda preocupação do grupo passa pela relação da criança com a religião e indiretamente com a influência da família na escolha religiosa. Receosos que seus filhos não correspondam às responsabilidades que o culto exige, e por medo que eles venham a recusar ou questionar a sua iniciação mais tarde, a própria família protela ao máximo o momento de ingresso no culto, não deixando que a criança decida se quer ou não ser iniciada.

Os umbandistas acreditam que a criança pode participar do culto desde que não seja forçada a isso. Ela vai sendo socializada através de um aprendizado implícito, que inclui desde a simples observação, como a brincadeira dentro dos rituais, ou até mesmo um aprendizado de acordo com sua idade que inclui os cânticos rituais, os gestos, os significados das cores e objetos, a participação nas festas. Caso contrário, na medida em que ela cresce terá dúvidas e uma mal disfarçada resistência que se acentuará quando ela entrar em contato com a realidade social, por exemplo, a escola, outra religião, o clube, etc.

Ela é, para o umbandista, um ser que ele tem a obrigação de amparar e guiar. Eles acreditam que a formação moral e religiosa desta criança é antes de tudo um dever, uma missão. Eles têm uma grande missão educacional que é a de formar indivíduos probos e moralmente perfeitos, que tenham uma conduta de vida dentro do que eles consideram adequado. A religião umbandista, nas palavras do adepto,

é uma garantia para a relação social, pois que constitui o mais poderoso freio às más paixões, mostrando o laço do amor que deve existir". Ou então: "a criança é, sem dúvida, uma vida que está aflorando para um futuro em que poderá recuperar o tempo perdido em outras reencarnações. Temos que ter não só a satisfação como também o dever de ajuda-las nesta jornada.

Do mesmo modo, a relação da Umbanda com a família é construída sobre uma base moralista e solidária ao mesmo tempo. A família umbandista é uma tentativa de construção de uma sociedade contínua solidária e estável emocionalmente, de forma que se constitua como um centro de apoio coletivo ou uma espécie de defesa aos seus problemas. Por isso é compreensível a compreensão de um dos nossos interlocutores sobre a inserção das crianças no universo religioso umbandista: "acho natural que siga a religião dos seus pais, acrescentando-se que representa a futura geração umbandista. Acredito que a religião não só será uma orientação para seu futuro, bem como, um alicerce para a sua vida espiritual".

Tudo indica que o mundo religioso é um mundo familiar e por isso mesmo, os espíritos são transformados em entidades, ou seja, em guias familiares que compõe junto com os umbandistas uma grande família – a família umbandista. E dentro desta visão de mundo, só está família pode educar as crianças para a sociedade. Pois, salientam: "pais têm por obrigação encaminhar seus filhos na religião que professam, porém sem obriga-los a aceitá-la, deixando que tomem sua decisão religiosa depois de adulto. É na infância que se infunde na criança s sentimentos de fé, esperança e caridade".

 

O TRABALHO DA CRIANÇA NA RELIGIÃO

A ideia de que existe uma idade certa para se começar a trabalhar na Umbanda, combina, em parte, com a noção que a sociedade faz do trabalho humano. O trabalho é considerado um processo no qual o homem é moldado por si mesmo, isto é, uma relação criadora que o transforma em um ser social e independente (From, 1965). O fim prático desta atitude visa elevar sua vida aproveitando o meio em que vive de forma útil e agradável. Aqui se lança mão das proposições de Bergson (1948) que afirma que o trabalho humano consiste em criar utilidades a partir de um desejo ou de uma necessidade. Portanto, o fim do trabalho – criar, produzir e transformar – existe porque há uma necessidade e um motivo para tal. E neste sentido, tal necessidade só vai aparecendo a partir do momento em que o homem se constitui, enquanto ser no mundo social, que corresponde às diversas faixas etárias onde a conduta humana vai sendo moldada. Assim, partindo da ideia de que o trabalho existe em função de uma necessidade de praticar uma ação útil, pode-se considerar que o trabalho na Umbanda significa praticá-lo na qualidade de médium, para realizar determinados atos com finalidade diversa: desenvolvimento mediúnico, consulta, passe, incorporar o guia, adivinhar o futuro, fazer algumas receitas ou remédios espirituais ou qualquer outro ritual desempenhado no terreiro. Trabalhar na Umbanda significa também uma relação de trocas recíprocas, na qual o médium está sempre em dívida com os espíritos (Birman, 1980).

Fala-se na Umbanda no dar e receber como um princípio moral fundamental que une todos os homens entre si e toda a humanidade viva com os espíritos e os Orixás. A regra é a reciprocidade que complementa e humaniza efetivamente a relação com o sagrado de um lado, e de outro, torna corriqueiro o milagre, a cura e os próprios deuses. Essa reciprocidade traz os deuses ao mundo dos homens e os humaniza, de maneira análoga, também eleva os homens ao mundo divino os purificando e aperfeiçoando.

Utilizando em linhas gerais as conclusões de Patrícia Birman (1980) constata-se que o trabalho umbandista é especificamente a prática da caridade em três instâncias:

1. É um ato que o espirito pratica, através de um cavalo para evoluir;

2. É um ato que o médium pratica incorporado com seu guia;

3. É um ato que o médium realiza ele próprio em nome de seu guia, ou em nome dos princípios umbandistas para também evoluir.

Todas essas práticas da caridade visam atingir alguém – o cliente, alguém que necessita de ajuda, e os espíritos, que também necessitam de ajuda. Desta forma, a prática da caridade se dá numa relação vertical e horizontal formando uma rede de favores e gratidões de baixo para cima, de cima para baixo e lateralmente: o médium recebe do guia algo de graça que ele deva passar adiante para o cliente. Este último, por sua vez, devolve ao médium o que recebeu em forma de produtos, valores, ajuda, formando uma rede de relações como um círculo vicioso, onde quem recebe sempre está na condição de devedor e vice-versa.

Para Birman (1980), esta rede de relações coloca os envolvidos em uma relação assimétrica permeada pelo poder que um exerce sobre o outro. Esta relação de poder é expressa através da "superioridade daqueles que estão na posição de doadores desinteressados em relação àqueles que estão recebendo." (p. 174). Portanto, a prática da caridade propõe uma visão moralista da estrutura social.

No caso da criança, este tipo de relacionamento nem sempre funciona. Baseados na ideia de que a criança não possui responsabilidades, os umbandistas acabam considerando as atitudes infantis simplistas demais, pois suas atitudes não são baseadas nas regras sociais, e sim, nas suas vontades e gostos pessoais que costumam ser rápidos e de fácil esquecimento.

O que se percebe é que na fala do médium adulto a criança não pode assumir a caridade, ou melhor, não deve praticar a caridade porque não está apta ao processo de troca espontânea. Dizem: a criança não sabe dar nada desinteressadamente e nem tão pouco fazer algo sem obter nada em troca. É como se disse que ela não sabe utilizar o poder mágico que tem em favor dos ideais umbandistas. Contudo, esses argumentos não impedem a iniciação de crianças de variadas idades na Umbanda, pois este processo tem outras implicações relacionadas a cargos ancestrais ou a saúde.

Mas, como não existe uma idade fixa para se prestar a caridade, depende-se exclusivamente da maturidade de cada uma, o lugar da criança neste sistema religioso não pode ser desvalorizado totalmente. Apesar de toda a reinterpretação das regras da sociedade sobre infância, trabalho e família, os umbandistas não perdem de vista os desígnios divinos, os dons, a missão, como pode ser observado no depoimento que se segue:

Nós sabemos que a mediunidade não tem idade, ela aflora independente de indivíduo para indivíduo. Logo a conclusão que nós chegamos é que, na criança, ela deve ser bem orientada para não interferir no seu desenvolvimento como pessoa. No caso de uma criança apresentar, aqui no Centro, uma mediunidade espontânea, que está na sua natureza e sua constituição se presta a isso, ela deve ser orientada e nunca, nunca, provocada.

A imagem cultivada por estes umbandistas sobre o trabalho da criança passa necessariamente pela falta de maturidade psicológica que esta apresenta e não pela capacidade da sua mediunidade. Isto nos leva a pensar que de acordo com o grau de socialização dado pela família, a criança atingirá ou não a maturidade que lhe permita trabalhar como os demais médiuns. Em alguns casos, ela tem sua iniciação adiada para depois dos doze anos de idade, o que é bastante significativo, pois coincide com o início da adolescência.

Todavia não se deve esquecer que o médium de berço é aquele que já nasceu com a sua cabeça feita; ele ou ela já está pronto para incorporar as entidades antes mesmo de nascer. Portanto, sua mediunidade não será desenvolvida como a de um adulto, mas apenas orientada. Enquanto o médium adulto precisa trabalhar e praticar a caridade para evoluir, o médium de berço já é evoluído. O médium tem que descobrir e trilhar seu caminho, o médium de berço, vem com esse caminho aberto em direção à terra de Aruanda, portanto a evolução espiritual desejada pelos umbandistas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De um modo geral, na Umbanda, a infância é considerada como a idade da imperfeição, uma vez que na concepção da maioria das pessoas, as crianças são tidas como seres inocentes semelhantes a anjos, que estão alheias ou inaptas a certos valores5. Essa percepção segue as molduras da cultura ocidental e da infância nela construída6, o que nem poderia ser diferente, pois, como afirma Clifford Geertz (1978, p. 106) a religião "[...] é um sistema de símbolos que atuam de acordo com os padrões culturais de uma determinada sociedade. Padrões culturais que dão significado a uma realidade social e psicológica, modelando-a e modelando-se ao mesmo tempo".

No entanto, esses anjos (as crianças) devem se transformar em seres humanos cuja conduta moral seja impecável. Ora, o cuidado dispensado a elas Institui uma visão moralista que assegura a continuidade do sistema religioso. A criança vai absorver a visão do mundo umbandistas de uma maneira gradativa e sistemática. Ela absorve esta percepção com a coloração particular que lhe é dada pelo grupo ao qual faz parte, melhor dizendo, a família umbandista. Se essa família é constituída em sua grande parte, por pessoas oriundas de classe média, o processo iniciático e sua mediunidade passam por interpretações e gostos e estilos da classe. Se esta família é de classe baixa, envolvidas com outras referências religiosas e até mesmo outras modalidades afro-religiosas, as dúvidas sobre sua iniciação, seus dons são resolvidos imediatamente pelos desígnios das entidades, ou mesmo dos Orixás.

A criança passa a se identificar com o modelo que sua família umbandista segue, partilhando crenças e costumes, participando ou não dos rituais e festas especiais; brincando e conversando com as entidades, aprendendo e armazenando informações que vão moldar um comportamento social coerente e aceito pelo grupo. A criança é socializada dentro de uma relação família – religião, uma vez que a religião umbandista é um sistema estritamente familiar e a família é o núcleo central desse processo.

Portanto, apesar da existência de um discurso mais afeito ao modelo da sociedade ocidental da livre escolha religiosa e da falta de confiança nas atitudes infantis, a criança é a representação da continuidade, manutenção e perpetuação da família e, consequentemente, da própria Umbanda. A iniciação de uma criança pode ser considerada como uma estratégia política de manutenção do grupo religioso, principalmente naqueles onde a sua religião foi transformada em tradição familiar. Neste contexto, a criança pode representar um contingente especial de reserva capaz de fornecer novos servidores ao culto, uma vez que ela representa a futura geração umbandista.

 

Referências

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Berger, P.; Luckman, T. (1987). A construção social da realidade. (7. ed.) Petrópolis, RJ: Vozes.         [ Links ]

Bergson, H. (1948). L"evolution creative. Paris: PUFF.         [ Links ]

Birman, P. (1980). Feitiço, carrego e olho grande, os males do Brasil são: estudo de um centro umbandista numa favela do Rio de Janeiro. (Dissertação de mestrado). PPGA; Museu Nacional/ UFRJ.         [ Links ]

Brown, D. (1974). Umbanda: politics of an urban religious movement. (Tese de doutorado). New York: Departamento of Anthropology, Columbia University.         [ Links ]

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Cunha, W. R. (2013). Transe mediúnico, entre a ciência e a religião: uma análise sobre as relações entre o espiritismo e a parapsicologia. (Tese de Doutorado).PPGCR, PUC-GO.         [ Links ]

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Silva, O. J. (1983). Culto omoloko: os filhos de terreiro. Rio de Janeiro: s/ed.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 05/09/2016
Aprovado em: 10/12/2016

 

 

Notas sobre os autores:

Marilu Marcia Campelo: Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do NEAB Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA) e Grupo de Estudos e Pesquisas Roda de Axé - CNPq. É professora na Universidade Federal do Pará. E-mail: dodoyaster@gmail.com.

Alef Monteiro: Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará. Integrante do NEAB Grupo de Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA) e Grupo de Estudos e Pesquisas Roda de Axé - CNPq. E-mail: alefmonteiro1@gmail.comalefmonteiro1@gmail.com.

 

 

 

 

1 Disponível em: <https://casadopaibenedito.wordpress.com/mapa-do-site/estudos-sobre-umbanda/ mediunidade -na-umbanda/ >. Acesso em 09 nov. 2016
2
Disponível em: <https://casadopaibenedito.wordpress.com/mapa-do-site/estudos-sobre-umbanda/ mediunidade -na-umbanda/ >. Acesso em 09 nov. 2016
3 Disponível em: < https://casadopaibenedito.wordpress.com/mapa-do-site/estudos-sobre-umbanda/ mediunidade -na-umbanda/ >. Acesso em 09 nov. 2016
4Disponível em: < https://casadopaibenedito.wordpress.com/mapa-do-site/estudos-sobre-umbanda/ mediunidade -na-umbanda/ >. Acesso em 09 nov. 2016
5 Para melhor compreensão da construção do eu das crianças na Umbanda sugerimos a leitura do texto "O estágio do espelho como formação da função do Eu", de Jacques Lacan (1998) que, mesmo não trabalhando esta religião, elucida diversos aspectos sobre a socialização conflituosa das crianças em meio a dualidade de "trabalhar" ou não "trabalhar", na medida em que o "eu" delas é formado a partir do discurso do meio em que estão inseridas
6 Como expões essa construção Phillippe Ariès, 1986.

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