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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.1 Belém Jan. 2017

 

Artigo

 

Contributos da hermenêutica para a psicanálise

 

Contributions of hermeneutics to psychoanalysis

 

Las contribuciones de la hermenéutica al psicoanálisis

 

Leonor de Brito AmaralI; Vítor FrancoII

Instituto Universitário (ISPA), PortugalI

Universidade de Évora, PortugalII

 

 


RESUMO

Para compreender o ser humano é necessário haver uma reflexão que se efetua sempre através de uma interpretação. Para Paul Ricoeur, não existe compreensão e interpretação sem mediação, pois a mediação é uma condição para poder proceder a uma interpretação. Uma das funções da psicanálise é de desvendar o significado de sentidos ocultos através da linguagem, da escrita. Este artigo trata de algumas ligações entre psicanálise e hermenêutica considerando a psicanálise como hermenêutica pois ambas têm um ponto comum: a interpretação. Será apresentado o exemplo de como uma abordagem clínica da obra do pintor Wiliam Turner pode ser clarificadora da ligação entre hermenêutica e psicanálise.

Palavras-chave: Hermenêutica; Psicanálise; Interpretação; Paul Ricoeur.


ABSTRACT

In order for the human being to be understood a degree of reflection is necessary, which, in turn, is always carried out through a particular interpretation. For Paul Ricoeur, there is no understanding and interpretation without mediation because mediation is a means toward interpreting. One of the functions of psychoanalysis, as with phenomenology, is to uncover the significance of hidden meanings through language, through writing. This article explores certain connections between psychoanalysis and hermeneutics, qualifying psychoanalysis as hermeneutics given that both share a common feature: interpretation.. It will be exemplified how a clinical approach of the painter William Turner's artwork can clarify connections between hermeneutic and psychoanalysis.

Keywords: Hermeneutics; Psychoanalysis; Interpretation; Paul Ricoeur.


RESUMEN

Para entender al ser humano es necesario realizar una reflexión que se efectua siempre a través de una interpretación. Para Paul Ricoeur, no existe comprensión e interpretación sin la mediación porque la mediación es una condición para llevar a cabo una interpretación. Una de las funciones del psicoanálisis, es desvelar el significado de sentidos ocultos a través del lenguaje, de la escritura. Este artículo presenta algunas relaciones entre el psicoanálisis y la hermenéutica considerando el psicoanálisis como hermenéutica porque ambos tienen un punto en común: la interpretación. Se presenta el ejemplo de como abordaje clínico de la obra del pintor William Turner puede aclarar la relación existente entre la hermenéutica y el psicoanálisis.

Palabras-clave: Hermenéutica; Psicoanálisis; Interpretación; Paul Ricoeur


 

 

HERMENÊUTICA: ETIMOLOGIA E SIGNIFICADO

A palavra hermenêutica vem do grego hermeneutikos. Trata-se, num sentido filosófico, da teoria da interpretação de símbolos como elementos simbólicos de uma cultura. É alusiva ao deus grego Hermes (hermeneia), mensageiro dos deuses, e a uma transferência de significados. O deus Hermes era o mensageiro, o intermediário entre os deuses e os humanos, e representa a livre circulação de significados entre estes dois grupos. A palavra hermeneia foi traduzida em latim como interpretatio e originou mais tarde a palavra "interpretação". Gadamer (1977) insiste nas origens sagradas do termo: Hermes não era simplesmente um mensageiro, ele formulava as explicações sobre as ordens divinas e traduzindo-as em linguagem inteligível para os homens. O efeito inerente e próprio à hermenêutica consiste fundamentalmente em transferir um conjunto de significados num outro mundo, no mundo do destinatário.

A atitude do interpretador implica, portanto, uma submissão à intenção de significado da mensagem de origem. A explicação é sempre mais abundante que esta mensagem, que o documento original, pois pode haver hipóteses contraditórias, multiplicações de significados e as conclusões podem originar um leque de opções interpretativas (Gusdorf, 1988). A hermenêutica pertence a várias disciplinas, a todas as áreas que se sirvam e que se interessem por teoria da interpretação, como, por exemplo, a filosofia, a teologia, a psicologia ou o direito.

Segundo Paul Ricoeur, a ciência da interpretação é o trabalho que consiste em decifrar o sentido oculto num sentido aparente e desenvolver novos níveis de significados implicados no significado literal (Ricoeur, 1969). A hermenêutica, para este autor, consiste em interpretar os sentidos ocultos nos textos e nos símbolos. Existe uma pré compreensão que precede e impulsiona uma interpretação. O sujeito que interpreta tenta elucidar um mistério, um enigma, a partir de uma pré suposição.

A partir das definições de ambas as áreas, hermenêutica e psicanálise, podemos afirmar que a psicanálise tem uma ligação clara e evidente com a hermenêutica. Para Paul Ricoeur, uma interpretação é sempre realizada a partir de um símbolo que contém um sentido múltiplo e, por essa mesma razão, revela-se necessário proceder a uma descodificação. Não existe compreensão e interpretação sem mediação. E é esta uma das condições para podermos interpretar.

Podemos afirmar que todos nós interpretamos. Aliás, a existência só pode ser compreendida e adquirir um significado para os sujeitos através da interiorização de sentidos revelados pelas interpretações que realizamos. "A interpretação contém a ideia de uma compreensão de si e de uma apropriação de sentido. A compreensão de si só aparece numa dupla apropriação mediatizada pela distanciação." (Ricoeur, 1969, p. 17).

No entanto, quando interpretarmos temos sempre de ter em conta que todos os sujeitos nascem dentro de um tempo, de um contexto e de uma história. Isto torna-se particularmente importante para os fenomenologistas e para os psicanalistas, cujo método de trabalho passa obrigatoriamente por uma ou várias interpretações.

As interpretações, segundo Paul Ricoeur, têm de ser abertas a novos sentidos e originar outras possibilidades interpretativas. Ricoeur acrescenta que uma interpretação pode ser mais provável à luz do que sabemos, o que é diferente de afirmar que as nossas conclusões são categoricamente verdadeiras (Ricoeur, 1965). "A existência sobre a qual pode falar uma filosofia hermenêutica, é sempre uma existência interpretada." (Ricoeur, 1969, p. 49). Em hermenêutica, como na psicanálise, a interpretação não é uma verdade absoluta. O essencial é respeitar as possibilidades oferecidas pelo material que o sujeito nos mostra, nos conta ou nos traz.

Se na teoria da hermenêutica de Paul Ricoeur, a interpretação é sempre realizada através de um símbolo, a hermenêutica e os símbolos passam a ser indissociáveis. Pois é através de uma plurivocidade de sentidos, realizada a partir de um símbolo, que se pode optar por uma interpretação deste símbolo específico. "Toda a estrutura de significação onde um sentido directo, primário, literal, designa por acréscimo um outro sentido indirecto, secundário, figurado, que não pode ser apreendido senão através do primeiro" (Ricoeur, 1969, 16). A hermenêutica procura portanto ir para além do símbolo, através de um ou de vários novos sentidos. Esta função é igualmente inerente à psicanálise e à fenomenologia.

 

CRÍTICAS DE PAUL RICOEUR À PSICANÁLISE

A hermenêutica e a psicanálise sempre foram objeto de diálogos e debates entre filósofos e psicanalistas. Podemos citar as discussões entre Ricoeur e Lacan sobre as quais Paul Ricoeur acabava por concluir: "A crítica mais fundamentada que os lacanianos me fizeram foi de nunca ter entendido nada de Lacan" (Ricoeur, 1995a, p. 37). No entanto, a psicanálise não se reduz a Lacan, e Paul Ricoeur interessou-se pela psicanálise da mesma forma que Lacan se interessou por hermenêutica.

Na sua tese de doutoramento, Lacan afirmava que eram os significados que um sujeito atribui aos eventos da sua vida que são decisivos e não causalidades orgânicas em si, no que dizia respeito a atribuições de diagnósticos psiquiátricos (Lacan, 1980). Ou seja, para Jacques Lacan, era a interpretação e o significado dos sujeitos que eram essenciais e não uma base biológica estrita. Neste aspecto estava mais próximo dos fenomenologistas (Merleau-Ponty) que de certos psiquiatras cujas bases eram estritamente biológicas. Houve e ainda existe algum interesse dos psicanalistas pela hermenêutica pois a interpretação é uma das bases da psicanálise. Partindo do princípio que a interpretação é a base do método de investigação psicanalítico, como sublinham Laplanche & Pontalis no seu Vocabulário da Psicanálise. Segundo a sua definição temos de admitir que a psicanálise está diretamente relacionada com hermenêutica quando a definem como:

Disciplina fundada por Freud e na qual, com ele, podemos distinguir vários níveis: A) Um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação de significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginarias (sonhos, fantasmas, delírios) de um individuo. Este método baseia-se principalmente nas associações livres do individuo, que são a garantia da validade da interpretação. A interpretação psicanalítica pode estender-se a representações humanas para as quais não se dispõe de associações livres. B) Um método psicoterapêutico baseado nesta investigação e especificado pela interpretação controlada da resistência, da transferência e do desejo. Com este sentido se relaciona o uso da psicanálise como sinónimo de tratamento psicanalítico; exemplo: começar uma psicanálise ou (uma análise). C) Um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos pelo método psicanalítico de investigação e de tratamento. (Laplanche & Pontalis, 1968, p.495).

Vemos que quer enquanto método de investigação quer enquanto método psicoterapêutico a questão da interpretação é central.

No livro "Conflito das Interpretações", Paul Ricoeur parece apreender a psicanálise de forma reticente no que diz respeito à interpretação, pois afirma que

A psicanálise apenas pode encontrar aquilo que procura; aquilo que procura é a significação "económica" das representações e dos afectos postos em jogo no sonho, na neurose, na arte, na moral, na religião, portanto, ela não poderia encontrar outra coisa a não ser expressões disfarçadas das representações e dos afectos que pertencem aos desejos mais arcaicos do homem. Este exemplo mostra bem a amplitude de uma hermenêutica filosófica no simples nível semântico. (Ricoeur, 1969, p.16).

No entanto, a psicanálise não se reduz a meros afectos e desejos e Ricoeur considera a psicanálise como uma hermenêutica e um objecto de estudo. A psicanálise é, para ele, uma hermenêutica, diferente da fenomenologia mas, no entanto, concede-lhe claramente esse estatuto: "Outros métodos hermenêuticos forçam-nos também a fazer este movimento que a psicanálise, compreendida como hermenêutica nos obriga a operar, embora de maneira diferente." (Ricoeur, 1969, p.23).

A psicanálise como hermenêutica, de acordo com Paul Ricoeur, pode ser entendida como dependente da teoria psicanalítica freudiana (e portanto de conceitos psicanalíticos centrais, tais como o desejo e o inconsciente), mas nunca deixa de ser uma disciplina filosófica ou, pelo menos, uma disciplina para o filósofo (Ricoeur, 1969). Quando realizamos uma interpretação psicanalítica, segundo Ricoeur, somos automaticamente condicionados pela teoria psicanalítica. Pode existir, por exemplo, uma regressão do sentido ao desejo.

Através da compreensão de nós mesmos, dizíamos, apropriamo-nos do sentido do nosso desejo de ser ou do nosso esforço para existir. A existência, podemos agora dizê-lo, é desejo e esforço. Chamamos-lhe esforço para lhe sublinhar a energia positiva e o dinamismo, chamamos-lhe desejo, para lhe designar a falta e a privação (Ricoeur, 1969, p. 23).

Esta é uma das grandes críticas de Ricoeur à psicanálise. Para ele, a psicanálise é restrita em termos interpretativos. A psicanálise faz parte de uma vertente à qual Ricoeur chamava a hermenêutica da suspeita pois, na sua opinião, privilegia uma interpretação redutora. O inferior explica o superior e impede, a seu ver, uma verdadeira criação de sentidos e de significados (Porée, 2009). Até um mecanismo de defesa como a sublimação (mecanismo considerado elaborado e diretamente ligado a atos criativos) se encontra na teoria psicanalítica ao serviço de objetivos pulsionais que ela transforma em algo culturalmente ou socialmente aceite e/ou valorizado. Podemos observar o resultado da sublimação na pintura, na literatura, na escultura, ou, de uma forma mais geral, no domínio das artes.

Se estas obras são criações, é na medida em que elas não são simples projeções dos conflitos do artista mas são o esboço das suas soluções; o sonho olha para trás, para a infância, para o passado; a obra de arte está em avanço relativamente ao artista: é um símbolo prospetivo da síntese pessoal e do futuro desse homem em vez de um sintoma regressivo e de conflitos não resolvidos (Ricoeur, 1995b, p. 544).

A análise de obras criativas, segundo Paul Ricoeur, não é um fim em si mas uma abertura a novos sentidos.

Outra noção importante que Paul Ricoeur relembra à psicanálise, através da narração da história pessoal de um sujeito, é que este não é apenas o resultado de pulsões e outros processos económicos (no sentido psicanalítico do termo) mas igualmente de fatores sociais e culturais, tais como a sua afiliação a diferentes esferas sociais e culturais. A dimensão de alteridade não é dominante na teoria psicanalítica, sendo o sujeito o centro da atenção do analista e o objeto de estudo na teoria psicanalítica tradicional. Não é que os indivíduos à volta do sujeito não tenham uma importância emocional e decisiva mas a terapia analítica clássica é centrada no sujeito em si.

 

POSIÇÃO DA PSICANÁLISE NA HERMENÊUTICA DE PAUL RICOEUR

Paul Ricoeur criticou imenso a construção freudiana da teoria psicanalítica. Mas, no fim da carreira, veio a reconhecer, em Psychanalyse et Interprétation, un retour critique, que a prática da psicanálise vai sempre mais além da teoria. Existe na prática uma relação entre o analista e o analisando. Existe sempre uma resistência, por parte do analisando, e igualmente uma transferência e contratransferência que levam Ricoeur a repensar algumas críticas anteriormente realizadas. Não nos parece que a psicanálise para Paul Ricoeur fosse estritamente apreendida como uma inimiga. Pelo contrário, é uma aliada: "Estaríamos errados em pensar que a relação que Paul Ricoeur tinha com a psicanálise era marcada, em primeiro lugar, por hostilidade ou polêmica" (Porée, 2009, p.406).

Alguns conceitos, fundamentais em psicanálise, foram objeto de particular interesse para Ricoeur, como por exemplo a interpretação dos sonhos. Por muito que a teoria psicanalítica pudesse ser alvo de críticas, relativamente à interpretação do sonhos, Paul Ricoeur reconhece que, para a consciência, o sonho pode não fazer sentido, numa primeira fase e não está obrigatoriamente em nosso poder apreender um significado subjacente. Para que possamos entender o significado dos sonhos e, consequentemente, a nós próprios, precisamos passar por uma interpretação. Neste caso, a ajuda externa de um intérprete pode revelar-se pertinente, às vezes até indispensável. A interpretação, no caso do sonho como no caso de sintomas neuróticos, é uma interpretação realizada por outro indivíduo. Segundo Ricoeur, tem de ser outra pessoa a interpretar para que o sujeito se possa reconciliar consigo próprio (Ricoeur, 1950). A psicanálise, em vez de proceder a uma negação da consciência, pode ter como efeito expressar uma vontade de compreensão de certas informações que a priori escapam ao sujeito. Pelo seu método de trabalho, a psicanálise convoca uma interpretação narrativa que tem uma utilidade que Paul Ricoeur reconhece. Se um paciente decide entrar num processo analítico é porque se pode sentir desestabilizado por sintomas, comportamentos ou pensamentos que não fazem sentido para ele, ou porque sente que não entende o significado de tais comportamentos ou pensamentos. O analista pode ajudar o sujeito a reconstruir a sua história e pode dar outros critérios de inteligibilidade da situação, fazer com que o sujeito possa apreender a sua história de uma forma nova e, consequentemente, diferente.

Outro aspecto importante: a identidade humana não é estática mas temporal, muda consoante as épocas e os eventos vivenciados, e existe uma necessidade de expressar e elaborar uma identidade narrativa. No entanto, Ricoeur acredita que, antes de chegar ao ponto de contar a sua história, o sujeito passa pelo conceito de estrutura pré narrativa da experiência. (Ricoeur, 1983). Nesta fase, os acontecimentos vivenciados pelo sujeito ainda não contêm um significado para o próprio sujeito. Esse significado aparecerá mais tarde durante a psicoterapia psicanalítica. Nesta fase, o sujeito conta os sonhos, ou certos episódios conflituais, por exemplo, e é a partir destes elementos que pode surgir um discurso constitutivo da identidade pessoal. Se essa identidade é fundamental para o sujeito, Paul Ricoeur reconhece que o discurso que o sujeito pode ter não é exaustivo da sua identidade. Não somos apenas o que contamos, somos mais do que isso (Ricoeur, 1985). O objetivo da cura psicanalítica, para Ricoeur, é permitir aos sujeitos construir significados da sua vida. O percurso da transferência dos conflitos de forças para os conflitos de sentido constitui o evento psicanalítico na sua essência. E se há uma história na cura, ela situa-se no deslocamento das relações entre as forças pelas quais o sujeito sofre, sem ser locutor, para uma zona reconhecida no seu sentido e já não apenas no seu sofrimento puro. É precisamente por esta razão que a psicanálise é uma hermenêutica: ela está, e estará eternamente, ligada a uma tentativa de construção de sentido para o sujeito.

Ao observarmos o interesse de Paul Ricoeur pela psicanálise, note-se que a sua perspectiva é elaborada a partir de três modelos. O primeiro modelo é uma teoria da reflexão como reapropriação, a segunda é a teoria da narração como construção e reconstrução da identidade, e a terceira uma teoria de reconhecimento como percurso de emancipação. Trata-se de três teorias que o autor desenvolve em L'homme Capable e que são diretamente aplicáveis em contextos de análise, pois esta terapia é baseada na expressão oral, na interpretação e na reconstrução de sentidos. A psicanálise é uma hermenêutica e pode desenvolver pontes futuras com a filosofia (Busacchi, 2010).

 

A METODOLOGIA HERMENÊUTICA EM TRABALHOS DE PSICANÁLISE RELATIVOS À ARTE

Um dos campos em que a interpretação psicanalítica pode ser importante é na análise de obras de arte, na qual pode assumir duas vertentes: a primeira a análise biográfica do criador e a segunda a análise do universo da obra artística (Nakazu, 2010).

Sobre este postulado desenvolvemos um trabalho de pesquisa (Amaral, 2016) sobre William Turner, pintor inglês da época romântica, pré-impressionista e préabstracionista, no qual não pretendemos estabelecer o funcionamento psíquico ou elaborar um quadro clínico do artista mas analisar conteúdos/representações simbólicas do seu mundo interno que foram projetadas num suporte (às suas telas) tendo por objetivo iniciar um diálogo com o Outro.

Colocamos, como ponto de partida, duas hipóteses. A primeira é que a relação materna foi, para William Turner, objeto de questionamento permanente à volta de uma dualidade (conflito estético). Esta primeira hipótese foi sugerida pela afirmação que "a sua obsessão pela sua privacidade e a sua indisponibilidade em construir uma família convencional foram relacionadas com a doença mental da sua mãe" (Brown, 2012, p. 3). É conhecido que o pintor não teve relações afetivas assumidas, talvez por causa da impossibilidade de um desenvolvimento são da relação materna durante a infância. Não sabemos até que ponto ele conseguiu separar-se do objeto primário (mãe) e teve a possibilidade de efetuar transformações simbólicas que pudessem permitir-lhe suportar a ausência desse objeto. Esta hipótese encontra sustentação no postulado de Meltzer segundo o qual

o impacto da separação, da privação- emocional ou física, de doença física, do conflito edipiano -pré-genital e genital, de fortes fatores imprevisíveis, de seduções e de brutalidade, de indulgencia, de superprotecção, de desintegração familiar, de morte dos pais e dos irmãos- tudo isso tira a essência do seu significado para o processo de desenvolvimento da sua contribuição como aspetos do processo subjacente e fundamental de evitar o impacto da beleza do mundo, e da intimidade apaixonada com outro ser humano (Meltzer & Williams, 1995, p. 52).

A segunda hipótese é que existe uma procura constante de luz nas obras de Turner, e que essa representação da luz é uma tentativa de elaboração da relação materna tendo como objetivo uma reparação. A presença de luz nos quadros é uma presença relacionada com o objecto primário. A luz simboliza o objecto primário nos quadros de Turner. A maioria das suas representações estão ligadas à natureza. Como diz Stokes no livro de Meltzer A apreensão do belo: o papel do conflito estético no desenvolvimento, na violência e na arte:

O mundo artístico monopoliza a expressão da beleza e da bondade da realidade psíquica (…) na natureza podemos encontrar refletida a beleza que já possuímos. Mas a Arte ajuda-nos a recuperar o que perdemos. Representar a luz é uma forma para William Turner de recuperar o que perdeu. Pois o receio de perda é um fator dinâmico da necessidade de possuir e incorporar (Meltzer & Williams 1995, p. 249).

Na realização deste trabalho foi usada uma metodologia qualitativa, a partir da análise de onze quadros de William Turner, pintados entre 1789 e 1845. Este estudo dos quadros foi permanentemente cruzado com os dados biográficos do autor. A metodologia clínica do estudo baseia-se na hermenêutica, ou seja o estudo da interpretação. Segundo Heidegger, "a interpretação é um desenvolvimento da compreensão e por ela o compreender apropria-se, compreendendo, do compreendido. A interpretação não transforma a compreensão noutra coisa diferente, mas fá-la ser ela mesma, explicitando-a, tematizando-a." (Heidegger, 1971, p. 32). Para Paul Ricoeur, o símbolo é uma expressão linguística que tem um sentido duplo e que requer uma interpretação, sendo esta um trabalho de compreensão que visa a desvendar o significado de símbolos. A interpretação é iniciada a partir do símbolo e é uma atividade de decodificação (Ricoeur, 1965).

Como dissemos anteriormente, para Ricoeur não existe compreensão e interpretação sem mediação, pois esta é uma condição da possibilidade da interpretação e da compreensão. Neste caso, os objetos mediadores são as obras realizadas pelo pintor. Partimos do princípio que a existência só se pode compreender e adquirir sentido através da interpretação e da interiorização de sentidos revelados pela interpretação. Sempre tendo em conta que o sujeito nasce dentro de um tempo, de um contexto, de uma história. Essa a razão para, além da interpretação, termos cruzado os dados com a biografia do pintor. Também tivemos em conta que os homens são influenciados pela cultura em que se encontram e pelos factos históricos que ocorrem nesse seu contexto, como, no caso de Turner, a Revolução Industrial.

O método escolhido baseou-se também num postulado de Gadamer (1977) que afirma que compreender uma obra não significa reconstruir uma vida passada. O sentido autêntico baseia-se numa participação no que a obra nos comunica. As informações a partir das quais se pode proceder a uma análise encontram-se nos quadros do artista. A obra contém as informações que nos são necessárias para proceder a uma interpretação. As interpretações têm de ser abertas a novos sentidos e podem originar novas possibilidades interpretativas. "A própria ontologia não é dissociável da interpretação no jogo e no círculo entre interpretar e ser interpretado, pois todas as interpretações, ainda que conflituosas ou mesmo contraditórias, são igualmente válidas" (Ricoeur, 1969, p. 126-27). Tivemos ainda em consideração que

qualquer representação não passa de uma aproximação, e qualquer objeto de domínio revela-se um jogo incerto. O ente oferece-se à nossa apreensão, mas cada um de nós capta-o, manipula-o com a sua subjetividade e com os instrumentos conceptuais e imaginativos que a cultura onde está inserido disponibiliza (Carreiras, 2005, p. 41).

Para compreender o ser humano é necessário haver reflexão sobre o sentido de um objeto de estudo (livros, psicanálise, sociologia, quadros). Essa reflexão efetua-se através de uma interpretação que nos leva a poder expressar sentidos ocultos através da linguagem ou da escrita (função inerente à psicanálise). É importante voltar a sublinhar que a psicanálise permite a realização de interpretações distintas sobre o mesmo suporte material. E que todas elas podem ser verdadeiras.

A análise das obras de William Turner baseou-se assim nos conteúdos dos quadros, nas lendas e nos mitos aos quais o pintor se refere, nos dados biográficos, nos objetos representados (cascatas, pôr do sol, barcos, luz), no contexto histórico da época em que foram realizados, nos limites representados nas obras (contenção, porosidade dos limites) e na impressão geral das obras. A partir do uso sistemático deste procedimento de estudo das obras que foram objeto de análise, pudemos verificar, desde logo, que William Turner expressa a tendência natural, inerente aos artistas, para pintar as suas problemáticas internas. E foi possível constatar a presença de símbolos específicos e recorrentes.

A luz é a sua problemática principal. Ele tem uma profunda necessidade de a evidenciar, de ir ao centro da luz, de encontrar um significado. Esta luz é o mistério que é possível ser relacionado com o conflito estético de Meltzer, assumindo que William Turner o tentou desvendar ao longo de toda a sua vida. Ao longo da análise dos quadros podemos igualmente verificar que a relação materna é problemática, cheia de tentativas de reelaboração sendo igualmente uma forma de manter uma ligação à mãe e não dar espaço a uma perda do objeto. Esta representação da mãe está ligada a uma dualidade. Por um lado é profundamente bela, relacionada com um universo onírico, sendo procurada e desejada, e, ao mesmo tempo, tem uma componente agressiva e, em certos casos, pode mesmo aparentar-se a uma tortura. O que nos faz pensar que estas referências a relações precoces com a mãe são um indicador de falhas na relação, que talvez não tenham sido bem vividas, sentidas, deixando, pelo contrário, "lembranças" de um objeto primário apaziguador e contentor. Sente-se uma ansiedade nos quadros, associada a conteúdos regressivos que reenviam a um passado dos primeiros tempos da infância.

A relação é ambígua e existem quadros onde todos os elementos se fusionam. Ao nível da relação materna em si, reparamos na existência de um desejo claramente sexual e que a relação pode ter sido apreendida nalgumas fases da vida do pintor quase como uma de relação de casal. Por outro lado, na sua biografia constata-se que nenhuma relação afetiva foi assumida; como se o espaço mental de William Turner estivesse absorvido por outra relação.

O elemento da água está presente em quase todas as obras, e pode reenviar-nos a relações simbióticas fazendo pensar num contexto apaziguante e contentor. A mesma dualidade de significado existe nas serpentes (maldade e cura). As obras de Turner são olhadas pelos críticos de arte e artistas exatamente nessa mesma dualidade: por um lado, sentem-se atraídos pela luz e pelos aspectos técnicos do pintor, por outro dizem que a sua pintura "desestabiliza" e é "angustiante", às vezes devido à fusão dos elementos e à falta de um espaço contentor.

Relativamente ao espectador, o efeito visual dos quadros atrai. Existe um efeito hipnótico em certas obras, nomeadamente nos quadros que mostram um efeito de vortex, em que nos sentimos "aspirados" para dentro da obra, no meio de elementos em movimento que se encontram no centro do quadro. Esta experiência pode ser vivida como sendo muito agradável ou desagradável consoante o sujeito que observa a obra. A luz chama igualmente a atenção do espectador; pode transmitir uma paz interna ou uma profunda instabilidade. E não é certo que todos consigam apreender o significado da ambivalência da luz para William Turner, pois muitas vezes a luz pode aparentar ser muito suave e na realidade ter um significado negativo para o pintor.

William Turner tentou comunicar através das suas obras, e do seu talento natural para as artes, a forma como via e apreendia contextos históricos, os seus conflitos internos relativos à relação materna, através da luz, da água, da representação de mulheres lindíssimas nas suas obras, de naufrágios, de inícios (nascer do sol) e de fins (pôr-do-sol).

As razões do seu não investimento na vida privada parecem estar expressas nas obras. A relação materna foi objeto de uma tentativa de reencontro e de restauro ao longo de toda a vida de William Turner. Como se o espaço mental do pintor fosse absorvido por essa relação e pelo questionamento permanente do objeto primário através do conflito estético, da necessidade de representação e de fascínio pela luz. A qual, para Turner, era essencial, o que o levou até a inventar técnicas de pintura e descobrir novas gamas de claridade e de escuridão.

Após a análise dos quadros e o cruzamento com os dados biográficos, concluímos que as duas hipóteses inicialmente colocadas são verificadas e válidas: a relação materna para William Turner é objeto de questionamento permanente à volta de uma dualidade (conflito estético) e a presença de luz nos quadros está relacionada com o objeto primário.

É de referir que a hermenêutica sendo um método qualitativo muito eficaz requer sólidos conhecimentos teóricos quando é aplicado em trabalhos de psicanálise, pois é através deste método que podemos confirmar ou contradizer hipóteses formuladas no estudo ou no trabalho realizado. No caso concreto de análise de pintores e de conteúdos internos e processos psicológicos, será necessário analisar diferentes obras no decurso da carreira do pintor, com o intuito de observar as constantes do sujeito. Relembramos como é importante ter em conta que, quando analisamos obras de arte, uma compreensão das obras não significa reconstruir uma vida passada, mas que o sentido autêntico baseia-se exclusivamente no que as obras nos comunicam (Gadamer, 1977).

Também não se deve observar obras e tirar conclusões definitivas sobre a personalidade da pessoa que as realizou. Porque o intérprete nunca terá informações para chegar a tais conclusões. Consideremos simplesmente que a obras contêm as informações necessárias para proceder a uma descodificação.

Outro elemento igualmente importante é que, quando procedemos a uma análise de obras, temos sempre de ter em conta que o sujeito nasceu num certo tempo e contexto histórico. Isto para não apreendermos as informações da obra fora do seu contexto ou formular hipóteses erradas devido a uma projeção massiva por parte daquele que interpreta as obras ou por ignorância do contexto da época.

Este exemplo de análise de obras de arte, neste caso de Turner, é uma proposta de método para psicanalistas que se interessem por hermenêutica e que pretendam utilizar esta área como método de análise em trabalhos psicanalíticos interpretativos.

 

CONCLUSÃO

Seria importante, para os psicanalistas, conhecer melhor o domínio da hermenêutica e dar continuidade a uma óptica de transdisciplinaridade e de diálogo com a filosofia. É de sublinhar que os trabalhos de interpretação psicanalítica a partir de textos e de obras de arte (neste caso, símbolos) muitas vezes podem ter como argumentação e método de estudo a hermenêutica.

Por muito que Paul Ricoeur tenha criticado a psicanálise, o seu trabalho foi, continua e continuará a ser fundamental para os psicanalistas. Pois as suas críticas relativas à teoria psicanalítica, por exemplo, poderiam servir à psicanálise como uma base de evolução. A psicanálise é, para a filosofia, um objeto de interesse e de estudo mas em contrapartida a psicanálise terá de aceitar ser questionada pela filosofia e integrá-la na sua evolução teórica.

Com a psicanálise, confrontei-me com algo que resiste a uma teoria da consciência. É verdade que não levei suficientemente a sério, naquela época, os aspectos fenomenológicos ligados à passividade: as sínteses passivas, nomeadamente. Existem provavelmente pontes possíveis entre a fenomenologia e a psicanálise, mas por uma outra via que uma teoria obstinadamente centrada na consciência (Ricoeur, 1995b, p.112-113).

 

Referências

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Recebido em: 03/01/2017
Aprovado em: 01/03/2017

 

 

Notas sobre os autores:

Leonor de Brito Amaral: Mestre e doutoranda em Psicologia Clínica, ISPA-Instituto Universitário, Lisboa, Portugal. E-mail: leonordebritoamaral@gmail.com.

Vítor Franco: Doutor em Psicologia, Professor da Universidade de Évora, Portugal. E-mail: vfranco@uevora.pt.

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