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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.2 Belém  2017

 

Artigo

 

Fenomelogia da paisagem: prolegômenos de uma gegrafia das essências1

 

Phenomenology of landscape: prolegomena to a geography of essences

 

Fenomenología del paisaje: prolegomenos de una geografía de las esencias

 

 

Rafael Bastos Ferreira

Universidade Federal do Pará

 

 

 


RESUMO

O artigo busca refletir sobre as possibilidades de uma fenomenologia da paisagem na ciência geográfica pela via de algumas orientações fenomenológicas. Entendendo que esta "categoria" ou "dimensão" não se limita na sua forma física ou em seus aspectos acumulativos (históricos), como a paisagem pode se revelar enquanto uma expressaria do mundo-da-vida? Porém, o caráter ontológico não é o nosso interesse central, mas seus traços essenciais. Para tanto, mobilizamos a ciência geográfica para além do seu caráter cientificista, entendo-a como uma ciência das essências de orientação fenomenológica. A paisagem diante desses pressupostos será interrogada como um fenômeno originário da relação fundante entre o homem e a Terra. Portanto, como se efetua a sua apreensibilidade e suas formas essências de compreender o homem no mundo? O que ela significaria para o conhecimento geográfico enquanto experiência antepredicativa?

Palavras-chave: Lebenswelt; Percepção; Geografia fenomenológica.


ABSTRACT

The article seeks to reflect on the possibilities of a phenomenology of landscape in geographic science by means of some phenomenological orientations. Understanding that this "category"or "dimension"is not limited in its physical form or its (historical) cumulative aspects, how can the landscape reveal itself as one express of the lifeworld? But the ontological character is not our central interest, but its essential features. To do so, we mobilize geographic science beyond its scientific character, I understand it as a science of the essences of phenomenological orientation. The landscape before these presuppositions will be questioned as a phenomenon originating from the founding relation between man and the Earth. Therefore, how is its apprehensibility and its essential forms of understanding man in the world effected? What would it mean for geographic knowledge as an antepredicative experience?

Keywords: Lebenswelt; Perception; Phenomenological Geography.


RESUMEN

El artículo busca investigarar sobre las posibilidades de una fenomenología del paisaje en la ciencia geográfica por la vía de algunas orientaciones fenomenológicas. Entendiendo que esta "categoria"o "dimensión"no se limita en su forma física o en sus aspectos acumulativos (históricos), como el paisaje puede revelarse como una expresión del mundo de la vida? Sin embrago, el carácter ontológico no es nuestro interés central, sino sus rasgos esenciales. Para ello, movilizamos la ciencia geográfica más allá de su carácter cientificista, la entiendo como una ciencia de las esencias de orientación fenomenológica. El paisaje ante estos presupuestos será interrogado como un fenómeno originario de la relación fundante entre el hombre y la Tierra. Por lo tanto, ¿cómo se efectúa su aprehensión y sus formas esencias de comprender al hombre en el mundo? ¿Qué significaría para el conocimiento geográfico como experiencia antepredicativa?

Palabras-clave: Lebenswelt; Percepción; Geografía fenomenológica.


 

 

INTRODUÇÃO: PROBLEMAS ANALÍTICOS EM TORNO DA PAISAGEM

Este texto não traz grandes novidades em se tratando de uma crítica epistemológica e de um modo particular no tratamento de um conceito, embora aqui se anuncie como prolegômenos. Respondemos: primeiramente, a nossa orientação fenomenológica se alicerça nos pressupostos filosóficos de E. Husserl (Ferreira, 2015, 2016a, 2016b), porém, neste estágio (texto preliminar) caminhamos de forma mais introdutória (ensaística). Os estudos de Serpa (2016) é caso particular na ciência geográfica no que se trata pensar uma fenomenologia da paisagem pela via husserliana. Em segundo, as análises aqui em curso não recorrem à cientificidade da geografia para interpretar a paisagem. Estamos no percurso de uma filosofia da geografia (ou fenomenologia da geografia) do qual esta última torna-se ela mesma fenômeno – por este motivo esboçaremos uma geografia das essências a fim de alcançar uma interpretação da paisagem fenomenologicamente. Diante disso e, por último, refletimos no seio desta disciplina que passou a privilegiar a materialidade da vida mundana (com razão), porém, deixando a margem os estudos da subjetividade e da intersubjetividade como uma faculdade essencial (de constituição) do ser-no-mundo.

Como já se percebe uma fenomenologia da paisagem já se encontra nos seus afirmativos esforços, assim, não é aqui um empreendimento solitário. Nossa inquietação surge, portanto, a partir de um texto que mexe no estilo do conceito de paisagem: "Um sentido fenomenológico de paisagem: o sentir em mistura do ser-lançado-no-mundo"(Marandola Jr., 2014). Motivado por estas discussões, iremos construir um diálogo a fim de fundamentar uma interpretação ancorada em orientações fenomenológicas, mas que, por outro lado, deseja-se apresentar algumas distinções e contribuições em torno desta discussão.

Introdutoriamente, problematizando a paisagem enquanto um acontecer fenomênico, Marandola Jr. (2014) ergue que seu conceito não pode se limitar dentro de uma dimensão dicotômica (exterior ou interior), ao contrário, ela expressaria em essência o ser-eestar- no-mundo. Pretendemos aqui reforçar esta crítica e transcender o dualismo que ainda hoje vem comprometendo a manifestação do fenômeno no pensamento científico: isto é, ora o fenômeno se apresentando como uma coisa exterior, ora como interior de um dado objeto. O primeiro tem sido de maior interesse da ciência geográfica; entendendo-o como algo resultando, isto é, o fenômeno não seria si a própria apresentação originária, mas a representação do objeto.

O rebatimento deste problema que circunda a teoria do conhecimento resulta na variedade e heterogeneidade sobre a compreensão e conceptualização da paisagem na ciência geográfica. Serpa (2007) ao apresentar os horizontes críticos sobre esta categoria mostra que a tradição crítica passou entendê-la como artefato, como sistema, como ideologia, como produção histórica, isto é, resultante de um processo de acumulação. A perspectiva fenomenológica – ancorando-se nas leituras de Sartre (sobre o conceito de aparição) – compreende-se a paisagem como um fenômeno pertencente entre o visível e o invisível. Em trabalho recente, Serpa (2016) faz uma incursão mais profunda: ancora sua discussão sobre paisagem na fenomenologia transcendental husserliana. A partir de um trabalho de campo realizado com alunos da pós-graduação o autor considerou que o exercício da redução fenomenológica evidenciou "[...] os aspectos subjetivos e intersubjetivos nos processos de constituição da paisagem contemporânea [...]"(Serpa, 2016, p. 29). Portanto, conforme o seu texto de 2007, Serpa busca fundamentar uma abordagem "dialético-fenomenológica"com fins, primeiramente, de aproximar duas tradições e, em segundo, alcançar uma compreensão mais fiel do conceito de paisagem para além das dicotomias.

Em geral a ciência geográfica caminhou por uma via que entende a paisagem enquanto um resíduo da produção do homem no espaço geográfico, isto é, como representação. Isso não significa que negamos a paisagem como materialidade histórica da sociedade, ao contrário, ela é necessária, porém não suficiente. Nosso esforço visa sobre a reflexão subjetiva em detrimento de sua quase ausência na ciência geográfica. Portanto, veremos ao tratar a paisagem em seu modo não muito usual com interesse de provocar uma eidética da paisagem a fim de descortinar essências geográficas. Obrigatoriamente, entra em curso um "por entre parêntese”, visando neutralizar o seu trato meramente objetivista, ou seja, buscar o sentido por trás daquilo que se manifesta na representação.

Ora, se a representação é mera representação de algo que representa, então o índice da questionabilidade é posta com razão, pois, nada de seguro temos para o conhecimento da paisagem na sua evidência apodítica. Não há dúvida, que a representação seja o meio pelo qual se conhece algo (Abbagnano, 2007), no entanto, não nos preocupa o meio, mas sim o sentido primeiro; uma busca pelo eidos (essência)2. Assim, a paisagem não é aqui colocada como um objeto que já possua em si significados. Portanto, Chauí (2000, p. 320) reforça a nossa decisão de não querer ir pelo viés da objetivação da ciência: "O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma”.

Para prosseguirmos na seção a seguir interrogamos outros aspectos que confundem o entendimento da paisagem: o olhar que forma a paisagem ou a paisagem que forma o olhar? A paisagem está no mundo predicativo (na objetividade do mundo) ou é ela uma manifestação intuitiva do ser-no-mundo? A paisagem fala por ela mesma ou precisa ser apreendida? Ela é em si? A paisagem é uma apreensão ou é uma apercepção? Portanto, se considerarmos a priori, os argumentos de Marandola Jr. (2014) que veremos a seguir, a paisagem enquanto ontológica (apreendida pelo sentir), de que modo poderíamos sustentar tais afirmações para compreendê-la como conhecimento originário e fundante do ser-eestar- no-mundo? Na seção a seguir tentaremos refletir sobre algumas dessas questões e, por fim, estabelecer o solo da nossa orientação fenomenológica.

 

PENSAR O SENTIR NA PAISAGEM

Marandola Jr. (2014), entende a paisagem como expressão do mundo-da-vida (Lebenswelt), isto é, a efetividade do ser-e-estar-no-mundo. Porém, antes de aprofundarmos nesta questão, o autor lembra que a paisagem enquanto um objeto estudado pela ciência geográfica entra nesta disciplina pelo viés da arte, mas que acabou por se converter num conceito científico. Quais foram às implicações desta "convenção”? Apresentaremos de forma breve. No pensamento científico moderno, a paisagem tem ficado quase sempre no campo das representações, na maioria dos casos, uma relação distante com as faculdades subjetivas e espirituais da existência humana e, por outro lado, condicionada em uma mera aparência (dada na percepção externa de forma imediata). Como já pontamos, para o geógrafo materialista, é pensada sob um espaço geográfico "historicizado”, posto no mundo predicativo, das relações dicotômicas homem-natureza.

Em sua crítica epistemológica, para Marandola Jr., a paisagem na racionalidade científica ganhou uma condição dicotômica que expressou um homem fora da natureza. Não há dúvidas que tal problemática está ligada a uma racionalidade técnica e instrumental do mundo moderno, como já vem sendo apontando por Habermas e outros autores. Noguera (2004), por exemplo, nas possibilidades de um novo pensamento ambiental, fala de uma despoetização do mundo. Diante disso, temos a evidência que o homem contemporâneo e sua relação com a Terra emerge para uma crise de sentido, pois seu "solo"significativo (munda-da-vida) e seu habitar (Terra) é um todo técnico e racionalizado: ele está desarraigados (Noguera & Muñoz, 2014; Noguera & Arias, 2014).

A queda de uma metafísica da natureza que se inicia a partir do século XVIII mexe no seu estilo estético (Serrão, 2004). Ainda segundo a autora, atualmente uma "estética da natureza"encontra-se seu entendimento como um valor intrínseco ético e jurídico, isto é, como um problema que vem demandando uma ordem de reflexão futura das sociedades contemporâneas. Avesso aos problemas relativos à objetividade científica para Marandola Jr. (2014), Dardel é quem nos abre um horizonte ontológico de paisagem. Vejamos alguns pontos: Dardel (1952/2011) expõe a paisagem enquanto um momento vivido, sendo ela uma ligação interna e não um conjunto de justaposições – comumente tratada na racionalidade científica. O que isso quer dizer? Apensar de sua quantificação ela é ainda presença afetiva. Assim, para Dardel (1952/2011, p. 31) a paisagem "[...] coloca em questão a totalidade do ser humano, suas ligações existenciais com a Terra, ou, se preferirmos, sua geograficidade original [...]”. Embora o homem esteja des-arraigados da "Mãe Terra”, Dardel (1952/2011) buscou seu reencontro a partir de uma geografia que precede sua cientificidade, isto é, um homem não como expressão de separação da natureza, mas sim, fundado no mundo-da-vida.

Marandola Jr., a partir da orientação dardeliana, expõe que a paisagem não é uma cristalização dos tempos, mas sim, uma abertura, um acontecer, um apontar para o futuro, isto é, possibilidades do ser. Com isso, emergindo uma paisagem imanente do mundo-da-vida, como sua expressão, marcando-a como um horizonte significativo da condição do homem de ser-e-estar-no-mundo. A paisagem, então, seria uma necessidade ontológica e constituindo existências e experiências do homem. Portanto, enquanto necessidade, ela não estaria em um círculo fechado, mas sempre, uma expressão da própria existência (Marandola Jr., 2014).

Todavia, como se constitui esta ontologia na reflexão de Marandola Jr.? Recorrendo aos estudos de Besse, a paisagem encontrar-se na "ordem do sentir”, se efetuando como uma disposição original do ser. Porém, o que é o sentir (que está na ordem do sentido) e sua função na apreensibilidade do conhecimento da paisagem? Vamos tecer algumas conceitualizações. De acordo com Abbagnano (2007, p. 873) é a capacidade de sofrermos "[...] alterações por obras de objetos exteriores e interiores”; ou a capacidade de receber sensações. Esta ultima é uma via kantiana. Em sua "estética transcendental"(§ 1, "Crítica da razão pura”) sensação seria, então, o modo de como somos afetados pelos objetos (Kant, 1871/1996, p. 71). É preciso considerar que a estética é a doutrina compreensiva do sentir (Serrão, 2001) e, desse modo, a partir dos pressupostos de Marandola Jr. vamos considerar a paisagem como objeto estético. Vejamos mais alguns pontos. Continuando na filosofia kantiana sobre o sentir, Serrão (2001) aponta que o sentir estético (por exemplo, prazer e desprazer) emerge entre a faculdade de sentir e de refletir, em que se pode distinguir a natureza daquilo que nos atinge pelo o afeto ou por circunstancias exteriores. Por este motivo, sentir "[...] é também pensar, sendo o prazer esse mesmo movimento interior pelo qual o sujeito procura compreender o objeto, conferir-lhe sentido, dotá-lo de inteligibilidade"(Serrão, 2001, p. 83).

Dito isso, o sentir pode estar tanto na ordem da contemplação ou como da admiração. Portanto, a estética aborda o sentimento que alguma coisa bela desperta dentro de cada indivíduo, estar na relação de um sujeito que experimenta a coisa experimentada como qualidade de sentimento. A paisagem como objeto estético pode, com isso, ganhar fundamento correlato quando Serrão (2001) define: "Objecto estético não é um agregado de impressões indiferenciadas, é uma forma sensível, uma representação já unificada e sintetizada pela imaginação. Este objeto-forma é responsável pelo despoletar de um encontro que escapa a lógica dos nexos causais"(p.84).

Holzer (1997) aponta que a paisagem nos remete para o mundo; em referencia a Besse, Marandola Jr. ergue como uma maneira de ser invadido pelo mundo. Neste ato fundamental – um sentir existencial da paisagem – é condição necessária ouvi-la, deixarmos ser invadidos por ela para que possamos viver a plenitude do ser-lançado-no-mundo (Marandola Jr., 2014). Assim, a ideia de uma paisagem sistematizada e racionalizada perde sentido e ganha compreensão para o que o autor chama de horizonte do sentir: a partir de um corpo-vivo-existencial que experiência. Este parágrafo então nos mostra de que a paisagem possui significado próprio, como aponta o próprio autor: a paisagem fala, é significante de si mesma (não estaria nos sujeitos). Este pressuposto nos faz entender de que a paisagem é expressiva, trazendo significado imanente (se mostra). Talvez, se concordarmos com Simmel (2009) quando lembra que muitas vezes estamos diante de colinas, arvores, etc., não somos cientes de ver a paisagem, tal argumente pode ser contestado na esfera da percepção externa.

Nesta asserção, deixar ser invadido pela paisagem, será que a subjetividade do sujeito que a apreende encontra-se na esfera da contemplação? Ressalta-se que a contemplação "[...] exige uma temporalidade distendida, precisa de calma bastante para que a sensação de novo que a suscitou se mediatize e complexifique"(Serrão, 2001, p. 83). O caso da admiração é o lado oposto: causa espanto, surpresa e a temporalidade está no ato imediato da observação e do encontro.

Portanto, uma indagação pode ser feita: o ato da apreensão da paisagem – estando no horizonte do sentir – em que instância e vivência do sujeito a temporalidade se funda, uma vez, que se precede o deixar ser invadido por ela? Marandola Jr. faz um exercício que pode ajudar a responder em parte esta questão: ao tentarmos imaginar uma paisagem, por exemplo, o autor considera que encontraríamos fortes limitações de descrevê-las objetivamente (composição, limites, diferenças, etc.). Fica claro então, que a passividade do sujeito do conhecimento é a possibilidade de apreensão da paisagem em sua originalidade – o seu modo próprio de ser. Por outro lado, imaginar a paisagem se correria o risco de objetiva-la e, desse modo, significá-la (nomear) perde lugar para o objeto significante de si mesmo. Parece então, uma divisão distinta na apreensibilidade da paisagem. Porém, como ficaria a constituição da paisagem em pessoas cegas? Neste caso, quais os limites da percepção externa (sensível), percepção interna e percepção de si3 no que tange excluir a imaginação da paisagem? Sem querer se aprofundar sobre a constituição da paisagem em pessoas cegas, deixamos algumas linhas da tese de Valentini para ampliar as nossas inquietações:

A interpretação de Os sentidos da paisagem aponta para o entendimento de que as pessoas cegas não apenas está, mas ela existe na paisagem. Ela é pertencente e faz a paisagem na medida em que vive nela e a ressignifica. Ela é a paisagem em sentido de pertença, de ligação com a construção da paisagem, atuando ativamente em sua criação. E não há uma paisagem para videntes e outra, diversa, para pessoas cegas. A paisagem é feita por todos nós que nela existimos, embora, dela, a percepção que todos temos seja diversa e peculiar (Valentini, 2012, p.10).

Concordando com a citação, podemos entender de que a paisagem não carrega significado imanente e nem depende do homem para ser revelada. Não seria em si mesma ou significada, mas só existiria na intencionalidade correlata homem-Terra. Em outras palavras, podemos concordar enquanto significante de si mesma, não como algo que se revela ao homem, mas como revelação do próprio homem. Vale considerar, que a imaginação é também uma faculdade do sentir ou como aponta Sartre (1987, p. 100): "a imagem também é imagem de alguma coisa"e, por este motivo, tê-la como referência não conduz ao mero acaso, mas sempre a uma familiaridade. A paisagem é, portanto, uma linguagem do ser geográfico que se inscreve em um mundo familiar (Lebenswelt). Voltamos a esta questão na ultima seção.

Para finalizarmos este diálogo com Marandola Jr. o autor então considera que a paisagem se constitui na experiência sensível (entre o visível e o invisível), porém, assumindo uma totalidade não dita e sim sentida no ser-lançado-no-mundo, de um ser misturado que dilui corpo e alma: sendo um tecido originário de nossa existência, apreendida essencialmente pelo sentir. Pode-se com isso considerar que a paisagem denuncia uma totalidade afetiva e efetiva, do qual, não há paisagem sem a marca do homem (Dardel, 1952/2011), pois ela reconstrói uma vida intencional e um modo de habitar a Terra – uma geograficidade. Portanto, a paisagem enquanto um ente do ser do mundo se manifesta a partir da abertura do mundo, isto é, diante das percepções possíveis. Nesse sentido, o mundo se expõe na paisagem como uma "presença original”. Para Simmel (2009) a paisagem é percebida e apercebida, ou seja, ela é própria da nossa constituição existencial, unidade do factual e espiritual, como disposição anímica, isto é, provocada por uma condição da alma do qual o pensamento racional não consegue expressar. Cabe então, uma ciência (geografia) das essências esboçar algumas compreensões.

 

GEOGRAFIA DAS ESSÊNCIAS: CONSIDERAÇÕES INICIAIS PARA UMA EIDÉTICA DA PAISAGEM

A geografia das essências aqui entendida busca interrogar o fenômeno em sua natureza e essencialidade. Em nosso caso, entendendo e concordando a paisagem como um fenômeno originário. E a partir disso, compreender como se efetua sua apreensibilidade na experiência e na vivência. Estamos de acordo, de que a paisagem revela e une o homem ao mundo tanto em seu modo subjetivo como objetivo. Capitada pelo sentir, como pontou Marandola Jr. entendemos que não há meramente uma recepção de sensações, mas a possibilidade de tomada de consciência dessas próprias sensações. É por este motivo, como expressão do mundo-da-vida, o sujeito do conhecimento dispõe sempre de uma referência.

Se ultrapassarmos a noção de paisagem como "ideia" de representação – objeto apreendido na sua forma imediata – para o solo das experiências originárias, a dimensão subjetiva ganha possibilidade enquanto horizonte intencional. Assim, para além de uma percepção externa como primazia, a percepção interna torna-se imante para a própria constituição de uma ontologia da paisagem.

Mas, para a paisagem, é justamente essencial a demarcação, o ser-abarcada num horizonte momentâneo ou duradouro; a sua base material ou os seus fragmentos singulares podem, sem mais, surgir como natureza - mas, apresentada como "paisagem”, exige um ser-para-si talvez óptico, talvez estético, talvez impressionista, um esquivar-se singular e característico a essa unidade impartível da natureza, em que cada porção só pode ser um ponto de passagem para as forças totais da existência (Simmel, 2009, p. 6).

Não há primazia de uma percepção externa e interna, ela é, por excelência, uma unidade indissociável. A percepção aponta Husserl (1901/1975) é o ato da possibilidade de visar algo (visar indicativo), caso contrário e sem ela, o indicar seria um vazio. Tão logo, a "interioridade"da paisagem não é a negação da "exterioridade”, ela está na ordem de uma percepção interna e externa, encontra-se na vivência psíquica e física. Assim, a paisagem enquanto representação, objeto científico, meramente no seu aspecto físico (do pensamento natural), pouco nos provoca à sua possibilidade subjetiva ou como expressão do mundo-davida devido a uma primazia da percepção externa na sua forma imediata. É claro, não é que a percepção externa seja limitada em si, mas no seu uso científico lhe foi atribuída como evidência de apreensão imediata do objeto, ou seja, como aquela que abarcasse a verdade. Husserl reforça desse modo e expõe o horizonte de abertura que a percepção externa nos apresenta.

A percepção externa (que certamente não é apodíctica) é, sem dúvida, uma experiência do objeto em si – o próprio objeto está ali [diante de mim] –, mas, nessa presença, o objeto possui, para o sujeito que percebe, um conjunto aberto e infinito de possibilidades indeterminadas que não são, elas próprias, atualmente percebidas. Esse espectro, esse "horizonte"é tal que implica a possibilidade de ser determinado em e por experiências possíveis (Husserl, 1931/2001, p. 41).

A paisagem evoca uma espiritualidade imante do homem via percepção e apercepção tendo a intuição papel central. Intuição é o ver e o contemplar, e também um meio para se chegar a algo; é uma passagem direta para o fenômeno visado, um conhecimento imediato. Com efeito, a paisagem não tem sua pura aparição sem qualquer relação com que aquilo que é rebatido sobre nós, isto é, a apercepção. Há uma manifestação desde os aspectos sensíveis do corpo até as faculdades psíquicas de memória e lembrança (melancolia e nostalgia). Por este motivo que Cabral (2000, p. 39-40) relata que embora as pessoas olhem para a mesma direção, elas não veem a mesma paisagem, caso contrário, se todos os indivíduos formassem uma só imagem na experiência é porque ela se tornou quantificável.

Esta reflexão nos remete a entender de que a paisagem não é uma fração estática, mais sim, um horizonte da vida intencional. De posse de uma fenomenologia da percepção tornar-se o não invisível em visível (Husserl, 1931/2001). O que é visível (o singular e determinado), recorrendo ao conceito de horizonte em Husserl (1936/2012), não se condiciona em algo fechado, ao contrário, ele só possível em um horizonte intencional e aberto.

E como a coisa singular só tem sentido na percepção por meio de um horizonte aberto de "percepções possíveis”, na medida em que o que é propriamente percepcionado "aponta"para uma multiplicidade sistêmica de apresentações perceptivas possíveis que coerentemente lhe pertencem, a coisa tem novamente um horizonte: em face do "horizonte interior”, um "horizonte exterior”, precisamente como coisa de um campo de coisas; e isto aponta, por fim, para o "mundo como mundo da percepção"(Husserl, 1936/2012, p. 132).

Desse modo, as referencias individuas de um sujeito em sua vida cotidiana, em seu universo mundano, lhe confere sempre uma presença original. Tão logo, toda consciência é consciência de alguma coisa. A paisagem enquanto a expressão máxima da ligação do homem com a Terra, diz Dardel (1952/2011), efetua essa própria presença ontológica, mas antes disso, há uma linguagem que se efetua neste encontro. Com isso, entendemos que a paisagem é para a geografia o ato de comunicação do homem com o mundo. Não só viajamos por paisagens, mas dela presenciamos seus signos, sua memória, sua identidade, sua cultura, sua arquitetura, sua tradição.

O que pode tornar a geografia uma ciência eidética não é o entendimento do espaço geográfico, uma vez, o conceito de espaço pertencer originalmente a geometria. Neste caso, a ciência geográfica pela via do reuso deste conceito, permanece como uma ciência regional de uma ciência eidética (geometria), conforme as considerações de Husserl em "Ideias I”. Se a geografia manifesta as relações vitais do homem coma Terra – seu modo de habitar, ser-no-mundo, produzir, se organizar, extrair –, a paisagem tornar-se o fundamento vital para a constituição desta ciência. Seja para descortinar as formas sociais ou um puro sentir a paisagem revela o homem em seu prazer ou desprazer; seja contemplativa ou não ela liga o homem ao mundo e a sua consciência. Seja no puro ver ou daqueles que não a vê ele é presença, significando o modo-de-ser-do-homem.

A paisagem enquanto linguagem geográfica (esta que nos une ao mundo), não pode ser entendida em uma racionalidade homogenia, ao contrário, a partir da orientação fenomenológica, faz emergir um mundo familiar com signos e objetos próprios significantes. Recorrendo as palavras de Figurelli (2002) sobre a fenomenologia da linguagem de Dufrenne, a linguagem se estabelece como a mediação entre o homem e o mundo e, portanto, para as nossas aspirações entendendo a paisagem como linguagem do ser geográfico. Nossa questão buscou, ainda de que forma preliminar, interrogar sobre: em que momento nos deparamos com a paisagem e tomamos consciência dela? Voltamos em outra oportunidade.

 

Referências

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Nota sobre o autor

Rafael Bastos Ferreira. Doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Universidade Federal do Pará. E- mail: rafaelbastos@ufpa.br

 

 

1 Este trabalho foi apresentado no "I Seminário Local do Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Geografia: GEOpoética" sob o título "Fenomenologia da paisagem: esboço de uma ontologia geográfica”. O seminário foi realizado na Faculdade de Ciências Aplicadas (Unicamp), campus Limeira/SP, 19 de dezembro de 2014. Tratase, portanto, de uma versão melhorada e ampliada.
2 Terminologia Grega εÎδος utilizada por Husserl para designar Essência (Moran; Cohen, 2012, Drummond, 2007).
3 Sobre estes níveis de percepção, ver melhor o § 1 do apêndice em: Husserl, E. (1975). Investigações Lógicas (sexta investigação). Elementos de uma elucidação fenomenológica do conhecimento. (Loparic, Zeljko & Loparic, Andre Maria Altino de Campos, Trads.). (1ª ed.) São Paulo: Nova Cultural.

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