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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.2 Belém  2017

 

Resenha

 

 

A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson, notas tomadas no curso de Maurice Merleau-Ponty na Escola Normal Superior (1947-1948); recolhidas e redigidas por Jean Deprun

 

The Union of Body and Soul in Malebranche, Biran and Bergson; Notes taken and redacted by Jean Deprun from Maurice Merleau-Ponty’s course at the Normal High School (1947-1948)

 

La unión del alma y del cuerpo en Malebranche, Biran y Bergson; Notas tomadas en el curso de Maurice Merleau-Ponty en la Escuela Normal Superior (1947-1948); recolecidas y redigidas por Jean Deprun

 

 

Stephanie Ares Maldonado

Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

 

Pelas entrelinhas de Maurice Merleau-Ponty

Resenhar esse livro é atentar-se tanto ao que Maurice Merleau-Ponty conseguiu abarcar de Malebranche, Biran e Bergson em seu curso de 1947/1948 quanto ao que como leitores podemos captar do próprio pensamento de Maurice Merlau-Ponty. Sendo assim, o livro, a redação do livro (responsável por reestabelecer a substância do curso) e essa própria resenha são precisamente um caminhar pelas entrelinhas.

Mesmo que brevemente, indico aberturas, caminhos e negações que Merleau- Ponty fizera ao encontro com as filosofias de Malebranche, Biran e Bergson e que o autor viria a desenrolar a seu modo durante sua carreira. Podemos perceber esses desenrolares na leitura de outras obras do autor, como as que foram listadas ao final do livro (na nota complementar) pela redação por serem obras que auxiliam à compreensão da essência do pensamento merleau-pontiano, pelo menos durante o curso em Lyon e Paris.

Porém, esse livro se torna relevante frente às outras obras pela sua linguagem relativamente acessível e próxima à coloquial (por ser, sobretudo, baseado em anotações de alunos presentes no curso). Além disso, o livro indica pontos nas três filosofias que fundamentam a necessidade que o autor encontrara de pensar temas (como experiência, percepção, corpo e consciência) que o tornaram imprescindível para a história do pensamento fenomenológico.

Assim como a redação buscou conservar sentido com a totalidade do pensamento merleau-pontiano, desejo iluminar escolhas e não escolhas tomadas por Merleau-Ponty no seu resgate ao pensamento malebranchiano no início do curso, evitando simplificar demasiadamente o conteúdo do livro tampouco dos filósofos, mas ainda me arriscando a destacar posicionamentos e passagens, afinal, me propus a esse resenhar.

Malebranche, apesar de certo modo aderente ao idealismo cartesiano, consegue identificar que há "algo " no conhecimento que escapa às ideias claras e às formulações matemáticas, sendo esse "algo " um saber da experiência (mesmo que essa experiência se limite às vontades divinas). Porém, assim como Descartes, Malebranche não consegue "compreender as coisas tais como elas são " (Merlau-Ponty, 2016, p. 12) como desejara, porque assim como o primeiro, afastara a inteligência do corpo e atribuíra à outra coisa (Descartes à alma e Malebranche ao Deus).

A diferença essencial entre os dois está no finalismo em Malebranche, que punha o mundo como apenas uma passagem obrigatória do humano, um obstáculo, onde nós só temos acesso ao conhecimento que Deus nos coloca, em busca de um propósito final também definido por Deus. Assim sendo, Deus é o "núcleo " para o conhecimento (Merlau-Ponty, 2016, p. 39).

No entanto, mesmo atribuindo a Deus a passagem do "em si " puro ao "para si ", Malebranche merece crédito por ter instaurado a problemática desse dualismo, que é no fundo, a própria pendularidade da filosofia (e da ciência) entre o idealismo e o realismo.

Como há diferença entre os saberes da alma e os do corpo, sendo que entre ambos só há uma "comunicação contagiosa " (Merlau-Ponty, 2016, p. 24) e, portanto, nunca plena, consigo identificar um mundo (e coisas no mundo), mas só conheço dele o que Deus me permite. É uma eterna busca, um eterno questionar. A real ultrapassagem dessa dualidade não é ainda efetuada por Malebranche, tampouco na sua Teoria do Juízo Natural, mas seria o filósofo o responsável por apontar para uma possível compreensão de uma consciência aberta, fissura que seria tão importante na fenomenologia de Merleau-Ponty (e que se presentifica tanto nesse livro quanto em tantos outros).

Sobre a amplitude da consciência, Biran também prometera alarga-la. No entanto, ficou preso durante sua ocupação filosófica a diversos paralelismos como reflexão interna-externa, tempo passado-presente, sujeito particular-universal, corpo-mundo, não conseguindo mostrar como há na consciência a experiência de uma "unidade reflexiva " (totalidade) e de um "desenrolar temporal " (gênese) simultaneamente (Merlau-Ponty, 2016, p. 71).

Biran haveria de ter ultrapassado a alternativa entre as duas experiências em seu estudo referente à relação da motricidade com o pensamento, quando nos mostra que "não há diferença entre mover " o corpo e "percebê-lo " (Merlau-Ponty, 2016, p. 72). Porém, Biran não consegue refundar a percepção na consciência de modo integral, perdendo a chave para responder sua própria pergunta acerca de como conseguiríamos nos perguntar sobre o movimento se não tivéssemos consciência de mover o corpo, se prendendo novamente a artifícios que preservam as dualidades ao invés de ultrapassá-las.

Comparando Biran a Malebranche, podemos perceber um afastamento ideológico, pois o acesso ao conhecimento não é mais dado por Deus, mas pela minha própria experiência de corpo situado no mundo, introduzindo uma "espacialidade corporal " (Merlau-Ponty, 2016, p. 73).

Ainda sobre esse distanciamento, assume que "nossa noção de alma em si não teria nenhum sentido se não começássemos com a alma para nós " (Merlau-Ponty, 2016, p. 95). A intenção de unir alma e corpo só não é plenamente atingida por não conseguir sair da reflexão interna e, ao mesmo tempo, salvar o sujeito particular nessa transição para o sujeito e a alma absoluta. O paralelismo o vence novamente.

Bergson, o terceiro filósofo que ganha destaque no livro, visa "restaurar o corpo em seu debate com o mundo " apontando para uma "dialética do tempo ". Porém, ao se colocar diretamente no ser e idealizar a memória como um segundo ser, não consegue compreender como "o ser é sempre percebido " ou como "o passado é concebido pelo presente " (Merlau-Ponty, 2016, p. 106), ficando preso à concepção de um mundo de imagens em si, onde em nossa vivência acessamos conscientemente apenas um determinado recorte do ser, vemos apenas uma fatia.

Entretanto, é possível ver em Bergson uma contribuição pensar de Merleau- Ponty (2016), especialmente para a formulação de seu conceito de horizonte:

A síntese do visto e do não visto é uma síntese de transição: enquanto eu tiver uma inserção no espaço, eu me sentirei capaz de transportar para ele esse instrumento de exploração que é o meu corpo; o ausente me é, portanto, presente como horizonte de um mundo do qual a possessão total é, por princípio, impossível, visto que nesse caso o mundo se aniquilaria. Bergson pressentiu tudo isso, mas seu erro é traduzir essa relação de horizonte dizendo que o objeto ausente é "uma espécie de estado mental inconsciente ", ao não ver que a consciência é, precisamente, essa ultrapassagem (p. 121).

Corpo e consciência se unem na filosofia de Merleau-Ponty desestabilizando a aparente consistência da ideia de inconsciente, presente em Bergson por influência freudiana. Impulsionado pela negação à esse inconsciente, Merleau-Ponty daria uma de suas maiores contribuições para a filosofia (e de certo modo para a psicologia), nos mostrando como se dá essa impossibilidade de pensar consciência e corpo isoladamente.

Apesar dessa resenha não ter capacidade de destrinchar cada ponto onde Merleau-Ponty abarcou ou negou elementos das filosofias desses três filósofos (também acho que tal ação não seria apropriada), é possível ainda destacar a contribuição direta do autor durante todo o livro sobre esse seu alargamento na concepção de consciência.

Em Biran, poderíamos facilmente sustentar a ideia de inconsciente, assim como poderíamos fazer em qualquer leitura desatenta dos três autores. No entanto, Merleau- Ponty nos questiona como seria possível pensar a consciência sem os sentidos ao trazer para a discussão o simples exemplo do surgimento do amor.

Ele admite que há no sentimento "algo informulado ", no entanto, esse "vivido não denominado " não se traduz na noção de inconsciente, pois é a própria consciência essa abertura do corpo a um mundo inesgotável, de onde para meu corpo conhecer, não precisa necessariamente formular "representações denominadas " (Merlau-Ponty, 2016, p.149), mas simplesmente ser.

Se como Berson sugere, irmos à experiência em sua fonte, veremos que de todas essas concepções de consciência, é Merleau-Ponty que rigorosamente nos mostrará impossibilidade de conceber corpo e consciência isoladamente, assim como corpo e alma isoladamente, porque como corpos viventes, um implica o outro (apesar dos três filósofos intuírem diferentes aspectos dessa impossibilidade em vários momentos de suas filosofias, é Merleau-Ponty que articula e compreende).

Então, é desse caminhar pelas entrelinhas deixadas por Merleau-Ponty ao tratar da união da alma e do corpo que podemos, mais do que nos outros três, captar a sua própria concepção sobre a união da alma e do corpo. Em uma ciência que parece dar essa questão como suprimida, o livro deve nos ajudar a restaurá-la, seguindo por uma fenomenologia que não deixe de se ocupar com questões referentes a esse corpo sensível e geograficamente situado que somos, possibilidade de um caminhar que nos é mostrada nessa e em tantas outras obras de Maurice Merleau-Ponty.

 

Referências

Merleau-Ponty, M. (2016). A união da alma e do corpo em Malebranche, Biran e Bergson; notas tomadas no curso de Maurice Merleau-Ponty na Escola Normal Superior (1947- 1948). Recolhidas e redigidas por Jean Deprun. (1. ed., Sílvio Rosa Filho & Thiago Martins, Trads.) Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

 

 

Nota sobre a autora:
Stephanie Ares Maldonado. Graduanda em Gestão de Empresas na Unicamp, Integrante do NOMEAR - Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Geografia (CNPq),
Integrante do GHUM - Grupo de Pesquisa Geografia Humanista Cultural (CNPq). E-mail: stephanie118691@gmail.com

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