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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.3 Belém  2017

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo13 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo13

 

Tecendo fios da infância com a filosofia da educação, a gestalt-terapia e a poesia de Manoel de Barros

 

Weaving threads of Childhood with the Philosophy of education, the Gestalt-therapy and the poetry of Manoel de Barros

 

Tejendo hilos de la Infancia con la Filosofia de la Educación, la Gestalt-terapia y la poesia de Manoel de Barros

 

 

Juliana de Brito Cysne; Ana Maria Monte Coelho Frota

Universidade Federal do Ceará

 

 


RESUMO

Buscamos refletir sobre a infância a partir do entrelaçamento das visões oriundas da Filosofia da Infância, Gestalt-terapia e da apresentada na obra do poeta Manoel de Barros. Em tempos contemporâneos, os saberes sobre a infância se encontram amplamente fundamentados por uma visão objetificada, capaz de explicá-la mediante técnicas controladas. A Filosofia da Educação concebe-a como tempo da experiência de ser criança, ultrapassando a visão tradicional de uma fase que se esgota em si, constituindo-se num devir. A Gestalt pensa a criança como um ser singular, de relação e em contínuo processo de desenvolvimento. A poesia de Manoel de Barros nos mostra uma infância dotada de criatividade, capaz de transformar e (re)construir a realidade. Neste diálogo, encontramos um pensamento transgressor da noção de infância, que foge à normatização. Falamos de um convite para vivenciar a experiência que se choca com o automatismo dos tempos atuais, para o encontro com o devir-criança.

Palavras-chave: Infância; Filosofia da Infância; Gestalt-terapia; Manoel de Barros; Devir-criança.


ABSTRACT

In this paper, we seek to reflect on childhood through the intertwining of the visions of the Philosophy of Childhood, Gestalt therapy and the concept of childhood presented in the work of the poet Manoel de Barros. In contemporary times, the knowledge about childhood is largely based on an objectified view, capable of explaining it through controlled techniques. The Philosophy of Education conceives it as a time of the experience of being a child, surpassing the traditional vision of a phase that is exhausted in itself, constituting itself in a devir. Gestalt thinks of the child as a singular being, of relationship and in a continuous process of development. The poetry of Manoel de Barros shows us a childhood endowed with creativity, able to transform and (re) build reality. In this dialogue, we find a transgressing thought of the notion of childhood, which escapes normatization. We speak of an invitation to experience that is in conflict with the automatism of the present times, for the encounter with the becomingchild.

Keywords: Childhood; Philosophy of Childhood; Gestalt-theraphy; Manoel de Barros; Devir-child.


RESUMEN

Buscamos reflexionar a cerca de la infancia a partir del cruzamiento de visiones de la filosofia de la infancia, Gestalt-terapia y aquella presentada en la obra de Manoel de Barros. En tiempos contemporâneos, los saberes de la infancia se encontran amplamente fundamentados por una visión objetificada, capaz de explicarla mediante técnicas controladas. La filosofia de la Educación la compreende como un tiempo de la experiencia de los niños, excedendo la visión tradicional de un período que se agota en si, constituyendose en un devenir. La Gestalt piensa los niños como un ser singular, en relación y en constante proceso de desarrollo. La poesia de Manoel de Barros muestra una infancia llena de criatividade, capaz de cambiar y (re)construir la realidad. En ese diálogo, encontramos un pensamiento transgressor del concepto de infancia, que escapa de la normatización. Hablamos de una invitación para vivir la experiência que confronta el automatismo de los tiempos actuales, para el encuentro con el devenir-niño.

Palabras-clave: infancia; filosofia de la infancia, Gestalt-terapia; Manoel de Barros; devenir-niño.


 

 

UM CONVITE DA FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO PARA PENSAR A INFÂNCIA

 

"As coisas que não têm nome
são mais pronunciadas por crianças" (Barros, 2010, p. 300)

 

 

As mudanças sociais ocorridas na modernidade, quando a criança passou a ocupar um espaço de maior centralidade no seio familiar e, consequentemente, na sociedade, tornaram a infância e a criança objetos de estudos de natureza interdisciplinar. De modo que os múltiplos olhares sobre elas enfocaram-nas como um 'estatuto teórico' isto, independendo da maneira como eram vistas ou de qualquer que fosse o posicionamento teórico, constata Frota (2007, p. 149). Ao longo das décadas, podemos observar que os distintos saberes direcionados ao estudo da infância tornam-se mais especializados e especificados, e criam uma visão de infância sobre a qual ainda perduram olhares cientificistas oriundos dos tempos modernos.

No tocante à psicologia, sabemos que seu nascimento como ciência, no final do século XIX, trouxe novos processos de construção teórica que possibilitaram ampliar e aprimorar o conhecimento sobre as crianças e a infância. Deste modo, atualmente, é possível nos mantermos a par de suas necessidades físicas e psicológicas, conhecer seus desejos e medos, e inferirmos sobre seus pensamentos e sentimentos (Larrosa, 2015a). Essas ideias nos parecem falar de crianças-objeto, que ocupam um importante segmento social alvo de cuidados técnicos. Temos um espectro largo, que traz uma gama de conhecimentos acerca da infância, porém, restritivo no que tange às fases do desenvolvimento e à ideia vastamente difundida de que a criança é um ser que não fala por si (Ariès, 1981).

Moryón (2010) relata-nos que essa representação baseada em etapas ou estágios do desenvolvimento nos permitiu investigar e conhecer alguns pormenores do crescimento humano. Por sua vez, isto levou a divisões e classificações mais rígidas, que colocam os indivíduos num mesmo patamar do desenvolvimento, como se todos nós devêssemos cumprir as exigências preconizadas por uma etapa para, então, passarmos para a próxima.

Contrapondo-nos a essa visão, abordamos o desenvolvimento como um processo, já que "o que vamos sendo [ao longo da vida] é o resultado de uma complexa e dinâmica inter-relação entre o herdado geneticamente e o recebido através do meio" (Moryón, 2010, p. 144). Em consonância com este pensamento, Frota (2007) afirma que "a infância, como produção cultural da pós-modernidade, não pode ser pensada como cristalizada ou acabada. Constitui-se mesmo num devir, que incorpora a noção de transformação e dinamismo" (p. 149). Neste sentido, podemos inferir que a categoria social infância assume caminhos singulares, distintos e mutáveis nos diferentes contextos de um mesmo tempo histórico e ao longo da história das sociedades.

No campo da filosofia da infância, Kohan (2005, 2007) e Larrosa (2015a) trazem outras perspectivas para refletirmos: uma refere-se à infância do tempo cronológico, que sincroniza-se com a visão oriunda do ideário da modernidade, no qual explicita-se a objetivação da infância pelos saberes tradicionais e, consequentemente, sua redução ao controle da técnica, tornando-a um terreno fértil para as predeterminações existentes nos estágios do desenvolvimento. Tal fato nos remete a uma ideia de universalização da infância e do ser criança, quando as singularidades não são priorizadas. Como decorrência da ideia de universalização da infância e de um modelo padrão de criança, fica evidente que contextos distintos, assim como vivências diversificadas do ser criança, ficam submersos com prejuízos manifestos no trato público e mesmo no contexto privado a elas (Castro, 2013).

A segunda perspectiva trata da infância como devir, referindo-se a outra temporalidade, o que significa pensar em uma infância aberta para o novo, que incita mudanças, foge à normatização e prioriza o singular, o diferente. Refere-se a uma 'infância minoritária' tal qual denomina o filósofo Kohan (2007), que segue explicando:

(...) é a infância como experiência, como acontecimento, como ruptura da história, como revolução, como resistência e como criação. É a infância que interrompe a história, que se encontra num devir minoritário, numa linha de fuga, num detalhe; a infância que resiste aos movimentos concêntricos, arborizados, totalizantes (...) (p. 94).

Larrosa (2015a) concebe a infância como 'um outro'. Distante de toda e qualquer objetivação, essa ideia rompe totalmente com as determinações apregoadas por boa parte dos nossos saberes. Estamos diante da perspectiva da infância como alteridade. Nesse encontro, esbarramos com a radicalidade de olhar para infância de um ponto que contemple sua absoluta heterogeneidade. Deparamo-nos com a necessidade de deixar de concebê-la como um projeto futuro da humanidade, que se encontra em conformidade com o imaginário do homem adulto, como esclarece o autor:

Não se trata de que – como adultos, como pessoas que já estamos no mundo, que já sabemos como é o mundo e até onde vai ou até onde deveria ir, que já temos certos projetos para o mundo – convertamos a infância na matéria prima para a realização de nossos projetos sobre o mundo, de nossas previsões, nossos desejos e nossas expectativas sobre o futuro (Larrosa, 2015a, p.188).

Como contraponto, temos a ideia de que a criança seja concebida como uma alteridade concreta, diferente, mas não desigual do adulto. Partimos, inspiradas em Larrosa (2015a) da compreensão de que a criança sabe coisas, mesmo que diferentes dos adultos; que fala uma língua rica, tendo muito o que nos ensinar; que sua experiência de vida deve ser valorizada hoje e não só no futuro; que é um sujeito histórico e um cidadão com direitos, devendo ser vista, compreendida e significada como um outro capaz, como um devircriança1.

Para uma compreensão mais tradicional, ao nascermos não sabemos falar. Infância é ausência, como a etimologia da palavra infans: a que não fala, destacando uma incapacidade da criança e reunindo-a a uma categoria que prioriza a falta. No entanto, é também na infância que existe a busca pela linguagem verbal, até nos apropriarmos de seu sistema de signos e sinais para, então, conseguirmos elaborar discursos coerentes e nos "constituirmos em sujeito da linguagem" (Kohan, 2005, p. 242). Portanto, a infância é, ao mesmo tempo, carência desta linguagem e uma época que propicia sua emergência.

No entanto, na perspectiva da Filosofia da Infância, a criança da falta de linguagem verbal é um verdadeiro estrangeiro em nosso mundo, como a denomina Kohan (2007). O autor ainda assevera que "a infância fala uma língua que não se escuta, (...) pronuncia uma palavra que não se entende [e] (...) pensa um pensamento que não se pensa" (p. 131). Ela não é uma lacuna vazia, não é carência, segundo esta visão, e sim se encontra repleta de possibilidades, tal qual o devir.

O devir-criança, já referido anteriormente, expande os horizontes de compreensão, imaginação e significação. Segundo Kohan (2007), é o que nos tira da inércia e convida-nos a ver, a ouvir e a sentir de um local onde a novidade, a criação e a transformação imperam. Talvez possamos falar que também existe um sentido de renovação como o provocado pelo nascer de uma infância que não se esgota em si, mas vai além, provocando outros nascimentos, outras sensibilidades e novos olhares:

Infância, de contínuo nascer, ela é possibilidade de quebrar essa inércia repetitiva do mesmo que seduz a um mundo sem nascimento. Ela simboliza a possibilidade de uma ruptura radical com a repetição do mesmo, a expectativa de uma repetição livre e complexa, do radicalmente novo (...). Assim, o nascimento não engendra apenas um ser vivo, mas a possibilidade de nascer de todos os seres já nascidos e por nascer, de não se abandonarem à inércia do estado das coisas, de se espantarem com aquilo que nem sequer pode ser chamado com os nomes já nomeados (Kohan, 2005, p. 252).

Falamos de uma infância em movimento, de priorizar as possibilidades individuais, de capacidades que se sobrepõem ao que "se deve ser", "tem que ser", da criança transgressora, de uma condição de abertura para o inusitado. Desta maneira, o devir-criança retoma a intensidade de estar no mundo, reforça as potencialidades e a (re)invenção de si. É nada mais, nada menos do que a infância como experiência, que é a própria existência, uma forma de subjetividade que atravessa as idades, por isso mesmo sem idade, e que nos permite transformar o que somos.

Apesar de falarmos de experiência, Larrosa (2015b) nos diz que vivemos numa é poca em que presenciamos, cada vez mais, sua raridade. O autor utiliza a expressão sujeito da informação para se referir ao homem moderno que é ausente de experiência, já que, segundo ele, a informação cancela as possibilidades daquela acontecer. Neste sentido, em meio à velocidade cacofônica de nossos tempos, não refletimos ou indagamos sobre nosso modo de existência e nossa vida não passa de um "roteiro técnico a ser seguido", afirma Dantas (2011, p. 44). Tornamo-nos sujeitos de subjetividades subjugadas à técnica, sujeitos agonizantes, silenciados, porém, incapazes de silêncio.

O que é então a experiência? Para Kohan (2007) e Larrosa (2015b), experiência é o acontecimento que nos atravessa e que é capaz de nos tocar, afetar e transformar. Ainda segundo Larrosa (2015b), "a experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente 'ex-iste' de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente" (p. 27).

De posse destas ideias, o sujeito da experiência é aquele que ex-site no mundo, que está voltado para sua receptividade, disponibilidade e abertura, assim como é a criança, que podemos dizer criança da experiência. A infância como experiência retoma a criança em sua inteireza, ressalta sua alteridade e distancia-se da temporalidade cronológica. Referimo-nos, portanto, ao devir-criança, "uma forma de encontro, que marca uma linha de fuga a transitar, aberta e intensa" (Kohan, 2007, p. 96).

 

E NA GESTALT: O QUE PENSAMOS SOBRE A CRIANÇA E A INFÂNCIA?

" Ser criança é uma luta constante contra as imposições externas, normas,

proibições que atrapalham a autodescoberta, a autoafirmação, a autorregulação" (Antony, 2014, p. 23)

 

Falar sobre a criança tendo como referência a Gestalt significa falar de uma criança global. É sobre isso que Antony (2014) se refere ao dizer que "a criança é um todo, mas também é uma parte que pertence a um todo – a família – que está inserida em um outro todo – a sociedade, a escola – compondo uma rede de conexões interminável" (p. 25). Todo e parte estabelecem relações de influência mútua. Deste modo, a tentativa de compreender a criança deve englobar os diversos contextos relacionais nos quais ela está inserida. Falamos em tentativa por acreditarmos que a criança se transforma, ao longo de sua existência, assim como o meio, não sendo, portanto, uma compreensão estática, fechada, acabada, e sim uma busca contínua por tentar compreendê-la.

Esta ideia encontra-se em consonância com a concepção holística2, segundo a qual "não há lugar para a visão reducionista e simplista do ser humano, que restringe o olhar somente para uma parte (o sintoma ou a enfermidade ou aspectos intrapsíquicos ou sociais) da criança, fragmentando-a, tomando a parte pelo todo" (Antony, 2014, p. 26). Observamos aqui haver certa divergência entre a ideia de criança trazida pela ciência moderna, já mencionada anteriormente, que delineia uma visão reduzida e hierarquizada da criança e da infância, e a Gestalt, que a considera como um todo indissociável de seu meio. A partir da compreensão da Gestalt, a criança não pode ser percebida como uma parte separada de um contexto social e histórico, além de não poder ser reduzida a determinações e caracterizações feitas de antemão.

Aguiar (2014), ao abordar a concepção gestáltica de homem para refletir sobre a criança, traz este homem como um ser relacional, isto é, que se constitui e se constrói na relação consigo, com o outro e com o meio, como ela mesma nos conta:

O ser humano cresce e desenvolve-se ao longo do tempo na e a partir da relação: nós existimos em relação, não havendo outra forma de nos constituirmos que não seja essa. É na interação ininterrupta com o mundo, desde o nascimento até o fim de sua vida, que o ser humano diferencia-se, transforma-se e desenvolve-se como uma pessoa com características próprias (p. 30).

A autora traz ainda que o homem é um ser contextual, uma vez que é afetado por diversos elementos presentes no campo. Da mesma forma é pensada a criança: como um ser relacional e contextual capaz de se (re)configurar a partir dos contatos estabelecidos em suas relações. Diante disto, Aguiar (2014) afirma que "o comportamento de uma criança jamais pode ser creditado a um ou outro fator no campo, mas a uma série de elementos que se articulam em uma teia de forças e influências mútuas" (p. 31). Lembra-nos, com isto, da importância de considerarmos o campo no qual a criança se encontra a fim de termos uma visão integral desta.

Aqui recorremos a Perls (1988) para ampliarmos nossa reflexão. Para o criador da Gestalt, o indivíduo só existe como parte de um campo, estando a todo instante inserido em algum, seja este o da família, da escola, do trabalho, ou do social, dentre outros. O autor nos fala ainda que o comportamento do ser humano é fruto do tipo de relação que estabelece com o meio que o cerca. Dizendo de outro modo: relacionamo-nos de diferentes maneiras nos diversos contextos da vida e o comportamento que apresentamos emerge nesta e desta relação, vivenciada num determinado campo. Assim, enfatizamos, juntamente com Aguiar (2014), Antony (2006, 2014), Barbosa (2011), ser um equívoco considerar um único elemento do campo isoladamente em nossa busca por compreender a criança.

Além destes aspectos, Antony (2006) acrescenta o componente biológico, presente e indissociável da relação criança/meio, conforme suas palavras:

A maturação do ser humano mostra a intrínseca interdependência entre os sistemas neurológico-fisiológico-psicológico na aquisição cronológica das habilidades motoras, cognitivas, de novos comportamentos e de novas reações afetivo-emocionais. As modificações estruturais da mente e do corpo conduzem a mudanças nas relações com o meio que, por sua vez, leva a um novo estado de desenvolvimento psicofísico. A criança muda, o ambiente muda, a criança muda numa relação de co-regulação diante das transformações inevitáveis. Não há parada no desenvolvimento, pois mesmo que o ambiente permaneça com pouca mudança, a criança está mudando em todas as suas dimensões (p. 2).

Diante disto, a autora concebe criança como "uma gestalt neuropsicomotora indissociável e original em desenvolvimento que necessita ser vista como um todo unificado, a fim de ser compreendida em seu processo singular de tornar-se sujeito e artista de sua existência" (Antony, 2014, p. 27). Destarte, para nosso entendimento, apesar de ser um componente importante para a compreensão da totalidade da criança, tal qual ressaltamos acima, o que realmente importa para nós é a apreensão do modo singular pelo qual esta se manifesta no mundo, no que concordamos com a posição teórica de Antony (2006) e Soares (2016).

Podemos observar (Aguiar, 2014; Antony, 2006, 2014) que as compreensões gestálticas de criança e de seu desenvolvimento entrelaçam as esferas biológica, psíquica e ambiental, num processo que preza pela singularidade da criança. Falamos aqui de uma compreensão que almeja respeitá-la em sua totalidade, para que ela desenvolva seu jeito de ser e estar no mundo da maneira mais plena possível. Deixando um pouco de lado a concepção de criança, mesmo sabedoras de não esgotarmos o tema, voltamo-nos sobre o desenvolvimento humano. A respeito deste assunto, o que a Gestalt nos fala?

Ao nos debruçarmos sobre este estudo ficamos surpresas ao percebermos que a temática do desenvolvimento, em Gestalt-terapia, parece não ser contemplada com um arcabouço teórico, pelo menos, não como é pensada nos moldes tradicionais de uma teoria do desenvolvimento humano. Quer dizer, a Gestalt-terapia não discute o desenvolvimento humano a partir de estágios, de características peculiares a cada fase do ciclo desenvolvimental. Na verdade, segundo Aguiar (2014), a Gestalt-terapia parte de uma concepção gestáltica de ser humano, na qual aborda o homem em sua singularidade. Compreende-o como um ser de relação, em contínuo processo de desenvolvimento, inserido num contexto histórico e social e, inevitavelmente, atravessado pela autorregulação organísmica e pelo ajustamento criativo, tão bem discutidos por Perls, Hefferline & Goodman (1997). A partir destes elementos, a Gestalt-terapia nos apresenta recursos possibilitadores de compreensão do processo desenvolvimental.

Conceber o desenvolvimento como algo dividido em fases previamente determinadas, com características próprias e invariáveis, não se faz possível nesta abordagem, é o que nos traz Soares (2005), uma vez que esta perspectiva, linear e biologicista, supõe um início e um fim para se alcançar os patamares estabelecidos e, concomitantemente, ocorrer o desenvolvimento do indivíduo, pressupondo existir um momento em que ele se completa. A Gestalt-terapia defende a tese de que o desenvolvimento é processual, contextualizado, histórico e presente durante toda a existência. Barbosa (2011) reitera esta ideia ao afirmar que, apesar de na infância observarmos o desenvolvimento de certas aquisições de maneira acelerada, nosso desenvolvimento incide não somente sobre a criança e o adolescente, mas sobre toda a vida, sem cessar. Além dela, Soares (2005) também rompe com a visão de desenvolvimento baseada na cronologia e nos seus estágios, afirmando:

A noção de desenvolvimento para nós, Gestalt-terapeutas, revela sim um sentido de plenitude, o qual não significa resultados ou prontidão, mas sim um processo contínuo de percepção, de integração, de sensibilidade e sentimentos, do vivido, no mais pleno significado do termo contato (p. 1).

E acrescenta, destacando a noção de abertura do humano, já ressaltada há pouco:

A noção de ser em desenvolvimento indica continuidade, fluxo, ligação, contexto. Fala do nosso permanente vir-a-ser, do desdobramento de perspectivas existenciais, da ampliação de recursos pessoais e relacionais, de atualização de possibilidades e da continuidade do fluxo de Awereness, abrindo, fechando e abrindo Gestalten como sinal de vitalidade organísmica (Soares, 2005, p. 1).

Assim, compreendemos o desenvolvimento como um processo que se dá na existência concreta, constituído na experiência vivida, através de um campo de interação organismo/meio e somente possível no aqui-e-agora. Concordamos com Soares (2005) quando nos diz não ser possível alcançar o ápice da evolução. Para a autora, o que podemos é vivenciar um estado pleno nos diversos momentos de nossa existência, isto é, plenitude de existir. Isso nos leva a crer no desenvolvimento como um movimento com ritmo singular para cada indivíduo. Entendemos que cada pessoa vivencia a plenitude de cada momento existencial de modo singular, conferindo um ritmo próprio, único. Pelo menos poderia ser assim, se não fôssemos completamente moldados pelo sistema de evolução desenvolvimental, que leva a nos separarmos do que temos de mais próprios, tal qual brilhantemente nos esclarece Ribeiro (2015).

Este, Gestalt-terapeuta conceituado, parece nos alertar de algo que Soares (2005) nos aponta: a perda da singularidade em detrimento da norma social. O autor discorre sobre como nos distanciamos da fluidez do movimento existencial e passamos à vivência de um jeito de ser que nos torna autômatos, escravizados e robotizados, inseridos num campo cultural alienante. Escutemos o que ele nos diz:

Sutil ou violentamente, ela [a criança] será forçada a se enquadrar às normas de bom comportamento da sua "tribo"; começará a ser adestrada para não incomodar, para ser adequada aos "bons costumes"; a ser adequada às regras que a tradição e os detentores do poder convencionaram serem boas para ela e para todos. Agora e para todo o sempre (Ribeiro, 2015, p. 30).

O autor acredita que desde que as regras, normas e crenças foram consagradas como verdades absolutas e indiscutíveis, estas foram impostas a todos, implantando um modelo autoritário e subjugando, de modo especial, a criança que todos nós somos. Se isso realmente ocorre, como poderemos respeitar as singularidades do processo desenvolvimental que caracteriza nossa existência?

Perls (1977) adverte-nos que a tentativa de vivermos em sincronia com a sociedade, excessivamente controladora e exigente de perfeição, distancia-nos de nossos sentimentos e necessidades, bloqueando nosso potencial e distorcendo nossas perspectivas. Continuando nesta linha de reflexão, Ribeiro (2015) alardeia que, como consequência deste processo alienatório, houve o atropelamento da alegria natural de viver, tornando-se comum sair do aqui-e-agora. Como resultado, estamos sempre procurando explicações coerentes para a vida, atitudes estas que nos afastam da experiência e nos tornam "adult-erados" (p. 13). É a isto que o autor faz referência ao dizer que "a infância inocente e alegre, cheia de vida viva e de desavenças leves, foi substituída pelo adulto interesseiro, falso, brigão, infeliz e carrancudo" (p. 28). Possivelmente nos tornamos adultos atravessados por ajustamentos criativos insatisfatórios, terreno fértil para o desenvolvimento da neurose, uma vez que tentativas de enquadres a normas e padrões que não fazem sentido nenhum, distancia-nos de nós mesmos.

Compreendemos que esta maneira de estar distante do contato com o que temos de mais próprio ou, dito de outro modo, a escassez ou falha de contato conosco, com o outro e com o mundo, na dinâmica da autorregulação, que preza pela homeostase do organismo, nos conduz a ajustamentos criativos pouco satisfatórios. Isto, também, pode implicar na interrupção do fluxo de awereness, mantendo-nos alheios ao que nos passa, enfraquecendo nossa percepção, cristalizando e enrijecendo nossos comportamentos. Em contrapartida, quando há fluidez na autorregulação organísmica, alicerçada por um contato satisfatório, presente e inteiro, o organismo relaciona-se criativamente com o meio e cria ajustamentos criativos saudáveis. Cremos também que esta última seja a maneira mediante a qual as crianças pequenas se relacionam com o mundo, numa relação de contato pleno, ao contrário do adulto que foi sufocando o seu modo de ser mais próprio.

Ribeiro (2015) ainda nos alerta para que 'a criança que fomos', um 'ser de sonhos e devaneios', ainda se faz presente em nós, tanto que nos interpela a pensar no que fizemos com a criança que um dia fomos. Escutemos o que ele diz: "essa criança que fomos/vivemos ainda está vivíssima em todos nós. Portanto, em mim, em você, embora, adormecida, sedada, escravizada por tantas normas existenciais, caducas ou não, que violenta ou 'amorosamente' nos foram enfiadas goela abaixo (...)" (p. 37). Para o autor, aquela é a criança de um olhar puro e incontaminado, que a tudo vê com encanto, surpresa e curiosidade ilimitada. Que se encontra em constante transformação e é capaz de conferir criatividade e leveza à vivência cotidiana do adulto. Algo parecido com o que pensa a Filosofia da Infância, aqui apresentada por Kohan e Larrosa, deixando claro a fértil possibilidade de diálogo e aprendizados recíprocos.

Para enriquecer ainda mais este diálogo, nos aproximamos de Manoel de Barros3, o poeta que 'transviu' o mundo com seu olhar infantil. Convidamos, deste modo, o poeta a nos ajudar a pensar, com sua sabedoria poética, a infância e sua potência de vida. Passemos agora à sua poesia.

 

AS INVENÇÕES DA INFÂNCIA E AS TRANSVISÕES DE MANOEL DE BARROS

" Quem não tem ferramenta de pensar, inventa". (Barros, 2010, p. 473)

 

Um dos encantos que atravessa a obra do poeta Manoel de Barros é seu olhar sobre a infância e a criança. Barros dizia ter tido apenas infância, motivo pelo qual este era seu tema principal de trabalho. Ele acreditava que "tudo o que a gente é mais tarde vem da infância4". Esta parecia ser a base sobre a qual sua vida se constituíra. Infância tão viva que o poeta se dedicou a retratá-la com palavras. Resta dizer que aqui não se trata de uma infância única, mas de muitas infâncias que formam um terreno fecundo para o imaginário do poeta. Imaginação que leva ao "criançamento das palavras" ao mesmo tempo em que extrai deste, elementos que enriquecem sua poesia. Talvez possamos pensar que tal criançamento de palavras esteja relacionado às primeiras percepções infantis de Manoel, que ele dizia serem mais sábias do que qualquer conhecimento adquirido a posteriori.

Carrego meus primórdios num andor. Minha voz tem um vício de fontes. Eu queria avançar para o começo. Chegar ao criançamento das palavras. Lá onde elas ainda urinam na perna. Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos. Quando a criança garatuja o verbo para falar o que não tem (Barros, 2010, p. 339).

Acreditamos haver no poeta a necessidade de recuperar os inícios, de chegar às fontes, ao que havia de mais puro nas coisas, antes que elas fossem tocadas pelos homens, já corrompidos pelos saberes científicos. Moraes & Maciel (2011) parecem acreditar nisso e afirmam que "o criançamento das palavras é um expediente que reúne na poesia barrense ingredientes que constroem novas formas de se conceber o universo" (para. 3). Vejamos o poema:

Eu queria usar palavras de ave para escrever. Onde a gente morava era um lugar imensamente e sem nomeação. Ali a gente brincava de brincar com palavras tipo assim: Hoje eu vi uma formiga ajoelhada na pedra! A Mãe que ouvia a brincadeira falou: Já vem você com suas visões! Porque formigas nem têm joelhos ajoelháveis E nem há pedras de sacristias por aqui. Isso é traquinagem de sua imaginação (Barros, 2010, p. 449).

As visões do poeta transcendem a razão, assim como o olhar da criança permite que ela veja as coisas de outro ponto de vista. Falamos de um olhar transcendente que não se rende à mesmice, tampouco se perde no cotidiano. Este olhar imagina e inventa as coisas e, segundo Moraes & Maciel (2011), somente há fundamento na imaginação de inventar quando se tem como cerne a criatividade infantil. Desse modo, podemos dizer que é na criatividade, na capacidade de imaginar, inventar, ou seja, a partir de uma visão "descomparada", tal qual afirma o poeta, que a criança (re)cria o mundo ao seu redor e a si mesma.

Este mundo por ela vivido é fruto de comunhão. Para o poeta, livre de comparações com a realidade apresentada pela ciência, a criança transmuda o mundo, tornando real seu universo imaginado como um faz-de-conta, uma realidade possível. A capacidade de transgressão das crianças advém das diversas perspectivas que a experiência pode proporcionar no tocante à vivência com o ambiente e com as pessoas, acreditam Moraes & Maciel (2011). Como vemos no trecho do poema "A menina avoada" (Barros, 2010):

Foi na fazenda de meu pai antigamente. Eu teria dois anos; meu irmão, nove. Meu irmão pregava no caixote duas rodas de lata de goiabada. A gente ia viajar. (...) No caminho, antes, a gente precisava atravessar um rio inventado. Na travessia o carro afundou e os bois morreram afogados. Eu não morri porque o rio era inventado. Sempre a gente só chegava no fim do quintal (p. 470).

Nesta viagem inventada, para se chegar ao destino final, era necessário atravessar um rio, também inventado. Os bois morrem e somente a menina sobrevive por meio do argumento de que o rio era inventado. Ela se vale de sua condição transgressora para inventar um novo final para a história da brincadeira com o intuito de salvar-se. Scotton (2006) afirma que para o poeta "a criança não é um ser ingênuo, incompetente, mas inquieto, inventivo e transgressor, capaz de criar um mundo inserido no mundo maior (...)" (p. 4). Cremos que Barros, mediante as palavras da autora, ressalta as potencialidades da infância, e aborda em sua poesia uma criança esperta, atenta e presente ao agir.

Peregrino (2013) anuncia outra ideia de infância na obra de Manoel, e fala da infância como acontecimento, que se constrói ao longo dos anos e está sempre disposta a aprender. Parece-nos que esta infância acompanhou o poeta até a velhice. Assim, não é imprescindível que a infância esteja ligada ao ser criança, mas compreendemos que, como possibilidade de transformação e renovação, também possa atravessar o adulto. Acreditamos que Manoel sabia destas possibilidades que a condição infantil oferece. Senão, como compreender seus escritos:

Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas (Barros, 2010, p. 347)

O poema fala de um homem-criança, de um devir-criança presente numa existência aberta, que pode ser a de todos nós. Assim, o poeta precisa "ser Outros", reinventando-se. Apesar de Manoel, nesse poema, não abordar diretamente a infância, ele se vale desta qualidade para dizer que pensa em "renovar o homem usando borboletas". Acreditamos que, somente com um olhar enraizado na criança, este ser capaz de metamorfosear-se a todo instante, é que conseguimos "transver" o que nos parece habitual.

Talvez haja mesmo um encantamento no modo de ver, de ouvir e de ser criança que permite a renovação, que dilui as barreiras do tempo e do espaço, e transforma a vida, tal como apresentado por Manoel de Barros. Ele parecia indicar o caminho para reinventarmos nossa infância, a fim de podermos "alcançar a experiência da autenticidade expressa pela criança" e "rejuvenescermos o adulto enrijecido dentro de nós", como acreditam Moraes & Maciel (2011, para. 18). De modo que poderíamos olhar para um rio que faz uma volta atrás da casa e ver muito além de uma enseada, uma vez que seríamos capazes de enxergar uma cobra de vidro que faz a volta atrás da casa5 e, assim, enriqueceríamos nossas imagens cotidianas e a nós mesmos.

Manoel de Barros traz a ideia poética de uma criança e de uma infância transgressora, capaz de falar e transver o mundo. Fala-nos de algo semelhante ao que a Filosofia da Infância nos diz. A Gestalt-terapia também nos chama atenção para um modo de olhar para a infância de modo distinto do usual. Deste modo, convidamos o leitor a promover um diálogo entre estes três saberes. Olhemos para essa possibilidade.

 

ENTRELAÇANDO IDEIAS: FILOSOFIA, GESTALT-TERAPIA E POESIA COMO POSSIBILIDADE DE PENSAR A INFÂNCIA PARA ALÉM DE UMA FASE OU ESTÁGIO DE VIDA

Quem é quando criança a natureza nos mistura com suas árvores,

com suas águas, com o olho azul do céu.

Por tudo isso que eu não gostasse de botar data na existência. (Barros, 2008, p. 113)

 

Considerar a infância e a criança abordadas pelos filósofos da educação, Kohan (2005; 2007) e Larrosa (2015a), pela Gestalt-terapia e poesia de Manoel de Barros traz outro contexto para pensá-las. Significa, antes de tudo, olhá-la em sua singularidade, considerando-a como um outro. Vejamos.

Por utilizar um palavreado próprio, apresentar outra concepção sobre o mundo, relacionando-se com ele de maneira diferente, a criança fica à margem. Entretanto, para Kohan (2007), estes não são elementos excludentes da infância. O autor acredita que a língua estrangeira da infância possibilita abertura a um outro jeito de ser-no-mundo, no qual há pouco espaço para a monotonia. Larrosa (2015a) fala em seres estranhos e selvagens; e discute que os saberes tradicionais trabalham em prol de diminuir o desconhecido existente nas crianças e submetê-las a uma ordem vigente, que visa a acabar com o que há de selvagem/primitivo nelas. Ou seja, o foco parece ser a tentativa de dissipar a estrangeiridade das crianças, tornando-as seres de igualdades, na sua diferença. Para nós, não se trata de suprimir o que é dessemelhante na criança, selvagem, estranho ou estrangeiro, mas de respeitá-la, aceitá-la e compreendê-la com sua própria palavra, com seus modos de ser.

Este também é um posicionamento da Gestalt-terapia que nos remete ao que chamamos de singularidade, ou melhor, ao modo de ser particular da criança. A busca pela apreensão desta em sua totalidade, envolvendo a tríade bio-psico-social, foca em como estes aspectos são manifestados pela criança em sua interação com o meio, no qual se relaciona e se desenvolve, a partir de suas particularidades. Assim, concordamos com Soares (2011) sobre sua perspectiva de que a criança possa explorar o mundo a partir de sua própria percepção, elaborando e criando sentidos únicos sobre o seu vivido.

Em Manoel de Barros, deparamo-nos com criançamento das palavras: a língua pronunciada pela criança. Acreditamos que este apresenta a ideia de chegar à origem das coisas. O que significa ter a infância como possibilidade de ruptura com os olhares tradicionais. O poeta sabe que criança não é sinônimo de incompletude ou incompetência, valendo-se da infância para reinventar-se. Ele vive sua adultice atravessada por muitas infâncias misturadas e rompe com a noção de tempo cronológico.

Para a Filosofia da Infância, este tempo não numerável caracteriza-se como tempo aiônico. Nesta temporalidade, a vida deixa de ser compreendida meramente como uma sucessão cronológica, e passa a ser percebida em sua existência concreta. Aqui, a ideia dos estágios do desenvolvimento que se esgotam em si, segundo os quais os indivíduos são agrupados e classificados por suas semelhanças, e que é apresentada por vertentes da Psicologia do Desenvolvimento, perde sua força. Kohan (2007) afirma que a criança, segundo a temporalidade aiônica, não é vista "apenas como uma etapa, fase numerável ou quantificável da vida humana" (p. 86), e sim como um reino infantil, marcado pela 'intensidade de duração'.

A intensidade de duração nos leva à plenitude de experienciar cada momento vivido. Assim é o desenvolvimento para a Gestalt-terapia: um processo perpassado pelo estado de plenitude, no qual a experiência vivida integra sensibilidade, sentimentos e percepção. Esta abordagem propõe a infância em contínuo desenvolvimento, gerido pela autorregulação organísmica, e afirma que a satisfação das necessidades da criança conduz a ajustamentos criativos satisfatórios, ou não. Não podemos, portanto, conceber a infância como pré-determinada, que cessa em um momento específico, pois esta não é cristalizada, pronta ou acabada. A criança está em constante transformação, sendo também transformadora do meio.

Baseadas numa temporalidade que rompe com o tempo chrónos, estas visões de infância não se fecham em si, tratando-se de um devir. Como devir, a infância busca rotas alternativas para fugir dos movimentos cotidianos. Pensá-la, segundo este fluxo do pensamento, nos leva a notar sua qualidade disruptiva dentro de uma sociedade mecanizada, automatizada. Portanto, temos uma infância que resiste, ao prezar pela sensibilidade, pela experiência como possibilidades de transformar as formas de ser e estar no mundo. Para nós, a partir das ideias de Kohan (2005, 2007), Larrosa (2015a) e Ribeiro (2015), ser criança não se refere a uma oposição em deixar de ser adulto. Consiste em conservar certas características dos modos de existir, tão próprios das crianças, que nos convidam a viver o dia-a-dia de maneira diferente do habitual, como se a infância nos trouxesse o sentimento de renovação de nós mesmos. Falamos, principalmente, de nós, adultos, que já fomos modelados por outros e inseridos na sociedade da técnica.

Acreditamos na continuidade da infância atravessando todas as idades como uma possibilidade de nos (re)construirmos, sem que nos deixemos submergir no mundo em que estamos inseridos, sem que nos tornemos adultos com comportamentos enrijecidos. Cremos nas muitas infâncias como possibilidades, no plural, como transgressão de uma vida social cheia de regras, como espaço para a criação, para a imaginação, para a sensibilidade e, principalmente, para atingirmos a plenitude de sermos o que podemos ser.

 

 

Referências

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Notas sobre as autoras

Juliana de Brito Cysne. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Psicóloga com Formação Clínica em Gestalt-terapia. E-mail: julianacysnepsicologia@gmail.com

Ana Maria Monte Coelho Frota. Professora Associada do Departamento de Economia Doméstica da Universidade Federal do Ceará e vinculada ao Programa de Pósgraduação em Educação Brasileira da mesma universidade. Mestre em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo.E-mail: anafrota@ufc.br

 

 

Recebido em: 18/03/2017
Aprovado em: 02/08/2017

 

 

1 1 "Devir-criança é uma força que extrai, da idade que se tem, do corpo que se é, os fluxos e as partículas que dão lugar a uma 'involução criadora', a 'núpcias antinatureza', a uma força que não se espera, que irrompe, sem ser convidada ou antecipada" (Kohan, 2007, p. 96).
2 Holismo, juntamente com a Teoria Organísmica, Teoria de Campo e Psicologia da Gestalt, faz parte da fundamentação teórica da Gestalt-terapia, desenvolvida por Fritz Perls (Antony, 2006).
3 Poeta cuiabano, nascido em 1916. Foi criado no Pantanal Sul-mato-grossense, entre bichos e plantas. Para aperfeiçoar os estudos, morou em Campo Grande e no Rio de Janeiro, nesta cidade viveu por quarenta anos. No Rio, aprofundou os estudos em literatura, posteriormente, casou-se e teve três filhos. Retomou a vida nos campos para cuidar de uma fazenda herdada, e foi nesta época que também se tornou poeta em tempo integral. Manoel de Barros faleceu em 2014, tendo deixado uma vasta obra poética.
4 Trecho de entrevista concedida por Manoel de Barros a André Luís Barros (s/a). Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.br/barros04.html.
5 O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem. (Barros, 2010, p. 303).

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