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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.3 Belém  2017

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo16 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03artigo16

 

Psicologia fenomenológico-existencial e pensamento decolonial: uma diálogo necessário

 

Phenomenological-Existential Psychology and Decolonial Thought: a necessary dialogue

 

Psicología Fenomenológico-Existencial y Pensamiento Decolonial: un diálogo necesario.

 

 

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos

Universidade Federal do Triângulo Mineiro - UFTM

 

 


RESUMO

O pensamento decolonial tem convocado distintos saberes a revisar suas bases epistemológicas em favor da consideração da colonização como fato histórico e da colonialidade como determinante epistemológico. O diálogo desse pensamento com a Psicologia Fenomenológico-Existencial é necessário uma vez que o mesmo parte das bases epistemológicas da fenomenologiaexistencial filosófica e por meio de uma revisão crítica de seus pressupostos, busca incluir o pensamento da periferia do sistema-mundo em diálogo com o saber europeu. Defende-se que a Psicologia Fenomenológico-Existencial deva dialogar com o pensamento decolonial no sentido de ampliar e revisar suas bases epistemológicas bem como sua práxis principalmente no que tange ao atendimento às camadas populares e vulneráveis da população latinoamericana. O objetivo desse artigo é apresentar o pensamento decolonial e suas possibilidades de diálogo com a Psicologia Fenomenológico-Existencial.

Palavras-chave: Fenomenologia-Existencial; Psicologia Fenomenológico- Existencial; Pensamento Decolonial.


ABSTRACT

Decolonial Thought has called distinct knowledges to revise their epistemological basis in favor of the consideration of colonization as a historical fact and colonialism as an epistemological determinant. The dialogue that thought with Phenomenological-Existential Psychology is necessary, because the Decolonial Thought part of the epistemological foundations of the philosophical phenomenology existential and through a critical review of its assumptions, seeks to include the thought of the periphery of the world system in dialogue with the European knowledge. Therefore, it is argued that the Phenomenological- Existential Psychology should dialogue with the Decolonial Thought to broaden and revise their epistemological foundations and its praxis, especially regarding service to popular and vulnerable sections of the Latin American population. The aim of this paper is to present the Decolonial Thought and the possibilities of dialogue with the Phenomenological-Existential Psychology.

Keywords: Existential-phenomenology, Phenomenological-Existential Psychology, Decolonial Thought.


RESUMEN

El pensamiento decolonial ha convocado distintos campos del conocimiento a revisar su base epistemológica a favor de la consideración de la colonización como un hecho histórico y el colonialismo como un determinante epistemológico. El diálogo con la Psicología fenomenológica-existencial es necesario, ya que el mismo parte de los fundamentos epistemológicos de la fenomenología existencial filosófica y por medio de una revisión crítica de sus supuestos, busca incluir la idea de la periferia del sistema-mundo en el diálogo con el conocimiento europeo. Por lo tanto, se argumenta que la psicología fenomenológicaexistencial debe dialogar con el pensamiento decolonial en el sentido de ampliar y revisar sus fundamentos epistemológicos y su praxis, especialmente las de atención a los sectores populares y vulnerables de la población de América Latina. El objetivo de este trabajo es presentar el pensamiento decolonial y sus posibilidades de dialogo con la Psicología Fenomenológico-Existencial.

Palabras-clave: Fenomenología-existencial; psicología fenomenológicaexistencial; pensamiento decolonial.


 

 

INTRODUÇÃO

O pensamento decolonial tem convocado distintos saberes a revisar suas bases epistemológicas em favor da consideração da colonização como fato histórico e da colonialidade como determinante epistemológico. O diálogo desse pensamento com a Psicologia Fenomenológico-Existencial é necessário uma vez que grande parte de seus autores, parte das bases epistemológicas da fenomenologia-existencial filosófica e por meio de uma revisão crítica de seus pressupostos, busca incluir o pensamento da periferia do sistema-mundo em diálogo com o saber europeu. Portanto, defende-se que a Psicologia Fenomenológico-Existencial deva dialogar com o pensamento decolonial no sentido de ampliar e revisar suas bases epistemológicas bem como sua práxis principalmente no que tange ao atendimento às camadas populares e vulneráveis da população latinoamericana. O objetivo desse artigo é apresentar o pensamento decolonial no sentido de demonstrar como ele dialoga e revisa o paradigma fenomenológico-existencial na filosofia e ao mesmo tempo provoca a psicologia a rever seus pressupostos, assim como a aportar temas emergentes para o novo milênio como as alteridades subalternas e a promoção de modos de vida mais sustentáveis.

Vivemos em nosso continente uma história distinta à do chamado mundo ocidental, não passamos pelos mesmos processos históricos que se deram na Europa de forma que a clássica divisão da história entre idade antiga, média e moderna, não se adéqua totalmente à nossa condição histórica e geográfica. Somos um caldo cultural formado por povos europeus, ameríndios e africanos, embora tendamos a nos conceber como pertencente somente ao chamado velho continente. A maneira como esses povos se mesclaram em nosso continente se deu pelo processo de colonização que, sem precedentes na história mundial, possibilitou para além da ampliação das fronteiras do continente europeu, a dominação, repressão e o extermínio de povos de outros continentes. Queiramos ou não, uma vez latinoamericanos, somos a parte vencida desse processo que inaugurou, entre outras coisas, a categoria de raça-etnia que se coaduna com a ideia da superioridade étnica do europeu sobre o não-europeu, estabelecendo uma espécie de hierarquização dos humanos por fenótipos.

A colonização histórica se mantém na colonialidade, conceito que desenvolveremos nesse artigo, o que explica que nosso continente mantenha-se sob o domínio cultural, social e econômico dos países do norte. Esse domínio persiste na forma como produzimos conhecimento, em especial na psicologia, uma vez que somos levados a estabelecer o homem europeu como parâmetro de nossas análises e práticas, como nos ensina a literatura hegemônica nas universidades. Isso não é diferente para a Psicologia Fenomenológico-Existencial1 que se nutre de fontes filosóficas europeias que tendem a ocultar os saberes e pensamentos dos demais povos e estabelecer categorias situadas , levando-nos muitas vezes a não contextualizarmos nossas questões como próprias e distintas às europeias criando, ao nosso ver, sérios problemas na relação teoria e prática.

Nas últimas décadas, porém, um modo de (re)pensar o mundo tem trazido alento para quem se reconhece nessa realidade descrita acima. No início da década de 90, um grupo de pensadores latinoamericanos de distintas áreas das ciências humanas, como Valter Mignolo, Alberto Quijano, Maldonado Torres e Enrique Dussel resolveram se juntar em uma rede colaborativa com o intuito principal de (re)pensar a chamada América em que vivem, pois como afirma Dussel (2011a): "É a novidade dos nossos povos que deve refletir como novidade filosófica e não o inverso." (p. 76).2 Ou seja, a América Latina deve possibilitar novas reflexões filosóficas para além das tradicionais, trazendo para o centro do debate a sua problemática singular. Em suma, esses intelectuais ousam abalar as pretensamente sólidas estruturas do pensamento europeu, com vistas a revisa-las no tempo e no espaço considerando o processo de massacre e domínio dos povos americanos e africanos, inaugurando assim o pensamento decolonial.

Segundo o que demonstraremos nesse artigo, esse pensamento tem o potencial de reconfigurar a psicologia fenomenológico-existencial uma vez que suas bases filosóficas são decolonizadas tornando-a mais próxima ao mundo vivido da gente comum do nosso continente.

 

O DIÁLOGO ENTRE PENSAMENTO DECOLONIAL E FENOMENOLOGIA EXISTENCIAL

O Pensamento Decolonial se concretiza em uma rede de autores e pesquisadores latinoamericanos chamada modernidade-colonialidade na década de 90, embora muito de sua base filosófica já tenha sido escrita nos anos 60 e 70, principalmente a obra de Enrique Dussel e Franz Fanon.Seus autores são de distintas nacionalidades e trabalham em universidades latinoamericanas, europeias e estadunidenses. Podemos destacar, entre vários, Maldonado-Torres, filósofo porto-riquenho, da universidade de Berkeley na Califórnia. Walter Mignolo, semiótico argentino, autor da destacada obra The Dark Side of the Renassance, trabalha atualmente na Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Anibal Quijano, sociólogo, da Universidade Ricardo Palma em Lima e de Binghamton em New York e Santiago Castro-Gomez, filósofo colombiano, um dos articuladores junto a Quijano do conceito de colonialidade.

Para a discussão que nos interessa o trabalho de maior vulto e que subsidia boa parte dos novos autores é o do o filósofo argentino Enrique Dussel que ministra cursos regulares na UNAM, Universidad Nacional Autonoma de México e nesse momento tem se dedicado a revisar sua obra de mais de 40 volumes aprofundando o conceito de analogia que segundo ele permite o diálogo do Outro da periferia com o pensamento europeu. Suas referencias filosóficas são variadas, mas incluem sobretudo Husserl, Hegel, Marx, Heidegger e Levinás, com marcado acento para o último de quem retira o conceito de Rosto e Face a Face.

O Outro, negado pelo pensamento europeu, para Dussel é justamente o que é o pobre em geral que na América Latina se mostra pelas raças dominadas pela colonização, a indígena e a negra, que a partir de um ideal de modernidade, confronta-se com aquilo que é oposto ao moderno, segundo Dussel (1994), desde que a Modernidade se inaugura com o princípio cartesiano de um Ego pensante: "O ego moderno apareceu em seu confronto com o não ego, os habitantes das novas terras terras descobertas não aparecem como Outros, mas como o Mesmo a ser conquistado, colonizado, modernizado, civilizado como matéria do ego moderno." (p. 36)3

Ainda para o autor, o pensamento semita presente em autores como Levinas e Buber permitem abordar o Outro de forma mais rigorosa, graças à tradição comunitária advinda desses povos o que não ocorre quando se toma o pensamento helênico como ponto de partida. O judaísmo e o cristianismo são tradições religiosas advindas de povos excluídos e escravizados e portanto tem princípios mais claros de união e reciprocidade entre seus membros, por isso a filosofia advinda dessa base a qual Dussel (1969) pode auxiliar na construção de uma filosofia que reintegre o distinto, povos colonizados, ao pensamento europeu possibilitando uma ética da libertação, segundo o autor, comparando o pensamento semita ao helênico: "Se o mundo está cheio de deuses, como dizia o sábio de Mileto, o homem não podia transformar aquele mundo: a posição do homem no mundo é trágica. Se o mundo é criatura de Deus, como diz o humanismo semita-hebreo, o homem poderá transformar esse mundo: a posição do homem é agora terrivelmente dramática. Não é já o Prometeo atado pelas correntes, mas o Adão sofrendo as tentações, é a contrapartida da consciência infeliz de Hegel." (p. 121). Sendo assim o germe do pensamento da libertação dos povos oprimidos estaria no pensamento messiânico exposto de forma mítica pelos semitas, pensamento esse que se contrapunha à ideia trágica de história defendida pelos gregos.

Chama atenção também a contribuição do psiquiatra martinicano Franz Fanon, quem serviu ao exercito francês na segunda Guerra e na década de 60 trabalhou como psiquiatra na Argélia naquele momento sob ocupação francesa, tendo se alistado depois na Força de Libertação Nacional, organização paramilitar daquele país que lutava por sua independência. Sua obra psicológica consiste em dois livros célebres: Condenados pela Terra (1961) e Pele Negra Máscaras Brancas (1952). No primeiro o autor descreve a situação do colonizado na Argélia no tempo em que trabalhou como psiquiatra, dedicando um capítulo aos transtornos mentais típicos do colonizado. O segundo, utilizando-se mais de referencias autobiográficas, descreve a experiência do colonizado martinicano na própria ilha ou quando migra para a França. Sua obra traz muitas referencias a Jean Paul Sartre de quem foi amigo, tendo o filósofo francês prefaciado seus dois livros. Seus escritos são entendidos hoje como parte do pensamento pós-colonial que são os que pensam os efeitos biopsicosociais da colonização histórica sobre os povos colonizados. Em uma contundente crítica ao pensamento filosófico europeu, Fanon (2008) afirma que: "...se é em nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, também é em seu nome que muitas vezes se decide seu extermínio" (p.43).

De forma geral pode-se afirmar que o pensamento decolonial se caracteriza por uma série de deslocamentos ou problematizações às formas dominantes de compreender a modernidade desde a perspectiva europeia. Questiona assim o caráter pretensamente universalista da filosofia do velho mundo, buscando enfatizar a evolução do conhecimento não apenas no tempo, mas também no espaço. Portanto, para essa corrente, nenhuma filosofia pode se dizer imune aos aspectos geopolíticos a ela relacionados e é nesse sentido que a episteme europeia traz em seu bojo o esquecimento da ontologia dos povos colonizados e escravizados na América e na África, como afirma Dussel (2011b): "Nosso caminho é outro, porque fomos e somos a outra cara da modernidade" (p. 19).4

Destarte, considera-se que a Modernidade só foi possível graças à colonização (Dussel, 2011; Quijano,2005) portanto, para pensá-la de forma mais rigorosa, deve se levar em conta o duo Modernidade-Colonialidade. Colonialidade se refere ao modo como o processo de colonização, embora fato histórico já datado persiste no pensamento filosófico sob a forma de domínio e conquista dos povos que foram colonizados, tamponados pelo modo de pensar europeu. Essa se apresenta de três formas segundo Quijano (2000) colonialidade do Poder, refere-se à acepção de que a raça europeia é superior às demais o que permitiria seu domínio; Saber, crença de que a episteme europeia, sobretudo o paradigma científico-experimental é superior e mais verdadeiro que os demais; do Ser, concepção de que a racionalidade europeia que inaugura um modo de ser desde Descartes, é superior e deve dominar todas as outras que lhe são distintas.

Dessa forma cabe ao pensamento decolonial, ao considerar que a Colonialidade se co-constitui com a Modernidade, tecer uma crítica à Modernidade/Colonialidade de modo a superar essa constituição de domínio. A essa crítica dá-se o nome de giro decolonial, que consiste em desvelar esse domínio colonizante presentes nos modos de produção de conhecimento (colonialidade do saber) na maneira como opera o etnocentrismo europeu do ponto de vista econômico e sócio-cultural (colonialidade do poder) e na forma como os modos de Ser que prioriza a racionalidade ocidental oprimem outros modos de Ser igualmente validos (colonialidade do ser). Em suma, o que se reivindica é que, no universo do conhecimento, seja possibilitado a articulação de distintos mundos e narrativas, permitindo um diálogo entre os saberes e culturas. Alguns autores afirmam (Quijano, 2000; Dussel, 2011) que esse giro permitiria uma crítica transmoderna, para além da já consolidada crítica pós-moderna, pois pretende superar o universo moderno em favor de uma pluriversalidade planetária, na qual as distintas culturas possam dialogar preservando suas distinções e semelhanças.

Nesse sentido a Europa, assim como o projeto da Modernidade/Colonialidade devem ser entendidos como parte de um sistema-mundo que engloba outros continentes, saberes e ontologias, pois a hegemonia do pensamento ocidental, como nos aparece hoje, ocorreu somente e graças à colonização, que possibilitou o surgimento do capitalismo (Bautista, 2014) e o domínio econômico europeu do sistema mundo, entretanto a história pregressa desse continente mantém relações com outros povos e ontologias que são ignoradas pelo pensamento comum acadêmico. Pouco se fala que o humanismo, iluminismo e o renascentismo por exemplo, tiveram como lado obscuro o domínio e a escravização de outros povos (Quijano, 2000). E que ao mesmo tempo foi graças a esse domínio que se tornou possível a acumulação de riquezas e daí o surgimento e a expansão do capitalismo hoje global. Por isso, deve se pensar o Ser não apenas em sua modulação no tempo, como bem apontou Heidegger, mas também a partir do espaço, conforme Dussel (2011c): " Portanto nossa Filosofia da Libertação centrará sua atenção sobre o passado do mundo e sua espacialidade, para demonstrar a origem, a arqueología de nossa dependência, debilidade, sofrimento, aparente incapacidade, atraso." (p. 57)5

Para Dussel o cogito cartesiano, base epistemológica da Modernidade/Colonialidade nega uma condição sine qua non para sua elaboração, qual seja: o moderno europeu só se dá conta de sua potencia enquanto pensamento após as grandes navegações e a formação das colônias, tempo que precede a elaboração do cogito cartesiano. Por isso antes da fórmula Ego cogito ergo sum, existiu o Ego conquiro, por isso Dussel, propõe que a formula cartesiana pode ser lida do seguinte modo: Eu conquisto, logo Penso, logo Existo, portanto há outros que não pensam e que portanto não existem, de acordo com Dussel (2011d): "Desde o "Eu conquisto" o mundo azteca e inca, e toda América (primeiro genocídio da modernidade): desde o eu, escravizo aos negros da África (segundo genocídio) vendidos pelo ouro e a prata conquistados com morte dos índios no fundo das minas..." (p. 31)6 Dessa forma os modos de Ser que não priorizam a razão instrumental centrada no Eu, seriam desconsiderados pela filosofia moderna, que pressupõe que não há ou não havia pensamento filosófico válido fora do círculo moderno da razão.

Corrobora com isso o fato de que, segundo Dussel (2015) o modo de pensar helênico foi se dando através da univocidade e diferença do sistema-mundo. Ou seja, o pensamento grego totaliza o mundo em um único sistema ontológico excluindo o que está fora desse que passa a não-ser. No sentido ético isso contribui para a exclusão dos Outros, concebidos como diferentes, excluídos do sistema como os estrangeiros, os escravos e as mulheres. Por outro lado, boa parte da obra dusseliana dedica-se a demonstrar que nesse mesmo pensamento, bem como ao longo da idade média e modernidade, alguns autores como Pitágoras, Aristóteles, Schelling, Kierkegaard, só para citar alguns, valeram-se do método analógico. O pensamento analógico permite elaborar um método para se pensar a é tica, que possibilita ao pensamento decolonial ir além da concepção do Outro como diferente ou igual, tirando-o da condição de não-ser, e concebendo-o como distinto e semelhante, ao mesmo tempo, portanto, em condições de igualdade enquanto humano. A cultura helênica naturalizava a escravidão e o domínio sobre seres que, embora pensantes, não eram livres, conforme Dussel (2015b). Esse modo de pensamento que desconsidera Outros humanos como livres está oculto no desenvolvimento da Filosofia ocidental desde os pré-socráticos e precisa ser trago à luz para que se reivindique o lugar do distinto.

Dussel (2011e) entende que isso ocorre na Fenomenologia, pois quando essa visa o Mundo, aquilo que aparece, e o considera como o Ser, deixa de fora a exterioridade do Outro que para o autor, está para além do mundo: "O que é a fenomenologia e o pensamento existencial senão a descrição de um Eu ou um Dasein a partir do qual se abre um mundo, o próprio sempre? 7

O mundo é uma totalidade que totaliza o outro como parte e não como outra liberdade, a fenomenologia-existencial tem como ponto de partida esse mundo, além disso a fenomenologia já traz no seu próprio nome a prevalência do sentido do ver, videre, sobre o do ouvir. Ver o Outro é controlá-lo, analisa-lo, descrevê-lo e mesmo compreende-lo como parte de uma totalidade, excluindo no entanto o ouvir como apreensão de sua distinção enquanto liberdade. Para ouvir, é necessário o silêncio para que o Outro se mostre. O problema é que, em uma civilização que naturaliza o domínio sobre o Outro, quando esse se mostra como liberdade, ele tende a ser reprimido, para Dussel (2011f): "O ser humano normal é hoje um reprimido, mas, politicamente existe a repressão policial ou militar do poder político ou econômico quando o povo se rebela. A repressão é a cara descoberta da dominação. A repressão dos meios de comunicação ou psicológica se faz violenta quão mais cresce a pressão da rebelião. Viola-se a corporeidade do oprimido contra sua vontade."p. 99).8

Portanto, escutar o Outro é um processo de libertação, pois deve ultrapassar a dominação do ver, presente na filosofia ocidental e trazer o Outro para a proximidade do ouvir que se dá por via analógica, na qual pode haver o reconhecimento das semelhanças e distinções assim como das proximidades e distancias, o que o preserva como liberdade e se abre à perspectiva da pluriversalidade. O Outro, segundo Dussel, embora se mostre na claridade do mundo, não é originado nesse, pois se constitui antes, portanto para encontrálo em sua liberdade, é necessário o esforço de pensar para além do mundo, que é a metafísica do Outro.

O fundamento do Outro está na proximidade cósmica inicial que se dá na relação mãe-bebê. O bebê já é distinto, portanto distante e próximo à mãe mesmo ainda quando não possui um universo claro, um mundo, por isso um Outro que pode ser reconhecido por analogia com o mundo materno, segundo Dussel (2011g): "O pequeno peixe deve defender-se solitariamente nas infinitas águas hostis que o rodeiam. O ser humano pelo contrário nasce em alguém e não em algo, alimenta-se de alguém e não de algo" (p. 46)9.

Conclui-se assim que o Outro é uma exterioridade ao universo de sentido e Ser do mundo que nos aparece e portanto para ser respeitado, exige algo a mais do que a racionalidade instrumental ou idealista que justifica sua dominação pela objetivação, pois exige um método analógico e uma atitude metafísica que o considere como tal. Nesse sentido a Filosofia da Libertação entende, tal como Levinás, que se deve partir da exterioridade como fundamento em contraposição à mesmidade e totalidade típicas do pensamento helênico, a isso chama a metafísica do Outro e propõe que, para estuda-lo é necessário antes de tudo a atitude de respeito no ouvir, segundo Dussel (2011h): "O respeito é a posição de metafísica passividade com a qual se presta culto à exterioridade do outro: permitindo que seja naquilo que é como dis-tinto. O respeito é a atitude meta-física como ponto de partida de toda atividade na justiça. Mas não é respeito pela lei ( que é universal e abstrata), nem pelo sistema e seu projeto. É respeito por alguém, pela liberdade do outro. O outro é o único realmente sagrado e digno de respeito e limite." (p. 105).10

Esse Outro exterior ao Ser do Fenômeno é, para Dussel, o que está fora do sentido do mundo vivido do sujeito ocidental comum por isso só pode ser o ser débil, o pobre, o latino-americano, seus povos originários e escravizados, para os quais a razão filosófica não lhes atribui respeito, pois estão fora do seu mundo e universo de sentido sendo concebidos como não-ser, diferentes, não livres

Em um sentido semelhante o filósofo porto-riquenho Maldonado-Torres (2007) aproveitando as contribuições de Dussel sobre a metafísica do Outro aponta que Heidegger, quando critica o pensamento cartesiano por nele se manifestar o apogeu do esquecimento do Ser, tampona que em seu pensamento mesmo ocorre o apogeu do esquecimento do Outro. A ontologia heideggeriana ao conceber o ser-com como uma dos existenciários termina por negar ao Outro qualquer exterioridade, impossibilitando que o distinto apareça enquanto tal. Por isso o outro perde em substancialidade e se transforma em um penduricalho de uma totalidade de mundo que tudo abarca, inclusive a distinção. Essa falha no pensamento do filósofo alemão já havia sido apontada por Levinás em sua obra " Totalidade e Infinito", o que é interpretado por Maldonado-Torres (2007) como típico dos conflitos geopolíticos daquele tempo.

Enquanto Heidegger ataca toda a filosofia grega desde os pré-socráticos a que ele chama Metafísica, reinaugurando uma ontologia total em língua alemã, ele estava reproduzindo o que Hitler tentava fazer a toda a Europa, reunindo-a em uma nova totalidade. Por outro lado, Levinás (2002) judeu e ex-aluno de Heidegger, desvela no pensamento do alemão o perigo do esquecimento do Outro que justificaria o holocausto do povo judeu na segunda guerra mundial no sentido de que a totalidade do Ser-com-osoutros, excluiria o distinto a esse mesmo Ser. Maldonado-Torres (2007) realça também a pretensão exibida por Heidegger em uma entrevista à revista Der Spiegel na qual ele afirma que os franceses necessitam da língua alemã para pensar, segundo Heidegger (1996): " Penso no particular e intimo parentesco da língua alemã com a língua dos gregos e com seu pensamento. Isso me confirmam os franceses. Quando começam a pensar, falam alemão, pois não podem fazê-lo com seu idioma" (p. 7).11

Nesse mesmo sentido em um manuscrito de 1945 intitulado "A Pobreza", Heidegger trata a pobreza como uma virtude dos que podem se engrandecer pelo espírito e convoca a Europa a ser pobre para ser Rica. Nenhuma palavra sobre a pobreza estrutural que se naturalizava nas colônias europeias na África e na América Latina, nenhum outro olhar para a pobreza que não a do abastado e abstrato europeu. O pobre enquanto Outro livre e humano, carente de necessidades básicas para a manutenção de sua vida é totalmente ignorado pelo filósofo alemão, restando apenas a Pobreza enquanto realidade substantiva que é o Ser da pobreza. Esse passa a ser concebido como virtude e caminho para o alcance da riqueza espiritual, desse modo podemos concluir que no paradigma heideggeriano análogo ao da filosofia ocidental em geral, pode-se descrever a Pobreza, ignorando completamente os Pobres, escreve Heidegger (1945): "Ficamos pobres para chegar a ser ricos. O tornar-se rico não se segue do ser pobre como o efeito da causa, mas o ser pobre é, em propriedade, o ser rico. Na pobreza, na medida em que não estamos privados de nada, temos tudo antecipadamente, estamos na superabundância do Ser, que transborda de antemão o urgente das necessidades. Tal como a liberdade, na sua essência que libera todas as coisas, é a Necessidade, que vira de antemão a necessidade, também o ser pobre, como um não estar-privado de nada senão do não-necessário, é já um ser rico." (p. 7)

Portanto, na visão defendida por Madonado-Torres e Dussel, o esquecimento do Outro sustenta epistemologicamente a colonização e não foi superado senão exacerbado por Heidegger. O imperativo do Ser como totalidade unívoca como a que se mostra quando se toma o Dasein como princípio, elimina o não-ser que está à margem, deixando esse ser Outro, órfão de sentido ontológico e sem mundo, justificando assim, seu extermínio, dominação e alienação. Vejamos na próxima sessão como essas críticas poderiam nos auxiliar em uma decolonização da Psicologia Fenomenológico-existencial.

 

PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO-EXISTENCIAL E O PENSAMENTO DECOLONIAL

Em sua obra "Pele negra máscaras brancas", Franz Fanon desconstrói um dos sustentáculos da ontologia fenomenológica de Sartre ao propor que o Ser colonizado diferia do Ser europeu por um aspecto essencial, segundo Fanon (2008 ): "Sempre em termos de consciência, a consciência negra é imanente a si própria. Não sou uma potencialidade de algo, sou plenamente o que sou. Não tenho de recorrer ao universal. No meu peito nenhuma probabilidade tem lugar. Minha consciência negra não se assume como falta de algo. Ela é. Ela é aderente a si própria" (p.122).

Desse modo a ontologia do colonizado negro é outra e não se baseia numa falta de Ser, tampouco na abertura, típica da consciência europeia, mas em uma temporalidade que não se pronuncia por um porvir ou vir-a-ser. Nesse sentido está mais próxima ao serem- si de Sartre que o do para-Si, pois diferente à condenação à liberdade que é condição ontológica do humano sartreano, o que se opera no processo de colonização ao colonizado é uma condenação a Ser o que se é. Ser o que se é, ou seja, ser Negro, de menor valor humano, imprime um destino inexorável do qual não poderá escapar, senão pela revolta e rebelião contra o colonizador. Distinto do pobre europeu, o colonizado não está somente destituído dos meios de produção, como proporia uma leitura marxista, mas do próprio Ser enquanto sujeito humano em condições de igualdade e dignidade, ele é um animal de logos, mas não um ser-humano, como aponta Dussel (2011) sobre as considerações aristotélicas. Portanto, trata-se de uma condição subontológica na qual se inserem grande parte da população miserável na América Latina, de origem indígena e negra.

Maldonado-Torres (2007) referindo-se aos escritos de Fanon na obra " Condenados pela Terra", entende essa subontologia como a do condenado (Damné) sendo esse uma degradação do Dasein heideggeriano. O condenado, segundo o autor, situa-se abaixo de duas diferenças constatadas nos estudos sobre o Ser na ontologia europeia que seriam a diferença trans-ontológica, entre o ser e o que está para além dele; a diferença ontológica que é a diferença entre o Ser e os demais entes e a diferença sub-ontológia, não tratada pelos autores europeus que é, segundo Maldonado-Torres (2007): "…a diferença entre o ser o que está mais abaixo do ser, ou o que está marcado como dispensável e não somente utilizável; a relação de um Dasein como um sub-outro não é igual à relação com outro Dasein ou com uma ferramenta. (p. 146)12

Esse modo de ser degradado que é consequência da colonização contrasta com a possibilidade de se escutar Outras ontologias que, uma vez postas em analogia, ou seja, entendidas como distintas e semelhantes, podem dialogar com as europeias. Essas outras ontologias, que são as nossas, não se podem se equivaler tampouco aos conceitos clássicos de oprimido das filosofias europeias, como o proletariado marxista ou os seres assujeitados foucaultianos, que embora sejam críticas à modernidade, estão situadas em um tempo espaço-distinto ao nosso no qual a experiência pós-colonial inaugura a exclusão por raça ou etnia gerando essa sub-ontologia que estaria abaixo do Ser.

A Psicologia Fenomenológico-Existencial, inspirada em filósofos europeus e as correntes chamadas humanistas-existenciais inspiradas em autores estadunideses, embora tenham tido um crescimento significativo no nosso continente, não dialogaram ainda com a experiência latino-americana no que ela tem de excludente e ancestral. Pois se por um lado nossa cultura tem fortes acentos não europeus, ameríndios e africanos, por outro ela é formada pela opressão, através do extermínio e da escravidão dessas mesmas culturas não européias, o que gera uma complexidade distinta à experiência ocidental "pura" por assim dizer.

Sem embargo Mignolo (2010) entende que os críticos europeus da modernidade europeia como Freud, Spinoza e Marx, movimento que ele denomina como desmodernização, sofreram no interior da Europa a marca racista de suas judeidades, mas seus conceitos não podem se generalizar para a América Latina, portanto segundo Mignolo (2010): "Ainda que a estrutura do capitalismo seja diferente hoje, a organização racial e genérica da mão de obra, está marcada pela constante atualização da matriz colonial de poder. ... A apropriação de terras nas colônias foi justificada sem oposição legal dos indígenas que não conheciam a legalidade nome da qual lhes expropriavam a terra." (p. 101).13

O mesmo se passou segundo o autor com os escravos africanos que tampouco conheciam as leis que permitiram sua captura e escravização, sendo os descendentes dessas etnias não-europeias, africana e ameríndia, a maioria que compõe a massa de excluídos em nosso continente e se somam aos sem número de imigrantes ilegais de trabalho precarizados no continente europeu e na América do norte.

Além disso o fato de que muitos dos pressupostos filosóficos fenomenológicoexistenciais que embasam a psicologia fenomenológico-existencial serem questionados pelo pensamento decolonial devem também provocá-la no sentido de apontar para caminhos mais próprios e adequados ao contexto no qual se insere. Quijano (2000) insiste que os conhecimentos advindos do pensamento decolonial não servem apenas à América Latina, mas sim a todo o sistema planetário que não teve a oportunidade de escutar as múltiplas possibilidades de saberes advindos de outros povos que não os europeus, bem como entender melhor os processos psicológicos subjacentes à colonização como antecipado por Fanon.

Portanto, entendendo que existem distinções ontológicas desde a nossa perspectiva de colonizado - subontológica, como aponta Maldonado-Torres e outras ontologias, advindas de matrizes culturais não europeias - a psicologia fenomenológicoexistencial acostumada a lidar com a ontologia como base epistemológica a partir da qual desenvolve suas pesquisas e norteia sua práxis, pode produzir conhecimentos mais amplos no sentido humano, ampliando sua base compreensiva e se repensando do ponto de vista é tico e humano.

Ilustrando: em um continente dominado pela miséria e a desigualdade social a Psicologia Fenomenológica-Existencial desenvolvida nesses solos pode ajudar a descrever as modalidades de mundo subontologicas e com isso desenvolver formas terapêuticas mais próprias a esses mundos. Outrossim, ela pode se valer de ferramentas mais condizentes com a cultura popular (menos verbais e mais vivencias) que compõe nosso caldo cultural seja de matriz africana ou ameríndia e que foram historicamente, dominadas e reprimidas.Entendemos ademais que a mera repetição ou reprodução de conceitos europeus, por mais bem traduzidos que estejam, não espelham diretamente o mundo vivido da maior parte da população latinoamericana e, nesse sentido, não se deveria repetir o ocultamento da questão do Outro, principalmente o do Pobre colonizado, presente nesse pensamento. Isso pode ser feito sem o abandono da perspectiva existencial – que parte do mundo vivido – com a qual já estamos familiarizados, tampouco sem o apelo a uma visão psicossocial, já acostumada a tratar essa população sob um paradigma crítico de cunho marxista. O ontológico desvela, além dos conflitos inerentes de uma sociedade desigual, um modo de ser-no-mundo que se coaduna não apenas com a condição de trabalhador ou lumpén-proletariado, mas também a um modo de ser não europeu que é próprio a essas terras.

A obra Fenomenologia do Brasileiro, de Vilem Flusser (1998) demonstra esse esforço de se aprofundar no mundo popular, nela o autor, a partir dos conceitos de atitude natural e fenomenológica de Edmund Husserl, assinala as peculiaridades do mundo da vida popular brasileiro no qual a sedimentação histórica não ocorre da mesma forma que na Europa. Assim a atitude natural que na Europa encontra-se com um mundo objetivado sob o peso da tradição histórica sedimentada, dar-se-ia no Brasil de forma distinta, pois o brasileiro, segundo o autor, está muito mais suscetível a colocar entre parênteses seu passado histórico sendo, portanto, mais propenso a atitude fenomenológica que o próprio europeu. Logo, para o nosso contexto, o autor nos convoca a revisitar os pressupostos pretensamente sólidos das fenomenologias europeias e avaliar, com base em nossa práxis, sua adequação aos mundos populares. Algo semelhante também propõe o filósofo, psicólogo e antropólogo argentino Rodolfo Kusch (1999) para quem o latinoamericano em geral se encontra mais do ponto de vista ontológico na condição do mero-estar do que a do Ser europeu, pois nesse continente o passado histórico e os projetos futuros não têm o mesmo peso que no continente europeu.

Outrossim, a ontologia hermenêutica heideggeriana, apesar de toda a crítica já apontada nesse texto, traz pontos semelhantes com a ecologia profunda ver (Martínez, 2006) e pode nos auxiliar na adequação e harmonia da relação homem-natureza própria dos povos ameríndios, aproximação essa já proposta pelo filósofo chileno Penroz (2001) que articula o pensamento heideggeriano e o pensamento mapuche.

Essas análises e sua implicação para o mundo vivido popular são de grande valia, pois pode nos beneficiar na redefinação de modos de ser e estar com os outros e com os entes ao redor, o que interfere na compreensão do processo saúde-doença e no redimensionamento da análise do Umwelt do que é vivido concretamente por populações com baixos ou médios níveis de urbanização de seus territórios, como é o caso das populações indígenas e quilombolas.

Outrossim, Dussel (2011) entende que um modelo de relação mais equilibrada com a natureza só poderá advir da periferia do planeta, uma vez que nessa faz-se urgente um estilo de vida mais autosustentável já que o modelo de consumo adotado pelas grandes potencias, se copiado por todos, será fatal para o Planeta.

Além disso, considerando que a colonialidade traz como consequência a invisibilidade existencial de camadas consideráveis da população latinoamericana, estar atento ao rosto do Outro excluído, sua liberdade e formas de ser-no-mundo, ajudariam na redefinição do papel do psicólogo nas políticas públicas, pois contribui para a problematização do existente - muitas das vezes concebido como "usuário" de determinado serviço público - como quem traz singularidades para além de uma definição prévia, ou seja amplia nossa definição de normal-patológico, oprimido-opressor na medida em que se abre para modos de ser para além dos cunhados eurocentricamente.

Assim, a polaridade entre clínica e social pode ganhar novos contornos e convergências, quando se inclui aspectos tanto de um quanto do outro, através de um entendimento mais profundo do mundo vivido popular latinoamericano. A atenção ao rosto do pobre significa a consideração de biografias singulares que são, antes de tudo, livres, e que trazem ontologias próprias e que necessitam serem mais escutadas do que compreendidas.14 A atitude de escuta e acolhimento em silêncio, em vez da de compreensão e interpretação, possibilitaria o desvelamento do Outro conduzindo-nos a um conhecimento mais amplo sobre o mundo vivido popular para além dos preconceitos e lugares comuns. Outrossim, a afirmação de políticas que concebem o usuário como sujeito de direitos podem se somar com a consideração do Ser existente e livre anterior e em relação a esse sujeito.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O pensamento decolonial é uma importante novidade para o nosso continente, ademais de por em foco o problema da colonialidade, possibilita que se agreguem novos conhecimentos às nossas já cansadas ciências e bases epistemológicas. Esse diálogo pode possibilitar a descoberta de novos modos de ser que impliquem uma existência mais aberta à existência compartilhada, menos competitiva, mais colaborativa e mais sintonizada com a natureza, considerada não como um objeto, mas como arquinteligibilidade, para usar os termos de Michel Henry (2009) ao se referir à vida.

A proposta de reunir esses conhecimentos pode possibilitar à Psicologia Fenomenológico-Existencial uma atualização necessária frente às demandas contemporâneas, não apenas direcionadas ao tratamento das patologias, mas também das possibilidades e potencialidades de saúde e virtudes presentes em nosso continente. Da mesma forma, técnicas e abordagens terapêuticas já esquecidas e de inspiração fenomenológica, como é o caso da Psicologia Transpessoal ou da abordagem de Laing, podem vir a se somar a uma visão que considere tantos os aspectos vitais, por uma relação mais distinta com a natureza quanto os aspectos do sistema social, pela reivindicação da alteridade das existências subalternas.

De igual modo, o pensamento decolonial convoca as psicologias em geral para uma revisão de seus fundamentos epistemológicos fundadas numa concepção eurocêntrica para que estejam mais afins ao contexto latinoamericano e possam responder aos problemas advindos do projeto Modernidade/Colonialidade.

No caso da Psicologia Fenomenológico-Existencial em específico e graças a sua abrangência em poder influenciar todos os campos de atuação e teorias acima citadas, o pensamento decolonial traz um desafio maior, pois grande parte do que propõe se apoia na revisão critica dos autores que embasam essa psicologia tal como Husserl, Heidegger e Sartre. As potencialidades e possibilidades epistemológicas, teóricas e metodológicas desse diálogo trariam, a nosso ver, profícuas consequências para a prática e atuação do psicólogo nos diversos contextos de atuação, mas sobretudo nos que envolvem as classes populares e as camadas subalternizadas da população. Devemos advertir que não se trata de negar o pensamento europeu, mas de situa-lo ao nosso contexto específico e nossa experiência que é distinta não apenas no tempo, como querem alguns, enquanto pós-modernidade, mas também no espaço, América-latina.

Assim, o profissional, ao se nutrir de subsídios filosóficos, teóricos e metodológicos mais condizentes com a realidade na qual atua, possa atuar de forma critica e se autorizando a propor teorias mais adequadas e métodos mais respeitosos com o Outro latino-americano com quem e para quem trabalha. Superando as concepções clássicas de homem oprimido.(re)aprendendo a escutar através do silêncio considerando que tudo não se pode compreender desde uma epísteme europeia a psicologia fenomenológicoexistencial em diálogo com o pensamento decolonial, pode aprimorar suas bases e responder aos desafios atuais de nossa realidade cada vez mais difícil e complexa.

 

Referências

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Dussel, E. (2011). Filosofía de la Liberación. Mexico: Fondo de Cultura Económica.         [ Links ]

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Notas sobre o autor

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos. em Psicologia pela Universidad de Buenos Aires. Professor do Departamento de Psicologia UFTM. E-mail: ggustalvarenga@hotmail.com

 

Recebido em: 23/05/2017
Aprovado em: 03/10/2017

 

 

1 Reconhecemos a amplitude desse termo que congrega inúmeras e distintas aportes e abordagens psicológicas, as considerações e argumentos desenvolvidos nesse artigo é válido para todos esses.
2
Es la novedad de nuestros pueblos que debe reflejar como novedad filosófica y no la inversa. Tradução nossa.
3
El ego moderno ha aparecido en su confrontación con el no-ego; los habitantes de las nuevas tierras descubiertas no aparecen como otros, sino como lo mismo a ser conquistado, coloniado, modernizado, civilizado, como "materia" del ego moderno.
4
Nuestro camino es otro, porque hemos sido y somos la otra cara de la modernidad.
5 Por ello nuestra Filosofia de la Liberación fijará su atención sobre el pasado del mundo y sobre la espacialidad, para detectar el origen, la arqueología de nuestra dependencia, debilidad, sufrimiento, aparente incapacidad, atraso. Tradução nossa.
6 "Desde el yo conquisto al mundo azteca e inca, a toda América (primer genocidio de la modernidad); desde el yo esclavizo a lo negros del África (segundo genocidio) vendidos por el oro y la plata logrados con la muerte de los indios en el fondo de las minas… Tradução nossa.
7 Que és la fenomenología y el pensamiento existencial sino la descripción de um yo o un Dasein desde el cual se abre um mundo, el propio siempre?
8 El ser humano normal es hoy un reprimido, Pero, politicamente existe la represión policial o militar del poder político o económico cuando el pueblo se rebela. La represión es la cara descubierta de la dominación. La represión de los medios de comunicación o psicologíca se hace violenta cual la presión de la rebelión crece. Se viola la corporalidad del oprimido contra su voluntad.
9 El pececillo debe defenderse solo en las infinitas águas que ló rodean hostiles. El ser humano en cambio nace en alguien, y no en algo; se alimenta de alguien y no de algo.
10 El respeto es la posición de metafísica pasividad con la cual se rinde culto a la exterioridad del otro: se lo deja ser en lo que es como dis-tinto. El respeto es la actitud meta-física como punto de partida de toda actividad en la justicia. Pero no es respecto por la ley (que es universal y abstracta), ni por el sistema y su proyecto. Es respecto por alguien, por la libertad del otro. El otro es lo único realmente sagrado y digno de respeto sin límite.
11 Pienso en el particular e íntimo parentesco de la lengua alemana con la lengua de los griegos y con su pensamiento. Esto me lo confirman hoy una y otra vez los franceses. Cuando empiezan a pensar, hablan alemán; aseguran que no se las arreglan con su lengua.
12 …la diferencia entre el ser y lo que está más abajo del ser, o lo que está marcado como dispensable y no solamente utilizable; la relación de un Dasein con un sub-otro no es igual a la relación con otro Dasein o con una herramienta
13 Aunque la estructura del capistalismo es diferente hoy, la organización racial y genérica de la mano de obra, está enmarcada en la constante actualización de la matriz colonial de poder… La apropriación de tierras en las colonias fue justificada sin oposición legal de los indígenas que no conocían la legalidad en nombre de la cual se le quitaban las tierras.
14 Isso significa que devemos suspeitar de categorias prévias de ordem analítica advindas da Europa e nos abrirmos as novas possibilidades de ser-no-mundo que se dão no nosso continente.

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