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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.9 no.3 Belém  2017

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03revir27 

Estudos de revisão

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol09.n03revir27

 

"Fritz Perls Husserliano? ": um ponto de vista comparativo

 

" A Husserlian Fritz Perls? ": A comparative point of view

 

"¿Un Fritz Perls Husserliano? ": Un punto de vista comparativo

 

Ícaro Miguel Ibiapina Machado; José Alves de Souza Filho

Universidade Federal do Ceará

 

 


RESUMO

Na academia psicológica brasileira, é comumente aceita a noção de que a Gestalt- Terapia possui tão sérias aproximações teóricas com a Fenomenologia que nos é válido chamá-la de uma "Abordagem Fenomenológica ". Nosso objetivo é contribuir para a discussão sobre se a Gestalt-Terapia pode ser classificada dessa forma. O trabalho consiste numa pesquisa teórica que escolheu quatro pontos de possível comparação analítica entre as teorias para que se pudesse atestar que nível de aproximação existe entre elas. Dos quatro pontos escolhidos, nossa análise apontou que apenas dois apresentavam aproximações parciais, enquanto dois apresentaram distanciamentos radicais. Considerou-se tal resultado pouco convincente à afirmação de que a Gestalt-Terapia é uma Abordagem Fenomenológica.

Palavras-chave: Fenomenologia; Gestalt-Terapia; Epistemologia.


ABSTRACT

In the brazilian psychological academy, it is commonly accepted the notion of Gestalt-Therapy possesses such serious theoretical approaches to Phenomenology that it is valid to call it a "Phenomenological Approach ". One aims to contribute to the discussion about whether the Gestalt-Therapy can be classified that way. The paper consists in a theoretical research that chooses, at first, four points of possible analytical comparison between the theories in order to attest what level of convergency exists between them. Out of the four chosen points, the analysis showed that only two had partial convergences, whereas two had extreme divergences. Thus, the results were considered unsupportive of the statement that Gestalt-Therapy is a Phenomenological Approach.

Keywords: Phenomenology; Gestalt-Therapy; Epistemology.


RESUMEN

En la academia psicológica brasileña, es comúnmente acepta la noción de que Gestalt-Terapia posee tan serias aproximaciones teóricas con la fenomenología que se nos valida llamarla de un "Abordaje fenomenológico ". Nuestro objetivo es contribuir para la discusión acerca si la Gestalt-Terapia puede ser clasificada de dicha forma. El trabajo consiste en una búsqueda teórica que eligió cuatro puntos de posible comparación analítica entre las teorías para que se pudiese evaluar qué nivel de aproximación existe entre ambas. De los cuatro puntos elegidos, nuestro análisis señaló que apenas dos presentaron aproximaciones parciales, mientras que los otros dos presentaban distanciamientos radicales. Se consideró tal resultado poco convincente a la afirmación de que la Gestalt-Terapia es un abordaje fenomenológico.

Palabras-clave: Fenomenología; Gestalt-Terapia; Epistemología.


 

 

A Fenomenologia é uma corrente filosófica, que, através da crítica epistemológica das ciências naturais, funda um método ontológico. (Piaget, 1967/1980). O fenomenólogo se propõe a fornecer uma filosofia primeira, a fim de fundamentar, de maneira rigorosa, todas as ciências. A partir daí, vários campos do saber tentaram apropriar-se do método fenomenológico para desenvolver suas teorias. No campo de psicologia podemos citar a Daseinsanálise, por exemplo. Binswanger, ao fundá-la sempre deixou claro que sua teoria era, fundamentalmente, fenomenológica.

Contudo, o mesmo não ocorre com a Gestalt-Terapia. Perls nunca pretendeu fazer da Gestalt-Terapia uma psicologia fenomenológica. Na verdade, em alguns momentos, ele até esboça críticas a essa corrente filosófica e tenta, de algum modo, se diferenciar dela. A psicologia proposta por Perls está, de fato, muito mais próxima do naturalismo do ponto de vista epistemológico. Ou seja, o psicólogo utiliza aspectos da biologia naturalista e os aplica ao indivíduo enquanto sujeito psíquico (Figueredo,1991).

No entanto, apesar dessa diferença epistemológica marcante entre esses dois saberes, alguns psicólogos1 da abordagem de Perls tentam, provavelmente com a intenção de obter para Gestalt-Terapia um fundamento filosófico (o qual poderia torná-la mais "aceita " academicamente), aproximar aspectos teoréticos entre o pai da fenomenologia e o gestaltterapeuta. Desse modo, é justificado uma investigação mais pormenorizada acerca da validade dessa aproximação.

Contudo, já é para nós descartada a possibilidade de se embasar a Gestalt- Terapia com método fenomenológico de forma a priori. Apesar disso, partimos do pressuposto de que há a possibilidade de que a abordagem de Perls possa guardar semelhanças com a de Husserl de maneira a posteriori (ou seja, considerando que mesmo caminhando em solos históricos e epistemológicos diferentes, estes saberes podem ter algumas similitudes).

Dessa forma, nosso objetivo nesse artigo é trazer uma contribuição para o debate acadêmico acerca da citada tentativa de aproximação, por parte dos psicólogos da área gestáltica. Para tanto, escolhemos analisaremos quatro aspectos comparáveis entre ambas as teorias e verificaremos em que medida as opiniões dos autores convergem, sendo eles: " Métodos de Abordagem do Indivíduo ", "Superação da Dicotomia Corpo-Mente ", "Caráter Descritivo " e "Concepção sobre o Tempo ". Após a apresentação desse panorama comparativo, tomaremos a liberdade de, a partir dos achados da pesquisa bibliográfica, indicar se o caminho tomado em direção a Fenomenologia é frutífero ou não, do ponto de vista epistemológico, para a Gestalt-Terapia.

 

MÉTODO DE ABORDAGEM DO INDIVÍDUO

Um importante aspecto a partir do qual podemos traçar semelhanças e diferenças entre a Gestalt-Terapia e a Fenomenologia é a forma com a qual se aborda o indivíduo (no caso da Fenomenologia, não haveria uma restrição metodológica apenas ao indivíduo, mas também abarcaria as "coisas "). Por um lado, temos uma visão holística, influenciada pela Psicologia da Gestalt e, por outro, temos uma concepção mais próxima de uma ontologia.

Para compreendermos o método gestáltico com propriedade, é importante que se tenha em mente que sempre o todo será respeitado. Para saberes holísticos, um todo nunca poderá ser analisado em suas partes de forma separada para que, depois de termos explicado esses fragmentos, possamos juntá-los de volta, abarcando, assim, pretensamente, o todo. Essa é uma das principais contribuições da Psicologia da Gestalt para a Gestalt-Terapia. Perls, Hefferline e Goodman (1951, p.238, tradução nossa), explicitando justamente quais as influências da Psicologia da Gestalt para sua teoria, postulam que "o fenômeno o qual aparece como todos unitários deve ter sua inteireza respeitada e pode ser analiticamente quebrado em pedaços sob pena de aniquilar o que se pretendia estudar ".

Dessa forma, quando nós temos uma figura sob um fundo, não se pode trabalhar um em detrimento de outro. Tal movimento traria prejuízos para toda a gestalt (Perls, Hefferline & Goodman, 1951). Assim, a Gestalt-Terapia considera o indivíduo em toda sua inteireza. Por exemplo, não podemos separar organismo do seu ambiente. O gestalt-terapeuta deve observar igualmente seu paciente e suas relações interpessoais. Outro exemplo de Holismo na Gestalt-Terapia é inseparabilidade de corpo e mente (como veremos mais pormenorizadamente adiante).

Enquanto a preocupação do Holismo é a não fragmentação, a defesa ao "Todo ", para que não sofra "amputações ", a preocupação da Fenomenologia é um alerta para algo que foi posto como para além da coisa mesma, que foi "trans-intentado "2. A crítica de Husserl (1907/2008, p.59) é, portanto ao transcendente, pois "nele vamos além do dado em cada caso no verdadeiro sentido, além do que diretamente se pode ver e captar. A pergunta é aqui: como pode o conhecimento pôr como existente algo que nele não está directa e verdadeiramente dado? ".

No entanto, na medida em que as Ciências Naturais, com seu método objetivo, intentam para algo além de si mesmo, a Fenomenologia tenta justamente "consertar " esse " passo em falso ". Ela busca, portanto, o retorno (a redução) às coisas mesmas, voltando, assim, para o dado absoluto e imanente.

Ainda assim, a pergunta sobre o quanto o método de abordagem da "coisa " proposto pela Gestalt-Terapia é próximo daquele da Fenomenologia ainda permanece sem respostas. Comecemos pelas diferenças: como já apontamos, o foco do Holismo presente na Gestalt-Terapia é, antes, uma defesa contra uma suposta fragmentação (feita comumente por outros métodos) de algo. Segundo essa doutrina, essa fragmentação só se daria sob pena de se perder o objeto inicial. Ou seja, se fragmentamos algo para análise, já estamos falando de algo que não o objeto inicial (sem análise).

A defesa de Perls em sua abordagem psicoterápica muito converge com a Lei da Pregnância da Psicologia da Gestalt, formulada a partir dos estudos experimentais sobre percepção e movimento. Para Köhler, "essa lei pode ser entendida com um principio de auto regulação organísmica que se dá pela percepção. Nela as estruturas não são atomísticas, ou seja, mera soma de partes; são totalidades maiores que a soma dessas partes " (conforme citado por Castelo Branco & Barrocas, 2010, p.98).

Já o escopo da Fenomenologia não é uma crítica à fragmentação em si. Esse não é o caminho que Husserl segue para fundamentar sua Fenomenologia Transcendental. A preocupação de Husserl (1927/2001) é, fundamentalmente, a ida contra (e além) ao dado absoluto da consciência que o cientista faz ao pressupor o mundo empírico. Seria uma atitude cética e critica ao ser "natural " do mundo, onde o cientista o reconhece na delimitação empírica do ser no tempo e no espaço (Husserl, 1911/1965). Entendemos, assim, que essas formas de abordagem, nesse aspecto, guardam diferenças.

Apesar disso, se quisermos tentar enxergar similitudes entres esses métodos, podemos, talvez, encontra-las. O que podemos ressaltar é que ambos partem de uma crítica de outras abordagens, denunciando, assim, a sua falta de compromisso com o objeto (ou o dado) da qual se pretende abarcar – fragmentação ou "trans-intentação ". A partir daí, ambas tentam traçar caminhos para vencer essa "traição " ao objeto, propondo métodos que o " preserve ".

 

SUPERAÇÃO DA DICOTOMIA CORPO-MENTE

Outro ponto em que podemos tentar aproximar a Gestalt-Terapia a Fenomenologia é o seu posicionamento sobre o paradigma cartesiano, que enxerga o corpo e a mente como coisas separadas, de "substâncias " diferentes. Percebemos que ambas as concepções são críticas em relação a essa separação, propondo concepções que, de alguma forma, as unifica em um mesmo plano.

Para Perls (1973/2010), não podemos olhar o pensar e o agir como assuntos diferentes. Isso contradiria a própria doutrina holística com a qual a Gestalt-Terapia se embasa epistemologicamente. Não podemos olhar nosso paciente como uma simples soma de dois "planos " separados.

Perls traz um posicionamento que tenta enxergar o corpo e a mente de forma monista. Assim, quando pensamos em algo, estamos apenas, com o uso de símbolos, reproduzindo a realidade em uma escala menor. Ou seja, o pensar e o agir não se diferem de maneira substancial. Para os gestalt-terapeutas, essa operação mostra-se muito vantajosa para nossa espécie, pois podemos desempenhar uma atividade usando apenas símbolos (a qual seria bem mais dispendiosa, em termos de energia, se fosse operada usando a força física). Em suma, Perls nos convida a olhar a mente e o corpo como sendo algo de mesma " matéria ", não diferenciáveis entre si.

Supomos que Husserl também não concordaria com o paradigma cartesiano corpo-mente. Para o Fenomenólogo, essa separação veio em prol do método das Ciências da Natureza. A separação de corpo e mente é o primeiro passo para colocar a mente a serviço da objetividade exigida por esse método. Para explicar esse acontecimento, Husserl usa a palavra alemã Körper para designar o corpo que se usa nas Ciências da Natureza. Por Körper designamos aquele corpo objetivável (um corpo entre outros objetos), que acontece no tempoespaço mundanos e que é objeto de ciências como a Biologia, por exemplo. Como um anexo real (Husserl, p.60, 1927/2001) a esse corpo, apareceria a mente (mas também, segundo o método científico, passível de ser objetivável). Em outras palavras, Körper é o corpo que eu tenho.

Em oposição a esse Körper, Husserl cria o conceito Leib (corpo vivido). Para Husserl, o Leib é o centro de todas as minhas vivências, sendo, ao mesmo tempo, vivenciado e vivenciável. Leib não é o corpo que eu tenho (um corpo entre corpos, num plano espaçotemporal), mas sim o corpo que eu sou. Corpo no qual se vivera "nas carnes e nos ossos " a realidade purificada pelas reduções fenomenológicas efetuadas pelo sujeito que investiga pelas atitudes do método fenomenológico (Husserl, 1936/2006).

Percebemos que aqui não se trata de uma mente como um anexo real a um corpo objetivável. O conceito de Leib supera essa dicotomia, colocando o corpo numa posição vivencial central. Segundo Husserl (1907/1973, tradução nossa)

Devemos perceber aqui que, na experiência das coisas, o Leib é coexperimentado como corpo vivo e funcionante (assim, não como uma simples coisa), e quando ele mesmo se experimenta como uma coisa é experimentado de modo duplo e unido como coisa experimentada e como corpo vivo funcionante experimentador (p.57).

Com isso, notamos que Husserl e Perls mantêm aqui uma aproximação parcial. Ambos teóricos criticam a noção cartesiana de corpo e mente como planos separados e criam concepções novas, que acabam por "quebrar " com essa separação. Contudo, os caminhos trilhados e os resultados finais são bastante distintos entre os dois. Tal acontece, justamente, pela visão de homem que cada um tem. Para Perls, não podemos enxergar pensar e agir de maneira separada porque tratamos, aqui, de um organismo unificado, que não é passível de separações. Na Gestalt-terapia, o indivíduo é concebido como um organismo. Essa herança vinda da Psicologia da Gestalt trata que a interações com o meio são organizadas e apreendidas em suas totalidades de modo espontâneo na apreensão e compreensão das relações presentes em uma situação-problema.

Uma compreensão significativa na experiência do organismo que será denominada de insight (Castelo Branco & Barrocas, 2010, p.99). Já para Husserl, nem é possível dizer que se trataria de organismo (pois, para esse autor, já estaríamos falando de um Körper). A visão de Husserl se pauta, principalmente, na concepção do eu como um " centro vivencial ". A partir desse centro, as intuições puras oferecem aos sujeitos os conhecimentos sobre mundo circundante bem como os sentidos na constituição do espirito humano. Na intuição, o sujeito vivencia o desvelamento das estruturas do mundo e das criações da vida humana (Husserl, 1936/2002). Assim, podemos afirmar que a semelhança entre os dois autores, nesse aspecto, só ocorre na medida em que eles concordariam que o dualismo cartesiano é errôneo. Porém, ao olharmos com mais atenção à justificativa para tal posicionamento e a "solução " para o citado paradigma, percebemos que aproximações maiores entre os teóricos seriam superficiais.

 

CARÁTER DESCRITIVO

Outro aspecto importante que podemos comparar entre a Fenomenologia Husserliana e a Gestalt-Terapia é o caráter, que ambas apresentam, de descrição (ao invés de, propriamente, explicação). Nosso objetivo é, portanto, apontar quais as diferenças e semelhanças entre esses saberes no tocante a essa característica.

Perls (1971/1980) pauta sua psicologia descritiva na crítica de saberes que utilizam a explicação como paradigma. Para isso, ele designa quatro abordagens filosóficas básicas. Dessas quatro, Perls destaca o caráter explicativo de duas, a saber: abordagem perifrásica ( "aboutism ") e, por incrível que pareça, o pensamento ontológico-existencial.

O aboutism são as ciências tais como nós as conhecemos. Para Perls (1971/1980), essa abordagem parte de uma explicação acerca das coisas. Ou seja, partimos de um distanciamento do tipo sujeito-objeto (em outras palavras, não há envolvimento neste caso). Já o pensamento ontológico, para Perls, no que concerne ao aspecto aqui avaliado, é um eterno perguntar o porquê das coisas, retrocedendo sempre em uma cadeia causal. Para esse autor, essa volta de explicação ao precedente, além de ser infinita, acaba confundindo recordações e história.

Perls (1971/1980) propõe uma "solução " para esse caráter explicativo. Ele pretende que a Gestalt-Terapia seja um saber essencialmente descritivo. Segundo Perls, esta tenta entender a existência através do modo como ocorre. O teórico troca, metodologicamente, sua pergunta inicial para "como algo acontece ", ao invés de "por que algo acontece ".

O pensamento de Husserl se aproxima daquele de Perls na medida em que ele também parte de uma crítica a saberes já constituídos que visariam à explicação para, então, fundamentar-se na descrição, propriamente. Contudo, as bases epistemológicas da crítica Husserliana diferem substancialmente daquela de Perls. Para Husserl, a Fenomenologia não poderia trabalhar com uma psicologia explicativa, sobretudo, porque esta está em acordo com a fundamentação metodológica das Ciências da Natureza. Para o projeto de uma ciência de rigor fenomenológica, deveríamos seguir por outro caminho, o da descrição. Segundo Moran e Cohen (2008)

para Husserl, a fenomenologia procede através de uma exata descrição Beschreibung) ao invés de uma explanação (Erklärung). A esse respeito, Husserl está seguindo a tradição da psicologia descritiva de Brentano. Husserl caracteriza a fenomenologia como uma disciplina eidética descritiva da formações imateriais conscientes. Não está interessada em gerar teorias ou importar hipóteses de outros campos, nem tenta explicações causais. Em geral, procura evitar inferências e invés disso foca no que é diretamente dado na intuição. (p.87, grifos dos autores, tradução nossa)

Para a crítica fenomenológica, portanto, não é possível que se use o mesmo método objetivo das ciências da natureza para abarcar a consciência pura. A explicação, segundo Husserl, só é possível se for pautada no mundo natural. Ora, se a Fenomenologia, através da epoché, propõe uma suspensão de tudo aquilo que é dado transcendente, todo o mundo que as ciências naturais se utilizam é, por assim dizer, posto entre parênteses, suspenso. Logo, a explicação aqui não é válida. A Fenomenologia deveria seguir um paradigma próprio, descritivo, afastando-se da explicação.

Em suma, percebemos semelhanças no que diz respeito ao caráter descritivo dessas abordagens. Apesar de justificativas diferentes, há uma tentativa de descrever, em oposição a explicar. Contudo, além dessas justificativas diferentes para a formação do caráter descritivo, observamos outro motivo básico para não considerar a Gestalt-Terapia um saber fenomenológico nesse aspecto. Perls pretende se diferenciar, nesse aspecto, da ontologia e do existencialismo.

Na sua deficiente crítica aos existencialistas, Perls (1971/1980) faz questão de se distanciar deles nessa característica, afirmando que estes buscam relações causais e a Gestalt-Terapia procuraria, tão somente, descrições. O que Perls não entendeu é que os existencialistas nunca tentaram encontrar "porquês " em suas teorias. Os existencialistas – influenciados, em sua maioria, pela Fenomenologia husserliana – buscam, sobretudo, também descrições. O afastamento de Perls aos existencialistas é, portanto, um afastamento ao próprio Husserl, tendo em vista que esse aspecto específico é uma clara herança do fenomenólogo. Como considerar, então, o caráter descritivo da Gestalt-Terapia como fenomenológico se, justamente, Perls parte de uma crítica da Fenomenologia para fundamentar sua postura?

Nossa posição é, portanto que há uma aproximação parcial entre as duas áreas do conhecimento. Como argumento a favor da aproximação temos que ambas partem de críticas a teorias das ciências naturais e seu caráter explicativo, propondo uma alternativa descritiva ao problema rechaçado. Porém o que nos impede de aqui considerar uma aproximação total é o fato de Perls ter feito isso com vista a criticar o legado husserliano.

 

CONCEPÇÃO SOBRE O TEMPO

Outro aspecto que podemos comparar a concepção gestáltica e a concepção fenomenológica é qual o posicionamento teórico sobre o tempo.

O posicionamento de Perls (1980/1971, p.25) sobre o tempo é claro: para ele, " nada existe senão o agora ". Esse posicionamento advém do fato de que só podemos experienciar o agora. O tempo presente é o único em que podemos afirmar que estamos. É o ú nico em que nós somos. Segundo Perls (1980/1971, p.25), "O passado já não é, e o futuro ainda não é ". É por isso que o gestaltista fundamenta sua terapia no agora. O que deve ser objeto de trabalho para o gestalt-terapeuta é o que o paciente experiencia naquele exato momento, ali na frente do terapeuta. É o que os psicólogos dessa linha chamam de foco no aqui-agora.

É claro que isso não nega que o paciente tenha uma história ou um futuro do qual se tenha expectativas. Perls, não excluía a importância destes fatores na vida de um sujeito. O passado e o futuro têm que ser considerados, mas somente em sua relação com o presente. Em outras palavras, o passado e o futuro só obtém existência quando atualizados (ou seja, postos no presente) pelo organismo. Por exemplo, se um paciente apresenta uma queixa sobre algo que lhe aconteceu na infância, o terapeuta vai tratar aquele fato não como algo que aconteceu no passado e lá ficou, mas sim como algo presente, experienciado pelo paciente naquele momento. Mesmo assim, é evidente que há um primado do presente. Ele funciona como uma espécie de "pedra angular " em toda a práxis da Gestalt-Terapia.

Já a concepção husserliana é deveras diferente. O fenomenólogo faz de início uma oposição entre a postura cognoscitivo-fenomenológica e a lógica empírico-experimental (Husserl, 1905/1994). A primeira diz respeito à posição da Fenomenologia (logo, a posição com a qual o autor segue) e a outra é a posição das Ciências da Natureza (portanto, criticada por ele).

Para a Fenomenologia, a temporalidade é algo de essencial à consciência. É através dela que a consciência se estrutura. Vivências só podem acontecer, portanto, se forem temporalmente estruturadas (Husserl, 1905/1994)). As vivências, para Husserl, têm o caráter de fluidez. A consciência não é senão um fluxo de consciência – aqui percebemos a diferença clara entre posição cognoscitivo-fenomenológica e a empírica-experimental – nesta, não existiria um fluxo de consciência, mas sim momentos do tempo, em um mundo objetivável, separáveis entre si.

A partir deste fluxo, o homem operaria uma atividade sintética. Essa atividade teria como base duas dimensões temporais distintas. Por um lado, temos a atualidade, – que seria a representação da consciência através de um presente vivo – e por outro temos a potencialidade da consciência – ou seja, o passado retido (retenção) e o futuro pretenso (protensão). A temporalidade se opera como uma síntese: é a partir do passado vivido e do futuro vivido que o presente se vivifica (Husserl, 1905/1994).

Em adição à estrutura temporal da consciência, apresentada acima, ainda temos outro fator concernente ao tempo na obra Husserliana: a História da Humanidade. Já na maturidade de sua obra, Husserl postula um importante conceito: o mundo da vida. Assim, Husserl supera a sua antiga visão de um sujeito fundado em si mesmo, sem relações intersubjetivas diretas, para desembocar num sujeito que é ligado intersubjetivamente com a humanidade, que transcende sua condição de sujeito único, focado nas suas próprias vivências, fundando, assim, a Fenomenologia Generativa. O homem é, portanto, também,

Estou, na verdade, em um presente co-humano e em um horizonte humano aberto; eu estou, de fato em uma conexão generativa, em um fluxo sintético de uma historicidade, na qual este presente é presente humano e o presente histórico de seu mundo consciente é de um passado histórico e de um futuro histórico. (Husserl, 1936/1991, p.264, tradução nossa)

Será que a concepção da Gestalt-Terapia sobre o tempo guarda alguma relação com a orientação fenomenológica? Acreditamos que não. Em primeiro lugar, a Gestalt- Terapia trabalha com o movimento de exclusão do passado e do futuro em benefício do presente. Entendemos que isso não condiz com a estrutura temporal da consciência husserliana, pois é somente a partir da dimensão da sua potencialidade (passado retido e futuro propenso) é que o presente se faz vivo. Para a Fenomenologia, portanto, é impossível que se tenha uma consciência temporal de presente se não houver igualmente o passado e o futuro. Em segundo lugar, a concepção gestáltica se distancia da fenomenológica na medida em que não há uma consideração da dimensão intersubjetiva do tempo (não há relação com a história da humanidade).

Na verdade, pensamos que a concepção de tempo da Gestalt-Terapia mais se aproxima da concepção criticada por Husserl (lógica empírico-experimental de tempo). Não parece que Perls considera o tempo com estruturante da consciência de fluxo, mas sim, ele a considera como algo "externo " e homogêneo, constituindo um mundo que não considera o aspecto da vivência intencional, que tem pretensões de ser objetivável, o mundo circundante transcendente (conceito que Husserl faz questão de diferenciar do "mundo da vida "). O agora de Perls é o agora do mundo transcendente, o agora preso às dimensões espaços-temporais que as Ciências Naturais tentam dar conta. Husserl diria que Perls apenas desconsidera alguns "agoras " (os passados e futuros) em benefício do agora-presente. Desse modo, a única diferença entre eles é que o cientista natural tem em conta momentos passados, presentes e futuros, enquanto Perls apenas considera (pelos motivos já explicitados) o presente como ú nico existente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi antes mencionado, nosso objetivo foi avaliar o quanto a Gestalt-Terapia se aproxima da Fenomenologia de forma a posteriori. Para isso, analisamos quatro aspectos comparáveis entre as duas teorias e observamos até que ponto eles se aproximam. Como resultado da análise, percebemos que tivemos duas aproximações parciais entre os aspectos avaliados (Superação da Dicotomia Corpo-Mente e Caráter Descritivo) e dois distanciamentos (Método de Abordagem do Indivíduo e Concepção sobre o Tempo).

Nosso posicionamento, portanto, é de que, à luz das análises feitas, não podemos considerar a Gestalt-Terapia, sequer de maneira a posteriori, como uma abordagem fenomenológica. Para nós, as poucas aproximações feitas não são suficientes para fazer uma consideração epistemológica como essa.

Entendemos que os atuais Gestalt-Terapeutas tendem a fazer essa classificação a fim de embasar mais fortemente sua prática, tendo em vista a consistência e o respeito acadêmico da teoria de Husserl. Tal movimento se deu, principalmente, pela defesa da entrada da Gestalt-Terapia no âmbito acadêmico.

Contudo, entendemos que não podemos fazer tais considerações sem o devido rigor acadêmico e epistemológico, de modo que consideramos que os gestalt-terapeutas não precisam ir à busca de outros saberes fora do âmbito histórico e epistemológico de sua psicologia. Acreditamos que a Gestalt-Terapia já tem suficiente beleza dentro de seus próprios contextos históricos e epistemológicos, a saber, o Holismo, o Vitalismo e o Naturalismo.

 

Referências

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Notas sobre os autores

Ícaro Miguel Ibiapina Machado: Psicólogo, formado pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí, na linha de Epistemologia. E-mail: icaro_machado@live.com.

José Alves de Souza Filho. Graduado e mestrando pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista CAPES (D/S). Pesquisador do Grupo PARALAXE: Grupo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas e Intervenções em Psicologia Social Crítica e colaborador do grupo Psicologia, Subjetividade e Sociedade e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicoterapia, Fenomenologia e Sociedade. E-mail: josefilhoss@gmail.com.

 

Recebido em: 17/05/2017
Aprovado em: 20/09/2017

 

 

1 Podemos citar, por exemplo, Boris (1992) e Moreira (2009).
2Termo utilizado principalmente no livro "Ideia de Fenomenologia " (2008), mas que serve perfeitamente para ilustrar a "luta " husserliana contra o transcendente presente em toda a sua obra posterior a 1900.

 

 

 

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