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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.1 Belém Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo22 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo22

 

O mundo ao meu alcance: território e saúde mental no litoral do Paraná

 

The world within my actual reach: Territory and mental health in the coast of Paraná

 

El mundo a mi alcance: Territorio y salud mental en el litoral del Paraná

 

 

Camila Muhl; Adriano Furtado Holanda

Universidade Federal do Paraná

 

 


RESUMO

Portaria 3.088 de 2011 institui a Rede de Atenção Psicossocial que empodera todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde para atuarem em saúde mental. Nesse modelo, a noção de território é central para garantir a integralidade do atendimento. Este trabalho buscou refletir a partir da fenomenologia de Husserl sobre as possibilidades do território na saúde mental na 1ª Regional de Saúde do Paraná que compreende os municípios do litoral do Estado. Caracterizando-se como uma pesquisa fenomenológica, foram entrevistados seis profissionais que trabalham na Atenção Psicossocial e foram coletados dados de saúde junto ao DATASUS, IBGE e Secretária Estadual de Saúde. Foram destacados pelos profissionais aspectos positivos do território, como o uso da praia em oficinas terapêuticas, e aspectos negativos, como a época de temporada no verão que diminui a adesão ao serviço e aumenta o número de recaídas no caso dos usuários que fazem uso de álcool e drogas.

Palavras-chave: Saúde Mental, Atenção Psicossocial, Território.


ABSTRACT

The 3.088 Ordinance 2011 establishing the Psychosocial Care Network that empowers all levels of care from the National Health System to work in mental health. In this model, the notion of territory is central to ensuring comprehensiveness of care. This work sought to reflect on the phenomenology of Husserl on the possibilities of the territory in mental health in the 1st Health Regional of Paraná, which comprises the municipalities of the coast of the State. Characterized as na phenomenological research, six professionals working in Psychosocial Care were interviewed and quantitative health data were also collected from DATASUS, IBGE and Secretary of Health. Positive aspects of the territory were highlighted by professionals, such as the use Of the beach in therapeutic workshops, and negative aspects, such as the seasonal season in the summer that decreases adherence to the service and increases the number of relapses in the case of users who use alcohol and drugs.

Keywords: Mental health; Psychosocial care; Territory.


RESUMEN

La Portaria 3.088 de 2011 instituye la Red de Atención Psicosocial que empodera todos los niveles de atención del Sistema Único de Salud para actuar en salud mental. En este modelo, la noción de territorio es central para garantizar la integralidad de la atención. Este trabajo buscó reflexionar a partir de la fenomenología de Husserl sobre las posibilidades del territorio en la salud mental en la 1ª Regional de Salud del Paraná, que comprende los municipios del litoral del Estado. En el presente trabajo se analizaron seis profesionales que trabajan en la Atención Psicosocial y se recolectar datos cuantitativos de salud junto a DATASUS, IBGE y Secretaria Estadual de Salud. Se destacaron por los profesionales aspectos positivos del territorio, como el uso de la playa en talleres terapéuticos, y aspectos negativos, como la temporada en el verano que disminuye la adhesión al servicio y aumenta el número de recaídas en el caso de los usuarios que hacen uso de alcohol y drogas.

Palabras-clave: Salud Mental, Atención Psicosocial, Territorio


 

 

INTRODUÇÃO

A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) é regulamentada em 2011, pela Portaria 3.088 do Ministério da Saúde com o objetivo de criar, ampliar e articular os pontos de atenção à saúde mental, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), tanto para pessoas com transtornos mentais como para pessoas que fazem uso nocivo de álcool e outras drogas, dentro dos preceitos de atenção à saúde mental instituídos pela Lei 10.216 de 2001.

Com o objetivo de integrar todos os níveis de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento à saúde mental, a RAPS conta com sete dispositivos capazes de ofertar cuidado às pessoas com transtornos mentais (Ministério da Saúde, 2011). Vejamos a descrição desses dispositivos:

I - Atenção Básica em Saúde: formada por dispositivos como Unidade Básica de Saúde (UBS), Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF), entre outros, e tem como objetivo as ações de cuidado, promoção e prevenção em saúde mental.

II - Atenção Psicossocial Especializada: compreende todas as modalidades dos Centros de Atenção Psicossocial (I, II, III, i, AD) que realizam o atendimento interdisciplinar dos usuários de saúde mental.

III - Atenção de Urgência e Emergência: inclui Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), Unidade de Pronto Atendimento 24 horas (UPA), e os serviços de urgência e emergência dos hospitais. Esses dispositivos têm como função, no âmbito da RAPS, acolher e realizar a classificação do risco dos casos de urgência e emergência.

IV - Atenção Residencial de Caráter Transitório: inclui as Unidades de Acolhimento e as Comunidades Terapêuticas e oferecem cuidados contínuos de saúde para as pessoas com transtornos mentais.

V - Atenção Hospitalar: a atenção hospitalar também faz parte da RAPS, não mais para internações de longa duração, mas para casos graves, como crises ou intoxicações severas por álcool e outras drogas. Esse tipo de atenção é ofertado através das enfermarias especializadas em hospitais gerais ou Serviço Hospitalar de Referência.

VI - Estratégias de Desinstitucionalização: são dispositivos que buscam a inclusão social de pessoas que passaram por longos períodos de internação e entre eles estão os Serviços Residenciais Terapêuticos que através de uma residência inserida na comunidade, acolhem os egressos dos hospitais psiquiátricos; e o Programa de Volta para Casa que fornece um auxílio financeiro com a finalidade de reabilitação para as pessoas que passaram por internação psiquiátrica de longa permanência.

VII - Reabilitação Psicossocial: esse componente da RAPS é destinado às estratégias de geração de trabalho e renda e compreende as cooperativas sociais e os empreendimentos de economia solidária.

Uma das premissas desse modelo é que ele seja territorial, preservando os laços sociais e comunitários dos usuários de saúde mental, o que é considerado uma inversão na lógica do atendimento tradicional em saúde mental. O cuidado ao sujeito da loucura sempre esteve pautado no isolamento1 e na exclusão, onde o louco tinha um lugar diferente do resto da sociedade2, e a lógica do território vem para romper com essa perspectiva: agora a pessoa com transtornos mentais pode receber atenção junto a sua comunidade, junto aos seus vínculos afetivos, participando efetivamente da sociedade (Yasui, 2010).

Apesar da clara importância do território para as políticas de saúde no Brasil e, em especial, em saúde mental, nem sempre o significado deste termo está claro para aqueles que precisam acessá-lo, podendo as suas conceitualizações derivarem da geografia, da antropologia, da saúde coletiva, etc. No âmbito deste trabalho propomos um aporte fenomenológico para o território, aproximando-o da noção de mundo circundante conforme as proposições husserlianas.

Para atingir o objetivo de discutir de que forma o território está presente nas ações de cuidado em saúde mental, optamos pelo estudo detalhado de um território em específico: o Litoral do Paraná, que constitui a 1ª Regional de Saúde do estado. Assim, como forma de organizar o trabalho, num primeiro momento, apresentaremos uma discussão conceitual sobre a compreensão do território desde uma proposta fenomenológica; na sequência, trataremos das características especificas deste território a partir das considerações dos profissionais de saúde mental que atuam na RAPS e para finalizar, abordaremos as possibilidades do território para a saúde mental.

 

TERRITÓRIO: O MUNDO AO NOSSO ALCANCE

Para principiarmos a discussão acerca da noção de território, atentemos para as seguintes passagens:

Constituem-se diretrizes para o funcionamento da Rede de Atenção Psicossocial: [...] VII - Desenvolvimento de atividades no território, que favoreçam a inclusão social com vistas à promoção de autonomia e ao exercício da cidadania (Ministério da Saúde, 2011, p.--).

O território é constituído fundamentalmente pelas pessoas que nele habitam, com seus conflitos, seus interesses, seus amigos, seus vizinhos, sua família, suas instituições, seus cenários (igreja, cultos, escola, trabalho, boteco etc.). É essa noção de território que busca organizar uma rede de atenção às pessoas que sofrem com transtornos mentais e suas famílias, amigos e interessados (Ministério da Saúde, 2004, p. 11).

Através das citações apresentadas já é possível perceber a importância atribuída ao território pelo modelo da Atenção Psicossocial. Entretanto, esse não é um conceito circunscrito teoricamente e várias áreas são acionadas para discuti-lo, como a geografia e a saúde coletiva. Neste artigo, procuraremos então nos aprofundar nessa noção tão cara à atenção à saúde mental, tentando aproximá-la de conceitos fenomenológicos, notadamente do conceito husserliano de mundo circundante, para poder pensar sua atual aplicação junto à Rede de Atenção Psicossocial.

A discussão do território no âmbito da saúde mental já inicia ao se pensar a rede e a abertura dos serviços. Yasui (2010) afirma que não é possível pensar num mesmo processo de implantação para todos os serviços de saúde mental, levando em conta que é totalmente diferente a organização de um CAPS num pequeno município no interior da Amazônia, onde só é possível chegar de barco, de um CAPS aberto em uma cidade da região metropolitana de uma grande capital, como São Paulo, por exemplo. O território é distinto, as relações são distintas, como são distintas igualmente a cultura e a história, e até mesmo as condições econômicas e políticas.

Esta articulação entre saúde e território não é uma exclusividade da saúde mental, pois todo o Sistema Único de Saúde opera sobre a lógica das Regiões de Saúde (RAS) que devem contar com dispositivos de Atenção Primária, Urgência e Emergência, Atenção Psicossocial, Atenção Ambulatorial Especializada e Hospitalar e Vigilância em Saúde, de acordo com o Decreto nº 7508 (Brasil, 2011). Vejamos a definição de Região de Saúde:

[...] espaço geográfico contínuo constituído por agrupamentos de Municípios limítrofes, delimitado a partir de identidades culturais, econômicas e sociais e de redes de comunicação e infraestrutura de transportes compartilhados, com a finalidade de integrar a organização, o planejamento e a execução de ações e serviços de saúde (Brasil, 2011, p.--).

A partir desta citação, destacamos dois aspectos: a) por um lado, o território para o SUS, passa por aspectos burocráticos – divisas oficiais entre as cidades, aspectos legais, serviços de saúde instalados – mas, b) por outro lado, o território ultrapassa (ou encolhe) diante desses aspectos burocráticos, visto que as identificações culturais, relações sociais e os aspectos econômicos também vão operar recortes nos territórios, para além dos traçados que aparecem nos mapas oficiais. Para Yasui (2010) esse conceito de território é relacional, superando uma delimitação geográfica sobre a qual um serviço seria responsável pelo atendimento das pessoas que residem num determinado local:

Essa perspectiva do território como processo, como relação, rompe com a noção de esquadrinhamento da sociedade, delimitando áreas de abrangência, considerando apenas o frio mapa de uma cidade. Trata-se aqui de construir/inventar um espaço possível de subjetivação. Talvez não seja muito pensar que, para uma proposta de um CAPS, haverá para cada CAPS um território com sua singularidade e, em cada CAPS, tantos territórios quanto os usuários que lá se encontram (Yasui, 2010, p. 130).

Nos afastando então de uma noção de território reduzida aos aspectos físicos ou enquanto uma área previamente delimitada, o que pretendemos aqui é a compreensão do território em consonância com a noção de "mundo circundante" (Lebensumwelt) como apresentado por Husserl na obra A crise da humanidade europeia e a filosofia, tal seja, um território que é fundamentalmente subjetivo. A compreensão de que a subjetividade deve ser entendida numa perspectiva histórica e relacional está presente nos escritos fenomenológicos, desde sua gênese em Husserl, até seus desenvolvimentos posteriores com Merleau-Ponty, Sartre e Lévinas, dentre outros; com profundas repercussões na psiquiatria europeia, através de nomes como Minkowski, Binswanger, Straus, Von Gebsatell, Laing, Cooper e Basaglia, apenas para citar alguns.

Nessa perspectiva, a compreensão de Husserl (1935/2008) vai ao encontro de uma leitura de território que não pode ser compreendido geograficamente ou cartograficamente – já que os mapas e gráficos produzidos por esses saberes são abstrações da realidade – nem mesmo como o aglomerado de humanos que partilham um local. Um território é formado por um grupo de pessoas que partilha uma unidade particular de tempo histórico e uma cultura particular. Essa formação – pessoas, território, história, cultura – deve ser tratada como "(...) unidade de uma vida, de um agir, de um criar espirituais: com todas as finalidades, interesses, cuidados e esforços, com as formações finalisticamente produzidas, as instituições, as organizações" (Husserl, 1935/2008, p.17). Nesse sentido, os serviços de saúde mental não podem ser burocraticamente instalados numa comunidade, sem considerar as suas particularidades.

Voltando ao conceito de mundo circundante e a partir da ideia de que o território não pode ser reduzido a uma questão geográfica, o que Husserl (1935/2008) propõe é que não tratemos do território em si, mas sim, da representação do território para as pessoas uma vez que é esta ação que permitirá conhecer o território de cada pessoa. A compreensão do território e do mundo circundante ocorre então não como algo objetivo, mas como uma representação, uma validação subjetiva:

Mundo circundante é um conceito que tem o seu lugar exclusivamente na esfera espiritual. Que nós vivamos no nosso mundo circundante respectivo, que vale para todos os nossos cuidados e esforços, tal designa um facto que se passa puramente na esfera do espírito. O nosso mundo circundante é uma formação espiritual em nós e na nossa vida histórica. [...] é um contra-senso olhar a natureza circum-mundana como em si mesma alheia ao espírito (Husserl, 1935/2008, p. 15).

Quando falamos de mundo circundante nos referimos ao mundo cotidiano das pessoas, o mundo onde desenvolvem as suas relações. Essa parcela de mundo que experienciamos é o que Schutz (2012), autor fortemente influenciado pelas ideias de Husserl, chama de "o mundo que está ao meu alcance", e é justamente essa parcela de mundo mais proximamente vivenciada, que vai ser gravada na biografia do sujeito como um elemento ou uma fase única. Vejamos:

O mundo social no qual o homem nasce e no qual ele precisa encontrar seu caminho é experienciado por ele como uma estreita rede de relações sociais, de sistemas de signos e símbolos, com uma estrutura particular de significados, de formas institucionalizadas de organização social, de sistemas de status e prestígio etc. (Schutz, 2012, p. 92).

Esse mundo que está ao alcance fornece ao sujeito receitas para interpretar o mundo social, lidar com as pessoas e com as circunstâncias com o objetivo de obter o melhor resultado em cada situação (Schutz, 2012). Na Saúde Mental, essa máxima também pode ser aplicada, já que ao olhar para o território, o profissional e o usuário podem encontrar soluções singulares e inovadoras para lidar com os desafios, desafios que podem ter surgido, inclusive, do próprio mundo circundante.

Assim, pensar o território a partir das considerações fenomenológicas desde o mundo circundante possibilita uma ampliação do conceito de território normalmente utilizado nos documentos legais e na legislação em saúde. Um território que vai além das fronteiras oficiais e dos componentes físicos, um território que compreenda os vários aspectos do mundo com o qual o sujeito entra em contato e a partir do qual ele constitui a si mesmo.

 

MÉTODO

Para cumprir o objetivo de conhecer o território que constitui a Rede de Atenção Psicossocial da 1ª Regional de Saúde do Paraná optamos por conciliar dados qualitativos (entrevistas) e dados quantitativos, sendo que os dados quantitativos foram coletados a partir das características do território destacada pelos nossos entrevistados e serão usados como uma forma de contextualizar as suas falas. Destacamos ainda que estudo que se embasa no método fenomenológico desde a sua concepção, coleta de dados e análise dos resultados.

Aplicar a fenomenologia como método de pesquisa implica abandonar a atitude natural e assumir a atitude fenomenológica na investigação e na construção de conhecimentos. Nos pressupostos des sa atitude que funda a pesquisa fenomenológica pensada por Husserl (1947/1986) está a busca pelas coisas mesmas e a investigação dos fatos em sua essência, para tal, os esforços se concentram na pesquisa do vivido e nas significações atribuídas pelos sujeitos. Desse modo, através da redução fenomenológica, podemos passar da vivência ao fenômeno puro.

Destarte, como forma de investigar as vivências, a entrevista foi escolhida por ser um instrumento que permite ao pesquisador ter acesso à experiência vivida e ao significado que o mundo vivido adquire para a pessoa entrevistada e perceber como diferentes pessoas reagem a algo em comum (Andrade & Holanda, 2010), no caso dessa pesquisa, o território. As entrevistas foram realizadas com seis profissionais que atuam nos serviços de saúde mental em quatro municípios da 1ª Regional de Saúde do Paraná em seus locais de trabalho.

As entrevistas foram gravadas e transcritas para depois serem analisadas segundo um modelo adaptado do Método Fenomenológico de Investigação em Psicologia proposto por Giorgi e Sousa (2010). As adaptações foram necessárias devido ao tema específico deste estudo e também pelo fato de que o modelo dos autores se destina a pesquisas qualitativas e tivemos que tratar de dados quantitativos também. Desta forma ficaram assim constituídas as etapas para a análise dos dados: 1) Estabelecer o sentido do todo; 2) Determinação das partes – divisão das unidades de significado; 3) Co-relação entre os dados qualitativos e os dados quantitativos; e 4) Determinação da estrutura geral. Apesar das modificações realizadas, salientamos o fato de que a postura necessária a uma investigação fenomenológica como a defendida pelos autores foi mantida: a realização de uma descrição profunda dos dados e a adoção da atitude de redução fenomenológica, cujo objetivo é obter o sentido da experiência.

A partir das entrevistas, levantamos alguns dados que eram necessários para ilustrar a fala dos nossos entrevistados. Esses dados quantitativos foram obtidos junto ao DATASUS, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Secretária Estadual de Saúde do Paraná, e tratam-se de números e estatísticas que nos permitem olhar para a situação dos municípios e as configurações que os serviços e as estratégias de saúde tomam na supracitada regional de saúde. Os dados coletados foram organizados em tabelas para facilitar a visualização de cada município em particular, permitir a comparação entre eles e também trazer uma compreensão do todo.

Essa pesquisa compõe um roteiro mais amplo de uma pesquisa, intitulada "Atenção em Saúde Mental no Paraná: Serviços, Profissionais e Dispositivos de Atenção na Regional de Saúde do Litoral", e foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Paraná (Protocolo 25380113.6.0000.0102).

 

QUE TERRITÓRIO É ESSE? A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DO LITORAL DO PARANÁ

Segundo o Plano Diretor de Regionalização – PDR (Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, 2009), que regionaliza e hierarquiza a assistência à saúde no Estado do Paraná, a 1ª Regional de Saúde é constituída pelos municípios de Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba, Matinhos, Morretes, Paranaguá e Pontal do Paraná. Todos esses municípios localizam-se no leste do estado do Paraná, na zona litorânea, por isso a 1ª Regional de Saúde também é conhecida como Regional do Litoral e tem em Paranaguá a sede da Região. Na Figura 1 podemos observar a distribuição dos municípios na região:

 

 

Quanto ao número de habitantes, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a 1ª Regional de Saúde do Paraná totaliza uma população de 265.392 habitantes distribuídos nos seus sete municípios, sendo todos de pequeno porte, à exceção de Paranaguá que é considerado um município de grande porte pela Hierarquização dos Municípios do Conselho Estadual de Assistência Social (2014). Esses dados podem ser observados na Tabela 1.

 

 

O fato de a maioria dos municípios do litoral apresentarem-se como municípios pequenos e com uma população limitada foi destacada pelos profissionais durante as entrevistas como uma característica marcante em seus cotidianos de trabalho. Eles consideram esse fator como sendo positivo, por gerar uma proximidade maior entre os profissionais e os usuários dos serviços em que estes atuam, e também com a gestão do município, seja com a Secretaria de Saúde ou com o próprio gabinete do prefeito.

A partir dessa proximidade, os profissionais relatam que surge uma nova forma de se relacionar com os usuários nesses locais, mais inclinada para informalidade, onde duas pessoas que se conhecem podem estar sendo atendidas no mesmo dia no CAPS, por exemplo, ou ainda, o profissional encontrar um usuário de saúde mental na rua e ser interpelado por ele, como podemos notar na fala a seguir:

Então eu acho que tem uma proximidade maior, mesmo a gente procurando manter uma certa neutralidade os pacientes acabam te proporcionando esses momentos que são muito bacanas também de vir e "eu vim só te dar um oi" (Profissional 2 – a partir de agora nomeado como P2).

Essa mesma proximidade também aparece na relação entre os profissionais dos serviços de saúde mental e os seus gestores, os conselhos do município (Conselho de Segurança, Conselho de Saúde, Conselho Tutelar, etc.) e entre as diferentes secretarias municipais também, o que na opinião dos profissionais facilita o trabalho, a tomada de decisão e a resolução de questões importantes:

[...] o município é pequeno então eu consigo facilmente dialogar no Conselho sobre drogas, eu consigo ter uma facilidade de acesso com a minha própria Secretaria, com o Prefeito, o que eu vejo que é necessário realmente para a gente implementar a política pública de saúde mental no município (P3).

O número de habitantes de uma cidade é fundamental para o SUS, pois é a partir deste dado que são dimensionados os serviços e os dispositivos de saúde em um município. No caso específico da Saúde Mental, temos como um bom exemplo a tipificação dos CAPS, que se dá de acordo com a população residente no município, sendo o CAPS I para municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes, o CAPS II para atender cidades com população entre 70.000 e 200.000 habitantes, e os CAPS III se destinam a municípios com mais de 200 mil habitantes. Ainda existem os CAPSi que só podem ser abertos em cidades com população superior a 200.000 habitantes e os CAPSad para populações acima de 100 mil pessoas (Ministério da Saúde, 2004).

Entretanto, Delgado et al. (2007) alertam para o fato de que o critério populacional é apenas um dos fatores que devem servir como orientadores para o planejamento das ações em saúde. Cabe ao gestor local, articulado com as outras instâncias de gestão do SUS, discutir e definir quais são os equipamentos e os serviços que melhor respondem às demandas daquele município específico quando se trata de saúde mental. Esse pode ser o motivo, por exemplo, de encontrarmos um CAPS em Antonina3 que tem menos de 20 mil habitantes e por isso estaria liberado de ter um serviço especializado em saúde mental segundo a Portaria nº 336/GM (Ministério da Saúde, 2002), e não encontrarmos esse mesmo serviço em Matinhos, que teria um número de habitantes apropriado para a abertura de um CAPS.

Além da população dos municípios, outro fator fundamental para compreender o território é a área que esse município abrange. Atentando para a Tabela 2, é possível verificar que área e população não têm uma relação direta nesta região, onde o município que tem a maior área, Guaraqueçaba, é também o município que tem a menor densidade populacional entre os municípios estudados neste trabalho.

 

 

Por se tratar de uma região litorânea, o uso do espaço se apresenta de modo diferenciado, sendo que a população se encontra residindo em toda a extensão do município próxima à orla, em diversos balneários, não tendo a concentração de pessoas em um mesmo centro, como podemos observar na seguinte fala:

Eu vejo o litoral um espaço físico, no caso, bem interessante até pela questão geográfica, nós temos uma orla bem extensa o que eu acho que dificulta um pouco, vamos dizer assim, a mobilidade das pessoas, então tem paciente que tem que sair lá de [balneário] que é longe (P2).

A localização e a proximidade entre os municípios geram outro acontecimento importante: as divisas do município passam a fazer menos sentido que as distâncias reais e moradores de um município passam a procurar em outro o serviço de saúde que não encontram a sua disposição na cidade de origem. Vejamos o relato de um dos profissionais entrevistados:

Então, o que a gente vê também com relação a aqui, por não ter próximo CAPS, que nem a outra cidade não tem, então a gente está com os pacientes da outra cidade, a gente acaba atendendo os outros municípios por não terem [CAPS] em todos (P1).

O profissional continua o seu relato apresentando a situação de pessoas que chegaram a se domiciliar em outra cidade para conseguir ter acesso a um tratamento na área de saúde mental:

[...] então a gente até brinca assim que está aumentando o índice populacional da cidade depois que o CAPS foi aberto, porque os pacientes sabem que não podem, então "não, eu vou mudar para aí", então a gente tem uns 5 ou 6 pacientes que não eram do município e vieram para cá (P1).

Os dados acerca da oferta de serviços em saúde na Regional do Litoral do Paraná estão apresentados na Tabela 3 (Ministério da Saúde, 2014). Segundo as informações do DATASUS existiriam apenas três Centros de Atenção Psicossocial na regional, mas em nossa pesquisa de campo descobrimos que existe um quarto CAPS já em funcionamento, realizando atendimento junto aos usuários e sendo mantido pela prefeitura no município de Pontal do Paraná, mas ainda em processo de credenciamento e habilitação junto ao Ministério da Saúde. Existem, portanto, quatro CAPS I na Regional instalados nas cidades de Antonina, Guaratuba, Paranaguá e Pontal do Paraná.

 

 

Além dos Centros de Atenção Psicossocial, podemos perceber na tabela 3 alguns dos outros serviços que fazem parte da RAPS, nos seus diversos níveis de atenção, onde todos os municípios estão assistidos no que diz à atenção básica, contando com posto de saúde ou Unidade Básica de Saúde. Entretanto quando subimos para atenção secundária, como é o caso dos CAPS, ou atenção terciária de alta complexidade, os números já não são tão bons. Em suas entrevistas, os profissionais relataram essa dificuldade, em que os serviços oferecidos não dão conta da demanda que procura atendimento, como podemos observar na seguinte fala, onde um profissional explicita a falta de dispositivos e serviços que atuem em saúde mental: "[...] tem muita demanda, nem tudo, se tivessem outros dispositivos funcionando melhor, eu ia fazer muito mais encaminhamentos" (P5).

Ainda segundo os dados das entrevistas, além da RAPS ter falhas pela falta de serviços, faltam também profissionais para atender essa demanda. Os dados acerca dos profissionais que atuam na área da saúde pública na 1ª Regional de Saúde do Paraná se encontram na Tabela 4.

 


 

Nas normativas que regem a atenção a saúde mental no país – a saber, a Portaria SAS/MS n° 224 (Ministério da Saúde, 1992) e Portaria n.º 336/GM (Ministério da Saúde, 2002) –, são nomeados os profissionais que podem fazer parte da equipe de um CAPS, que é o serviço especializado em saúde mental na RAPS, são eles: médicos, psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, numa equipe mínima de nove profissionais para um CAPS I. Na realidade da região, os preceitos das normativas não se realizam e encontramos uma equipe com apenas quatro profissionais, por exemplo.

Através da Tabela 4 é possível perceber ainda que nem todos os municípios contam em seu quadro de funcionários com profissionais fundamentais para a atuação em saúde mental como assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Com a falta desses profissionais, o trabalho em equipe fica dificultado uma vez que o SUS tem muitos dos seus dispositivos baseados em equipes multiprofissionais como é o caso da Estratégia de Saúde da Família – ESF e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família - NASF.

Outro fator importante para compreendermos as características da população atendida pelos serviços de saúde mental é a renda, pois ela informa sobre as condições de sobrevivência de uma determinada população. Atentemos para a renda per capita da população da regional, de acordo com o IBGE (2010), apresentada na Tabela 5. A título de comparação, segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2013), a renda per capita média no Brasil é de R$ 793,87, o que não é atingido por nenhum dos municípios do litoral do Paraná. Em todos os municípios, a renda média per capita urbana é superior à da área rural. Entre as atividades remuneradas desenvolvidas em meio rural destacam-se a pesca e as pequenas lavouras. No meio urbano, a renda vem das atividades ligadas ao comércio, ao turismo e ao serviço público (Prefeitura Municipal de Guaraqueçaba, 2014; Prefeitura Municipal de Pontal do Paraná, 2014).

 

 

Vejamos a avaliação de um dos profissionais entrevistados sobre as características da população atendida na RAPS da sua cidade:

Mas é uma cidade que tem um nível, a gente percebe, que tem um nível econômico baixo, então geralmente o usuário do serviço do CAPS ele vem, além das questões psíquicas, ele vem com outras carências também, carências sociais, financeiras (P2).

Leão e Barros (2012) ao tentar traçar essa co-relação entre fatores sociais, território e os transtornos mentais, sublinham que essa interação entre as condições de pobreza e o sofrimento psíquico é complexa e multidimensional:

As condições associadas à pobreza e à fragilidade dos vínculos societários, como o desemprego, a privação, o desabrigo, o baixo nível de instrução, contribuem para a manifestação dos transtornos mentais, estabelecendo uma relação que pode ser visualizada por meio de dois prismas. O primeiro refere-se ao mecanismo causal, ou seja, à maior suscetibilidade das pessoas pobres. O segundo refere-se à teoria do empobrecimento, conforme a qual, devido à desvinculação do mercado de trabalho é agravada ainda mais a condição de pobreza (Leão & Barros, 2012, p. 579).

Entretanto, nenhum dado ou explicação deve ser entendido como absoluto. Se existem indícios que associam a pobreza e o surgimento de doenças mentais, temos que considerar também, que no caso da fala destacada, estamos olhando apenas para um recorte, a parcela das pessoas com transtornos mentais atendidas nos serviços públicos de saúde, isso não define a população total, podendo existir pessoas com renda expressiva que estejam em sofrimento psíquico grave e que recebam cuidados em serviços privados de saúde, ou ainda, pessoas de qualquer classe em sofrimento psíquico grave e que não recebam nenhum tipo de atendimento na área de saúde mental.

Apesar de já termos afirmado na sessão anterior que não é a geografia, os mapas ou dados estatísticos que caracterizam um território, é também, a partir dessas informações que os sujeitos podem significar o lugar que habitam. Conhecer essas informações pode contribuir para a compreensão do território, mas para uma compreensão global, as significações e os usos do espaço também devem ser levados em consideração. Por exemplo, a renda per capita não é um dado absoluto, a questão é saber se essa renda permite a subsistência na cidade específica, quais são as atividades desenvolvidas para conseguir a renda e se as pessoas consideram essa renda justa.

 

O TERRITÓRIO DA DOENÇA E DA SAÚDE MENTAL

As considerações já apresentadas sobre a fenomenologia e sobre o mundo circundante nos levam a um caminho que permite desvelar o fenômeno. Mas qual a implicação dessas considerações para a abordagem do território na saúde? Implica em ir às coisas mesmas e questionar os pressupostos sobre ela, tal seja, questionar esse território fonte de saúde de que fala a legislação e ir até esse território, desvelá-lo, porque ele não é nem positivo nem negativo a priori, ele só possui essas características quando o pensamos de forma relacional, social, cultural, política e inscrito no tempo histórico. Assim, se o território permite construir saúde, ele também é capaz de produzir doença.

Essas duas situações – construir saúde e produzir doença – foram identificadas no território por nós investigado. Os profissionais de saúde entrevistados apontaram dificuldades e potencialidades para a saúde mental no litoral do Paraná. Vejamos um pouco mais sobre isso. Uma característica que se destaca no território do litoral do Paraná é a sazonalidade4. A rotina, seja dos profissionais, seja dos usuários muda completamente quando chega o verão: é a "temporada". Os entrevistados, de uma maneira geral, consideram negativos os efeitos que a temporada exerce sobre o serviço em que atuam e sobre os usuários. Podemos destacar três dessas interferências negativas:

1) Não adesão ou desistência do atendimento:

[...] eu observo assim na temporada: o abandono, porque muitos vão trabalhar, vão fazer bico, porque aumenta muito a demanda de oferta de emprego nessa época, porque daí o comércio aumenta, restaurante, tudo, ambulante na praia, então eles abandonam para poder trabalhar (P1).

2) A recaída no caso dos dependentes químicos:

[...] no caso da dependência, a recaída, com relação ao álcool e outras drogas, porque daí aumenta muito o consumo nesse período, porque os traficantes também ficam, porque vem o pessoal de fora, então aumenta as bocas e tudo isso, até a oferta da cerveja por um parente no final de ano (P1).

3) O adoecimento nos meses fora da temporada pela falta de emprego:

[...] muitas vezes as pessoas ganham o dinheiro do ano todo na temporada e durante o ano vai fazendo um bico aqui e outro ali e às vezes adoece mentalmente e acaba utilizando o nosso serviço (P2).

Aqui, a partir das considerações dos profissionais entrevistados, podemos ver como o território pode atuar como um obstáculo as ações de saúde mental. Nesse caso específico da temporada de verão no litoral do Paraná, o território, com todos os seus aspectos subjetivos, acaba por agravar alguns casos de sofrimento psíquico ou ainda dificultar a adesão ao tratamento e é neste tipo de situação que a legislação de saúde mental pede um cuidado territorializado. Entretanto, nenhum dos profissionais citou nenhuma ação para combater os efeitos negativos da temporada sobre os usuários.

Mas existem aspectos positivos nesse território também, vejamos o relato de um profissional:

O aspecto positivo seria a praia, teve um dia que eu peguei os pacientes para fazer o grupo terapêutico lá na praia, aí sentamos nos banquinhos lá, aí teve um paciente que veio tirar uma foto para mandar para a psicóloga lá de onde ele veio, ela ia ficar com inveja: "olha aqui o meu consultório de Psicologia" (P1).

O uso da praia como um componente terapêutico é um exemplo substancial do que defendem os estudiosos sobre a utilização dos recursos do território. Delgado et al (2007) afirmam que o território é a designação que conjuga a área geográfica, as pessoas, as instituições, as redes e os cenários nos quais se dão a vida, destarte, trabalhar no território significa

[...] trabalhar com os componentes, os saberes e as forças concretas da comunidade que propõem soluções, apresentam demandas e que podem construir objetivos comuns. Trabalhar no território significa, assim, resgatar todos os saberes e as potencialidades dos recursos da comunidade, construindo as soluções, a multiplicidade de trocas entre as pessoas e os cuidados em saúde mental (Delgado et al., 2007, p.58).

Os profissionais entrevistados parecem ter um conhecimento parcial do território destacando apenas alguns dos aspectos que o constitui: ora cultura, ora geografia, ora as relações e parecem efetivos em apontar potencialidades e dificuldades, apesar de não conseguirem atuar em relação a isso, modificar a sua prática a partir das particularidades que encontram. Apenas uma profissional relatou uma prática efetiva no território, e quanto às dificuldades, nenhum profissional apontou uma conduta sua ou do serviço na tentativa de resolução da questão, mostrando que se o conhecimento do território e da função deste existe, ainda não se sabe exatamente o que fazer com ele. Nesse sentido, nos parece que os profissionais ainda preferem centrar as suas ações de cuidado dentro do serviço, trazendo os usuários para o CAPS para que sejam atendidos, sem práticas que ocorram fora desse local institucionalizado.

Leão e Barros (2012) afirmam que mesmo que a equipe de saúde mental tenha um discurso afinado em relação à atenção psicossocial e em relação aos objetivos da RAPS, isso não é suficiente para que ocorra a articulação entre o serviço e o território. Ainda nessa linha de pensamento, as autoras ressaltam que são exatamente essas ações no território que dão significado para o cotidiano do serviço, por serem justamente elas que diferenciam as intervenções de um hospital psiquiátrico e de um serviço comunitário. Por isso a necessidade de insistir nesse tema.

A questão que fica então é como acessar os saberes e potencialidades que o território proporciona? Com certeza não existe uma fórmula pronta que funcione em todos os lugares, mas parece que um bom começo é exatamente sair de dentro do serviço e ir, de fato, para o território, para o contexto, para esse mundo ao nosso alcance. Neste movimento de ir ao território é que as considerações fenomenológicas podem ser valiosas enquanto uma proposição de que não é possível compreender uma experiência abdicando do lugar onde ela encontra recursos para a sua significação, tal como o mundo circundante não é passível de fragmentações ou recortes e a compreensão deste deve vir do maior número possível que informações que estejam disponíveis. Com essa postura diferenciada acerca do território, começa-se a estabelecer novos modos de relação, não mais baseados na ruptura, na divisão da experiência entre sujeito e mundo, subjetividade e realidade objetiva, mundo vivido e mundo pensado (Goto, 2013).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Rede de Atenção Psicossocial e o território se apresentam como fatores contribuintes para um atendimento integral e eficaz às pessoas com transtornos mentais, entretanto o fato de ambos existirem não garante a sua efetividade, essa é uma relação que precisa ser tecida, trabalhada, pensada e repensada constantemente para que se obtenham bons resultados. Com esse estudo pode-se notar que quando se fala em território alguns aspectos se apresentam: população, geografia, trabalho e renda, educação, cultura, política, relações humanas, questões essas que reverberam no atendimento à saúde, em especial na atenção à saúde mental, não sendo possível pensar em cuidado destacado desses aspectos.

Sendo as práticas que levam em consideração o território, relativamente novas – a Lei 10.216 é de 2001 e a Portaria nº 3.088 de 2011 – os profissionais parecem ainda estar se adaptando e aprendendo a lidar com essa nova forma de fazer saúde mental, fazendo o reconhecimento do território, mas ainda agindo muito pouco sobre ele.

Relacionando as proposições do Ministério da Saúde e os achados dessa pesquisa, poderíamos problematizar que uma mudança na legislação não consegue transformar efetivamente as práticas dentro dos serviços de saúde. O profissional pode até compreender as diretrizes da legislação atual em saúde mental, mas na hora de atuar ele o faz baseado nas suas experiências anteriores e na formação que recebeu, que acabam por ser diversas do que se espera da atenção psicossocial. Desta feita, parece-nos que a perspectiva fenomenológica – particularmente a partir da noção de mundo circundante e da reflexão crítica sobre os fundamentos de uma prática (aqui, no caso, a de atenção à saúde) – fornece importantes subsídios para esse reposicionamento no contexto da saúde mental, levando profissionais e gestores a um repensar tanto de suas práticas quanto de seus saberes, bem como reconsiderar o sujeito da saúde em seus múltiplos vínculos com o mundo.

 

 

Referências

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Notas sobre os autores

Camila Muhl: Psicóloga formada pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC), Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutoranda em Sociologia pela mesma instituição. Integrante dos Grupos de Pesquisa Sociologia da Saúde - UFPR/CNPq e Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade - UFPR/CNPq. E-mail: came.muhl@gmail.com.

Adriano Furtado Holanda: Psicólogo, Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília, Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Docente do Programa de Mestrado e do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Coordenador do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno- UFPR), Editor da Phenomenological Studies – Revista da Abordagem Gestáltica. Email: aholanda@yahoo.com. Site: http://www.labfenoufpr.com.br.

 

 

Recebido em: 27/07/2017
Aprovado em: 04/12/2017

 

 

1 Mesmo que concepções diferenciadas de isolamento tenham coexistido, inclusive com vinculações terapêuticas, e devam ser analisadas em seu tempo e espaço (Holanda, 2017), como temos na definição de Esquirol (1838), por exemplo.
2 Bastide (1987) chama a atenção para o fato de o hospital psiquiátrico não funcionar da mesma forma que os outros hospitais, onde uma pessoa se interna para receber tratamento mas continua a fazer parte da sociedade; a instituição psiquiátrica ganha contornos diferentes uma vez que o paciente deixa a sua comunidade de origem para participar de uma nova comunidade. É nesse sentido que Goffman atribui aos hospitais psiquiátricos o título de instituição total: "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situações semelhantes, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (Goffman, 1974, p. 11).
3 Ver Tabela 3 que apresenta a distribuição dos Centros de Atenção Psicossocial na 1ª Regional de Saúde do
Paraná.
4 Chamamos aqui de sazonalidade as diferenças que são introduzidas no cotidiano das pessoas e que advém da mudança das estações do ano ou em épocas especificas em um determinado território.

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