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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.1 Belém Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo24 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04artigo24

 

O caso de Flor: uma compreensão sartreana do consumo contemporâneo de cocaína

 

The Flor Case: A Sartrean Understanding of Contemporary Cocaine Consumption

 

El Caso de Flor: Una Comprensión Sartreana del Consumo Contemporáneo de Cocaína

 

 

Ingrid Coelho Borges PragmácioI; Georges Daniel Janja Bloc BorisII

I Centro Universitário Farias Brito

II Universidade de Fortaleza

 

 

 


RESUMO

O presente estudo fenomenológico tem como objetivo compreender a experiência do consumo da cocaína a partir da vivência de uma usuária. O método fenomenológico permite a compreensão do fenômeno a partir da descrição da experiência do vivido, exigindo uma leitura singular e longe de qualquer generalização. Foi realizado um estudo de caso a partir do material obtido durante o acompanhamento psicoterápico da paciente/participante com a psicoterapeuta/pesquisadora. Os dados transcritos foram obtidos por meio de entrevista aberta, a partir da pergunta disparadora "como você compreende o significado do seu consumo de cocaína". Para a discussão do estudo de caso foi utilizado o aporte teórico-metodológico das contribuições do filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, principalmente os conceitos de liberdade, angústia e má-fé. Como resultado do estudo de caso, constatou-se que o consumo de cocaína na contemporaneidade ocorre em decorrência do tempo da urgência de ser feliz e na tentativa da fuga da angústia.

Palavras-chave: Estudo de Caso; Jean-Paul Sartre; Fenomenologia Existencial; Consumo de Cocaína; Contemporaneidade.


ABSTRACT

The present phenomenological study aims to understand the experience of cocaine use from the experience of a user. Phenomenology allows the understanding of the phenomenon from the description of the experience of the lived, requiring a singular reading and far from any generalization. A case study was carried out from the material obtained during the psychotherapeutic follow - up of the patient / participant with the psychologist / researcher. The transcribed data were obtained through open interview, from the trigger question "how do you understand the meaning of your cocaine use". For the discussion of the case study we used the theoretical-methodological contribution based on the contributions of the existentialist philosopher Jean-Paul Sartre, presenting the concepts of freedom, anguish and bad faith. As a result of the study, it was verified the consumption of this substance in the contemporaneity as a result of the time of the urgency of being happy and in the attempt of the escape of the anguish.

Keywords: Case study; Jean-Paul Sartre; Existential Phenomenology; Use of cocaine; Contemporaneity.


RESUMEN

El presente estudio fenomenológico tiene como objetivo comprender la experiencia del consumo de cocaína a partir de la vivencia de una usuaria. La fenomenología permite la comprensión del fenómeno a partir de la descripción de la experiencia de lo vivido, exigiendo una lectura singular y alejada de cualquier generalización. Se realizó un estudio de caso a partir del material obtenido durante el acompañamiento psicoterápico de la paciente / participante con la psicóloga / investigadora. Los datos transcritos fueron obtenidos a través de una entrevista abierta, a partir de la pregunta disparadora "cómo usted entiende el significado de su consumo de cocaína". Para la discusión del estudio de caso se utilizó el aporte teórico-metodológico basado en las contribuciones del filósofo existencialista Jean-Paul Sartre, presentando los conceptos de libertad, angustia y mala fe. Como resultado del estudio, se constató el consumo de esa sustancia en la contemporaneidad como consecuencia del tiempo de la urgencia de ser feliz y en el intento de la fuga de la angustia.

Palabras-clave: Estudio de caso; Jean-Paul Sartre; Fenomenología existencial; Uso de la cocaína; Contemporaneidad.


 

 

O CONSUMO DE SUBSTÂNCIA PSICOATIVA

O consumo de substâncias psicoativas está inserido na história da humanidade, pois o homem sempre buscou substâncias que alterassem a sua consciência e o seu humor como forma de exacerbar o prazer e reduzir o sofrimento (Sodelli, 2016). A substância é inerte, não produzindo qualquer efeito até ser ingerida por alguém com expectativas em relação ao seu consumo, que certamente envolve o contexto, a cultura e os valores morais e sociais vigentes. Romaní (1997) esclarece que:

participando do amplo consenso para explicar o fenômeno das substâncias psicoativas, deve ser considerado que este é construído a partir da relação indissolúvel entre três fatores fundamentais: o sujeito, a substância e o contexto, de modo que as variáveis-chave são do tipo sociocultural, posto que estas determinaram a construção do sujeito, suas expectativas sobre o significado do uso, de como foi apresentada a substância psicoativa, algumas formas de obtenção, algumas formas de ingestão, técnicas de utilização, doses, etc. (p. 45).

Portanto, o seu consumo ocorre na relação entre o sujeito, a substância e o contexto sociocultural, significando as experiências de acordo com a forma de o sujeito estar-no-mundo, associado, nesse sentido, a hábitos e costumes de cada sociedade. A cocaína, cujo consumo é investigado neste artigo, é uma substância psicoativa estimulante do sistema nervoso central, que tem como formas de utilização mais comuns a mascada, a aspirada (intranasal), a injetada (por via intravenosa) e a fumada ("crack"). Neste estudo, investiga-se seu consumo intranasal, sob a forma de sal, o cloridrato de cocaína, vulgarmente conhecido como "pó", "brilho", "braite", "coca", "carolina", "farinha", "padê" (Ribeiro, Nudelman, Rezende, & Yamauchi, 2012). Destaque-se que a relação do sujeito com a cocaína é peculiar, individual e intransferível, ou seja, para cada usuário há uma forma de consumo preferencial, uma quantidade ideal e a produção de um significado.

 

MÉTODO

Este estudo de caso teve como objetivo compreender a experiência do consumo de cocaína na contemporaneidade a partir da vivência de uma usuária à luz da fenomenologia existencial de Jean-Paul Sartre (1966,1943/1997,1946/2012). O caso foi escolhido pela autora, que é psicoterapeuta, a partir dos atendimentos de uma paciente consumidora de cocaína, Flor (nome fictício pelo qual ela preferiu ser identificada). Os atendimentos iniciaram em novembro de 2014 e encerraram em novembro de 2016. Após o estudo ser aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade de Fortaleza (Coética), foi realizada uma entrevista individual com Flor e utilizou-se a pergunta disparadora "Como você compreende o significado do seu consumo de cocaína?" com o objetivo de favorecer que a entrevistada refletisse sobre o fenômeno que se pretendia investigar. A coleta de informações sobre a vida de Flor ocorreu mediante o a entrevista com Flor e a utilização do material produzido nas sessões de psicoterapia. Vale ressaltar que as falas transcritas neste artigo decorrem da entrevista realizada.

A compreensão do consumo de cocaína deve ocorrer a partir do entrelaçamento da história singular da usuária com a história da coletividade. Sartre (1966) esclarece que "o homem é produto de seu produto" (p. 76). Neste estudo, importa a experiência do sujeito, isto é, de Flor, expondo a sua realidade vivida do fenômeno, ou seja, a obtenção da realidade por meio de uma rica descrição de quem passa/passou por tal experiência. Sartre (1966), por meio de seu método biográfico ou progressivo-regressivo, propõe que se faça o movimento singular/universal, com o objetivo de compreender o sujeito na sua singularidade a partir do seu contexto sócio-histórico cultural.

 

A FLOR

Flor é uma jovem de 22 anos, filha única, seus pais são divorciados, mora com a mãe e o padrasto, pertence à classe média, mudou de cidade diversas vezes em decorrência de mudanças de emprego do padrasto e estudou em 28 escolas durante a sua vida escolar. Na adolescência, teve períodos em que se automutilou. Iniciou o uso de cocaína aos quinze anos e, aos dezenove anos, escolheu interromper o uso. Atualmente está abstinente e é universitária.

 

DISCUSSÃO DO ESTUDO DE CASO

A discussão do estudo de caso de Flor não tem como objetivo esgotar a filosofia Sartreana, e sim compreender o projeto de vida de Flor a partir de alguns dos conceitos abordados pelo filósofo. Para Sartre, o homem existe e, a partir disso, ele se faz. O ser humano, a partir da sua liberdade, das escolhas que realiza, é responsável pelo seu projeto de ser. Logo, o homem será aquilo que ele vier a fazer de si mesmo. Assim, esse filósofo relaciona a filosofia com a vida, perpassando por questões existenciais, refletindo sobre a condição humana e buscando uma perspectiva de sentido (Sartre, 1946/2012).

Flor, a partir do seu nascimento, passa a existir no mundo. De acordo com Sartre (1943/1997), não há uma natureza que a defina, uma essência ou um núcleo fixo que diga algo sobre ela. Não há determinismos, não há Deus para legislar sobre as condutas morais e valores. Apenas a liberdade define o homem:

Assim não há natureza humana, pois não há um Deus para concebê-la. O homem é, não apenas como é concebido, mas como ele quer ser, e como se concebe a partir da existência, como se quer a partir desse clã de existir, o homem nada é além do que ele se faz. (Sartre, 1946/2012, p.19)

De acordo com Sartre (1943/1997), nas ações de Flor, por mínimas que sejam, existem significações. Ela realiza seus atos de acordo com os motivos que deseja experienciar e, assim, não há ato sem motivo. Ao agir, Flor intenciona o seu motivo, que está no futuro, remete ao passado e, no presente, surge o ato. As ações que Flor fez/faz/fará durante a sua existência são o que a concebe. Flor se depara a todo momento com a necessidade de realizar escolhas, ela é livre e, para Sartre (1943/1997), esta é uma condição ontológica. Escolher não significa fazer aquilo que o sujeito bem quer, confundindo-se com a vontade, pois as escolhas se dão em situação. Sartre (1943/1997) esclarece: "É necessário, além disso, sublinhar com clareza, contra o senso comum, que a fórmula 'ser livre' não significa 'obter o que se quis', mas determinar-se por si mesmo aquerer (no sentido lato de escolher)" (p.595). Assim, Flor realiza escolhas dentro de uma estrutura de possibilidades, com limitações e contingências. Não há como Flor deixar de escolher, mesmo deixando de escolher, já é uma escolha.

Flor vivencia experiências e realiza suas ações em decorrência da sua liberdade. "É o ato que decide seus fins e móbeis, e o ato é expressão da liberdade" (Sartre, 1943/1997, p.541). A liberdade é originária e não está condicionada a nada. A liberdade não é nenhum atributo ou qualidade. "A liberdade é a textura de meu ser" (Sartre, 1943/1997, p.543). O filósofo complementa que somos condenados a sermos livres, ou seja, "não somos livres para deixar de ser livres" (p.544). Flor é liberdade e, a partir disso, abrem-se possibilidades de escolhas do que ela virá a ser.

Flor, a partir do seu existir, realiza escolhas e projeta o seu vir a ser a partir da sua vivência no mundo. Assim, a condição para alguém ser sujeito, para Sartre, é ter um projeto (Schneider, 2011). O projeto de ser é condicionado a todas as experiências vividas e caracterizado pela busca de o sujeito realizar ser. "O projeto diz respeito ao meu ser em totalidade, expressando-se em cada um dos meus atos, gestos, palavras" (Schneider, 2011, p.95). O projeto é, a partir das escolhas, como o sujeito direciona a sua vida. Sartre (1943/1997) nos esclarece que o projeto de ser existe desde que o homem nasce e só finaliza quando o homem morre. O projeto se define pelo desejo de ser e sempre lança o sujeito para o futuro.

Há facticidades na vida de Flor que delimitam a sua liberdade e nas quais ela não pode intervir. Já existia um mundo antes de ela nascer e outras condições, tais como a época em que nasceu, o lugar, a família, a classe social, que definem os contornos do exercício de sua liberdade. Sartre (1943/1997) complementa: "Não sou livre nem para escapar ao destino da minha classe, minha nação, minha família, nem sequer para construir meu poderio ou minha riqueza, nem para dominar meus apetites mais insignificantes ou meus hábitos" (p.593). O filósofo denominou esses fatores que limitam a liberdade de coeficientes de adversidade e, assim, a liberdade de Flor é dada a partir do que a rodeia, inclusive os outros. Flor está em situação, ou seja, ela é um ser singular, único, inserida em um contexto universal, em um mundo. Alvim e Castro (2015) complementam "A situação, portanto, enquanto unidade de liberdade e determinação é criação, pela própria realidade humana, de sua forma de essencialização no mundo, ou seja, de suas formas de ser humana realizadas historicamente" (p.20). A situação é sempre vivenciada dentro de um contexto histórico delimitado pelo tempo, por um lugar e sujeitos que tecem a história.

Flor, em situação, experiencia o mundo, realiza escolhas e é capaz de atribuir sentido ao que encontra ao seu arredor. Ela não pode alterar o que objetivamente está dado, porém pode fazer significações disso. Logo, a sua liberdade, apesar das facticidades,permite que ela construa interpretações singulares de dados universais e, assim, ela, enquanto agente histórico, se faz a partir da sua história individual no mundo e vice-versa.

Sartre (1943/1997) nomeia diferentes estruturas da situação: "Meu lugar", "Meu passado", "Meus arredores", "Meu próximo" e "Minha morte" e ressalta que estas nunca aparecem de forma isolada, pois estão entrelaçadas. Cada uma delas, descrita na sequência, possibilitou que se compreendesse, ao final, a experiência do consumo de cocaína de Flor. O "Meu lugar" se refere ao lugar em que Flor ocupa no mundo. Ao nascer, Flor tomou um lugar e ela é responsável por ele. É necessário que ela receba esse lugar e, por meio das suas escolhas, se relacione com ele de modo a se apropriar (Sartre, 1943/1997): "Sem realidade humana não haveria nem espaço nem lugar – e, todavia, esta realidade humana pela qual a localização vem às coisas recebe seu lugar entre as coisas sem ter domínio sobre isso" (p. 603).

Flor nasceu em São Paulo, cidade de origem dos seus pais. Em decorrência da mudança de empregos do padrasto, a família mudou-se diversas vezes de cidade. Sobre as suas mudanças constantes de cidades, Flor descreve:

Bom, passou-se um ano e minha mãe já namorava sério com o meu padrasto, e então ele recebeu uma proposta de emprego em Minas Gerais e ficou decidido que iríamos com ele, dessa parte já me lembro de sentir angústia e tristeza, eu já tinha por volta de uns três anos e meio, e não me conformava com o fato de meu pai permitir que eu fosse, eu desejava que ele fosse impedir, eu não queria ir, já me angustiava por sentir saudade da minha família, lembro bem de já ter esse sentimento de tristeza e angústia por partir, mas bem, eu fui.... [sic]

... Bom, após passar três anos em Minas Gerais, meu padrasto arruma um novo emprego em São Luís do Maranhão. Mais uma vez minha vida em caixas, e eu em outro lugar sem nada, mais longe ainda. Lembro-me de detestar o Maranhão, não gostava do calor, das pessoas, do cheiro, das ruas, das casas, das escolas. Primeira escola que estudei passei a sentir muita dificuldade e a professora era uma louca que gritava com os alunos e os chamava de burro, e eu fazia parte do time de crianças que ela insultava, o colégio era horrível, feio, meio melancólico, me lembro de ter feito amizade com um menino [sic].

Flor queixa-se que as constantes mudanças de cidade dificultaram que ela mantivesse relações mais duradouras com colegas, em se localizar geograficamente nos locais, em se sentir incluída nas escolas (Flor estudou em 28 escolas durante a sua vida escolar), ou seja, em se apoderar do seu lugar. Depois de algumas mudanças, ela relata que evitava estabelecer novos vínculos, com medo de perdê-los em breve. Flor não se comprometia de forma inteira com o seu lugar, ela constantemente o nadificava e vivia de forma distante da cidade em que habitava (Sartre, 1943/1997). Para não sofrer, ela se isolava, a sua timidez não a ajudava e constantemente sentia um profundo vazio marcado pela ausência de tais vínculos.

Na teoria Sartreana (1943/1997), a facticidade do lugar não poderá por si só determinar o projeto de Flor. Essa facticidade se torna facilitadora ou um empecilho para ela a partir de como ela apreende o seu lugar. Flor, por ser livre, apreende as facticidades e reconhece os obstáculos que dificultam que ela realize os seus desejos. "Assim, a própria liberdade cria os obstáculos de que padecemos. É ela mesmo que, posicionando o seu fim – e escolhendo-o como inacessível ou dificilmente acessível –, faz aparecer nossa localização como resistência insuperável aos nossos projetos" (Sartre, 1943/1997, p. 608).

Nem na sua própria família Flor se sentia incluída, pois, apesar do forte vínculo com a mãe, tinha conflitos constantes com o padrasto. O único local em que Flor se sentia acolhida era no seu próprio quarto. Ali, se isolava e fugia do mundo. Esse foi o ambiente que ela escolheu para fazer inúmeros usos da cocaína. Na falta de tantos vínculos, Flor se vinculou com a cocaína e, depois de um tempo, tornou-se dependente dessa substância. Sobre a sua dependência, Flor verbaliza:

... Costumavam me perguntar o que leva uma pessoa ao vício, mas a verdade é que o que leva, leva uma vida inteira, não é somente aquele momento, não é somente aquele vício, não é uma compulsão apenas. Pelo menos, no meu caso, posso ver feridas muito mais profundas do que a ferida do vício, as cicatrizes já estavam lá há muito tempo, desde a minha infância, passou pela minha adolescência e, sinceramente, ainda hoje coleciono cicatrizes e as deixo expostas na prateleira de uma das salas do meu coração. Bem, e de certa forma, me orgulho delas, sou apegada a elas e sempre fui. Hoje em dia depois de dois anos "limpa", sem usar cocaína, tive apenas um lapso no início de 2016, tento lidar com as marcas de tristeza de uma forma melhor, mas bem a história até aqui pode ser um pouco longa. Bem como eu já disse até você se tornar um viciado e o porquê de você ser adicto, o porquê de usar drogas, é de uma vida toda, somos antes de adictos preenchidos de angústias, somos muita coisa, somos a soma de imperfeições, saudade, anseios, timidez, melancolia, tristeza, vazio, dores, amores e desamores. Penso da adição como um acúmulo de todas as coisas que já citei, e claro muitas outras a mais. O uso é uma fuga, a medida mais rápida e "eficaz" de pôr de lado todo esse sofrimento, pôr de lado todos esses sentimentos que habitam nosso peito e martelam nossos pensamentos. De início parece uma coisa boa e você tem o controle e se sente amortecido detodos esses anseios. Bastante do meu uso de cocaína era para amortecer algum sentimento ou vários, para me sentir melhor, me sentir mais forte, me sentir mais fria, eu queria tanto a frieza para encarar as situações, isso em diversas etapas do meu uso, do início ao fim, mas de certa forma no fim já não existia mais nenhum sentido no uso, usava para amenizar a minha culpa de usar ... [sic].

O "Meu passado" para Sartre (1943/1997) se refere ao passado que todos nós temos e não existe a opção de não o termos, pois o homem é um agente histórico. Todas as decisões que tomamos no presente são baseadas em nosso passado, no qual o sujeito se concebe e estabelece, e se lança em um projeto futuro. Como o sujeito é consciência de ser, ele significa e dá um valor sobre o que ocorreu com ele no passado a partir do seu projeto presente: "Assim, todo meu passado está aí, insistente, urgente, imperioso; mas escolho seu sentido e as ordens que me dá pelo próprio projeto de meu fim" (Sartre, 1943/1997, p.613).

Para compreendermos o passado de Flor, iniciaremos citando alguns dos seus relatos:

Bem, tudo que sei sobre o relacionamento dos meus pais me parece conturbado, fui um acidente de percurso, meus pais eram muito jovens. Meu avô não aceitava o relacionamento da minha mãe com o meu pai e chegou a bater nela e a expulsar de casa, isso sem nem ela saber que já estava grávida de mim, passou a morar na casa do meu pai. Eles ainda estavam no colegial, minha avó por parte de pai também nunca foi uma pessoa maleável, sei que teve suas discutições com a minha mãe também. Durante o período de minha gravidez minha mãe sentia desejos excêntricos, ela nunca fumou, ou bebeu, ou usou droga, mas na minha gravidez teve desejo e bebeu gasolina, teve desejo e cheirou cola de sapateiro e gostava de beber removedor e várias outras coisas químicas. Meu pai desconfio que fumava maconha de vez em quando. Minha mãe passou três anos sem falar com o pai dela e ele não me conheceu. Claro que dessa etapa da vida eu não me lembro de nada, mas sei pelas histórias que foi um período muito conturbado! Bom é o que sei até aqui [sic].

Os pais de Flor se conheceram quando cursavam o ensino médio e, após um ano de relacionamento, a mãe engravidou. O casal ficou junto durante três anos e, quando Flor tinha dois anos, eles se divorciaram. A separação ocorreu em decorrência de o relacionamento ser conflituoso e de o genitor trair com frequência a esposa. Flor não recorda dos momentos em que conviveu com os pais casados. Ela acrescentou que passoua infância escutando de familiares maternos que o pai "não presta". Apesar da ausência de lembranças, os pais viveram juntos, e a partir do que foi dito para Flor, dos testemunhos, ela criou uma significação sobre esse período. Ao mesmo tempo, questiona se esses comentários constantes sobre o pai não contribuíram para que ela preferisse meninas a meninos em seus relacionamentos íntimos. Admite que esse fato único e exclusivo não definiu a sua orientação sexual, pois se recorda de que desde criança demonstrava interesse tanto por meninas quanto por meninos. Na adolescência, chegou a beijar alguns homens, porém sempre buscava relacionamentos mais estáveis com mulheres. Flor se declara lésbica e, em suas experiências de namoro, reconhece identificar-se fortemente com o pai no que se refere à dificuldade em manter-se fiel às suas companheiras. Ao fazer essa associação, Flor tenta se isentar da culpa por não conseguir se manter fiel e a atribui ao pai, como se ser infiel fosse algo determinado devido à carga genética paterna que recebeu. Uma queixa recorrente de Flor era a de que o pai sempre foi ausente, "desligado", não lhe proporcionando suporte emocional, nem colaborando na sua educação e pouco contribuindo financeiramente com as despesas dela. Flor dizia sentir um vazio por não ter um pai presente.

A mãe de Flor, após um ano do divórcio, iniciou um novo relacionamento e convive maritalmente com o mesmo homem há 18 anos. A genitora sempre revelou dificuldade para estudar, sendo reprovada nos anos letivos diversas vezes. Fez supletivo para concluir o ensino médio. Não cursou o ensino superior. Sempre foi dependente financeiramente do companheiro e assume uma postura submissa diante dele e da filha. Aos 12 anos, Flor começou a se automutilar como uma forma de aliviar as suas dores existenciais. Utilizava giletes ou seringas e sentia prazer ao se cortar/furar e brincar com o seu próprio sangue. Às vezes, limpava o sangue com uma folha de caderno e guardava como recordação do ato. As áreas do corpo de sua preferência para se mutilar eram os antebraços e a virilha.

Flor escolheu fazer uso de cocaína aos 15 anos por intermédio de uma colega que, junto com ela, se engajava no movimento "emo"1 Lembra que, para o primeiro uso comprou pouca cocaína e que não sentiu o "barato" [sic] da substância. Antes de conhecer a cocaína, Flor já fazia uso de maconha.

A cocaína tornou-se para Flor um objeto desejado. Ela despendia grande parte do seu dia planejando a compra e aspirando a substância e, com isso, o uso da cocaína comprometia a realização de todas as atividades do seu dia a dia. Ela iniciava o uso ao acordar e só finalizava quando já estava exausta fisicamente. Durante o efeito dasubstância, escrevia sobre as suas dores existenciais, ouvia músicas e realizava buscas na internet.

Sua mãe sempre tolerou o uso de maconha em casa e, inclusive, em uma oportunidade, fumou junto com a filha para experimentar e tentar compreender o uso. Em relação ao uso de cocaína, a mãe acreditava que a filha tivesse interrompido e, como passava o dia trabalhando fora de casa com o padrasto, Flor ficava sozinha em casa. Ao ver a filha sob o efeito da cocaína, a genitora acreditava que era decorrente do uso da maconha.

Em uma das escolas, Flor fez amizade com uma colega que lhe fornecia cocaína. Flor suspeitava de que a moça era namorada de algum traficante. Faltava à escola com frequência e, quando ia, fazia uso de cocaína dentro dos banheiros. Posteriormente, começou a "se virar" [sic] para conseguir a cocaína. Ia até as bocadas ou ligava para o traficante ir deixar na sua casa. O dinheiro para adquirir a cocaína vinha das economias que ela fazia, pois sua mãe deixava dinheiro para ela ir e voltar da escola diariamente de táxi e ela andava de ônibus, não lanchava etc.

Flor estabeleceu uma relação com a cocaína de forma singular e atribuiu um sentido para o seu uso. Para Sartre (1943/1997), cada um se apropria dos objetos de forma simbólica. O filósofo complementa:

E o objeto possuído tem para nós uma qualidade imediatamente apreensível e que o transforma inteiramente – a qualidade de ser meu; mas esta qualidade é em si mesmo rigorosamente indecifrável: revela-se na e pela ação, manifesta ter uma significação particular, mas se desvanece sem revelar sua estrutura profunda e sua significação quando queremos tomar distância em relação ao objeto e contemplá-lo (Sartre, 1943/1997, p. 727).

Flor se apropriou da cocaína como uma forma de anestesiar as suas tristezas. Justificava o uso como uma fuga por não conseguir "enfrentar o mundo de frente" [sic].

Sobre a forma em que Flor se apropriou do seu uso, ela relata: … Sobre meu vício o que mais sei foi que usei para parar de sentir, desde pequena sou muito sensível, tudo me aflige com a intensidade de um cometa, tudo me vem como um furacão, essa intensidade grita dentro de mim, é tudo instável, sou puro movimento por dentro, pensamentos sempre de anseio, tudo que me aconteceu embora pareça besteira, me marcou muito, o fato de eu ser criança e ter ido embora do que eu achava que era minha casa, de parecer que meu pai não se importava em me ter por perto, as brigas dentro de casa, asolidão que já me acompanhava tudo isso foi demais e eu senti cada centímetro disso. Carreguei esse peso com as minhas mãos, segurei bem forte tudo que doía, abracei essa tristeza como se fosse um amigo, pois parecia um amigo, era minha companhia [sic.]

Dessa forma, conforme a filosofia de Sartre (1943/1997) podemos compreender que o homem escolhe e se apropria dos objetos que estão no mundo de acordo com o seu ser se revela e se faz possuir, logo, cada um escolhe o que constitui o seu ser. Para um mesmo objeto, como a cocaína, pessoas que já fizeram uso podem olhar com repúdio ou com desejo. Depende de como o usuário revela seu projeto fundamental, assimila e se apropria do contexto do uso, do cheiro, do gosto, das sensações experienciadas etc., ou seja, como o sujeito significa a experiência do uso.

Em novembro de 2014, Flor relatou para a mãe que fazia uso de cocaína e que não era mais prazeroso, que ela tinha perdido o controle e que desejava interromper o uso. A partir da liberdade de Flor, da escolha que fez de estar no mundo utilizando substâncias psicoativas, ela também é convocada a resolver o problema de como ela está cuidando do seu ser-livre. Schneider (2011) complementa: "O homem é responsável pelo seu ser, mesmo em que viva em uma situação adversa, perigosa, excludente; ainda assim sou responsável pela maneira como vou enfrentar essa situação extrema" (p.173).

Considerando que o homem é livre para escolher, Flor deve ser responsável pelas escolhas que faz na vida, pelo seu projeto e, ao escolher, esta é responsável por si e por todos os homens. Sartre complementa (1946/2012) "Sou responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem do homem que escolho ser, ao escolher a mim, estou escolhendo o homem" (p. 21).

A responsabilidade é o contrapeso da liberdade. O homem precisa equilibrar-se entre as incertezas das suas decisões e as consequências destas. Sartre (1943/1997) afirma "O homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser" (p. 678).

Logo, Flor é responsável pelo seu uso de cocaína e por tudo o que acontece/acontecerá em sua vida. É comum o homem querer dividir o peso dessa responsabilidade com as divindades, com o inconsciente ou com a sociedade ao afirmar que "foi Deus quem escolheu que fosse assim" ou "meu caminho já estava traçado", porém, o homem está só. Ele surge e desaparece gratuitamente no mundo, não tem nada que o explique, não tem fundamento, não possui raízes metafísicas nem naturais, ele é inevitavelmente responsável por si. É nessa solidão e nesse desamparo que ele exerce a liberdade.

Diante do sentimento de responsabilidade do homem de ter que fazer escolhas, para si e para os outros, diante do sentimento de desamparo, de não existir Deus para prédeterminar o seu projeto, surge o sentimento de angústia (Sartre, 1946/2012). O homem é inteiramente responsável pelo seu projeto, assim, a angústia se apresenta como condição existencial para todos os seres humanos, isto é, não sentimos angústia, "somos angústia" (Sartre, 1943/1997, p.72).

A consciência dessa angústia, de acordo com Sodelli (2010), desvela a vulnerabilidade essencial do ser humano, e, partindo dessa vulnerabilidade, abre-se a possibilidade do uso de substâncias psicoativas como via de acesso a viver mais suportável ou agradavelmente, um movimento realizado com a tentativa de sobreviver, existir: "... você é livre, escolha, ou seja, invente. Nenhuma regra de uma moral genérica pode indicar o que devemos fazer; não existem sinais outorgados no mundo" (Sartre, 1946/2012, p.28). Flor, para mascarar a sua angústia, fazia uso de cocaína.

Para Sartre (1943/1997), a liberdade gera angústia e, ao tentar negar o peso da responsabilidade que assume, o homem cria condutas de fugas que Sartre denominou de má-fé. A má-fé não pode ser julgada de forma moral, mas é considerada como um erro. Um erro que foi escolhido para camuflar uma condição existencial, a angústia. A má-fé é uma negação interna, e o sujeito esconde a verdade de si mesmo. Sartre (1943/1997) complementa: "Costuma-se igualá-la à mentira. Diz-se indiferentemente que uma pessoa dá provas de má-fé ou mente a si mesma. Aceitemos que má-fé seja mentir a si mesmo, desde que imediatamente se faça distinção entre mentir a si mesmo e simplesmente mentir" (p.93). Na má-fé não há a dualidade presente na mentira, a de enganado e enganador, logo, não existe a quem direcionar a mentira, então o homem mente para si. O homem assume um duplo papel, o que mente e o que é enganado, assim, ele sabe a verdade e tenta se enganar. Ao agir de má-fé, o homem sabe o que pretende esconder, pois este é consciente, sabe o que se sabe. "Aquele que se afeta de má-fé deve ter consciência [de] sua má-fé, pois o ser da consciência é consciência de ser" (Sartre, 1943/1997, p.95). Para Sartre (1943/1997), não há inconsciente para justificar as condutas de má-fé, o homem é consciente de si e a má-fé é uma conduta de transcendência que representa uma eterna fuga.

O uso de substâncias psicoativas pode ser uma atitude de má-fé que o sujeito encontra para escapar das angústias e dar um sentido mais prazeroso à sua existência. Ao mesmo tempo em que a substância psicoativa proporciona bem-estar e prazer, ao alterar o estado de consciência e, dependendo da forma como o sujeito se relaciona com a substância, se de forma abusiva, esta pode causar uma patologia, a dependência. Alvim e Castro (2015) consideram "... a doença mental como saída que o organismo livre, em suaunidade total, inventa para viver uma situação insuportável" (p.19). Assim, a doença surge como uma forma de o homem obter um estado de equilíbrio.

Campos e Alt (2015) destacam que, na atualidade, ao mesmo tempo em que o homem é livre para escolher e aproveitar ao máximo suas vivências e emoções, torna-se refém de uma sociedade que é caracterizada pela efemeridade, instabilidade das relações, transformações tecnológicas, globalização, supermodernidade, pelo consumismo e que exige do sujeito "realização profissional, amorosa, sexual, além de saúde, bem-estar, felicidade e, claro, tudo isso embalado em um belo e magro corpo que satisfaça as expectativas do mercado" (p.137).

Diante da escassez de tempo e da cultura da felicidade, como o sujeito pode perder tempo com o seu sofrimento? Não há tempo para ser infeliz! O uso de substâncias psicoativas, por serem substâncias que alteram quimicamente a função do cérebro, provoca mudanças no humor, na percepção e na consciência do sujeito, que podem ser utilizadas como uma forma mais agradável, apesar de efêmera, de estar no mundo.

Assim, a dependência é um fenômeno que, em busca do prazer, não se revela como "passivo e aprisionador, mas também como ativo e voluntário, em uma forma restrita de existência" (Sipahi & Viana, 2001, p.504). O uso da cocaína, da mesma forma em que liberta o sujeito das dores do existir, amarra o sujeito a buscar uma única maneira de viver melhor, no vício.

Flor afirmou que os usos ocorriam por necessidade, e não por prazer, caracterizando a dependência da substância, e pediu ajuda. Flor e sua mãe buscaram profissionais e Flor foi assistida duas vezes por semana por um psicólogo, em psicoterapia individual, e mensalmente por um psiquiatra.

Flor desde o início da psicoterapia optou por ficar abstinente, era assídua e engajada às sessões. Ela sentia muita fissura e era perceptível na sua fisionomia o sofrimento por estar sem fazer o uso. Flor relatava sentir-se ociosa e, consequentemente, ansiosa. Para ocupar o tempo, iniciou aula de bateria, iniciou atividade física e, aos poucos, foi redescobrindo os seus sonhos, fazendo planos e traçando as suas metas. O dependente de cocaína, em decorrência da compulsão pela substância, que se caracteriza pela perda das rédeas da própria vida, apresenta dificuldades em ter acesso ao seu futuro, como vir-aser possibilitador. O projeto de vida do sujeito dependente prioriza obter o prazer do agora e se esquece de cuidar do seu futuro. Assim, o futuro pode passar a ser obscuro e, consequentemente, ter seu projeto inviabilizado (Schneider, 2011). É importante resgatar o projeto de ser que o dependente não consegue mais vislumbrar, mas que está no fundo de suas afetações, angústias e compulsões, o que o favorece ao consumo excessivo da cocaína, para poder ressignificá-lo (Pires & Schneider, 2013)

Após um mês de tratamento ambulatorial, por não conseguir ficar abstinente em decorrência das fissuras, ela decidiu ir para uma comunidade terapêutica para que ficasse isolada. Passou 15 dias lá e, durante esse período, teve relação sexual com um garoto que também estava internado e que dizia que iria "curá-la" da homossexualidade. Flor relatou que foi sua única experiência sexual com um homem e que topou por curiosidade. Após a relação, Flor sentiu um sentimento de "nojo" [sic] em relação ao próprio corpo.

Após a sua saída da comunidade terapêutica, Flor permaneceu abstinente por aproximadamente 3 meses e, posteriormente, teve um lapso que ela justificou ter sido em decorrência de uma briga com a namorada. Nesse dia, ela saiu com o pretexto de tomar algumas cervejas com uma amiga da namorada, que faz uso de cocaína, e no final da noite ela escolheu fazer uso. O uso foi pontual, ocorreu somente naquela noite, e no outro dia Flor se sentiu arrependida, com sentimento de culpa e com muito medo de ter regredido ao início do tratamento.

Com o tempo, a fissura foi diminuindo, os medicamentos prescritos pelo psiquiatra foram auxiliando na redução da ansiedade e na melhora do humor. Além disso, Flor, na psicoterapia, passou a lidar com as suas questões, a ressignificar os seus "vazios", a saber conviver com as suas instabilidades emocionais e se engajar no mundo de forma responsável.

No início de 2016, Flor teve outro episódio de automutilação. Nessa fase, Flor, toda vez que ia à farmácia, comprava uma agulha e uma seringa diferente e as guardava em uma caixa bem escondida no seu quarto, colecionando-as. Com as agulhas, retirava o seu próprio sangue com o objetivo de se aliviar das dores existenciais. Após fazer um grande esforço para se desfazer da coleção de agulhas e seringas, ela comprou um canivete e andava com ele para se sentir mais segura, pois o objeto representava que a qualquer momento ela poderia buscar o alívio que este lhe proporcionava.

Flor manteve-se abstinente e, em novembro de 2016, ela resolveu interromper a psicoterapia. Afirmava que todas as vezes em que sentia fissura e pensava em fazer uso, lembrava de tudo o que ela já passou quando era usuária. Flor avalia o seu passado como um "objeto passivo de apreciação moral e de juízo" (Sartre,1943/1997, p.618) e isso só é possível a partir do momento em que ela decide não se envolver mais com esse passado. Relembra de como era a sua vida: sem rotina, sem responsabilidade, sem compromisso, frequente sentimento de culpa por fazer uso, gastar dinheiro, enganar os pais, não frequentar a escola, por se isolar etc. e como está hoje: concluiu o ensino médio por intermédio do EJA (Educação de Jovens e Adultos), tirou sua carteira de motorista, fez seleção para entrar em uma faculdade e hoje cursa o terceiro semestre. É motivada e dedicada com o seu curso, apesar da sua timidez, já tem um grupo de amigos e está no relacionamento afetivo mais longo de sua vida, namorando há aproximadamente um ano emeio. Reconhece que, atualmente, é uma filha completamente diferente de quando fazia uso, pois é mais atenciosa, compreensiva e participativa na vida familiar. Percebe que o uso a fez "perder muito tempo da sua vida" e sente-se orgulhosa em ter conseguido interromper o uso e se manter abstinente.

Flor, ao decidir que não deseja mais fazer uso de cocaína, ao se projetar para o futuro, retoma ao seu passado, que atua como plataforma de dados e pontos de vista, e esta age de forma diferente, com a finalidade de modificar o passado, pois o significou e adotou uma posição negativa em relação a este. Porém, a todo momento, ao decidir que deseja se separar do seu passado, ela lembra dele e este se funde com o presente (Sartre, 1943/1997). Assim, Flor, ao fazer seu projeto, confere a facticidade do seu passado e, a partir do que atribui a este, irá conduzir seus atos.

Voltando para as estruturas que delimitam a liberdade, Sartre (1943/1997) define os "Meus arredores" como "as coisas-utensílios que me circundam, com seus coeficientes próprios de adversidade e utensilidade" (p.619). Flor, ao existir, também é lançada no meio de outras existências e em seus arredores ocorrem situações para que ela mude ou seja mudada sem que ela tenha intencionado essas mudanças, ocorrendo as adversidades dos arredores (Sartre, 1943/1997). Essas mudanças só podem modificar o projeto de Flor se esta captar tal motivo que justifique alterar o seu projeto anterior. Sartre (1943/1997) acrescenta que "Ser livre é ser-livre-para-mudar. A liberdade, portanto, encerra a existência de arredores a modificar: obstáculos a transpor, ferramentas a utilizar" (p.622). Logo, Flor, a partir dos seus arredores, irá agir sobre as coisas que a cercam de acordo com o projeto que ela elege para a sua vida.

Para exemplificar, um dos fatos que estão nos arredores de Flor, e que a desencadeavam fissura, são as constantes produções de livros, filmes e seriados que exibiam conteúdos sobre o consumo de substâncias psicoativas. Tudo lembrava e desencadeava a vontade de usar, até mesmo ao preparar uma tapioca, por ter como ingrediente principal uma farinha branca, a farinha de mandioca. Ir ao supermercado próximo da sua residência era um desafio pois passava em frente à praça onde também sempre tinha um traficante vendendo cocaína. Logo, ela terá que, a partir dos seus arredores, fazer a escolha que condiz com o seu projeto.

O "Meu próximo" para Sartre (1943/1997) significa que a liberdade também é situada pelo Outro. As determinações do Outro se apresentam para o sujeito sem ele ter escolhido. Ao nascer, o homem é posto em um mundo preexistente dotado de significações impostas pelo Outro no qual este precisa se inserir, como, por exemplo, em uma nacionalidade, em uma língua, em uma classe social etc. Mas, também, é na relação com o Outro que o homem confere sentido à sua existência.

Porém, para o homem ser limitado pelo Outro, é necessário que ele reconheça o Outro por meio da sua subjetividade, ou seja, por meio do "ser-Para-outro" (Sartre, 1943/1997, p. 645). Dessa forma, o Outro só confere as limitações da situação a partir do momento em que o homem as significa e atribui sentido. No caso de Flor, para contextualizar seu próximo mais claramente, aborda-se a influência do Outro considerando as três pessoas mais importantes para ela: o seu pai, a sua mãe e o seu padrasto.

O projeto de Flor é perpassado pelo projeto do seu pai, pois, a partir de sua relação com ele, significou que não foi uma filha desejada, que foi gestada em um momento de muitos conflitos familiares e que seu pai nunca se importou em tê-la por perto ou em demonstrar comportamentos de cuidado e afeição por ela. Assim, Flor interpretou que o seu pai não cumpriu/cumpre a função paterna de acordo com o que ela esperava, colaborando para a formação de um grande sentimento de "vazio", conforme descreve. Queixa-se de que seu pai a deixou ir embora para outras cidades junto com o padrasto, quando sua vontade era ter permanecido na cidade dos seus familiares, São Paulo. Por desaprovar diversas atitudes do pai, Flor repudia o fato de reconhecer que tem os mesmos comportamentos que o genitor no que se refere à dificuldade de se manter fiel nos seus relacionamentos e tenta se isentar dessa responsabilidade pondo a culpa na sua genética.

Na gestação de Flor, sua mãe ingeriu diversas substâncias, como gasolina e removedor, cheirou cola, e ela não sabe se isso a prejudicou no seu desenvolvimento fetal. Sua mãe era o seu porto seguro, a pessoa em quem confiava. Porém, por ser protetora e carinhosa, não conseguia punir a filha. Era sempre compreensível e permissiva em relação a diversas situações. Flor sentia falta de limites, de regras e de autoridade por parte dela. Logo, ia à escola quando queria e fazia, na maior parte das vezes, somente aquilo que era sua vontade. Queixa-se de nunca ter tido alguém que a frustrasse e que fosse dura perante as suas atitudes "incorretas".

O padrasto de Flor, em decorrência das transferências dos locais de trabalho, teve que se mudar de cidades diversas vezes e a sua esposa, a mãe de Flor, acompanhouo nessas mudanças, juntamente com a filha. Ela era pequena e não teve escolha: como estava sob a guarda da sua mãe, Flor a acompanhou. De acordo com os projetos de vida do padrasto e da mãe, as mudanças de cidades foram necessárias e, devido ao salário recebido pelo seu padrasto, Flor teve uma boa moradia, alimentação e educação. A relação de Flor com o padrasto sempre foi conflituosa, pois ela se ressente do exercício da autoridade por parte dele.

…Bom em casa sempre fui muito apegada a minha mãe e sentia muito ciúmes do meu padrasto, brigava com ele por tudo, pelo controle da TV, e ele comigo tentando me educar. Minha mãe sempre fez o tipo protetora e carinhosa, nãoconseguia me punir e sempre ao me bater vinha chorando pedir desculpas, e eu não conseguia entender o porquê dela me pedir desculpas, se eu sentia que merecia apanhar, e até cobrava dela que me punisse e me batesse mais, algumas vezes eu estapeava a minha própria cara. Infelizmente nesse tempo minha mãe e meu padrasto brigavam muito, as causas acho que vinham de ciúme por parte da minha mãe e alguns episódios de agressão aconteceram [sic]. Flor, no processo psicoterápico, se deu conta de que não queria "dividir" com o padrasto a única pessoa com quem tinha uma relação segura e de confiança, sua mãe. Assim, o padrasto sempre representou uma ameaça para ela e, com medo de "perder" a mãe, Flor nunca teve um bom vínculo afetivo com ele.

Conforme exposto, Flor não teve a opção de escolher o seu pai, a sua mãe ou o seu padrasto. Não escolheu nascer em um contexto conflituoso, ser filha de pais divorciados e ter que migrar da sua cidade natal e morar longe dos seus familiares. Tampouco escolheu ter uma mãe extremamente permissiva a ponto de falhar, na visão de Flor, na sua educação. Ao nascer, já existia um mundo, significado pelos outros, e seu projeto é impregnado dos projetos alheios. "Todavia, a existência do Outro traz um limite de fato à minha liberdade. Com efeito, pelo surgimento do Outro, aparecem certas determinações que sou sem tê-las escolhido" (Sartre, 1943/1997, p. 642). Assim, Flor vive em um mundo que foi definido pelo projeto de outrem, "cercados por uma materiabilidade e sociabilidade que, antes de se resumirem a existentes brutos, constituem um mundo de complexos de utensílios dados que se impõe a nós com a força das significações já constituídas, previamente definidas, organizadas, valoradas" (Castro & Ehrlich, 2016, p. 147).

Sobre a estrutura 'Minha morte", Sartre (1943/1997) considera a morte um acontecimento da vida humana, um limite da vida. A morte representa o contato do homem com o inumano, a autotranscendência à vida, marcando o fim da existência. Após a morte, o homem torna a ser nada. Sartre (1943/1997) define a morte como a nadificação de todas as minhas possibilidades, nadificação essa que já não mais se faz parte de minhas possibilidades. Logo, a morte não é minha possibilidade de não mais realizar presença no mundo, mas uma nadificação sempre possível de meus possíveis e que está fora de meus possíveis (p. 658).

Assim, a morte se apresenta como uma contingência que impede os indivíduos de continuar a totalizar seu projeto. Flor, no seu projeto de ser, apresenta alguns comportamentos autodestrutivos, como consumir excessivamente cocaína e se automutilar. Com essas condutas, ela não tinha como objetivo induzir de forma direta a sua morte. Apesar de ter consciência dos riscos que esses atos acarretavam para a sua saúde, Flornão os evitava, diante do alívio que lhes proporcionavam. Vale ressaltar que Flor nunca tentou se suicidar. Guerreiro e Sampaio (2013) destacam que o que diferencia o suicídio dos comportamentos de automutilação é a intencionalidade de provocar ou não a morte por seu intermédio.

Por meio de cortes no corpo, provocando dor física, Flor buscava sanar as suas dores emocionais. Era necessário machucar-se fisicamente para aquietar sua mente, assim, a dor no corpo confortava a dor emocional. Sartre (1943/1997) acrescenta que "o corpo é a totalidade das relações significantes com o mundo: nesse sentido, define-se também por referência ao ar que respira, à água que bebe, à carne que come. O corpo, com efeito, não poderia aparecer sem manter relações significantes com a totalidade do que é" (p. 433). Dessa forma, o corpo é inteiramente psíquico e indica as possibilidades de ser no mundo e, ao tocá-lo, é possível vivenciar e experienciar possibilidades que revelam o ser.

A automutilação pode ser considerada o que Sartre (1943/1997) explicita como "dupla sensação" (p. 386), fenômeno que provoca a sensação de tocar e ser tocado, ou seja, a sensação de machucar e ser machucado. Assim, ao tocar o próprio corpo, o sujeito transcende rumo às suas próprias possibilidades. Assim, a cocaína e a automutilação, para Flor, respondiam à sua necessidade de se aliviar da frequente tristeza, das suas culpas excessivas, das suas saudades, ou seja, das suas dores existenciais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender a história de vida de Flor de forma objetiva e de como ela subjetivou os fatos que estavam ao seu redor fornece abertura para compreender o complexo fenômeno da experiência do consumo de substâncias psicoativas. Flor é movida por suas escolhas, é fluida, sendo impossível cristalizar algo que é vivo, pulsátil. Sabe-se que chegar ao fim deste estudo consiste em dar-se conta da incompletude e da incapacidade de finalizar algo que está em movimento. A partir de experiências subjetivas representadas no modo de vida de Flor, não se pretende universalizar os resultados, mas abrir espaço para a reflexão em torno do tema. Para pensar sobre os estigmas e preconceitos que marginalizam e reduzem os consumidores de substâncias psicoativas à marginalidade. Para não os encaixar num olhar patologizante e de exclusão. Para dar-se conta da existência de uma sociedade de consumo e de que os sujeitos estão cada vez mais adictos de diversos objetos. Assim, padrões, regras e normas estabelecidas pela sociedade inquietam/incomodam os sujeitos, fazendo-os existir de formas variadas e possíveis. No caso de Flor, o seu modo de vida é ressignificado de acordo com o que ela escolhe, e sua vida é construída a partir dos contextos possíveis. Obteve-se como resultado,por meio do depoimento personificado de Flor, a compreensão da experiência do consumo de cocaína como forma de preencher o constante sentimento de "vazio", de amenizar uma constante culpa, de anestesiar os seus sentimentos, ou seja, como tentativa de fugir das suas angústias existenciais. Conclui-se, assim, que os modos de vida de Flor favoreceram a percepção das movimentações, dos estilos e das possibilidades de existência. Com ela percebeu-se que sua trajetória é marcada por "tentativas de sobrevivência", que pelas ações do tempo foram ressignificadas e amadurecidas.

 

 

Referências

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Notas sobre os autores

Ingrid Coelho Borges Pragmácio. Mestre em Psicologia (UNIFOR), Especialista em Dependência Química (UNICHRISTUS), Psicóloga clínica e professora do Centro Universitário Farias Brito (FBUNI). E-mail: ingridborges@hotmail.com.

Georges Daniel Janja Bloc Boris. Pós-doutorado em Filosofia Prática (UBI – Portugal), Doutor em Sociologia (UFC), Mestre em Educação (UFC), Psicólogo. É professor titular vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e ao Curso de Graduação da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). É coordenador do Laboratório de Psicopatologia e Clínica Humanista Fenomenológica – APHETO. Psicoterapeuta fenomenológicoexistencial. E-mail: geoboris@uol.com

 

 

Recebido:16/08/2017
Aprovado: 24/03/2018

 

 

1 Emo vem do termo emotional hardcore, um estilo de música dos anos 1980, pertencente ao punk rock, caracterizado pela musicalidade melódica.

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