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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.1 Belém jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04ensaio29 

Ensaio

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04ensaio29

 

Considerações sobre a fenomenologia hermenêutica de Heidegger

 

Considerations on Heidegger's Hermenetic Phenomenology

 

Consideraciones sobre la Fenomenología Hermenéutica de Heidegger

 

Cezar Luís Seibt

Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

O texto aponta para o que caracteriza a fenomenologia de Heidegger, situando-a no seu contexto maior na década de 1920 a 1930. Heidegger pretende uma fenomenologia em sentido fenomenológico e isso implica no trabalho de desconstrução da tradição metafísica para reencontrar o sentido do ser, soterrado pela tendência cotidiana da existência humana envolvida com os entes (objetos e suas representações). As coisas elas mesmas não serão, para esse autor, os objetos ou entes, mas o horizonte possibilitador dos entes, que é o sentido do ser. Além do mais, será hermenêutica porque se trata de reconhecer a condição finita e histórica do ser humano como intérprete já sempre envolvido num círculo compreensivo.

Palavras-chave: Fenomenologia; Hermenêutica; Ser-aí; Mundanidade


ABSTRACT

The text points to what characterizes Heidegger's phenomenology, situating it in its larger context in the 1920s to 1930s. Heidegger intends a phenomenology in the phenomenological sense and this implies in his work of deconstruction of the metaphysical tradition to rediscover the meaning of being, buried by the daily tendency of human existence involved with beings (objects and their representations). The things themselves will not be, for this author, the objects or entities, but the enabling horizon of the beings, which is the sense of being. Moreover, it will be hermeneutic because it is about recognizing the finite and historical condition of the human being as an interpreter already always involved in a comprehensive circle.

Keywords: Phenomenology; Hermeneutics; Dasein; Worldliness.


RESUMEN

El texto apunta a lo que caracteriza la fenomenología de Heidegger, situándola en su contexto mayor en la década de 1920 a 1930. Heidegger pretende una fenomenología en sentido fenomenológico y eso implica en su trabajo de desconstrucción de la tradición metafísica para reencontrar el sentido del sentido ser, soterrado por la tendencia cotidiana de la existencia humana involucrada con los entes (objetos y sus representaciones). Las cosas ellas mismas no serán, para ese autor, los objetos o entes, sino el horizonte posibilitador de los entes, que es el sentido del ser. Además, será hermenéutica porque se trata de reconocer la condición finita e histórica del ser humano como intérprete ya siempre involucrado en un círculo comprensivo.

Palabras-clave: Fenomenología; Hermenéutica; Dasein; Mundanalidad.


 

 

CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

Foi Edmund Husserl quem explicitou a necessidade de voltarmos às coisas elas mesmas. Diz ele, textualmente: "Queremos retornar às 'próprias coisas'" (Husserl, 2012, p. 05). Manifesta-se, nesta expressão e projeto que se denomina de fenomenologia, a percepção dos limites da racionalidade moderna e da decorrente objetificação e dicotomias. Experimenta-se que, ao lado do grande avanço no domínio técnico e teórico do mundo, perdemos o acesso ao mundo mesmo, às vivências, à experiência ela mesma, ao mundo da vida. Por isso o apelo que vai surgindo de voltarmos novamente a atenção para aquilo que ficou de fora no projeto em vigência.

Essa experiência é fundamental na nossa relação com as coisas, com nossos objetos de investigação enquanto pesquisadores, na relação pedagógica e clínica. Não se trata de negar ou negligenciar o caminho percorrido pela humanidade, mas de manter a atenção aos elementos que são sacrificados em função da busca da certeza, exatidão, previsibilidade e controle que estão implícitos no modo como vimos nos relacionando conosco mesmos, com os objetos e com o mundo que nos cerca, naquilo que constitui a tradição metafísica. Geramos e consolidamos (institucionalizamos e ritualizamos) uma existência e uma relação que tende a reduzir a realidade ao que pode ser enquadrado no esquema de cálculo e previsão, ao que pode ser disponibilizado e controlado. Encontra-se na fenomenologia um apelo ao resgate de uma sensibilidade que está para além do cálculo reinante na metafísica e, por consequência, na nossa ciência e nas nossas práticas e teorias explicativas da realidade.

Vamos, neste texto, embora de forma breve e sem maiores aprofundamentos, olhar para a fenomenologia tal como ela foi sendo compreendida por Martin Heidegger e apontar algumas consequências para a compreensão que temos de nós mesmos e do mundo e das coisas com que nos relacionamos. Com o pensamento fenomenológico hermenêutico desse filósofo queremos salientar que há uma experiência e constatação que inspira uma busca. A experiência e constatação é a de que acabamos, na tradição ocidental, focando naquilo que Heidegger chama de entes, ou seja, nas coisas constatadas determinadas e disponibilizadas na linguagem, numa lógica determinada e baseada na exatidão e previsibilidade do cálculo e do método e, com isso, fomos nos distanciando das coisas elas mesmas, já que aquilo que explicamos ou falamos sobre elas cabe melhor nas expectativas desse modelo. A busca é então o desenvolvimento de um caminho de retorno para as coisas elas mesmas, empreendido de um jeito por Husserl, apropriado e aos poucos ajustado a situações e exigências diferentes daquelas do fundador por Heidegger e também por outros pensadores. Mas são tentativas de realizar o retorno, a volta para casa, para as coisas elas mesmas, para aquilo que permanece oculto no modo normal e naturalizado da existência teórica e prática do ser humano.

Para Heidegger (cf. 1998) é o sentido do ser que precisa ser novamente buscado e reexperimentado, o fenômeno em sentido fenomenológico. Não se trata, pois, na fenomenologia hermenêutica de Heidegger, do retorno a algum ente específico ou dimensão, faceta ou ângulo de algum ente para completá-lo ou somar informações. E sua fenomenologia será hermenêutica, por passar por uma análise da existência daquele ente que já sempre compreende o ser (o ser humano, que Heidegger pretende reconduzir a si mesmo, enquanto ele mesmo, através da expressão ser-aí – Dasein), que habita na proximidade do ser e tende a encobrir essa relação na vida normal do dia a dia, ou seja, na sua ocupação absorvida com os entes, as coisas com que lida.

Assume a tarefa de resgatar o sentido do ser pelo caminho de uma ontologia fundamental (isso até o final dos anos de 20 do século XX), que passa por uma desconstrução deste ente que tem essa proximidade com o ser, mas que se perde cotidianamente entre os entes, para que se lembre dessa proximidade. Essa proximidade deverá permitir experimentar a realidade como possibilidade, descristalizando o saber e a relação naturalizada com o mundo, com as coisas no mundo e conosco mesmos como seres humanos. Sua fenomenologia, por isso, será um retorno para o sentido do ser, que passa por uma desconstrução, como mostraremos.

 

HEIDEGGER E SEU PROJETO INICIAL

Heidegger entende que Husserl teria negligenciado uma investigação em torno do ser da intencionalidade e também do ser em geral (Cf. 1994). Uma análise dos atos da consciência pressupõe um esclarecimento prévio do ser mesmo da consciência, para que não se perca o solo próprio do investigar. Como diz Heidegger em relação às categorias de Husserl, "elas tem o seu solo determinado e não dizem nada sobre o ser da consciência" (Heidegger, 1994, p. 274). Qual é o ser da consciência (ou da intencionalidade) com que Husserl opera? Para Heidegger isso permanece pressuposto.

Ficando indeterminado o ser da consciência, fica indeterminado o acesso ao próprio ser e à abertura dos entes. Esse 'pressuposto', a consciência (acesso ao ser em geral), não entra no questionamento de Husserl. Ou seja, para Heidegger, Husserl toma como ponto de partida e pressuposto evidente certas noções que precisariam passar, elas também, por uma consideração fenomenológica. Husserl, assim, assumiu algumas evidências sem fazer com elas a redução. Para ele as 'coisas mesmas' são as vivências da própria consciência pura (consciência que pode ser separada do mundo como 'eu puro'). Para Heidegger não pode haver algo como consciência pura, separada do mundo, pois essa separação é, para ele, uma abstração. Somos já sempre ser-no-mundo (cf. 1998). Na medida em que o ser da intencionalidade não é questionado pela fenomenologia reflexiva (como von Herrmann caracteriza a fenomenologia de Husserl), esta assume irrefletidamente a concepção tradicional como se ela fosse algo natural e óbvio.

Neste sentido, como mostra von Herrmann, a resposta de Heidegger à elaboração da fenomenologia da consciência transcendental de Husserl é uma "fenomenologia hermenêutica do Dasein" (2000, p. 112). Essa resposta, que pretende dar um passo além na abertura das coisas elas mesmas, não começa com Ser e Tempo, mas, como diz o mesmo autor:

Aquilo que em 'Ser e Tempo' é elaborado como fenomenologia hermenêutica do Dasein inicia em 1919 sob o título de ciência originária pré-teórica da vida e da vivência e recebe também os nomes de ciência originária da vida fática, de fenomenologia ontológica e de hermenêutica da facticidade (2000, p. 113).

Heidegger, aos poucos, na apresentação desses títulos e com sua elaboração, indica a necessidade de avançar ou recuar dos fenômenos enquanto objetos e da própria consciência para um transcendental finito, para o solo primário e pré-teórico no qual se enraíza a existência humana e seus comportamentos teóricos e práticos. Elabora uma nova compreensão da filosofia e uma nova proposta em relação à sua fundamentação. O objetivo de fundar o filosofar na sua dimensão pré-teórica, na vida em sua facticidade, exige o trabalho de desconstrução do arcabouço teórico e técnico em que moramos, ou seja, da metafísica (cf. Heidegger, 1998, § 6).

Liberar a vida e a vivência a partir da sua dimensão pré-teórica é buscar compreender a vida a partir de si mesma e não a partir de alguma determinação anterior ou externa, de algum conhecimento conhecido. E o método que deve poder tornar acessível a vida em si mesma será conquistado juntamente com as coisas em si mesmas, não pode vir de fora, não há de ser uma medida alheia às próprias coisas: será uma fenomenologia hermenêutica.

O resultado do trabalho de Heidegger até Ser e Tempo acaba sendo a "elaboração de um novo fio condutor para a filosofia" (Von Herrmann, 2000, p. 114). O pensar, nesta filosofia, mostra o mesmo autor (2000, p. 115), deverá dar-se 'a partir' do ser ('aus' dem Sein) e não passando por cima dele ('über' das Sein) ou, apesar dele. O próprio ser-aí (Dasein), o ser dos entes, o acontecimento, tudo isso será pensado a partir do ser, de dentro dele, a partir da abertura da temporalidade.

A questão de Heidegger é o sentido do ser, uma questão ontológica portanto, mas entende que esse sentido somente será atingido tomando como ponto de partida a investigação de um ente. O ser somente é acessível num ente que tenha compreensão do ser e este é o próprio ser humano. Como o ser humano encontra-se em meio à ocupação circunspecta com entes e tende a esquecer, em meio a essa ocupação, o ser, é preciso primeiro reaproximá-lo da compreensão do ser. O ser humano então, nessa analítica existencial, na desconstrução da sua fixação e naturalização em meio ao modo de ser dos entes, há de reapropriar-se de si mesmo enquanto ser-aí, aquele ente no qual o ser se manifesta e que já sempre compreende o ser. A hermenêutica do ser humano o reconduz para si mesmo enquanto o Dasein, o ser-aí, o aí do ser, o lugar onde o mundo passa a ser e nele os entes, por isso ser-no-mundo.

O pensamento desenvolvido por Heidegger, escreve Werner Marx, quer "mostrar que as categorias tradicionais são inadequadas para conceituar o ser do ser humano como também o ser das coisas com as quais o ser humano lida" (1961, p. 93). Não se compreende o ser dos entes em geral partindo do ser da tradição. Isso porque a tradição metafísica entende o ser como um ente fundante. O ser é fundamento e esse fundamento é posto em um ente ou ideia que se situa fora do tempo e que, por isso, pode ancorar a realidade cambiante e finita. O ser é um fundamento final ou primeiro que dá consistência aos nossos conhecimentos. Heidegger, ao perguntar pelo sentido do ser, não está em busca de um ente melhor e mais poderoso que possa sustentar melhor a realidade, mas pretende um reconhecimento de que nosso fundamento é também histórico e finito. O lugar a partir do qual falamos e argumentamos (e fundamos) é histórico, temporal, finito e hermenêutico.

O projeto de Heidegger, o de investigar o sentido do ser, propõe-se desenvolver uma determinação mais originária para o ser dos homens e das coisas. Mais originária enquanto retorno para aquilo que a metafísica precisa esquecer e ocultar para que o projeto de verdade e realidade seja possível. Pretende ser uma superação do ser concebido a partir dos conceitos de substância e sujeito, indica Marx (Cf. 1961, p. 93). É preciso buscar o sentido do ser que fundamenta o conceito tradicional de substância e as determinações essenciais. Há algo que fundamenta esse conceito tradicional (inadequado para o ser dos homens e das coisas) e que, investigado, permite superar a ideia de substância e de sujeito.

A substância cartesiana (res extensa, permanência contínua, presença) está na base da compreensão das coisas e do ser humano na tradição moderna. Heidegger entende que a partir dessa base não se alcança o ser próprio das coisas e do ser humano e, por isso, é preciso buscar a determinação originária desse modo de compreender a realidade. Dessa maneira, com Heidegger, o ser do ser humano se chamará 'existência' ou ser-aí (Dasein) e isso deve significar que "o ser do ser humano não pode ser compreendido como uma 'existência' no sentido tradicional, porque essa categoria tem o sentido do ser do simplesmente existente (Vorhandensein)" (Marx, 1961, p. 95). O humano não é um Vorhanden, um ente disponível e constatado (constatável, como coisa), mas é "no seu ser o movimento de uma relação consigo mesmo, de um ente que se relaciona consigo mesmo", no original alemão, "Bewegung eines Selbsverhältniss" (Marx, 1961, p. 95). Existência não tem mais o sentido de uma substância, tanto que Heidegger vai falar de existenciais ao invés de categorias (ou conceitos) para caracterizar o ser do ser-aí. Categorias até servem para os entes não humanos. Mas não para o ser humano enquanto ser-aí, pois, como lembra Rée, os 'eus' não são entidades auto-encerradas e autocentradas nos moldes cartesianos, "mas aberturas receptivas voltadas para o mundo" (2000, p. 45).

O ser-aí é um ente que já sempre tem aberto seu aí e por isso está na compreensão e se relaciona com seu próprio ser compreensivamente. Diferentemente dos outros entes, o ser-aí é aberto, está na luz, está na clareira do ser, na abertura. Ele não é a luz, mas ela brilha nele (ele compreende o ser). É o único que é 'aí', que existe. Já as coisas do mundo são, como indica Marx, "na sua significatividade relacionadas ao ente que tem seu ser como ser-no-mundo. Por isso as coisas são 'próximas' ao Dasein, estão 'à mão' (Zur Hand, Zuhanden) e tem o sentido de Zuhandensein" (1961, p. 96).

Desde o início o ser do ser humano precisa ser entendido no seu ser-com outros. O ser no mundo é com-partilhado e também poderíamos dizer, consensual. O "Dasein abre a totalidade do mundo, projeta compreensivamente e partilha lingüisticamente essa totalidade significativa com os outros" (Marx, 1961, p. 98). A existência acontece desde o início numa comunidade humana que mora numa determinada abertura cultural, ou seja, que se relaciona com o mundo, com as coisas e consigo mesmo (seres humanos entre si) através de uma já sempre compreensão compartilhada e guardada e transmitida na linguagem. Somos ser-com e nos entendemos a partir desse lugar e tempo compartilhado e tornado cotidianidade.

Alcançar uma compreensão do ser humano a partir da sua proximidade com o ser, neste seu modo fundamental, originário, pré-teórico, mostra que não há encontro entre substâncias isoladas e que os modos teóricos de relação a partir dos quais se compreende os entes como simplesmente existentes (Vorhandensein) já sempre são derivados daquele mais originário, que foi naturalizado e entrou no consenso e, por conseguinte, é pressuposto ou objeto de aceitação pela normalidade.

Há sempre a tendência de nos compreendermos, até por isso, inautenticamente, ou seja, a partir do ser dos entes dentro do mundo, procurando garantir, assim, maior coesão à existência. Diz Ree, "preferimos ser algo mais substancial, por isso fugimos mais uma vez de nosso autêntico ser e concebemos a nós mesmos como itens de equipamentos, ou coisas naturais, em vez de meros seres-no-mundo" (2000, p. 46). Ou seja, no entendimento que temos de nós mesmos, como seres humanos, podemos operar sem que tenhamos acesso propriamente a nós mesmos, mas chegar ao 'objeto' mediados por pressupostos. Mediados, chegamos àquilo que a mediação permite, e que ela já carrega em si mesma de possibilidade. Tendemos, por isso, a nos entender a partir daquilo que herdamos da tradição e que se tornou o modo normal e consensual de nos entendermos. E isso sem chegar a nós mesmos originariamente e propriamente. Aquilo que já sabemos sobre nós constitui a abertura que nos dá acesso a nós mesmos, ou seja, nos entendemos a partir do que sabemos de nós, sem que aquilo que já sabemos e que se tornou o meio de acesso seja também colocado em questão na investigação do ente (nós mesmos no caso das ciências humanas). Por isso a necessidade de investigar o sentido do ser, daquilo que já sempre pressupomos para podermos nos entender do jeito que entendemos, que permite que sejamos isso que somos.

 

FENOMENOLOGIA HERMENÊUTICA E CONHECIMENTO

Por isso podemos dizer que a fenomenologia é, em primeiro lugar, uma constatação: a de que não estamos mais falando ou nos relacionando com as coisas mesmas, mas com as representações que se consolidaram ao longo da tradição. De outra forma, podemos dizer que tomamos aquilo que sabemos, escrevemos, teorizamos e falamos sobre as coisas como se fossem as coisas. Esquecemos que aquilo que falamos sobre as coisas é aquilo que falamos sobre as coisas, mas não necessariamente as coisas de que falamos, elas mesmas. A representação conceitual, explicativa, teórica e linguística se torna o 'meio' e acesso exclusivo. Mas é um acesso linguístico, uma mediação que é, ela mesma, um conjunto de aceitações e pressuposições que podem sugerir que nossa relação com as coisas e conosco mesmos pode ser inautêntica, pois é indireta e não baseada no próprio fenômeno aqui e agora, o acontecimento do que se manifesta em si e a partir de si. É também imprópria essa relação porque não foi haurida por nós próprios, mas herdada e tomada naturalmente como clara e evidente.

Com isso não está em questão se o ente ou objeto de que falamos corresponde realmente àquilo que dele se fala, se está correto o que se diz ou não. Há a constatação de que o ente (as coisas, o mundo, o ser humano) se torna naturalmente aquilo que dele falamos. A cotidianidade constitui esse universo de representações, ou então a abertura compreensiva na qual temos acesso às coisas, sem que a abertura mesma seja posta em questão, mas, ao contrário, que seja consolidada através da ininterrupta repetição (falatório) daquilo que constitui a normalidade da nossa existência. Temos a constatação, portanto, que encontramos os entes (tudo o que é) não enquanto tais, mas sempre mediados pelo saber que acumulamos na tradição. E essa tradição é chamada de metafísica.

Por isso, a fenomenologia é também, além de uma constatação, um exercício de retorno às coisas elas mesmas, uma tentativa de retomar o acesso às coisas para além das representações disponíveis e naturalizadas, um esforço por desconstruir ou desmontar os conceitos, as explicações, os saberes que são nossa mediação natural do mundo, para alcançar as coisas no seu dar-se, no seu acontecer. A fenomenologia é a tentativa sempre renovada de libertar-se dos determinismos que constituem a intencionalidade da nossa consciência, pois nossa consciência é consciência daquilo que sabemos. Husserl propõe que devamos colocar entre parênteses aquilo que sabemos, praticar a redução fenomenológica para chegarmos aos fenômenos. Heidegger acredita que devamos desconstruir ou desmontar o que sabemos, aquilo que constitui nossa tradição, a metafísica, a abertura na qual chegamos às coisas. Husserl propõe o caminho da fenomenologia transcendental (ou reflexiva como diz Gethmann) e Heidegger a fenomenologia hermenêutica, e outros ainda fazem seu próprio caminho por outras veredas. São respostas à pergunta: como podemos voltar às coisas elas mesmas? Voltar ao vivido, ao originário, à fonte, ao nascimento daquilo que é tal como é (algo enquanto algo).

Há, então, o diagnóstico da nossa tendência natural, que inicial e normalmente, constitui nosso acesso ao mundo, ou seja, que tomamos as representações pelas coisas elas mesmas e esquecemos que fazemos isso, e, por isso, um esforço por voltar novamente ao originário, primário, pré-teórico, à gênese do que é, do que permite às coisas serem o que são, o que constitui o propósito da retomada da questão do sentido do ser por Heidegger.

Para Heidegger (ao menos antes da virada do seu pensar em torno dos anos de 1930), que aqui nos interessa, o ponto de partida para responder à questão pelo 'que é' passa por uma interpretação do ente que já sempre tem uma compreensão do ser, como já mostramos. Uma analítica da existência, como ele a chama em Ser e Tempo, que possibilite que a própria questão volte a fazer sentido, que o ser se torne novamente problema, o que implica numa desconstrução do arcabouço conceitual tradicional. O ser humano tomar-se-á novamente em consideração, não no sentido de acumular novas informações e mais precisas sobre si mesmo, mas de libertar-se do movimento automatizado que os conhecimentos instituem na autocompreensão cotidiana.

Nesta analítica do ser-aí duas tarefas são importantes, de acordo com a indicação de Gethmann (Cf. 1993, p. 211): em primeiro lugar, a auto-interpretação do ser-aí terá de ser feita a partir de categorias genuinamente humanas, não emprestadas de algum outro empreendimento teórico. Essas categorias serão chamadas de existenciais; e, em segundo lugar, os entes não humanos também deverão poder ser compreendidos primeiramente não mais a partir do âmbito do ser-simplesmente-dado (Vorhandensein), mas sim a partir do ser-para, do utilizável (Zuhandensein). Tanto o ser do ser humano quanto o ser dos demais entes passarão pela desconstrução.

Para lidar com o problema da realidade, Heidegger apresenta novas determinações fundamentais, o que implica numa destruição da metafísica e numa transformação do modo mesmo de colocação da questão. Em Ser e Tempo (1998, § 43, p. 221) o autor diz que o problema da realidade precisa ser extraído da analítica existencial como problema ontológico. Com isso a obra desenvolve algumas premissas centrais para que o problema do conhecimento seja reformulado, mexendo na questão da realidade. Se na tradição se pensa a verdade como uma qualidade da proposição, verdade como verdade da enunciação, a analítica existencial conduzirá Heidegger para uma compreensão mais originária da questão da verdade: "a 'verdade' mais originária é o 'lugar' do enunciado e a condição ontológica da possibilidade para que os enunciados possam ser verdadeiros ou falsos" (1998, p. 246). Na medida em que o descobrimento do ente é representado na proposição ou conceito, em que o descoberto é guardado na enunciação, acaba-se por considerar desnecessária "uma originária reexecução do ato descobridor desse ente" (1998, p. 244).

A fenomenologia de Heidegger, na medida em que pretende o fenômeno no sentido fenomenológico, não se ocupa com os objetos específicos e suas manifestações, mas, como se pode perceber, pelo deslocamento da questão da verdade por ele executada, busca se aproximar daquilo que é condição de possibilidade para que os objetos enquanto tais possam ser isso que são, e dos quais se possa predicar verdade ou não. Por isso escreve que já sempre compreendemos o ser, estamos na abertura da verdade, isso é condição para que os entes se mostrem. Mas tendemos a ocultar a 'verdade' neste sentido originário e fixar-nos na ideia derivada de verdade, verdade do ente e não verdade do ser. Sua fenomenologia o leva para a verdade do ser, para a verdade como abertura originária, mundanidade do mundo.

Esses elementos que aparecem em Ser e Tempo se põem dentro da atmosfera da filosofia do século XX, mas a partir da conquista de um horizonte totalmente novo. Heidegger aprofunda essa tendência da filosofia alemã que procura superar a consciência em direção ao agir, em favor de pragmatismo do mundo vivido. Coloca na base exatamente o primado da lida circunspectiva e mostra que todos os fenômenos da consciência são derivados do fenômeno do agir, da lida. Ou seja, antes das determinações categoriais e teóricas, já estamos sempre envolvidos na lida prática com o mundo. Como nota Stein, "a racionalidade que se inaugura e que se exerce a partir de Heidegger é prática: não há mais instância metateorética justificando a teoria; a teoria é uma prática do ser-no-mundo" (1990, p. 24).

Não se trata, por isso, da prática contraposta à teoria (a distinção e conflito vigente entre teoria e prática), isso porque a distinção mesma já é resultado de uma teorização ou explicação. Está em questão o reencontrar-se no mundo, na lida compreensiva. Quando justificamos nossas relações, criamos explicações e determinamos aquilo com que já sempre lidamos e vivemos, criamos um horizonte teórico que, aos poucos, cria autonomia em relação ao seu nascimento, à sua origem e se torna o modo cotidiano e automático com que encontramos as coisas e a nós mesmos. Fomos, neste movimento, perdendo a capacidade de experimentar originariamente aquilo de que falamos. Experimentamos derivadamente, não a partir do dar-se ou apresentar-se das coisas.

O desenvolvimento da atitude fenomenológica significa o exercício de recobrar a capacidade de experimentar nas coisas que experimentamos o próprio experimentar, liberando a possibilidade de experimentar as coisas como possíveis, para além das determinações já sempre dadas. Até porque Heidegger escreve que "acima da realidade está a possibilidade" (1998, p. 61).

Na relação naturalizada e normalizada que é a metafísica, o conhecedor e conhecido, o sujeito e o objeto, estão já sempre separados, tomados como duas substâncias independentes, postas uma diante da outra. Está instaurada a dicotomia entre a mente e o mundo e dentro dessa perspectiva se dá o conhecimento; um sujeito posto diante do objeto e produzindo sobre ele conhecimentos. Neste caso, aquilo que o sujeito diz sobre o objeto não basta por si mesmo, mas precisa de uma justificativa, uma explicação que faça a ponte ou ligação entre um e outro e ofereça a garantia de que o conhecimento é verdadeiro. Ou seja, feita a separação, instituída a distância entre o conhecedor e o conhecido, há que novamente produzir uma ligação justificadora do acesso, o que acontece através de uma nova teoria (teoria do conhecimento).

Através da tese do primado do ser-no-mundo Heidegger afasta-se radicalmente de uma ideia de consciência fundadora e separada do mundo, cultivada de Descartes a Husserl. "Em Husserl o conhecimento estava fundado na experiência de si mesmo do ego transcendental. [...] A partir de Heidegger o conhecimento é um simples modo fundado" (Gethmann, 1993, p. 286). Aliás, um "modo deficiente do ocupado ter-a-ver com o mundo" (Heidegger, 1998, p. 87). O conhecimento é um comportamento humano que não se funda em si mesmo, mas é fundado a partir de um artifício teórico que lhe é acrescentado. O conhecimento não é originário, mas derivado ou fundado por algo que aceitamos de antemão e pressupomos naturalmente.

Para Heidegger, a atitude teórica naturalizada na normalidade ou cotidianidade, deve dar lugar a um primário orientar-se no mundo. Esse orientar-se no mundo também não é cego, tem sua especificidade, tem um horizonte aberto que permite diferenciar, lidar em meio aos entes.

O problema da realidade mostra-se assim numa primeira aproximação: "o real é isto que a compreensibilidade (Verständlichkeit) e confiabilidade (Verlässlichkeit) que o trabalho de uma diferenciação garantem" (Gethmann, 1993, p. 230).

Por isso, no pensar de Heidegger, torna-se muito importante o conceito de Umgang, que tem o sentido de lida, de trato com algo, muito próximo do cuidado e do serno- mundo. 'Umgehen mit', 'lidar com', é lida que tem uma familiaridade com aquilo com que lida, embora não seja um saber explícito enquanto conhecimento. O trato com o mundo não é cego. Diz Gethmann

As análises de Heidegger mostram que a lida com as coisas, a esfera do agir em meio a – relacionado com finalidades, coloca o imprescindível e não tematizado fundamento. Isso não significa que esse 'lidar com' acontece de forma cega, mas o agir é muito mais conduzido no âmbito do meio-finalidade-organização (Mittel-Zweck-Organisation) através de um momento cognitivo que Heidegger chama de visão circunspectiva (Umsicht) (Gethmann, 1993, p. 288).

Neste texto Gethmann refere-se ao parágrafo 15 de Ser e Tempo. E para diferenciar-se da relação teoria e prática, atividade e passividade, e também para evitar malentendidos, Heidegger usa termos como "zu-tun-haben-mit" (ter-a-ver-com), "umgang mit" (lidar com), menos propensos a decair na tradição do que "Handeln" (agir), como ocorre no parágrafo 60 de Ser e Tempo.

Heidegger, ainda em Ser e Tempo, exemplifica o problema com uma reflexão sobre o utensílio martelo. O utensílio faz parte de todo um contexto referencial e somente nele é compreendido. Na lida, trato ou manipulação torna-se disponível para um propósito, útil para algo. Não é primeiro um instrumento teórico, uma posição categórica, mas é instrumento útil na significação imediata, compreendido previamente como instrumento. Não é cognoscitiva a primeira relação, mas de uso. O instrumento é alguma coisa a partir da serventia que tem: para isso ou para aquilo. Kusch diz que "a atitude teórica está enraizada no fazer prático" (Kusch, 2003, p. 167). Para Nunes

O ser-à-mão, acessível na conduta de trato – o ser dos pragmata -, é, contudo, o eixo de toda compreensão, porque do ver compreensor imediato, sempre efetivo, da preocupação que abre o ser-à-mão na forma do cuidar, usar e manipular coisas, jamais firmados independentemente das atitudes do intercurso cotidiano que a solicitude reclama, projeta-se, por meio da visão circunspectiva, que se engrena a essa elementar experiência antepredicativa e através da qual a compreensão se desenvolve numa interpretação, a rede das relações de referência que constituem a significatividade (Nunes, 1992, p. 170).

A necessidade de perguntar novamente pelo sentido do ser em Heidegger, por aquilo que faz e permite que as coisas sejam isso que são para nós, em nosso mundo, expressa a constatação de que perdemos o contato com as origens, com as raízes daquilo que agora herdamos como num bloco uniforme e indiferente de conhecimentos e explicações. Por isso, a insistência de voltar às raízes, reabilitar a possibilidade de experimentar as coisas no seu dar-se e ao mundo na sua mundanidade. O retorno às coisas elas mesmas não se dá num acesso a algo supostamente por detrás daquilo que as coisas são para nós na cotidianidade ou normalidade da existência, mas no resgate da mundanidade do mundo. A mundanidade do mundo é a experiência do mundo como mundo, não como o mundo cartesiano, o mundo como soma de objetos e de conhecimentos sobre esses objetos. O esforço de Heidegger não consiste em encontrar isso ou aquilo de outra forma, numa suposta verdade mais verdadeira sobre a coisa, mas experimentar o mundo como horizonte de sentido onde as coisas podem ser isto ou aquilo; fazer a experiência da experiência, não com a expectativa de encontrar os objetos como outra coisa do que são, alguma outra faceta ou ângulo da realidade, mas a realidade como realidade, para tornar-se livre em relação às determinações e institucionalizações da realidade. Por isso Heidegger vai se ocupar do fenômeno em sentido fenomenológico, como escreve em Ser e Tempo (Cf. 1998).

 

O SER-AÍ E A MUNDANIDADE DO MUNDO

Na analítica existencial de Ser e Tempo Heidegger caracteriza o ser humano como ser-em, ser-no-mundo. E, como já indicamos, é pela investigação do próprio ser humano enquanto ser-aí que ele acredita poder fazer o caminho de volta para casa, para as raízes, para o vivido. Desconstruindo a compreensão que temos de nós que foi definida e fixada em saberes sobre nós mesmos na tradição, pensa que é possível libertar-se da relação naturalizada com a 'realidade' na qual tudo se torna objeto e coisa (por isso o problema da 'coisificação') e encaminhar-se para o exercício da atitude fenomenológica, para a experiência não das coisas ou dos entes, mas para a experimentação da abertura na qual experimentamos as coisas ou entes.

Na tradição metafísica estamos enredados e aferrados na nossa lida com os entes com que nos ocupamos e que ocupam nosso dia a dia. Estamos esquecidos do ser; estamos ocupados e nos ocupamos completamente com os entes. Ocultamos para nós mesmos a abertura na qual acontece a experimentação daquilo que experimentamos. Experimentamos sem fazer a experiência da experimentação em si mesma, pois focamos no objeto que experimentamos. Esse 'lugar' ou experiência da experiência é a mundanidade do mundo.

Tomaremos como ponto de partida uma afirmação de Heidegger no parágrafo 19 do texto Prolegômenos para uma história do conceito de tempo, de 1925, no qual diz que ao se desencobrir a estrutura básica do ser-aí, este deverá mostrar sua condição primária como ser-no-mundo. Com isso se entenderá "como todas as estruturas estão regidas por esse seu caráter fundamental" (Heidegger, 2007, p. 196). Mais adiante diz que "o estarsendo- em é a constituição de ser do Dasein, aquilo em que se funda qualquer maneira de ser deste ente" (2007, p. 200).

E como Heidegger chega à ideia de mundo com o sentido diferenciado da ideia corrente? No texto de 1919 ele anuncia que na busca da esfera pré-teórica estamos no "cruzamento metódico que decide sobre a vida ou a morte da filosofia em geral, num abismo: ou para dentro do nada, ou seja, da absoluta objetividade, ou conseguimos dar o salto para dentro de outro mundo, ou dito de maneira mais correta, em geral a primeira vez para dentro do mundo" (Heidegger, 1999, p. 63). O que seria este mundo, para dentro do qual se deverá saltar? Esse outro mundo é a esfera pré-teórica. Na medida em que, como diz von Herrmann (2000, p. 22), estamos sob o domínio do teórico e amarrados à objetividade ou objetificação dos entes, não se experimenta algo assim como o mundo enquanto mundo. Aqui já falta a experiência do mundo enquanto mundo, pois aparece somente aquilo que está objetivado e desenraizado. Há acesso ao mundo dos entes a partir da abertura teórica ou mundo compreensivo pressuposto, mas não tematizado. O que acontece aqui?

Com isso Heidegger introduz uma experiência completamente nova do mundo e um conceito de mundo que não pode mais ser compreendido a partir da tradição como a totalidade dos entes, mas sim como totalidade compreensiva que só se mostra no modo de acesso a-teórico, não-reflexivo. Essa ideia de mundo não pode ser igualada ao mundo da vida da fenomenologia reflexiva de Husserl. É "o mundo da vida e da vivência, o mundo da vida, mas o mundo da vida a-teórico" (Von Herrmann, 2000, p. 22).

Quando agora Heidegger caracteriza o ser-aí em relação com o mundo, ele está colocando o ser humano no horizonte do mundo como abertura de sentido, totalidade de sentido. De acordo com Prauss (1996, p. 12), o mundo é aquilo que já está originariamente e previamente descoberto na lida prática do ser-aí. Esse mundo aberto originariamente é que permite a construção posterior de estados teóricos, derivados deste modo primário prático.

O ser humano é o Da, o aí do próprio mundo e é no mundo. Ele é o aí do ser, aquele ente que existe no 'entre', no não-lugar da compreensão do ser que lhe dá acesso aos entes enquanto estes ou aqueles. O ser humano enquanto ser-aí é compreensão do ser, acontece como a abertura que permite os entes serem enquanto tais. O mundo é o seu 'em', sem ser um espaço extenso. Ser-aí é fundamentalmente ser-no-mundo. Como afirma Figal, "mundo é a conexão das coisas, no qual elas têm' sentido', ou seja: no qual elas têm um significado e onde são importantes para quem as vivencia" (2007, p. 13). Isso significa que não há primeiramente as coisas, mas sim as coisas enquanto significativas. Ou seja, "a significatividade é o modo dentro do qual as coisas se dão. Elas se dão na medida em que se dão como algo determinado na vivência e na conexão da própria relação. Dão-se, na verdade, como algo com que se sabe, de forma mais ou menos marcada, fazer algo" (Figal, 2007, p. 13).

Heidegger acredita, dessa forma, que o teórico está enraizado e se funda no pré-teórico. A pergunta pelo sentido do ser, pelo ser do ente, tem o propósito de tornar visível essa condição circular da investigação ôntica. É preciso "quebrar o império geral do teórico" (Tietz, 2005, p. 41), o que Heidegger pretende com a virada hermenêutica da fenomenologia. A relação é circular porque não partimos do nada na nossa relação com aquilo com que nos ocupamos ou que teorizamos, mas já sempre moramos ou estamos enraizados numa compreensão (do ser das coisas) que é a condição para esse determinado acesso ou ocupação, mas que permanece oculto. A fenomenologia hermenêutica de Heidegger é o esforço filosófico de resgatar essa circularidade que acontece na diferença entre o ente e o ser. Isso para poder morar autenticamente dentro da circularidade e não para suprimi-la em nome da objetividade e neutralidade.

Ser-no-mundo marca todos os possíveis modos de ser do ser-aí. Originariamente, ou na sua nudez e crueza, o ser humano está implicado com o mundo, é sempre um 'Da', o seu 'Aí'. Isso distingue Heidegger da tradição. Tradicionalmente pensamos o ser humano a partir de alguma objetividade, de um ideal eterno e prévio a ser alcançado, de um elemento absoluto, uma essência. Na visão do ser humano como uma junção de corpo e alma vemos claramente uma dicotomia e, ao mesmo tempo, um elemento prévio e essencial que define o humano, que é a alma, a razão, o espírito. Heidegger vai mostrar que estas construções teóricas escondem suas raízes, o solo de que brotam, e se tornam inautênticas por isso. As diversas concepções antropológicas, epistemológicas e outras que buscam se complementar ou combatem entre si têm um solo comum: o ser-nomundo originário do ser-aí.

O originário tem esse sentido de descrever a facticidade radical do modo de ser do ser humano, para além de qualquer teorização que estabelece algum ponto arquimédico para assegurar clareza e objetividade. A descoberta do originário, do ser-aí, implica também numa desconstrução das concepções tradicionais, não porque estejam erradas, mas porque ignoram ou esquecem sua origem e, dessa forma, acabam se tornando meras elucubrações teóricas que lutam com argumentos e com uma estrutura lógica. Isso tem tudo a ver com o esquecimento do sentido do ser. Já afirmamos que não é qualquer fenômeno que a fenomenologia de Heidegger tem em vista, mas aquilo que se esconde naquilo que se manifesta, ou seja, o ser que fica esquecido na manifestação do ente. O que fica velado é aquilo que permite às coisas serem isso que são, e não outra 'coisa'. As teorias se comportam como se estivessem seguramente assentadas e asseguradas, mas nessa situação se escondem as condições prévias, ou seja, a própria abertura do ser. E justamente por isso podem se comportar dessa forma, pela aceitação de um pressuposto como evidente. E essa abertura, o sentido do ser, não é nenhuma epifania divina, mas uma existência fática, dum ser-no-mundo. Por isso a abertura do ser é finita, se dá na finitude do ser humano enquanto ser-aí.

Mesmo uma teoria teológica radica fundamentalmente nas possibilidades de ser do ser-aí. Com isso não há nenhuma depreciação ou condenação dos esforços humanos por constatar, explicar e descrever as coisas e acontecimento dentro do mundo, mas a simples constatação de que quando uma teorização perde contato com aquilo que é sua condição de possibilidade, com o mundo como mundo, com a abertura que é o sentido do ser, com o seu 'Aí', ela se torna imprópria e inautêntica. Ela não parte do fenômeno mesmo, mas sempre de elementos teóricos prévios, de doutrinas, de conceitos, de leis pressupostas.

Isso, contudo, é sua condição incontornável: a princípio e em geral comparece o habitual, o que já está disponível através da linguagem, do conceito, da tradição. Conhecemos as coisas do nosso mundo, aquilo que é objeto das nossas teorias e profissões, a partir daquilo que já está constatado e disponibilizado na compreensão do mundo e tempo no qual nascemos. A fenomenologia em sentido fenomenológico desperta para aquilo que está sempre pressuposto e que é condição para que o que se manifesta se manifeste. Há já sempre certa 'rede' que agarra algumas coisas, enquanto deixa outras passar.

Mas voltando ao 'mundo', ao ser-aí como ser-no-mundo, temos neste existencial a indicação de que o ser humano não é "primeiro um existente para si e, além do mais, tem uma relação para com o mundo. O ser-no-mundo 'é' já o próprio homem" (Heidegger, 1976, p. 173). O originário não é uma relação entre consciência e mundo, entre dois entes prévios que se encontram casualmente em algum momento. O ser-no-mundo é o próprio ser-aí, ele é tal enquanto no mundo, 'aí', mas 'aí' na proximidade já sempre do ser. Primariamente a relação com o mundo não é uma relação de conhecimento teórico, mas simplesmente um 'ter a ver com' que pode autonomizar-se e dar origem a diversos comportamentos, tais como o conhecimento teórico (Cf. Heidegger, 1976).

É importante lembrar que, além de a existência (o ser humano como ser-aí) ser essencialmente no mundo, ela tem também a tendência de sucumbir no próprio mundo, no envolvimento com os entes e acontecimentos do seu entorno. Isso é especialmente relevante para quem se ocupa com a investigação do ser humano ou com algum aspecto, parte ou faceta dele. Não há uma relação neutra e indiferente com o mundo. Nessa tendência ao decaimento e fixação no modo de ser dos entes, esquecido do ser, o ser-aí se entende impropriamente a partir das coisas e das suas determinações, do mundo de ocupações com o qual ele mesmo 'tem a ver'. Dito de outra forma, a existência, em sua conduta, se deixa determinar por aquilo que ela procura, por aquilo com que lida. Aquilo que já se possui encaminha e determina a busca para frente. No entanto, não é possível separar o ser humano (aquele que existe) do mundo, pois não teríamos mais o ser humano como ser-aí, mas como coisa entre outras coisas, objetificado, portanto. A existência humana é numa determinada relação com o mundo. A existência está facticamente sucumbida, decaída no seu mundo e isso não é um fenômeno negativo, como Heidegger (Cf. 1998) irá mostrar, mas é o modo como o ser-no-mundo se realiza efetivamente, na medida em que não há nenhum lugar externo ao mundo no qual possa se amparar.

Somos humanos dentro e a partir de uma comunidade humana na qual há determinada compreensão do que as coisas são; caímos para dentro de uma determinada abertura ao aprendermos uma determinada linguagem que carrega uma determinada forma de ver e estar no mundo, que foi cultivada por uma tradição. Mas isso não significa que, embora isso sempre seja inicialmente nossa condição e nela permaneçamos normalmente, que não seja possível reexperimentarmos o 'lugar' ou 'não-lugar' onde moramos e a partir do qual experimentamos o mundo de coisas e relações do nosso dia a dia. Não para nos livrarmos delas, mas para delas nos apropriarmos e conquistarmos uma relação livre e criativa com as mesmas, com o nosso mundo. Ou seja, reencontrarmos o mundo como mundanidade e não somente as coisas dentro do mundo e nelas nos fixarmos ou nos movermos a partir dos limites e possibilidades que elas e esse mundo oferecem. Isso também quer dizer que podemos lembrar que esquecemos o ser da existência enquanto poder-ser, enquanto possibilidade: ser-aí é ser em busca do próprio ser enquanto poder-ser. Não 'é' enquanto presença e determinação, mas é no modo do poder-ser, ou seja, existência.

 

TEMPO E ANGÚSTIA

A compreensão do ser-aí como poder-ser, como possibilidade, nos remete para o fenômeno do tempo. O poder-ser extrapola o presente, o simultâneo, e exige e se abre para o futuro, o porvir, o ainda-não. O sair ao encontro no agora, 'aparecer', estar 'presente', são eventos que sucedem no mundo, a partir do modo do tempo presente. A crítica de Heidegger se dirige para a compreensão metafísica do "tempo orientada a partir do agora" (Heidegger, 1976, p. 194). Não pretende nenhum extra ou supratemporal, mas busca uma caracterização do tempo a partir do fenômeno ele mesmo, da temporalidade. Por isso um pensar na e a partir da finitude.

No cotidiano o tempo se entende a partir do agora e da sucessão de agoras, e foi por essa compreensão vulgar de tempo, 'tempo de agora', que fomos regidos até o presente. Um exemplo dessa experiência cotidiana do tempo, que "calcula os acontecimentos mundanos que saem ao encontro", é a "investigação teórica dos acontecimentos mundanos, simplesmente como acontecimentos em que há mudança de lugar [...]. Esta investigação do mundo que o calcula teoricamente é o descobrimento e a determinação da natureza" (Heidegger, 1976, p. 199). Entendemos a natureza na metafísica reduzida a uma relação de causalidade previsível e matematicamente detectável.

O pensar de Heidegger pretende diminuir o poder das determinações da cotidianidade, na qual nossa existência normal, seja ela ética, científica ou religiosa transcorre. Propõe a angústia (1998, § 40) como aquilo que nos traz de volta para nossa condição originária no mundo. Ela tem o poder de desarranjar a familiaridade e previsibilidade, de cortar as remissões naturais e óbvias dos envolvimentos. Na formulação de Dartigues, "a angústia permite, em suma, uma espécie de redução fenomenológica existencial: o que é reduzido, mas entre parênteses, são as significações banais e utilitárias do mundo" (2005, p. 117). O que sobra é a mundanidade do mundo, o ser-aí que se torna estranho para si mesmo, o espanto diante do mundo. Através da percepção da finitude, do seu ser-para-a-morte "o homem torna-se então lúcido e livre, desembaraçado da sedução dos interesses imediatos e do anonimato do 'se'" (Dartigues, 2005, p. 119).

O ser-aí se percebe temporal e envolvido na trama do tempo, existência finita. Reconhece que todos os seus envolvimentos e explicações também estão enraizados no fenômeno do tempo. Diz Dostal (in Guignon, 1993, p. 173), pelo fato do ser-aí ser temporal, também a sua capacidade de encarar as coisas de um ou outro modo acaba sendo temporal, assim como acontece com o entendimento de si mesmo e o entendimento do próprio ser. O horizonte para a questão do ser é o tempo. O ser-aí como ser-no-mundo é no tempo. E, por isso, "não há proposições, significados nem teorias atemporais. Tudo isso são modos de ser do Dasein, tão históricos e temporais quanto ele é" (Inwood, 2004, p. 82), que tem lugar no mundo enquanto mundanidade, não espaço físico, mas horizonte de significação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde que nascemos começamos a ansiar por conhecer as coisas, o mundo e também a nós mesmos. Podemos, inclusive, nos tornar pesquisadores e nos ocupar com algum aspecto ou recorte da 'realidade' e tomá-la como natural e óbvia, sem colocar em questão a aceitação de pressupostos que sustentam essa relação naturalizada com esse objeto que nos interessa. Tal é a 'atitude natural' que Husserl pretende superar com a fenomenologia. Nessa aceitação pretendemos que, ao dizer algo sobre nosso objeto de pesquisa, aquilo que dizemos faça sentido, que estejamos dizendo alguma verdade sobre o mesmo.

Talvez nossa pesquisa seja orientada por pressuposições, necessárias para que a pesquisa sobre o objeto avance e não fiquemos discutindo o acesso ao mesmo e as credenciais que temos em relação a ele, e esse é o modo de operar das ciências dos objetos, chamadas de ônticas. O que a fenomenologia de Heidegger pretende é fazer aquilo que normalmente não fazemos na nossa relação naturalizada com a realidade: pensar a própria realidade como realidade e as condições de possibilidade dos objetos e seus campos. É um retorno para o sentido prévio que já sempre carregamos numa cultura, numa linguagem, no conhecimento que temos, que são a condição do nosso acesso ao objeto.

Por isso, tornar o próprio acesso novamente problema é o que sua fenomenologia em sentido fenomenológico pretende. E estamos implicados radicalmente nesse acesso. Vem à luz o círculo no qual nos movemos, mas que estancamos na nossa busca por um lugar final e definitivo para ancorar nossos saberes. Estamos numa circularidade hermenêutica que nos enraíza na facticidade, na finitude. É como um jogo de velamento e desvelamento, onde aquilo que se desvela ocupa nossa atenção de tal forma que perdemos a consciência do que fica velado no desvelamento. Mas já escrevemos que esse velado não é o objeto ou dimensão dos objetos ainda não desvelados (e que podem vir a se tornar objeto), mas o não-objeto, aquilo que não se permite objetificação, mas é o horizonte necessário para que se possa determinar o objeto como objeto, ou seja, o sentido do ser, a mundanidade do mundo, a abertura compreensiva na qual o ser humano já sempre se encontra como ser-aí. A cotidianidade impessoal é o 'lugar' do ocultamento do ser, embora seja justamente o 'lugar' do desocultamento dos entes. Por isso a fenomenologia hermenêutica será um retorno para ao velado no desvelamento, mas sem a possibilidade de reduzi-lo a ente, sem poder circunscrever o horizonte de possibilidades e assim somá-lo com os demais entes. É entrar no jogo de ocultamento e desocultamento, voltar para a diferença ontológica no qual ele ocorre.

Essa circularidade não pode ser eliminada, mas podemos nos esquecer que nos movemos nela e isolar alguns princípios para servirem de suporte e assim fazermos de conta que nos situamos num lugar fora do tempo e história. A fenomenologia hermenêutica de Heidegger é um movimento de retorno para esse encontrar-se já sempre numa compreensão do que as coisas são ou não são, com a finalidade de assumi-la autenticamente e não eliminá-la. Assumir esse encontrar-se no mundo cria a possibilidade de libertar-se do movimento cego e automático que nos guia na cotidianidade. Neste sentido a fenomenologia hermenêutica de Heidegger pode nos ajudar nas ciências que tratam do humano a despertar a capacidade de lidar com os objetos, mas mantendo ao mesmo tempo a atenção para a abertura que permite os objetos e que sempre por eles é pressuposta. Isso para que reexperimentemos as coisas como elas se mostram e acontecem para nós.

 

Referências

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Notas sobre o autor

Cezar Luís Seibt. Graduado em Ciências Religiosas, Filosofia e Psicologia. Mestre e Doutor em Filosofia, com pós-doutorado em Filosofia. Docente do PPGP\UFPA e do PPGEduc\UFPA. E-mail: cezluse@yahoo.com.br.

 

Recebido:20/04/2018
Aprovado: 04/07/2018

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