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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.1 Belém jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04ens 

Ensaio

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10(1).n04ensaio31

 

A potência de cuidado no teatro dadivoso: diálogo entre teatralidades e a gestalt-terapia

 

The potencial care in the Generous Theater: dialogue between theatricality and a Gestalt Therapy

 

El poder de la atencióne nel Teatro Dadivoso: diálogo entre teatralidad y la terapia Gestalt

 

Andréa Bentes FloresI; Roberta Bentes Flores BaymaII

I Universidade Federal de Minas Gerais

II Faculdade Maurício de Nassau

 

 


RESUMO

Neste texto, apresentamos reflexões sobre a proposta do Teatro Dadivoso, especificamente o experimento cênico denominado "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?", enquanto potência de cuidado. A escrita, poética, é tecida na intimidade do espaço de encontro entre as autoras, seguindo a proposta do experimento sobre o qual nos dedicamos a pensar aqui, desenvolvendo compreensões situadas entre o campo teatral e perspectivas da Gestalt-Terapia, abarcando não somente aportes teóricos, como também afetos, relatos de experiências e memórias vivenciais, em uma tessitura de afetos, explicitamente situada na relação entre as autoras e seus campos de atuação. Consideramos o cuidado na perspectiva da atenção e desvelo com o outro, como dimensão fundamental à compreensão de si-no-mundo. Tecemos a percepção dos atos cênicos do Teatro Dadivoso como atos existenciais que ocorrem na relação entre as atrizes e o público. Concluímos que o encontro em acontecimento na aproximação entre as narradoras e os espectadores durante os atos existenciais, admitindo a evocação de indagações a respeito da vivência entre ambos, onde localizam o potencial cuidado e outras reverberações situadas entre o Teatro e a Psicologia.

Palavras-chave: Cuidado; Teatro Dadivoso; Gestalt- terapia; Encontro; Clínica ampliada


ABSTRACT

In this text, we feature reflections on the proposal of Generous Theater, specifically the scenic experiment called "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?", as a healing potential. The poetic writing is produced in the intimacy of the space of encounter between the authors, following the proposal of the experiment on which we are dedicated to think here, developing understandings situated between the theatrical field and Gestalt-Therapy perspectives, encompassing not only theoretical contributions, as well as affections, experiences reports and experiential memories, in a texture of affections, explicitly situated in the relation between the authors and their fields of action. We consider care into the perspective of attention and commitment to the other, as a fundamental dimension to the understanding of the self-in-the-world. We weave the perception of the scenic acts of the Generous Theater as existential acts that occur in the relationship between the narrator actresses and the public. We conclude by discussing the encounter that occurs in the approach between the audience and the narrator actresses during the existential acts, admitting the evocation of questions about the experience between them, where they locate the potential care and other reverberations among Theater and Psychology.

Keywords: Care; Generous Theater; Gestalt-therapy; Encounter, Extended clinic.


RESUMEN

Em este texto, presentámos reflexiones sobre la propuesta del Teatro Dadivoso, específicamente el experimento escénico denominado "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?", en cuanto potencia de cuidado. La escritura, poética, es tejida en la intimidad del espacio de encuentro entre las autoras, siguiendo la propuesta del experimento sobre el cual nos dedicamos a pensar aquí, desarrollando comprensiones situadas entre el campo teatral y perspectivas de la Gestalt-Terapia, abarcando no sólo aportes teóricos , como también afectos, relatos de experiencias y memorias vivenciales, en una tesitura de afectos, explícitamente situada en la relación entre las autoras y sus campos de actuación. Consideramos el cuidado en la perspectiva de la atención y desvelo con el otro, como dimensión fundamental a la comprensión de sí-en-mundo. Tejemos la percepción de los actos escénicos del Teatro Dadivoso como actos existenciales que ocurren en la relación entre las actrices y el público. Concluyemos discurriendo sobre el encuentro que ocurre en la aproximación entre las narradoras y los espectadores durante los actos existenciales, admitiendo la evocación de indagaciones respecto a la vivencia entre ambos, donde localizan el potencial cuidado y otras reverberaciones situadas entre el Teatro y la Psicología.

Palabras-clave: Cuidado; Teatro Dadivoso; Gestalt- terapia; Encuentro; Clínica ampliada.


 

 

DO QUARTO PEQUENO E QUENTE À SALA DE ENSAIO OU COMO COMEÇA ESTA ESCRITA?

Minha irmã e eu dividimos por muito tempo o mesmo quarto, pequeno e quente, nosso espaço de intimidade na casa dos meus pais, compartilhando confidências, brigas e alegrias. Quando ela saiu daquele quarto e foi morar noutra casa, eu sofri com a ausência. Mas também, confesso, senti certo alívio. Ela me requisitava para muitas coisas. Parecia tão frágil, que eu tinha medo de quebrar. E não sabia bem como juntaria as partes. Quando ela saiu, passados alguns dias, eu parecia ter ganhado liberdade. Ainda assim, continuamos melhores amigas, nos entendendo com um só olhar, mesmo sendo tão diferentes em muitas coisas (Flores, 2016, s/p).

As autoras deste ensaio dividiram, durante a infância, um quarto pequeno e quente, onde aprenderam a ser parceiras de vida. A história dessa relação é parte da dramaturgia do espetáculo "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?", em cujo processo de criação ambas estiveram envolvidas. Este ensaio atravessa a poética do espetáculo, o quarto quente e o palco teatral, nascido do (re) encontro entre as autoras, irmãs, artistas. Mais do que isso. Nosso desejo é habitar, em escrita, um espaço do entre, das interseções, entre Teatro e Psicologia, tal qual o que existe entre nós.

O espetáculo foi um experimento cênico desenvolvido ao longo dos anos de 2016 e 2017 pelas "Coletivas Xoxós", na cidade de Belém, PA. O processo partiu de um posicionamento político de ruptura com espaços convencionais para o acontecimento teatral, e com a ideia tradicional de uma plateia que o assiste. Concebido para realizar-se no espaço doméstico, no interior das casas, foi pensado como uma aproximação dadivosa entre atrizes e o público. Teatro que se quer à parte do padrão majoritário, mercantilista, institucionalizado, que inclusive recusa ser reconhecido como teatro, pretendendo ser ato, trabalho, encontro íntimo, um convite aos sentidos, como explicam Flores e Lima (2017).

Foi durante o processo de criação do espetáculo, que as autoras deste artigo se encontraram novamente em cena. Há tempos que havíamos deixado de dividir o mesmo quarto, há tempos também que não atuávamos juntas. Os caminhos de vida levaram a isso: enquanto uma seguiu vivendo de Teatro, a outra tornou-se Psicóloga, sem jamais abandonar sua paixão pela cena. Agora, dividindo a mesma sala de trabalho em teatro novamente, imergiram em um momento de revisitação delas mesmas e da relação, um reencontro. Mais do que isso, acreditam que o espetáculo proporcionou vários encontros, entre pessoas próximas e distantes, em seu desejo de fazer teatro dentro de casas residenciais, oferecendo cuidado.

Do encontro entre todas as pessoas envolvidas na criação cênica, foram concebidos dois atos cênicos: gratidão e transformação. As casas que abrigavam o espetáculo, a cada apresentação, decidiam qual ato gostariam de receber e qual seria o público, entre moradores daquelas casas, vizinhos, parentes e amigos. No ato de gratidão, as histórias, cânticos, orações e presságios que o compunham eram direcionados para o agradecimento, a celebração de uma conquista. No ato de transformação, o espetáculo era construído, com seus elementos, de modo a acionar relações de mudança, viradas, transformações. Entre cheiros, toques, cânticos, sonoridades e histórias de vida de nove atrizes-narradoras, que eram partilhadas no espaço doméstico das casas que se voluntariavam, acontecia o que passamos a denominar de Teatro Dadivoso, enquanto poética, modo de fazer criativo em operação no espetáculo, dedicado a ocupar-se do cuidado, do encontro, das trocas. Encontros, inclusive, entre nós duas.

Teatro Dadivoso é um termo nascido nas ideias do coletivo teatral que o concebeu. O desejo era encontrar modos de enunciação e fazer operar um acontecimento que potencializasse a intensidade do encontrar-se, no sentido do estar junto e cuidar do outro, a partir do cuidado das atrizes entre si mesmas. Wlad Lima e Ivone Xavier (2018, p.40), autoras de outro artigo sobre o processo de criação de "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?" e também criadoras do espetáculo, se referem à dimensão dadivosa dessa poética cênica a partir dos elementos que compõem os atos de agradecer e transformar, cujos entrelaçamentos, segundo elas, "fazem das pequenas práticas vivenciadas pelas 10 (dez) atrizes-narradoras um ato dadivoso, porque atua primeiro sobre cada uma, para depois atingir o outro".

Este ensaio objetiva propor um diálogo reflexivo a partir da prática de cuidado do Teatro Dadivoso, situadas no entre do campo teatral e da perspectiva da Gestalt-Terapia, enquanto abordagem da Psicologia fenomenológica-existencial, entre memórias vivenciais e aportes teórico-performativos. As discussões propostas aqui são, por esse motivo, fruto de (re) encontros, tessitura de afetos situada na relação entre as autoras e seus campos de atuação.

A escrita que propomos assume um caráter poético, performativo. Mais do que ordenamento de informações, o que se deseja no ato da escrita deste ensaio é a tessitura de um ato criador, como um acontecimento cênico, encenado no mote do reencontro entre as autoras. Aqui, miramo-nos face a face para um diálogo diante do público, leitores. A estratégia de escrita acontece na ficcionalização de uma cena dialógica entre as escritoras, expondo contradições, encontros e desencontros, entre pensamentos que atravessam o Teatro Dadivoso e seguem por outras reflexões possíveis, acionadas pelo processo, mas também situadas numa interdisciplinaridade, outro dos encontros que tornam essa escrita possível: o Teatro e a Psicologia.

O convite é para que o leitor se sinta testemunha deste acontecimento e tente acompanhar, pelas rubricas deixadas pelo caminho, a cena que se desenrola O termo "rubricas" é usado aqui referindo-se às anotações do autor do texto dramatúrgico tradicional, que insere comentários seus, com sugestões ou esclarecimentos sobre detalhes da cena escrita. Neste ensaio, os trechos em caixa alta entre colchetes cumprem esse papel. A escrita se mistura à cena e procura, ainda, compartilhar o modo de acontecer de "Ô, de Casa, Posso Entrar para Cuidar?", realçando o tom de conversa íntima, no modo de enunciar as ideias discutidas. É preciso, então, acompanhar esta escrita como quem participa de um espetáculo, ora inventado, ora real, nas relações entre dois campos deconhecimento comunicantes através do Teatro e das intimidades de vida de duas irmãs. As discussões intersticiais misturam-se ao prazer de escrever sobre uma experiência que viveram juntas, como outras tantas ao longo da vida, desde aquele quarto pequeno e quente.

 

DUAS CADEIRAS EM CENA

[HÁ APENAS DUAS CADEIRAS EM CENA. AS DUAS ATRIZES-AUTORAS SENTAM-SE UMA DE FRENTE PARA OUTRA. ENCARAM-SE, SILÊNCIO, SORRISO. UMA DELAS TOMA A FALA]

Lembras1 que ao longo do processo de "Ô, de casa, posso entrar para cuidar?", sabíamos que não estávamos inaugurando algo, ao propor uma relação entre Teatro e cuidado? Tudo naquela sala de trabalho era muito intenso, no contar de nossas próprias histórias e no ouvir as demais; mas havia algo ali, como uma imanência talvez, algo muito próprio do campo teatral. Arrisco dizer: talvez desde sua origem, se é que há origem.

Isso tem a ver com o teatro que acredito, que acreditamos, já que teatro é uma palavra plural e pode ser percorrida por diversos territórios. O que te falo é sobre encontros, acredito no teatro como lugar de encontros, nos quais a troca, a fronteira criada é a grande busca do acontecimento cênico, potencialmente transformador para todos os envolvidos, seja entre os atores, equipe técnica e espectadores, ou mesmo na relação da atriz consigo mesma. Talvez isto resuma o que quero dizer.

O fenômeno teatral nasce, no ocidente, situado entre o culto, a festa e um papel didático. O culto ao deus Dionísio se espalhou pela Grécia Antiga, mas foi na cidade de Atenas, por volta do século V a.C, que durante esses cultos ocorreram os festivais de tragédias. A cada ano, textos trágicos escritos por autores como Sófocles narravam a trajetória de heróis, a enfrentar os deuses, o destino e o confronto com suas paixões, enquanto ensinavam a toda a sociedade ateniense presente valores relacionados à religião e ao Estado. Aqueles momentos eram encontros sagrados, de intenso partilhar coletivamente emoções, aprendizados e formas de pensar a existência naquela sociedade (Berthold, 2011).

As situações por que passava o herói grego deveriam cumprir o papel de catarse ou expurgo das emoções, ao provocar temor e piedade, como explicou Aristóteles (384-322 a.C.). Esse era o efeito de uma boa tragédia e o operar desse efeito gerava uma identificação do povo com o acontecimento narrado ali (Berthold, 2011). Relembro essaversão oficial do início do Teatro no Ocidente para partilhar contigo uma sensação: parece que o teatro já nasce em íntima conexão com a espiritualidade do povo e como catalisador de emoções que contribuem para a vida cotidiana, a partir de um encontro singular que ocorre naquela ocasião. Percebo, já aqui, sua potência em alimentar algo como uma necessidade humana de compreender e celebrar sua existência.

O que quero dizer com isso é que o teatro nos lança em confrontos/encontros com nossas emoções. O herói grego não é somente alguém que ensina um modo de compreender o mundo e se relacionar com os deuses, mas é principalmente alguém em quem é possível ver a si mesmo, espelhar-se, compreender-se. Nesse sentido, talvez o teatro já tenha surgido no Ocidente- e aqui estou adotando a versão oficial das coisas, sabedora de que não é a única, nem a mais verdadeira- como lugar de encontros, gerador de conhecimento e, nesse sentido, de cuidado. Não pensas também que encontroe cuidado são palavras próximas?

[A SEGUNDA ATRIZ PENSA, SORRI, OLHANDO-LHE FUNDO NOS OLHOS]

Penso. O verbo cuidar origina-se etimologicamente dos verbos "cogitar", imaginar, pensar, com acepção extensiva ao ato de dar atenção ou ainda ter cuidado com a saúde. Originário do termo em latim cogitar e (Cunha, 1997). Em uma perspectiva fenomenológico-existencial apreende-se que, enquanto ação, o cuidado implica a consciência de si em relação ao outro, ato de responsabilidade e afeto direcionado ao outro ou a si mesmo (Pimentel, Vale & Flores, 2014).

Nesse sentido, compreende-se o cuidado como necessidade primária ao desenvolvimento humano, atitude facilitadora das aquisições processuais das funções motora, cognitiva e psicológica. Este entendimento afina-se ao que considerou Pimentel (2008, p.17): "O cuidado entre as pessoas é uma necessidade e uma atitude figural". Essa mesmo autora segue afirmando que, "(...) para crescer emocionalmente felizes, as crianças precisam de cuidadores e de alimentos psicológicos que satisfaçam suas necessidades afetivas, pois estas sustentarão a inserção social ajustada e criativa" (Pimentel, 2005, p.19).

Consegues compreender o que digo? A própria existência humana pressupõe o cuidado. Sem a atenção, o zelo, mediado pelo outro, não há vida humana, sobretudo nas primeiras horas, nos primeiros meses após o nascimento. Não foi o que as ciências biológicas amplamente já apresentavam ao sublinhar que o ser humano é o mamífero mais dependente para sobreviver? Precisamos ser alimentados, nutridos, orgânica e afetivamente, necessidade básica que se atualiza ao longo da vida, mas permanece continuamente (Pimentel, 2005).

Sigo a perspectiva gestáltica, abordagem teórica e metodológica da Psicologia, fundada por Frederick Perls, que propõe uma visão de humanos e de mundo baseada nos pressupostos filosóficos da fenomenologia existencial, voltada para a compreensão dos aspectos ônticos nas questões da existência; assim componho minha compreensão de vida e ancoragem teórica do meu fazer psicológico. É através dessa perspectiva que percebo a realidade a partir de um olhar holístico e contextualizado dos fenômenos psicológicos, entendendo as pessoas enquanto seres primordialmente relacionais. Ou seja, só existimos a partir e nas relações. Assim também apreendo que o sentido de cuidado reside no próprio encontro com o outro.

Quando rememoro meu envolvimento no processo de criação do experimento cênico "Ô de casa, posso entrar para cuidar", do que mais me recordo são os encontros, a roda de mulheres, o cuidado produzido nas ações de: dividir histórias e emoções com as outras atrizes-narradoras; amparar e ser amparada através de toques, canções e sabores a cada ensaio, a cada história narrada por uma de nós; o ato de contar e ouvir a minha própria história, que me permitiu o contato com o significado de relação com a minha avó. Até hoje me emociono ao lembrar que foi na sala de ensaio, no novo encontro com o teatro e com minhas parceiras de cena que me lembrei do nosso adeus e do quanto amava e amo, a minha avó2

Entretanto, creio que a expressão máxima de cuidado que o experimento cênico me proporcionou se revelou no período em que me afastei do processo, quando um dos meus filhos adoeceu. É preciso repetir a história que vivemos juntas, para que compreendam os que nos ouvem. Já que minha história tornou-se tua narrativa do cardápio de transformação, podes me ajudar?

[A PRIMEIRA ATRIZ SEGUE PARA O CENTRO DO PALCO E FAZ A NARRATIVA TAL QUAL PERFORMAVA DURANTE O ATO DE TRANSFORMAÇÃO, NAS CASAS]

Há cerca de quatro meses, o Robertinho começou a apresentar dificuldade para respirar e uma tosse insistente. Levaram uma semana para conseguir descobrir que havia uma pequena pneumonia no pulmão do meu menino. A pequena pneumonia rapidamente se alastrou e a bactéria corroeu quase todo o pulmão esquerdo do meu menino. Aí se iniciava uma batalha de mais de trinta dias de internação, entre apartamento, semi-intensiva e UTI. Minha rotina consistia basicamente em passar o dia no hospital ajudando minha irmã nos cuidados com ele e com ela. Voltar para a casa dela chorando no carro. Limpar as lágrimas na porta e entrar sorridente na casa para ficar com Antoninho, que me aguardava para brincar. Passei muitas madrugadas abraçada com ele na cama, enquanto ele chorava de saudade da mãe e do irmão. Pela manhã, começaria tudo de novo. Naquela noite, eu dormi no hospital. Minha irmã não aguentava mais de cansaço. Uma nova bolha havia se formado no pulmão do Robertinho. Se estourasse, começaríamos tudo de novo ou talvez nem pudéssemos começar... Desespero e tristeza ao longo da noite. De madrugada, tive vontade impor as mãos sobre meu menino, que dormia. E pedir a Deus que fizesse o corpo dele absorver o líquido da bolha por milagre. Fiz isso sem saber ao certo por que, durante um tempo que não sei dizer. No dia seguinte, a notícia: a bolha havia sumido. Eu olho para minha irmã, desta vez em um quarto de hospital. Mas os olhos que eu vejo não são mais quebradiços. São olhos de onça. Duas onças que se encaram, aprendendo a cuidar da cria. Às vezes se arranham e se mordem, porque eu preciso dizer não, se não ela volta a acreditar que é feita de vidro. Noutras, ela é quem precisa lembrar-me de dedicar meu tempo para entregar o fogo de cuidado e amor que arde dentro de mim. Esse fogo extravasa meu peito e invade a tua casa. Eu recebo a tua acolhida e te entrego o meu amor que cura e liberta. (Flores, 2016, s/p).

[AS IRMÃS SE ABRAÇAM. NÃO É UMA HISTÓRIA FÁCIL DE SER LEMBRADA. A SEGUNDA ATRIZ INICIA A FALA]

Novamente juntas em um quarto. Para minha surpresa, o motivo da minha saída do processo cênico, o meu sofrimento, foi dramaturgia para um novo encontro de cuidado com minha irmã e com minhas parceiras atrizes, pois a minha história, permaneceu em cena, nos atos de transformação e agradecimento ofertados nas casas que receberam o teatro dadivoso.

[A PRIMEIRA ATRIZ CONTINUA, JÁ QUE A VOZ DA SEGUNDA ESTAVA EMBARGADA]

Essa era para ter sido uma experiência apenas nossa, fechada em nossa família. Ali, entre aquelas mulheres, entretanto, tornou-se dor e alegria partilhada por todas. Por todas nós e por todas as casas onde estivemos. A história seguiu comigo e passou a habitar a experiência de outras pessoas, misturar-se com elas.

Para Grotowski3 (2010a), a plena realização do teatro ocorre quando há influência mútua e espontânea entre atores e espectadores e nisto reside a especificidade da teatralidade, a formação de uma comunidade viva, em que um ato mágico se processa entre todos os envolvidos. O autor fala em encontro de ensembles, termo que se aproxima do conjunto de experiências que forma os sujeitos, de difícil tradução para o português no contexto da fala desse diretor. Há algo de coletivo em cada ente que participa do acontecimento teatral. Nesse sentido, teatralidade, para ele, se define como:

o gênero estético que nasce no contato entre dois ensembles: o ensemble dos atores e o ensemble dos espectadores. [...] o espetáculo é a centelha que passa entre os dois ensembles. O diretor consciente coloca em cena, portanto, os dois ensembles (submete às operações da encenação o ensemble dos espectadores, não só o ensemble dos atores); aproxima-os reciprocamente, coloca-os em contato, em curto-circuito, em coatuação de modo que a centelha passe. [...] Procuro o fator que poderia atacar o 'inconsciente coletivo' dos espectadores e o dos atores, assim como acontecia na pré-história do teatro, no período da comunidade viva e aparentemente 'mágica' de todos os participantes da representação (Grotowski, 2010a, p.50).

Curto-circuito, coatuação, são termos que propõem uma aproximação tal entre o que acontece em cena e quem testemunha o acontecimento, que ultrapassa o entretenimento ou a mera fruição. Uma centelha passa, algo transita entre corpos no teatro que Jerzy Grotowski buscava e que identificava como ressonância das origens, o que ele considera pré-história do teatro, tempo dos cultos dionisíacos, de que eu te falava há pouco. O encontro promovido pelo teatro é, aqui, um ato mágico que ocorre a todos os envolvidos, ato capaz de afetar, entre duas existências que podem ser muitas: a coletividade que é o sujeito ator e a coletividade que é o sujeito espectador.

A mágica desse encontro, que fascinou e levou Grotowski a buscas em diversas direções, visando seu aperfeiçoamento, é, para ele, o princípio que distingue o teatro em sua singularidade. Teatro não é síntese de disciplinas. Teatro não é personagem, maquiagem, figurino. Teatro não depende, para existir, de cenários, palco ou área separada para o espetáculo. Essa arte acontece pela comunhão entre espectador e ator, relação viva, direta, palpável, em que algo de substancial e importante que passa nesse "entre" (Grotowski, 2010b). Algo que reverbera na vida, que afeta.

[A PRIMEIRA ATRIZ É INTERROMPIDA PELA SEGUNDA, QUE LHE ATRAVESSA A FALA, VIRANDO, TAMBÉM ELA, DE FRENTE PARA O PÚBLICO]

O "entre" é uma palavra que faz todo sentido para mim. A maneira como eu compreendo este mundo, é no entre que o encontro acontece: no entre de duas existências. É na fronteira. Segundo Perlset al (1997, p. 41-42) "A experiência se dá na fronteira entre o seu organismo (sujeito) e seu ambiente [...] em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação entre o organismo e seu ambiente" (grifo nosso)4 afirmar que "[...] seres humanos e sociedade constroem-se mutuamente nas relações, e, portanto, o que somos e fazemos tem sentido em nossos contextos existenciais".

Nesse sentido a compreensão de encontro e de "fronteira de contato" assumem caráter primordial para construção de modos de ser e existir dos seres humanos, segundo a abordagem psicológica da Gestalt Terapia. Perls, Hefferline e Goodman (1997) consideram que a função da fronteira de contato é a experiência, permitindo, na interação, a delimitação do eu em relação ao outro, o processo de assimilação do novo e de rejeição dos perigos.

Desculpe ter interrompido você, mas as coisas que dizias sobre o Teatro me trouxeram aproximações com meu outro campo profissional. Não consigo deixar de pensar na clínica, mesmo sendo artista. Não consigo pensar em outra maneira de significação de si e do mundo que não seja mediada pelo outro, no entre das relações - quaisquer que sejam-, em eterno e dinâmico processo de assimilação. Aliás, assimilação para a Gestalt Terapia é o processo dinâmico que ocorre na relação de diferenciação do outro e incorporação de sentidos para integração e re-integração continuada de nossa compreensão existencial (Perls et al, 1997).

É por isso que as intervenções clínicas sob enfoque gestáltico são pautadas na consciência intencional em fluxo, ou seja, a maneira como o cliente se percebe e se relaciona com o mundo (interno e externo), pela via do favorecimento ao processo do "darse conta". Este processo se realiza através da percepção e satisfação de suas necessidades, sejam fisiológicas, emocionais, transcendentais, entre outras. Pela via do "dar-se conta" é possível aos clientes, durante a psicoterapia, reorientarem o curso de suas vivências, através da atualização de situações inacabadas e/ou necessidades não plenamente satisfeitas.

[A ATRIZ AGORA DIVIDE SEU OLHAR ENTRE O PÚBLICO E A PARCEIRA DE CENA]

Acho que fui longe demais. Será que o público consegue perceber onde quero chegar, a importância do "entre" no "dar-se conta", ou, em linguagem gestáltica, o papel do encontro no processo de ampliação de consciência? Talvez se aproxime do que você estava falando, sobre afetação. É quando acredito que Teatro e clínica, ou melhor, Teatro e cuidado estão mais próximos do que imaginamos.

[HÁ UM SILÊNCIO BREVE. A PRIMEIRA ATRIZ LEVANTA-SE DA CADEIRA, ELA OLHA PARA BAIXO. JÁ NA BEIRA DO PALCO, EM MAIOR PROXIMIDADE COM O PÚBLICO QUE LÊ/ASSISTE A TUDO, ELA ERGUE OS OLHOS]

O que haveria nesse entre, nesse atravessamento mágico? Impossível descrever algo que se vive no próprio acontecimento efêmero, e que talvez seja da ordem do indizível. Você consegue dizer com exatidão o que ocorre entre nós e quem nos lê/assiste? Enquanto vivemos esta experiência, muitas intensidades atravessam nossos corpos e os deles, ou, como gostas de dizer, o que atravessa a fronteira de contato, capaz de gerar ampliação de consciência, voltada a uma espécie de novo modo de ser, mesmo que transitório. Mesmo sendo capaz de sentir isso, nunca me foi possível descrever com exatidão o que é.

Eu tendo a acreditar em coisas menores, da ordem do micro, potentes para fazer atravessamentos geradores de afetos. Algo próximo do mover de forças, de que trata Ferracini (2013), quando se refere ao que faz o corpo em cena. No teatro, o corpo move forças. Este autor fala de um corpo-em-arte-performativa, referindo-se a noções sobre atuação contemporânea, em que a ideia de performatividade radicaliza rupturas com as convenções teatrais tradicionais, preconizadas por reformadores do teatro, como o próprio Grotowski, por exemplo. A materialidade desse corpo que rompe com as formas tradicionais de teatro, e, com elas, da própria vida, é marcada por implosões, explosões, que atuam sobre opiniões estabelecidas, engessamentos, modelos, fissurando e reorganizando sentidos e sensações.

A ambiguidade das significações, o deslocamento dos códigos e os deslizamentos de sentidos são aspectos com os quais lida o atuador ou performer, como Féral (2015) prefere denominar o que conhecemos habitualmente apenas como "ator". Nesse sentido, o corpo-em-arte-performativa é uma intensificação poética que abre fissuras em forças estratificadas, liberando fluxos de força a pairar no que Ferracini (2013) denomina de campo de forças em atravessamento, forças relacionais. Este campo é capaz de produzirvontades e desejos, forças vitais, que circulam no encontro teatral, sempre em vias múltiplas, que envolvem também o espectador.

Forças vitais e relacionais. Seria isso o que está no "entre" e que talvez chamemos de cuidado? Penso que a ideia de criação desse campo complexifica o remexer das emoções. Não se trata apenas de ser remexido, mas de ser convidado a entrar no campo de forças e deixar-se fissurar, para reorganizar, ou para nada que tenha um nome definido, mas que seja da ordem do desengessar, sair do modelo. Acredito que isso vale para as formas artísticas, mas acima de tudo para a experiência humana do viver, da qual, já há algum tempo, a arte não está mais afastada, se é que um dia já esteve. A indistinção entre vida e arte, nos estados de comunhão e formação de campos de força compartilhados entre atuador e espectador, parece ser o que define o acontecimento teatral na contemporaneidade e eu tendo a percebê-la desde os cultos dionisíacos. Parece ser também a ideia mais próxima do que vivemos em "Ô, de Casa".

Em cada casa, acontecimentos, encontros potentes, geradores de campos de força, que convidam ao olhar e ao enfrentamento. Nossas histórias, cânticos, presságios, orações, cheiros, sons... O ato de comer junto. Tudo movimentava esse campo e, ao mesmo tempo, nesse campo. Eram, de fato, acontecimentos sagrados.

Peter Brook (2015) acredita que a qualidade sagrada do teatro reside em sua capacidade de fazer o invisível aparecer e que isto gera uma profunda influência em nosso pensamento. Diante da consciência que todos temos acerca do fato de que a maior parte da vida escapa aos sentidos, as artes oferecem configurações por meio das quais passamos a reconhecer o desconhecido ou o oculto. Nesse sentido, o autor instiga que o teatro deve ser um acontecimento que de fato atenda à fome do ser humano pelo invisível, como rituais que possam transformar a ida ao teatro numa experiência que alimente a vida.

[DE SUA CADEIRA, AINDA SENTADA, A OUTRA ATRIZ PEDE:]

Ouça-me um pouco.

[A PRIMEIRA ATRIZ, ENTÃO, SENTA-SE ONDE ESTÁ, NO CHÃO DO PALCO, DE FRENTE PARA A PARCEIRA E LHE ESCUTA]

Cada cântico, cada palavra dita pelas atrizes era um convite a rememorar outras histórias, outros vividos. Ouvir a minha própria história (re) contada, tanto a história do adoecimento do meu filho, quanto a que tratava da relação com minha avó, mobilizavam meus sentimentos em relação a essas experiências. No aqui-e-agora do acontecimento teatral, a releitura da minha história. E em cada semblante dos que estavam na casa,testemunhando tudo aquilo, choros, risos, afetações que me davam a impressão de que, de alguma forma, conectavam-se a outras memórias e outras releituras de suas próprias vivências. Esse acontecimento movia nossas forças, em potência de cuidado.

Como na relação terapeuta-cliente, sobre a qual falam Ribeiro (1997) e Yontef (1998), digo que no encontro estabelecido no aqui-e-agora do teatro dadivoso residia a expressão de cuidado que tem potencial de favorecer a ampliação de consciência do espectador/testemunha e das próprias atrizes. Embora estes autores pontuem o contexto psicoterapêutico como privilegiado para a ocorrência do contato pleno5, que favorece o processo de ampliação de consciência, também denominado de awareness6, valeria a pena investigar no que resulta o mover de forças que acontece no campo criado entre atores e espectadores. Este encontro me parece potente, no sentido de favorecer algum nível de ampliação de consciência e, por conseguinte, abertura de possibilidade à (re) significação de vivências. Acredito que o contato conduz ao maior e melhor conhecimento de si, posto que necessariamente ocorre no entre, na fronteira de contato, como já dissemos, e reverberam sensações e sentimentos, ou, como você gosta de chamar, afetações.

Assim, considero, potencialmente, que a expressão de cuidado, enquanto instrumento favorecedor de significação da existência, pode não ocorrer de forma única e exclusiva no contexto psicoterapêutico, mas também em outras relações, desde que pautadas no contato, no encontro, a exemplo do que acontece na perspectiva da clínica ampliada. Segundo Moreira, Romagnoli e Neves (2007), a clínica ampliada é um modelo de clínica compreendido como uma prática ética e política das intervenções, comprometida com a promoção da saúde e engajada na realidade social, presente em vários campos de atuação do psicólogo, não estritamente ao contexto psicoterapêutico.

Este entendimento, aproximado e em diálogo vívido com minhas memórias sobre a experiência com Teatro Dadivoso, corrobora para a compreensão do potencial de cuidado presente no teatro. Percebo, desde a concepção e composição do ato teatral, como um teatro de trânsito entre saberes, mas também performado a partir do contato, na fronteira de contato, entre as atrizes narradoras e o público, formado um campo de forças potente, capaz de produzir transformações, mudanças. Neste pensamento traço um diálogo com Ribeiro (1997, p.34): "A fronteira é o lugar privilegiado do encontro das diferenças. Quanto mais próxima é a fronteira, mais se concentram aí energias de proteção, mudança e transformação".

[A PRIMEIRA ATRIZ LEVANTA-SE E, ENQUANTO FALA, VOLTA PARA O CENTRO DOPALCO, VIRANDO-A DE FRENTE PARA A PARCEIRA DE CENA, QUE TAMBÉM LHE OLHA. ELAS VOLTAM A ENCARAR-SE FRENTE A FRENTE]

Lembrei de Antonin Artaud 7. Ele falava em teatro incendiário, violento como peste, cruel. O que ele parecia querer evocar era algo que acionava camadas mais profundas da própria maneira de conceber o ato teatral. Se o teatro deve provocar catástrofes é porque jamais pode domesticar-se sob a forma de acontecimento passivo, pautado na representação de formas dadas. Como um enorme desastre, o teatro convocado por Artaud reivindica para si a capacidade de acionar forças, de destruir e reconstruir, de fazer o novo. Seu papel seria o de nos colocar diante de conflitos, perturbando o repouso dos sentidos, pelo e no corpo.

[...] um teatro de sangue um teatro que a cada representação faça ganhar corporalmente alguma coisa tanto para aquele que atua quanto para aquele que vem ver a atuação, aliás não se atua, se age. O teatro é a gênese da criação. (ARTAUD, 2017, p.173-174).

 

ERA CENA OU ERA O QUARTO?

Não cabem mais rubricas. O espaço em que tudo acontecia já não é palco. Permanecem as cadeiras e as atrizes, mas já não há nada do que havia antes. Havia mesmo? As atrizes estão confusas, não puderam despedir-se do público, não puderam encerrar o espetáculo. Olham ao redor e logo percebem onde estão, onde talvez sempre estiveram ao longo desta performance: o quarto, o lugar dos primeiros afetos, da criação de vínculos fortes e potentes. Não o quarto real. O quarto talvez como configuração do campo de forças que as mantém tão próximas, a qualquer distância, ou que sustenta as aproximações propostas na discussão aqui. Campo instável, movente, que permite o permanente encontro entre as irmãs-autoras e diferente formas de compreensão do seus fazeres.

O quarto agora é configurado enquanto espaço de produção de um diálogo pulsante em que reverberam sentidos do que foi experienciado na sala de trabalho durante a montagem, no quarto do hospital enquanto cuidavam de sua criança e dos espaços das casas onde os atos existenciais ocorreram. A dinâmica performativa escolhida para reprodução da troca de impressões e elaborações teóricas entre as irmãs-autoras foi proposta como imagem do próprio processo de (re) encontro, (re) elaboração do vivido e do diálogo com leituras no campo das teatralidades e da perspectiva psicológica da Gestalt- Terapia. A reflexão sobre o experimento cênico "Ô, de Casa, Posso Entrar Para Cuidar?" foi mote para desvelar uma possível potência de cuidado expressa nesse modo de fazer teatral ao alcance dos sentidos e das emoções, teatro de troca, que toca atrizes narradoras e espectadores.

Nesse sentido, nos atravessamentos dos encontros entre os atos cênicos, visualizamos sentidos e aproximações com a compreensão de contato da clínica gestáltica. Nas afetações promovidas no "entre" o fazer teatral dos atores e as emoções/sensações evocadas nos espectadores prospectamos ações de cuidado localizadas nas fronteiras de contato. Na potência da arte teatral enquanto processo de expressão de infinitos modos de ser e existir, em constante diálogo com os espectadores, em constante (re) construção do próprio fazer artístico e compreensão de mundo, consideramos aberturas a insights e reconfigurações do vivido.

Não há propostas prontas e acabadas enquanto resultantes do processo reflexivo, mas projeção de caminhos. Prospectamos, assim, que Ô, de Casa, este escrito e suas reverberações favoreçam ampliação de sentidos e significados para o fazer teatral contemporâneo, em caminhos de ruptura com modelos tradicionais e possíveis engajamentos políticos, tendo como horizonte maior a divulgação da produção teatral paraense e sua contribuição significativa para o teatro brasileiro, mesmo em um estado tão carente de incentivos à cultura. Afinal, fazer teatro na casa das pessoas, compartilhando tantas intensidades, é também ato de resistência.

Na mesma medida, vislumbramos a possibilidade de outros estudos e análises do teatro e sua articulação com o campo psicológico, enquanto manejo em contexto da atuação em clínica ampliada ou no contexto psicoterápico, não apenas como recurso ou técnica válida como modo de expressão, mas percebendo o momento do fazer teatral como possível espaço de encontro, em seu potencial de cuidado e de favorecimento do contato entre pessoas e suas vivências, auxiliando processos reflexivos sobre a maneira de estar no mundo, ainda que não substitua a psicoterapia no processo de ampliação da consciência relacional.

Não há cortinas a serem fechadas, não há aplausos. Seguem os diálogos possíveis e, principalmente, os encontros.

 

Referências

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Notas sobre os autores

Andréa Bentes Flores. Atriz, palhaça, diretora de teatro e terapeuta ocupacional na cidade de Belém, Pará. Professora da Escola de Teatro e Dança (ETDUFPA). Mestre em Artes pelo PPGArtes/ICA/UFPA. Doutoranda em Artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (PPGArtes/EBA/UFMG). E-mail: flores_terapeuta@yahoo.com.br.

Roberta Bentes Flores Bayma. Psicóloga, atriz e palhaça na cidade de Belém do Pará. Psicóloga da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH). Psicóloga clínica. Professora da Faculdade Maurício de Nassau Belém. Especialista em Psicologia Jurídica (UMANA). Mestre em Psicologia (UFPA). E-mail: florespsi@gmail.com.

 

Recebido: 15/04/2018
Aprovado: 04/07/2018

 

1 Ao longo deste ensaio utilizaremos a primeira pessoa do singular e do plural deixando clara a expressão subjetiva e performativa das autora2 Referimo-nos, aqui, a uma das histórias experimentadas em sala de ensaio, na qual Roberta Flores construiu uma narrativa acerca de sua relação com a avó. A história seguiu sendo contada pela atriz Sônia Alão, entremeada à sua própria experiência com a avó, no ato de Gratidão que foi encenado pelas casas.
2 Referimo-nos, aqui, a uma das histórias experimentadas em sala de ensaio, na qual Roberta Flores construiu uma narrativa acerca de sua relação com a avó. A história seguiu sendo contada pela atriz Sônia Alão, entremeada à sua própria experiência com a avó, no ato de Gratidão que foi encenado pelas casas
3JerzyGrotowski foi um diretor de teatro polonês, considerado uma figura central do teatro no século XX.
4 Esta citação foi retirada de uma tradução brasileira da obra "Gestalt-Terapia", escrita por Frederick Perls e colaboradores, em meados dos anos de 1970. Esta obra está situada no início da formulação da Gestalt-Terapia enquanto abordagem da Psicologia, por isso ainda estavam presentes termos com forte influência organicista. Na atualidade, a proposta gestáltica parte de um entendimento dialético da relação entre o ser e as relações estabelecidas.
5 Para Jorge Ponciano Ribeiro (1997) o contato pleno é mobilizador, envolvendo intencionalidade e responsabilidade.
6 Palavra sem tradução exata para a língua portuguesa. Caracteriza-se pela forma de experienciar estando em contato pleno com meio do ponto de vista motor, sensorial, emocional, cognitivo e energético (YONTEF, 1998).
7 Antonin Artaud foi um teatrólogo francês, reformador do teatro na primeira metade do século XX.

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