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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.10 no.3 Belém Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n03artigo34 

ARTIGOS: DOSSIÊ "Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica na atualidade: conceitos e temas"

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol10.n03artigo34

 

A essência da psique na fenomenologia de Husserl e a sua redireção em Merleau-Ponty

 

The essence of the psyche in Husserl phenomenology and its redirection in Merleau-Ponty

 

La esencia de psique en la fenomenología de Husserl y su rediración en Merleau-Ponty

 

 

Rui de Souza Josgrilberg

Universidade Metodista de São Paulo

 

 


RESUMO

O objetivo central do texto é retomar a questão sobre o sentido da psique e os esforços de Husserl e Merleau-Ponty para superar o dualismo entre o sensível e o inteligível. Depois de analisar a questão em Husserl, especialmente na Crise das Ciências Europeias e Fenomenologia Transcendental, abordamos o tema através da extensão que Merleau-Ponty impõe à noção husserliana de "intencionalidade operante" e a proposta de uma reabilitação ontológica do sensível. Como resultado, temos uma caracterização da psique que passa por uma constituição não transcendental, mas por uma abordagem genética de nossa relação com os sentidos e sua modulação pela psique cuja manifestação originária ocorre na materialidade do sensível. A psique é descrita como uma relação e modulação de sentido e significados, com outros, com a constituição e sedimentação, individual e social, do mundo da vida vivido em situações particulares.

Palavras-chave: psicologia; fenomenologia; psíquico


ABSTRACT

The central point in the text is to recall in mind the question about the sense of the psyche and the efforts of Husserl and Merleau-Ponty to overcome the dualism between the sensible and the intelligible. After analyzing the question in Husserl, especially in the Crisis of the European Sciences and Transcendental Phenomenology, we deal with the theme trough the extension that Merleau-Ponty inflicts to de husserlian notion of "operating intentionality" and the proposal of an ontological rehabilitation of the sensible. As a result we have a characterization of the psyche that passes through a non transcendental constitution, not exclusively through the conscience, but trough a genetic approach of our relation to senses and its modulation by the psyche which has its original manifestation occurring as a sensible materiality. The psyche is described as a relation and modulation of meaning, with others, with the constitution and sedimentation, individually and socially, and concretely lived the life-world.

Keywords: Psychology; Phenomenology; psychic.


RESUMEN

El objetivo central del texto es retomar la cuestión sobre el sentido de la psique y los esfuerzos de Husserl y Merleau-Ponty para superar el dualismo entre lo sensible y lo inteligible. Después de analizar la cuestión en Husserl, especialmente en la Crisis de las Ciencias Europeas y Fenomenología Trascendental, abordamos el tema a través de la extensión que Merleau-Ponty impone a la noción husserliana de "intencionalidad operante" y la propuesta de una rehabilitación ontológica de lo sensible. Como resultado, tenemos una caracterización de la psique que pasa por una constitución no trascendental, sino por un abordaje genético de nuestra relación con los sentidos y su modulación por la psique cuya manifestación originaria ocurre en la materialidad de lo sensible. La psique es descrita como una relación y modulación de sentido y significados, con otros, con la constitución y sedimentación, individual y social, del mundo de la vida vivido en situaciones particulares.

Palabras-clave: psicología; fenomenología; psíquico.


 

 

INTRODUÇÃO

A caracterização da psique tem sido uma preocupação constante de filósofos e psicólogos. Um dos obstáculos mais difíceis é a tradição dualista na cultura ocidental, um dualismo insinuante, insidioso, persistente, ardiloso. Ele se reintroduz em muitas das tentativas de superá-lo. Nosso propósito é repensar a questão seguindo a trilha aberta por Merleau-Ponty que procura pensar o impensado de Husserl. A proposta deste filósofo (e psicólogo) pode ser sintetizada em sua conhecida expressão de reabilitação ontológica do sensível. Ele promove uma ampliação considerável da "intencionalidade operante" proposta por Husserl. Essa perspectiva implica a reabilitação do sentir, reabilitação do sentido como correlato do sentir, e toma o corpo como base de uma estesiologia geral.

Tanto Husserl como Merleau-Ponty, ambos desenvolveram uma relação muito especial com a psicologia. Husserl começou sua vida filosófica com a psicologia. Fez um esforço enorme para encarnar a consciência e, através da constituição passiva colocou o sensível, o corpo, a matéria, a cultura, na base da constituição do sentido. Os resultados e a riqueza desse movimento husserliano são reconhecidos e continuam a produzir resultados. O conceito de mundo-da-vida, elaborado desde as Ideias I (1913), pode ser visto como a síntese desse processo. Entretanto, Husserl reservou o lado criativo da constituição para a consciência transcendental. Para muitos discípulos a decepção foi ver todo um resgate promovido por Husserl ser despojado de valor de sentido próprio, por remissão final de tudo à subjetividade transcendental anônima.

Desde seus primeiros estudos sobre a aritmética e sobre a lógica, sua porta de entrada foi dada pela psicologia brentaniana. Esses estudos foram decisivos. A oposição ao positivismo e ao empirismo aconteceu basicamente na arena da psicologia. Quando propõe a ideia de uma lógica pura e a economia do pensamento desconstrói vigorosamente o psicologismo empirista e a ciência positivista. Sua primeira ideia de fenomenologia foi próxima da psicologia descritiva (até às Investigações Lógicas). Na ideia de fenomenologia seguinte ele incorpora a experiência cartesiana de um ego, de um ego encarnado ainda iluminado por considerações psicológicas, mas já de "outra psicologia" que nasce com a nova ideia de fenomenologia. Na origem da fenomenologia temos uma atitude dupla no modo de pensar a relação com psicologia: uma, por separar a fenomenologia de toda espécie de psicologia (recusa de qualquer traço de psicologismo); outra, considerando ambas como ciências irmãs, uma necessitando da outra para mutuo reconhecimento (p ex., na Crise das Ciências Europeias e Fenomenologia Transcendental).

O começo fenomenológico-psicológico tem sua expressão nas Investigações Lógicas, de 1900-1901. A relação da psicologia com a fenomenologia é de natureza especial (distinta da relação da fenomenologia com as outras ciências). Há uma "diferença abissal" entre outras ciências e a psicologia apriórica, considerada como a "eidética da subjetividade transcendental" (Husserl, 1976, p.297). Com a priorização da subjetividade cartesiana, Husserl não admite nada a não ser a constituição de todas as coisas com sentido nessa subjetividade. A subjetividade assume o caráter transcendental de uma esfera fundante e absoluta. O problema passa a ser a relação da subjetividade transcendental com a subjetividade mundana (empírica) da psicologia, essa situada e encarnada. Husserl recorre à uma revisão da relação com a psicologia. Sua vida acadêmica foi marcada por cursos e referências à psicologia no esforço de precisar a relação entre as duas subjetividades correlatas. A obra de Husserl conserva o diálogo com a psicologia até sua última obra publicada em vida, suas conferências de Praga, que apareceu com o título A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental1 (Husserl, 1936).

A psique será para Husserl o lugar de uma experiência com duas faces, uma transcendental e outra mundana. A questão do ponto de vista da psicologia é esclarecer como convivem estas duas faces diante da atitude do psicólogo voltada para pessoas concretas e que parecem ater-se quase que exclusivamente à face mundana do comportamento humano.

Tomaremos alguns parágrafos da Krisis como base de nossa reflexão. Essa obra publicada com uma série de complementos e apêndices retoma em boa parte o debate com o psicologismo, mas com a valoração positiva da proximidade entre fenomenologia e psicologia. Os §§18-21 discute a confusão psicologizante do puro ego cartesiano, este duramente reconquistado graças à epoché. Segue a discussão com o empirismo inglês nos §§ 22-24; o conceito de transcendental de Kant colocado em oposição ao conceito de transcendental que guia Husserl (§§25-27, que trata dos fundamentos e origens do conhecimento). Todo o restante da Krisis publicada recebeu o título geral e significativo de "Clarificação do problema transcendental. A função que no contexto recai sobre a psicologia" (Husserl, 1976, §§ 28-73, Parte III). O que significa que a maior parte do livro é uma discussão que passa pela psicologia (discussão agora fortemente mediada pela ideia do mundo-da vida).

A análise que fazemos da psicologia na Krisis serve de apoio para estudarmos a questão através da rediscussão da ideia de sentido e de sentir na fenomenologia, adiantada em muitos aspectos por Merleau-Ponty.

 

HUSSERL E A PSICOLOGIA NA KRISIS

O quadro que visa o objeto, os métodos, a gnosiologia e a epistemologia da psicologia é tema de discussão interminável. Embora a fenomenologia tenha agregado elementos novos fundamentais, não foi capaz de pôr fim às recorrentes perguntas que povoam a mente de psicólogos fenomenólogos. Husserl atribui essa inquietude à ambiguidade e ao paradoxo inerente da psique.

No §53 da Krisis, Husserl enuncia sinteticamente o paradoxo (inerente à subjetividade humana): trata-se de ser ao mesmo tempo (mais que em outras ciências do humano) sujeito para o mundo e objeto no mundo. Ou, de outro modo, "como uma parte integrante do mundo, a subjetividade humana contida por ele, pode ela, a subjetividade, constituir o mundo inteiro na constituição e formação intencional?" (Husserl, 1976, p. 204). A questão se agrava na fenomenologia, pois a épochè não permite tratar a objetividade sem a presença do subjetivo. De pronto, acrescenta que "a nossa objetividade não é aquela dos psicólogos" (Husserl, 1976, p.203). Para Husserl a psicologia não começa com a objetividade de uma natureza já dada ou de uma experiência científica onde só vale o que cai sob o controle operacional de realidades externas. Só sob o regime da époché o pai da fenomenologia admite buscar uma resposta para a questão. Ou seja, a possível resposta não se encontra na psicologia até então praticada. Torna-se imperativo uma psicologia fenomenológica para responder à questão do sentido da psique.

Os parágrafos seguintes da obra são dedicados à resolução do paradoxo e a desdobrar as consequências. Para a resolução Husserl descortina a visão transcendental de uma comunidade de egos (intersubjetividade transcendental constitutiva do mundo) na qual meu ego tem em comum as condições transcendentais de redução. Todos os egos estarão alinhados aos princípios universais e a priori do mundo-da-vida e buscam realizar as direções e os valores que marcam o fluxo teleológico do tempo. O mundo-da-vida constitui o limite de minha capacidade de redução e é constituído pelo ego transcendental anônimo. O fato de estabelecer um limite da redução não diminui em nada a abrangência constitutiva da subjetividade transcendental. Nada cai fora da constituição transcendental na fenomenologia estritamente husserliana. A fenomenologia genética receberá uma derivação na fenomenologia generativa nas relações de transmissão da cultura e do mundo-da-vida entre gerações. Husserl radicaliza no reconhecimento da constituição passiva sem abdicar o mínimo de sua constituição subjetiva.

A visão transcendental "não apenas assegura a objetividade, mas a compreende" (Husserl, 1976, p. 215). Essa retrocompreensão é responsável, segundo Husserl, pela automeditação mais radical da subjetividade operante (leistenden Subjektivität, Husserl, 1976, 216; cf texto original, 1954, p. 193). A compreensão dessa "subjetividade operante" é que, teoricamente, deveria fornecer ao psicólogo científico e terapeuta o objeto de sua preocupação. A subjetividade operante, como a intencionalidade operante, abrange as regiões mais profundas da encarnação do ego e suas relações de sentido com o mundo. A "subjetividade operante" inclui todo o leque das operações que envolvem o comportamento humano como a apropriação, o conhecimento, o sentimento, o instinto, e toda afecção, a fala e a expressão, o voluntário e o involuntário, a relação aos valores e aos outros, os aspectos passivos e ativos, bem como os aspectos criativos do ser humano, etc. Embora o texto husserliano não vise responder à pergunta do psicólogo propriamente (sua preocupação é com a ciência europeia de um modo geral), a inseparabilidade que a fenomenologia revela em relação à psicologia, acaba tendo implicações essenciais para a compreensão da psique mesma. Ela deve levar à compreensão do puro psiquismo em geral (Husserl, 1976, p. 283). A compreensão do psiquismo em geral é essencial para a fenomenologia e para a psicologia. Tanto a psicologia como a fenomenologia constitui um campo de decisões (Husserl, 1976, §58) e operam como irmãs siamesas. Toda separação será, segundo Husserl, fatal. Ambas dependem da compreensão do psiquismo operante ou do psiquismo que sustenta a compreensão do comportamento humano desde suas bases passivas mais profundas até às decisões voluntárias baseadas em apropriação de sentidos. Além da operação paradoxal de relação ao mundano e ao transcendental, a subjetividade transcendental detém a constituição que escapa à subjetividade do dia a dia.

Para Husserl entre a fenomenologia transcendental e a psicologia fenomenológica existe uma relação de remissão mútua. Ambas abrem o acesso ao si mesmo. Em última instância, a fenomenologia transcendental e a psicologia fenomenológica se recobrem ainda que parcialmente. Uma psicologia de fatos é para Husserl uma contradição por suprimir a condição essencial da psique, isto é, a essência do psíquico é de nunca ser exclusivamente objeto. Husserl resume sua investigação do seguinte modo:

O resultado surpreendente de nossa investigação pode ser expresso assim: uma psicologia pura como ciência positiva, uma psicologia que queira estudar universalmente os seres humanos viventes no mundo como fatos reais, assim como fazem as outras ciências positivas, ciências da natureza ou ciências do espírito – tal psicologia não existe. Existe somente uma psicologia transcendental que é idêntica à filosofia transcendental (Husserl, 1976, §72, p. 289).

Mas, Husserl faz uma observação restritiva a essa conclusão. Trata-se de uma psicologia que quer ser plenamente consciente dos seus princípios. Nenhuma psicologia será consciente de suas bases sem "tratar da questão que visa à pura essencialidade própria do ser psíquico" (Husserl, 1976, p. 289). A psicologia, especial entre todas as ciências em relação à fenomenologia, paga um preço por isso: o sentido delimitado por fatos só adquire sentido por uma visão que engloba nossa consciência-do-e-no-mundo. Nossa subjetividade particular adquire sentido em dependência a uma subjetividade transcendental. "Então a pura psicologia é por si mesma idêntica à filosofia transcendental enquanto ciência da subjetividade transcendental" (Husserl, 1976, p. 289). Nessa perspectiva estamos imbricados numa consciência transcendental, responsável em última instância por todo sentido que pode ser atribuído ao mundo e ao ser humano. Para Husserl toda vida do ego, individual, comunitário, ou universalmente intersubjetivo, todo ego possui uma relação de originariedade e uma fonte na qual estamos "ontologicamente implicados" (Husserl, 1976, p.290). A psicologia bem fundada sabe que não pode se desvestir inteiramente da subjetividade que lhe é essencial. Essa é sua riqueza incomparável e seu limite e, para alguns, sua fraqueza inerente. Deixarse levar pelo puramente objetivo como dado suficiente significa "baratear a psicologia" (Husserl, 1976, p.290). A psicologia, então, deve estar à altura da complexidade e riqueza de sua essência. Somos uma comunidade de sujeitos individuais dentro de uma comunidade centrada numa subjetividade transcendental anônima.

Para Husserl (1976) a psicologia se instala como ciência sob a perspectiva de uma atitude transcendental geral habitualmente submersa em sedimentações tradicionais de sentidos irrefletidos e que necessitam da reflexão fenomenológica para se manifestarem. Não se trata mais da correlação sujeito-objeto. Trata-se do reconhecimento da correlação transcendental como porta de entrada para o conhecimento simultâneo de si e do mundo. Para isso, a redução transcendental é necessária e sem o que a correlação permanece no nível mundano. Em síntese, a psicologia e a filosofia são dependentes, na perspectiva husserliana, do reconhecimento transcendental da fonte constituidora de sentido. Citamos um parágrafo relativamente longo, mas interessante por mostrar a visão de Husserl sobre seu próprio caminho em face de reações e críticas negativas:

Assim, reconhecemos que é uma ingenuidade permanecer na perspectiva antropológica mundana da correlação sujeito-objeto e interpretar erroneamente o que foi mostrado fenomenologicamente nos meus primeiros escritos como sendo um resultado daquela correlação. Isso mostra apenas a cegueira que se tem para os grandes problemas do paradoxo segundo o qual o ser humano, e a humanidade toda, é uma subjetividade para o mundo e, ao mesmo tempo é um objetivamente mundano. O mundo é aquilo que tem sentido e sempre adquire para nós sentido novo – sentido e validade na vida concreta. Isso é igualmente verdade que, nosso ser próprio humano [subjetivo] precede o ser do mundo em relação ao conhecimento – o que não quer dizer que nós o precedemos quanto à efetividade de ser mundano. Mas a correlação transcendental entre a subjetividade que constitui o mundo na vida transcendental e o mundo mesmo, enquanto mundo antecipadamente constituído se mantém como polo ideal na comunidade de vida da intersubjetividade transcendental, não é a mesma correlação que se desenrola no mundo mesmo, na vida mundana repleta de enigmas. Na concreção da intersubjetividade transcendental, em sua textura viva e universal, o polo e o sistema de polos individuais, que chamamos mundos se encontram incluso como objetividade transcendental exatamente como qualquer intencionalidade é incluída com sua objetividade própria e que é simplesmente inseparável da concreção relativa dessa intenção. Todas as discussões sobre idealismo e realismo não chegaram, até aqui, à verdadeira raiz do problema que está por trás de todas as teorias do conhecimento, raiz sempre buscada, nunca descoberta; elas não perceberam a redução transcendental em seu sentido difícil de porta de entrada do verdadeiro conhecimento de si e do mundo (§72, p. 294-295).

No texto acima destacamos cinco pontos:

1. O paradoxo (já apontado anteriormente) é retomado na diferença entre a subjetividade transcendental que constitui o mundo (e, portanto, precede o mundo em sua constituição), e a subjetividade concreta repleta de enigmas que vive mundanamente no mundo (vida vivida do cotidiano);

2. A correlação tradicional sujeito-objeto escamoteia o sentido da psique, especialmente por bloquear a compreensão da subjetividade humana; a unidade última é dada na subjetividade;

3. A intencionalidade prática e cotidiana de nossa subjetividade se dá de modo incluso "um no outro" na subjetividade transcendental;

4. A discussão sobre realismo e idealismo é um falso problema da teoria do conhecimento (que se baseia na relação sujeito-objeto apontada no início do parágrafo);

5. O mundo para nós é o mundo que tem sentido para a vida humana – sentido e validade. Só o mundo-sentido é capaz de nos atingir pela constituição transcendental de sentido. Tudo em nós tem que receber sentido, até o absurdo ou "sem-sentido".

Evidentemente o texto testemunha que Husserl tem mais interesse na subjetividade transcendental que na subjetividade factícia ou mundana. O paradoxo da unidade subjetiva que une a diferença do transcendental e do mundano deve ter consequências importantes para a fenomenologia e para a psicologia. A unidade subjetiva encaminha uma atitude geral idealista em relação ao mundo. Uma atitude que começa por uma universalidade do humano e suas condições a priori, como as condições de aprioridade do mundo-da-vida. Mas, é a vida vivida concretamente que se desdobra em mundos de sentido, incluída numa unidade superior unidade subjetiva transcendental. Para Husserl, a teoria do trabalho terapêutico do psicólogo fenomenólogo necessita de uma mediação dessa dualidade paradoxal. Nesse mesmo §72 Husserl pergunta pela utilidade dessa visão transcendental do psicólogo em seu trabalho concreto de acompanhar outras pessoas (Husserl, 1976, p. 295). O seu interesse, reconhece Husserl, não é a interioridade transcendental (ainda que essencial para o reconhecimento da psique humana). O psicólogo visa prioritariamente, na sua atividade terapêutica, a subjetividade mundana. "Ora, para isso, escreve Husserl, basta o primeiro nível da épochè e da redução, que não reconhecemos ainda como o nível constituinte da èpochè e as reduções propriamente transcendentais, dito de outro modo, a automeditação de um nível mais elevado" (Husserl, 1976, p.295). O psicólogo na sua atividade precisa reconhecer o que tem validade para os outros em suas experiências comandadas por interesses e motivações da vida concreta. Ou seja, para uma psicologia com interesse prático ou terapêutico, mesmo sendo uma ciência especial, tendo como referente a subjetividade mundana, a fenomenologia eidética é suficiente. Toda teoria psicológica tem os conceitos revisados fenomenologicamente, isto é, o sentido essencial e as categorias do comportamento humano entram em um modo existencial de relação. Os componentes motivacionais e o interesse existencial passam para o primeiro plano, e as inter-relações do cotidiano ganham importância tal, que as necessidades existenciais se sobrepõem relativamente à perspectiva transcendental. O mundo-da-vida, de constituição transcendental, desemboca em uma estrutura interpretativa do eventual. A fenomenologia psicológica tende ao aspecto antropológico e hermenêutico. O que, segundo Husserl, desperta "velhas tentações" (Husserl, 1976, p. 295). Para escapar às "velhas tentações" o psicólogo deve dispor da psicologia transcendental como último enquadramento da psicologia eidética (Husserl, 1976, p. 297). Em última instância tudo o que é comportamento mundano tem o seu correlato transcendental, e faz parte do grande movimento da subjetividade transcendental que comanda as possibilidades e as realizações temporais. De qualquer modo, a psicologia como ciência especial, parece mais propensa a sofrer mais com o paradoxo central e carrega a húbris da condição humana em relação ao sentir e ao conhecer (Husserl, 1976, p. 298).

O último parágrafo de A crise da ciência europeia e a fenomenologia transcendental, o § 732 argumenta a necessidade última do racional transcendental como condição de toda filosofia. Para o fundador da fenomenologia o único caminho capaz de garantir a racionalidade forte, a ideia de liberdade, a compreensão de si, e a ideia de um sentido para o mundo e para a história, é o caminho da vida transcendental. A psicologia transcendental, assim como a fenomenologia transcendental, são as duas irmãs responsáveis pela autoefetivação da razão como automeditação da humanidade (Cf. Husserl, 1976, § 73). Husserl vê a filosofia fenomenológica como uma necessidade terapêutica da humanidade na era da ciência e da tecnologia, assim como vê a psicologia analogamente atendendo as necessidades terapêuticas das pessoas vivendo em comunidades e intersubjetividades concretas e em luta com o sentido do mundo e da vida. Enfim, para Husserl a essência da psique só pode ser compreendida em seu sentido último se o comportamento humano for visto pela atitude geral providenciada pela fenomenologia transcendental. A psique é vista como local da determinação intencional do sentido, mas com o sentido constituído transcendentalmente e paradoxalmente praticado em situação concreta de tempo e espaço.

Para alguns estudiosos da fenomenologia Husserl sofre com resquícios do dualismo que separa o sentir material do que é o inteligível da razão. Merleau-Ponty atribui a Husserl um impensado: o sentir e o sensível foram despojados de serem modos ontológicos de modalização do sentido. Os desdobramentos da fenomenologia do filósofo francês é basicamente o pensar esse impensado como primeira fonte de sentido.

 

A PSIQUE E A RELAÇÃO DE SENTIDO

Já indicamos o mérito da fenomenologia, desde seus primórdios, de chamar a atenção para a questão do sentido o que levou a fenomenologia, em muitas de suas derivações, à hermenêutica. A relevância da questão do sentido é central. Porém, o tratamento que recebe restringiu-se tendenciosamente aos estudos da linguagem (na semântica, por exemplo); isso revela o limite dessa preocupação ainda que tenha tido grande espaço nas investigações das últimas décadas. Porém o sentido hoje desperta progressivamente a atenção de pesquisas importantes que vão além da linguagem e além da consciência.3 A pergunta pelo sentido além da linguagem me parece absolutamente decisiva para a descrição da essência da psique.

As Investigações Lógicas de Husserl trazem como condição preliminar a questão da expressão e da significação, a intenção de significar, doar e preencher sentido. A transição do volume I para o volume II nessa obra reflete esse impulso inicial: como o sentido é alcançado e como chega à expressão e qual a relação dessa expressão com a essência (ontologia) e com sua forma lógica? A 1ª. Investigação leva o título de "Expressão e significação". A condição preliminar do sentido é da essência da própria fenomenologia (também da psicologia).

Entretanto, o tema foi desenvolvido de modo a suscitar muitas indagações e críticas. Inicialmente o sentido foi reconhecido como matéria do ato intencional. Mas, Husserl, a partir das Ideias I reinterpreta esse momento do conteúdo do ato intencional em termos de noema e como correlato da noesis. Como sentido noemático ele é remetido de imediato à consciência transcendental e apropriado somente em parte pela consciência em relação com o mundo e com as situações de vida. Em uma ou outra a questão do sentido ficou restrita à consciência. Isso reintroduziu sub-repticiamente um dualismo entre consciência portadora e doadora de sentido e o mundo sensível; os dados hiléticos foram reduzidos a uma impressão não-intencional e dependente da animação através de sentido doado pela consciência. O dualismo do sensível e do inteligível reaparece entre consciência e o externo à consciência. Todo caráter objetal é retirado do dado hilético, reduzido ao momento impressional. O sentido é visto como um ato de doação onde a participação do sensível é base de receptividade do ato intencional que anima a hylé. A objetalidade vem por acréscimo dado pela consciência. Esse dualismo de novo tipo gerou uma discussão sem fim entre os seguidores de Husserl, aqueles que adotam a perspectiva transcendental da consciência e a maioria dos discípulos que recusaram a constituição transcendental do sentido. Para esses, trata-se ou de ampliar a ideia de noema além da consciência ou de desconstruí-la.

Uma concepção do psíquico fundada na intencionalidade da consciência detentora da doação de sentido em face experiências hiléticas estéreis, totalmente dependentes de uma animação transcendental, deixa muitas perguntas. Por outro lado, se a estrutura da psique se forma na relação com os modos de sentido que se sedimentam na vida humana, a psique não é fonte última, mas ela mesma constituída numa relação de sentido que a antecede. Merleau-Ponty nos aponta um impensado essencial em Husserl. Para o filósofo francês a corporeidade, a hilética, a estética transcendental, o sentido e o sentir, foram tematizados unilateralmente por Husserl deixando uma grande sombra pairando sobre analítica intencional husserliana. Husserl chega ao limite de sua concepção com a "intencionalidade operante" que continuamente atua a partir do sensível, sem chegar a compor pelo lado do sensível a objetividade de algo visado. A encarnação do ego atribui a inteligibilidade à consciência. Intencionalidade operante nos remete à atividade contínua do corpo como subjetividade encarnada. Mas, nossa experiência da vida de uma modo geral, nos revela que o sensível é já "direcionante" por ele mesmo, i.e., o sensível já tem sentido (como nos mostra a psicologia da forma aplicada à multiforme manifestação da vida). O corpo não é hylé impressional; é abertura ao mundo e lócus da gênese do sentido para nós: a relação de sentido origina-se no sensível já como uma complexidade de sentido aberta a modalizações. O esforço de Husserl na encarnação do ego não reconhece a característica do sentido que habita a carne. Merleau-Ponty retoma a visão da "intencionalidade operante", mas a amplia consideravelmente, e retoma na Fenomenologia da Percepção (1945), a carne portadora de uma dinâmica do sentido antecedendo a própria consciência, ou melhor, numa relação dialética de uma coisa na outra. Trata-se de outra hilética e de outra estética. Tornase necessário uma diferente concepção do sentir e do sentido, condição para a compreensão do corpo e da psique, como aspectos entrelaçados de distintos modos de relação com o sentido. Merleau-Ponty propõe a sua tese de reabilitação ontológica do sensível (Merleau- Ponty, 1964, p. 204) que é também uma reabilitação ontológica do sentir, e uma reinserção ontológica do sentido em sua materialidade originária onde o visível e o invisível são partes distintas, mas integradas, do mesmo. A intencionalidade operante visa as coisas não apenas na espessura sensível e com sentido (direção), mas revela a presença de sentidos tácitos, latentes, que antecede toda reflexão. O descolamento ou destruição dessa relação resulta numa reintrodução impensada do dualismo. Uma fenomenologia da afetividade não é plenamente consistente se o sentido produzido na e pela carne não é reconhecido em sua materialidade. Uma fenomenologia da afetividade encarnada implica no reconhecimento da materialidade do sentido da emoção, do sentimento, da dor, do instinto, todos como orientação (sentido) para vida. A fenomenologia da afecção é necessariamente referida ao corpo e seus modos de relação com o sentido. As afecções do corpo e da psique são já materialmente "sentido". O pré-reflexivo é mais profundo por uma margem de antecedência do sentido em relação à consciência e orientações que acontecem na intencionalidade do corpo. Assim podemos pensar a intencionalidade e a inteligência do corpo, a imaginação e a memória do corpo. Na expressão merleau-pontiana trata-se de repor a essência na existência e atentar para o logos silencioso que faz parte da nossa carne e da carne do mundo.

A concepção do sentido, dissemos, é componente essencial para a intuição da essência da psique. A psique tem sua essência, assim como a própria fenomenologia, na relação com o sentido das coisas. O corpo que sente, o sentir e o sentido (em sua variedade e unidade, o corpo sinestésico, o ver e o visto, a reversibilidade do sentir) são componentes essenciais para descrevermos a psique. O corpo silencioso e o corpo falante revelam interdependência no ser humano; porém, a interdependência não é total, pois os polos do corpo silencioso conserva parte de sua autonomia, assim como o corpo falante (mas, a prioridade nem sempre está do lado falante).

A reabilitação ontológica do sensível, do sentir, do sentido, é, finalmente, uma reabilitação do corpo intencional que possui uma relação própria com o sentido. O que une e forma a interdependência é a relação com o sentido. É a variedade dessa relação de sentido (poderíamos chamar de relação sent-\ que tem a ver com enorme família semântica com essa raiz). Na estrutura antropológica devemos acrescentar à camada reflexiva e pré-reflexiva uma camada não reflexiva de sentido. Podemos descrever a essência da psique como uma estrutura de comportamento (comportamento-sentido) constituída através do centramento, sedimentação e apropriação de sentires e de sentidos não-reflexivos, pré-reflexivos, e reflexivos, que dão sabor, sentido e direção à vida humana. O próprio da psicologia é de estar voltada, por uma pluralidade de caminhos, à questão do sentido como encarnação de si. A psique realiza uma espécie de contato, apropriação, e encarnação modulante do sentido que acompanha a nossa encarnação. A relação geradora com o sentido acontece desde a mais remota sinestesia, e passando pelas afecções internas (instinto, tendências, emoções, sentimentos, etc.) e também pelas relações de exterioridade com o sentido das coisas e a expressão dessas relações de sentido através de gestos e signos linguísticos.

A psique se caracteriza na fenomenologia e na psicologia por uma relação de sentido. As modulações de sentido geram formas satisfatórias e formas patológicas de recortes de sentido e significações. O núcleo psicoterápico é originariamente uma relação corpo-sentido.

Trata-se de uma estética transcendental que prolonga a de Husserl e alcança raízes além da consciência. A natureza e o corpo revelam sentidos latentes. E Merleau-Ponty ousa usar a expressão a "carne do mundo", para dizer a dimensão de sentido que habita a materialidade. Podemos falar de uma autêntica materialidade do sentido. O logos, o sentido e a inteligência não são exclusividades da consciência.4

 

DESCRIÇÃO EIDÉTICA DO SENTIDO E DO SENTIR

O sentir aparece no contato ou um encontro onde eu ou o meu corpo que contata é ao mesmo tempo contatado (tocar é também ser tocado no ato de sentir). A relação de sentido é geneticamente de dupla direção. O sentido não é dado apenas como uma doação da consciência. A doação de sentido deve ser entendida na reabilitação do sensível como um recorte que acontece na mão dupla de dar e receber. A constituição transcendental subverte a materialidade estética do sentido. Reconhecer a materialidade do sentido é reconhecer que o sentido nos antecede de algum modo. No recorte intencional apropriado chegamos juntos no encontro do corpo com as coisas. A ideação ou objetivação já é um ato segundo. E a apropriação do sentido (inclusão do sentido no movimento de si próprio) começa com o sentir em sua gênese sensível.

Nosso corpo, em um de seus aspectos essenciais, revela um complexo de sentir o mundo que é "carne" portadora de sentido. Os "sentires" são os modos como as coisas, o outro, o mundo, chegam a nós. Sentir é sentir o que nos transcende e também o sentir do que nos é imanente. A intencionalidade fundamental, operante, revela o sentir em toda sua complexidade. O sentido é recebido em vários modos pelo corpo (corpo senciente), da materialidade do sentido até o sentido em metamorfoses como na arte e na linguagem.

O modo de ser das coisas nos é dado como o sentido das coisas. O sentido das coisas nos leva à sua essência (essência = o modo de ser das coisas no tempo). O sentido da coisa, recebido e apropriado temporalmente, implica em fases temporais da coisa, formando um percurso que atravessa essas fases com independência relativa do tempo. A essência, o sentido que dá o modo de ser das coisas, é transtemporal (não atemporal ou intemporal, expressões que tendem a reintroduzir o dualismo) das fases temporais. Por sua característica transtemporal a linguagem torna possível o uso universal (transtemporal) das essências. A essência é o transtemporal do temporal, o invisível do visível. Com o transtemporal podemos ler as coisas no tempo. A essência da intencionalidade encontra-se na relação ao sentido e significação das coisas mesmas (Ricoeur, 2009, p.9). O sentido é a coisa mesma enquanto sentida no tempo e em sua projeção transtemporal. É dada no "como" de seu aparecer numa relação múltipla de sentidos. No sentir acontece recepção intencional das coisas na materialidade sensível e abre o horizonte dos muitos modos do sentido desde a expressão simples até à expressão voltada para a essência das coisas.

Somos corpo que sente5; vivemos o corpo numa relação umbilical com o sentido e podemos convir que, existindo um ponto de vista transcendental, este deve ser do sentido, não da consciência.

O sentir sentido no ser humano pode ser visto em três grandes esferas: A. Sentir o sentido-sensível como afecção do mundo-ambiente externo; B. Sentir o sentido-sensível como afecção do mundo interno; C. Sentir o sentido-significado das coisas pela mediação linguística (sentir pensante e reflexivo).

A arte é capaz de mesclar essas esferas.

É fundamental o reconhecimento de que nossos sentires, pensares e saberes são sempre parciais e nunca recolhem o sentido como um todo. Sentimos e expressamos parcialmente o mundo e a nós mesmos.

A grande família e o campo semântico aberto pela raiz sent.\ nos fornece pistas preciosas para entendermos nossa relação umbilical com o sentido das coisas. A multiplicidade de significados que a palavra sentido adquire em uma quantidade de línguas sugere que aí temos uma riqueza que não se restringe à semântica linguística. Podemos perceber isso numa grande família de línguas indo-europeias.

O Latim, por exemplo, faz parte das famílias de línguas indo-europeias que conservam em palavras e frases traços do que podemos chamar de evento ontosemântico.6 A relação sent-\ e as variações e transmutações do sentir gerando uma gama de palavras e de estruturas essências da língua pode ser constatada nas muitas significações de sentido e sua origem sânscrita (indo-europeia). Uma família de palavras cognatas evidencia a mesma a raiz ontogenética do sentido. O verbo sentio, is, sensi, sensum significa tanto sentir como pensar, saber e significar reaparece em muitos cognatos com implicações filosóficas, tais como, sensato, sentença, senda, sentido, etc. O mesmo podemos constatar com o verbo ser (sum, es, fui, esse) que traz a raiz sânscrita es e en de s/en/tido7 e que dá origem a cognatos como sensum, essentia, sententia, consensum, consentire, absens, praesens, etc. Na fenomenologia intentio e intentionis são cognatos que têm a ver com a mesma raiz sânscrita do verbo ser e derivam do "mover-se numa direção". Há um arco que vai do sentido sensível ao sentido semântico passando pelos modos de ser transformadores do sentido, mas que não perdem a origem sensível de todo sentido (ontosemântica do sensível). A unidade é garantida por uma symploké ou uma "intentionales Ineinander", expressão recorrente em Husserl, onde uma coisa é vista por participar na outra. Sentido é desde o princípio ontosemântico, um conteúdo essencialmente ontológico o que torna a expressão "o sentido do ser" quase um pleonasmo.

Outro aspecto fundamental e muito rico da questão do sentido em Husserl está na distinção progressiva entre sentido e significação. Essa distinção não aparece nas Investigações Lógicas. Mas, é desenvolvida em outros textos a partir das Ideias I, especialmente no §124. Além da referência que o significado implica, o sentido aparece como uma visada muito mais ampla que a possibilidade que temos de expressar através de signos (especialmente linguísticos). O significado tem sentido; mas, sentido é mais do que significado. Por isso, toda expressão possui margem para Auslegung (desdobramento interpretativo). A amplitude infinita do sentido e a amplitude tendendo à terminação do significado forma a base de uma dialética interpretativa e torna a língua um campo ontológico de busca de sentido.

Para o corpo que sente o sensível é a orientação primordial, intencionalidade do corpo pré-reflexivo (camada originária situada). Outros modos de intencionalidade (imaginar, fantasiar, pensar) metamorfoseiam o sensível visando no sensível o não sensível e que opera estruturas de ideação. A referência a essas estruturas só são possíveis de modo indireto: pela mediação de signos, especialmente da língua. A experiência sensível é muito mais rica que o preconceito racionalista supõe. A significabilidade do sensível revela possuir estruturas materiais mais amplas que a consciência. A língua permite referir estruturas teóricas que não sofrem os mesmos tipos de mudanças materiais que as coisas físicas. Mas, o sentido em suas modalidades estabelece uma unidade entre o sensível banhado de inteligibilidade e a inteligibilidade própria da racionalidade linguística. Percebe-se a necessidade de se buscar novas relações entre o estético e a cognição, entre a arte e o conhecimento, entre a materialidade inteligente e a inteligência que transcende o sensível (ou transensível). A psicologia fenomenológica não trata o sentido apenas como resultado do ego encarnado; o corpo desdobra sentido antes mesmo do ego.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psique deve ser caracterizada por sua constituição dirigida a sentir os sentidos (internos, externos, ideados, criativos e artísticos). A constituição transcendental deixa de ser algo exclusivo da consciência e a gênese é estendida à materialidade do sentido vivida pelo corpo. A racionalidade dos objetos ideados (a língua e os significados possibilitam a razão científica não como um estrato isolado provindo de outro mundo: a materialidade do sentido e a imaterialidade da razão, o sensível e o inteligível, são modos correlatos de sentido implicados numa gênese comum). A crença no absoluto não fica excluída a priori, mas não é uma decorrência analítica da ontologia do sentido. Pode ser uma manifestação de outra natureza. A psique é constituída pela relação de sentido e uma ciência da psique implica uma atitude de elaborar condições teóricas do sentido para que se possa compreender o comportamento do ser humano em sua política corporal e pessoal de sentido (s).

Referências

Husserl, E. (2012). Trad. Port. A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental. Uma introdução à filosofia fenomenológica. (Diogo F. Ferrer, Trad., Pedro Alves, Dir). Rio de Janeiro: Gen-Forense Universitária.         [ Links ]

Husserl, E. (1954). Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie Eine Einleitung in die phänomenologische Philosophie; Hua VI. Hague: Martinus Nijhof.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1964). Signos. Barcelona: Editorial Seix Barral.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la Perception. Paris : Gallimard.         [ Links ]

Ricoeur, P. (2009). Na escola da fenomenologia. Petrópolis: Editora Vozes.         [ Links ]

Enes, J. (1983). Linguagem e Ser. Lisboa: Imprensa Nacional.         [ Links ]

Plessner, H. (1980). Anthropologie des Sinnes. Frankfurt: Suhrkamp.         [ Links ]

Plessner, H. (1923). Die Einheit der Sinne. Frankfurt: Suhrkamp.         [ Links ]

Zubiri, X. (1981). Inteligencia sentiente. Madrid: Alianza.         [ Links ]

Le Breton, D. (2006). La Saveur du monde. Une Anthropologie des Sens. Paris : éditions Metalié         [ Links ].

 

Nota sobre o autor

Rui de Souza Josgrilberg. Graduação em Filosofia pela Universidade de Mogi das Cruzes (1976), graduação em Teologia pela Universidade Metodista de São Paulo (1967) e doutorado em Sciences Religieuses - Université de Strasbourg (1973). Professor titular da Universidade Metodista de São Paulo. Membro fundador Honorário da "Sociedade Brasileira de Fenomenologia" e seu primeiro presidente. E-mail: ruisjruisj@gmail.com

 

 

 

Recebido: 02/05/2018
Aprovado: 01/06/2018

 

 

1Daqui por diante será abreviada para Krisis.
2Parágrafo acrescentado pelo editor após a morte de Husserl e que provém de seus manuscritos
3 Além de Merleau-Ponty, Helmut Plessner (1923, 1980), Xavier Zubiri, (1981), Erwin Straus,(1935, a obra principal O sentido do sentido traz como subtítulo: Uma contribuição à fundamentação da Psicologia) Daniel Le Breton (2006), e também várias obras de G. Deleuze, A. Maldiney e P. Fédida, entre os mais conhecidos.
4 Aqui o autor francês se aproxima do logos heraclítico. A Gestalt não é diferente: a mescla do sensível com o sentido é dada num recorte de figura e fundo; é sentido, sem ser uma ideia.
5 Sensiente ou sentinte ou senciente; a primeira grafia é a melhor, em minha opinião, apesar dos dicionaristas grafarem "senciente"; a grafia com s revela melhor a fonte do cognato, aliás, como a maioria dos cognatos de sentir. Como os tradutores de Zubiri grafam "inteligência senciente", seguimos a orientação dos dicionaristas.
6 Ao contrário do que pensa Heidegger, o Latim é tão rico em indicações filosóficas como o Alemão e o Grego se atentamos para as raízes indo-europeias comuns. A língua grega apresenta a mesma ocorrência ontosemântica, o mesmo evento ontosemântico que pode ser verificado através do verbo ser e derivados (einai, en, on, on, onta, ousia,etc) e na passagem do ver como sentido físico do verbo ver (idein) para os diversos cognatos como eide, Idéa, etc . Igualmente é possível mostrar o parentesco filológico do verbo noein e seus cognatos noésis, nóema, noeton, etc com o verbo ser (einai). Ocorrencias paralelas podem ser verificadas em pelo menos uma dezena de línguas. Uma boa descrição daquilo que estamos chamando de evento onto-semântico pode ser visto no livro do filósofo e filólogo português José Enes, Linguagem e Ser (1983).
7 É importante notar que a raiz sânscrita é en.\ e es.\ precedida de "s" significando colocar-se à caminho, sair numa direção, partir para uma viagem, tomar um sentido, assim como no send, inglês. É esse ir em uma direção que está na raiz de palavras latinas como entender, intenção, intencionalidade.

 

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