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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.11 no.2 Belém May/Aug. 2019

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº02rex32 

Reflexão

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº02rex32

 

(Des)atando nós: construindo linha de cuidados/saúde mental apartir de um hospital

 

Untying knot: Building Mental Health Care From A Hospital

 

Desatando nudos: Construyendo Línea De Cuidados En Salud Mental A Partir De Un Hospital

 

 

Karine Santana Azevedo Zago; Jaqueline Teixeira Paiva; Aglai Arantes; Valdirene Beatriz Cardoso

Universidade Federal de Uberlândia

 

 


RESUMO

Este trabalho objetiva relatar uma experiência sobre a construção da Linha de Cuidados em Saúde Mental a partir de um hospital da Rede de Atenção Psicossocial. A construção se deu a partir da Metodologia de Roda. Foram promovidos reuniões quinzenais entre trabalhadores e gestores em Saúde mental de todos os componentes da Rede de Atenção psicossocial de um município do interior de Minas Gerais. Inicialmente, cada serviço descrevia o fluxo real e elencavam seus nós críticos. A partir disso, eram discutidas estratégias possíveis e traçado um plano de ação para desatar os nós identificados. Assim, surgiam novos acordos e pactuações nas esferas micro e macro políticas. Essa experiência reduziu o número de atendimentos psiquiátricos no pronto socorro do hospital a partir da reorganização dos outros componentes. Além disso, o serviço de urgência e internações hospitalares tomou nova formatação, mais consonante com a lógica do território e do cuidado em liberdade.

Palavras-chave: Administração Hospitalar; Serviços de Saúde Mental; Intervenção Psicossocial.


ABSTRACT

This paper aims to report an experience about the impact of the construction of the Mental Health Care Line from a hospital of the Network of Psychosocial Attention. The construction took place from the Wheel Methodology. Periodic meetings were held among mental health workers and managers of all components of the Psychosocial Care Network of a city in the interior of Minas Gerais. Initially, each service described the actual flow and listened to its critical nodes. From this, possible strategies were discussed and an action plan was drawn up to untie the identified nodes. Thus, new agreements and pacts emerged in the micro and macro-political spheres. This experience reduced the number of psychiatric visits at the hospital emergency room from the reorganization of the other components. In addition, the of the emergency department and hospital admissions took new formatting, more consonant with the logic of the territory and care in freedom

Keywords: Hospital administration; Mental Health Services; Psychosocial Intervention


RESUMEN

Este trabajo objetiva relatar una experiencia sobre el impacto de la construcción de la Línea de Cuidados en Salud Mental a partir de su componente hospitalario. La construcción se dio a partir de la Metodología de Rueda. Se promovieron encuentros periódicos entre trabajadores y gestores en Salud mental de todos los componentes de la Red de Atención psicossocial de un municipio del interior de Minas Gerais. Inicialmente, cada servicio describía el flujo real y elencaba a sus nudos críticos. A partir de eso, se discutieron estrategias posibles y trazó un plan de acción para desatar los nudos identificados. Así, surgían nuevos acuerdos y pactos en las esferas micro y macro políticas. Esta experiencia redujo el número de atenciones psiquiátricas en el socorro del hospital a partir de la reorganización de los otros componentes. Además, el servicio de urgencia e internaciones hospitalarias tomó nuevo formato, más consonante con la lógica del territorio y del cuidado en libertad.

Palabras-clave: Administración Hospitalaria; Servicios de Salud Mental; Intervención Psicosocial.


 

 

INTRODUÇÃO

Inegavelmente, o Sistema Único de Saúde (SUS) teve avanços importantes desde sua criação, entretanto, a dificuldade de manter a integralidade dos cuidados no SUS, ou seja, um conjunto de ações que vão desde a prevenção à assistência curativa, nos seus diversos níveis de complexidade, trouxe à tona a necessidade de uma gestão coordenadora do cuidado e ordenadora da rede como forma de superação da fragmentação de um modelo de gestão da saúde centrado em ações curativas, com base em oferta de serviços não condizentes somente com as necessidades populacionais em solucionar as questões agudas e impedir a ascensão das condições crônicas da população mas também fundamentado na análise do cenário socioeconômico e epidemiológico, considerando as diferenças locorregionais.

No Brasil, essa discussão ganhou destaque a partir do Pacto pela Saúde, Portaria n. 399 (2006), que contempla o acordo firmado que ressalta o processo de regionalização e de organização por meio da formatação de Rede de Atenção como estratégia para consolidar os princípios de Universalidade, Integralidade e Equidade.

Dessa forma, a Rede de Atenção Psicossocial (RAS) foi concebida para superar a assistência fragmentada. De acordo com a Portaria n. 4.279 (2010) a RAS são arranjos organizativos de ações e serviços se saúde, de diferentes densidades tecnológicas que buscam garantir a integralidade dos cuidados em saúde.

A proposta da Organizativa da RAS é que esta deva ser ordenada a partir da Atenção Primária em Saúde (APS), pois o nível de atenção que presta o cuidado mais complexo e ampliado, no sentido biopsicossocial e, também, o mais potente porque é das APS que derivam os Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) e neles os encaminhamentos, as articulações com outros serviços de saúde e também outros setores como o da assistência social e jurídica. É potente também porque trata de questões no território e, por isso, capaz de ser a organizadora de uma linha de cuidados.

A Linha de Cuidado é a imagem pensada para expressar os atos assistenciais seguros, voltados às necessidades do usuário durante seu trajeto na rede de assistência à saúde, considerando também outros dispositivos, tais como, entidades comunitárias e de assistência social (Franco & Franco, 2012). É uma proposta pensada no sentido de superar os desafios postos à efetivação da assistência integral à saúde, e se inicia pela reorganização dos processos de trabalho desde a rede básica seguindo "[...] uma complexa trama de atos, de procedimentos, de fluxos, de rotinas, de saberes […] que resulta, em boa medida, da forma como se articulam as práticas dos trabalhadores [...]" (Cecilio & Merhy, 2003, p.2). Ela tem início na entrada do usuário em qualquer serviço de saúde e espaço, onde haja o encontro entre o usuário e o profissional de saúde, e a partir desse, abre-se para um percurso que se amplia por um conjunto de atos assistenciais e oferta de serviços (Malta & Merhy, 2010), levando em conta as demandas do beneficiário. O fio condutor das Linhas de Cuidado é o objetivo terapêutico que se pretende alcançar, atentando-se para a singularidade de cada sujeito, nos diferentes momentos da assistência, ao passo em que também reafirma-se um projeto coletivo e um compromisso ético-político no cuidado humanizado em saúde mental.

A organização do trabalho em Linhas de Cuidado é pautada em um princípio simples, a responsabilização pelas demandas de saúde dos usuários do SUS por parte dos atores envolvidos no sistema, sejam eles profissionais que executa o atendimento ao usuário, sejam gestores das unidades ou dos municípios, no qual o profissional, no momento da assistência ou no Espaço Intercessor, - que é o encontro entre o usuário e o profissional de saúde -, espaço esse, original, criativo e único (Merhy & Onocko, 2007) possa estabelecer um projeto terapêutico singular articulado com os serviços e profissionais envolvidos na Rede de Atenção à Saúde. E é por isso que, reinventar novos processos de trabalho, reafirmando a garantia do direito à saúde, se torna imprescindível. O que só é possível na medida em que ocorra a escuta dos ruídos cotidianos da produção do cuidado, cabendo ao gestor desenvolver a capacidade construtiva de escutar, fomentando o processo coletivo de apreensão do cenário, possibilitando a (re)invenção das missões institucionais e a produção de novos sentidos para o processo de trabalho. Se faz primordial o investimento em uma metodologia que proporcione espaço de reflexão, discussão, planejamento e articulações políticas e jurídicas que colaborem para firmar acordos, contratos e pactuações de fluxos de acesso e de regulação aos serviços oferecidos pelo SUS (Campos, 2005), tendo como meta, o desenvolvimento do protagonismo gestor dos servidores em saúde.

Esta experiência trata da construção de uma linha de cuidados em saúde mental a partir de um componente hospitalar, invertendo significativamente a lógica da RAS que prescreve as APS como ordenadora do sistema. Entretanto, frente ao corolário da desarticulação entre o hospital e os outros serviços de saúde, nos propusemos a desenhar a Linha de Cuidados em Saúde Mental na contramão do proposto na RAS, mas que foi ao encontro as diretrizes previstas pelo Portaria n. 3.390 (2013) que descreve que as ações dos componentes hospitalares devem convergir para um conjunto de tecnologias de cuidado e propor uma estrutura que propicie a perspectiva do trabalho a partir da linha de cuidado, a fim de viabilizar a integralidade da assistência de forma articulada e contínua.

 

OBJETIVO

Este trabalho trata-se de um relato de experiência sobre a construção da Linha de Cuidados em Saúde Mental da Rede de Atenção Psicossocial a partir de um hospital universitário do interior do estado de Minas Gerais.

 

DO MÉTODO À PRÁTICA

Durante os anos de 2013 a 2016 o plano de ação da direção de um componente hospitalar de um município do interior de Minas Gerais teve como principal objetivo aperfeiçoar os recursos financeiros, materiais e humanos e atuar na lógica da Rede de Atenção a Saúde (RAS) (Brasil, 2010) enquanto componente hospitalar das Redes de Atenção à Saúde prioritária a partir da revisão de sua práxis.

A partir disso, em Maio de 2013 iniciou-se, no referido hospital, o projeto de implantação das Linhas de Cuidado com vistas à reestruturação do itinerário do pacientes desde admissão hospitalar até a alta. Para tanto, uma equipe multiprofissional coordenada por uma enfermeira, doutora em saúde mental, se debruçou em desenvolver um método que pretendia construir as linhas de cuidado da Rede de Atenção à Saúde Mental a partir do hospital.

Durante a operacionalização deste projeto, utilizou-se um método que articulou de forma técnica, interinstitucional e intergestorial, o trabalho de diversos profissionais, dos vários pontos de atenção em saúde, por meio da construção de um espaço de diálogo e construção, para partilha de saberes, experiências e desafios. E, ainda, de fortalecimento coletivo, para promover pactuações, nas dimensões micro e macropolítico, em prol reorganização do trabalho no tocante à otimização dos recursos disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS).

Destarte, foi utilizada a ferramenta Metodologia da Roda ou também conhecido como Método Paidéia, que pressupõe um espaço coletivo (setting); uma roda de pessoas onde flui, com circularidade, ideias, vivências e propostas entre os vários sujeitos imbuídos no processo. Tal momento oportuniza e amplia a capacidade de apreender-analisar-intervir na realidade (Campos, 2005). Pode ser aplicado pela própria equipe de trabalho ou direção/gerencia nas suas próprias unidades de direção ou ser aplicado por um Apoiador Institucional. Essa denominação tem a intenção de diferenciá-lo das figuras que trabalham oferecendo apoio às organizações (consultores, supervisores e assessores) que tradicionalmente exercem papeis limitados se comparados aos do Apoiador Institucional que extrapola tais funções e estabelece relação dialética, pois atua dentro de um conceito ampliado de gestão: função gerencial, política, pedagógica e terapêutica, desempenha funções junto às equipes, ajudando-as na gestão e organização de processos de trabalho a partir de espaços coletivos. Nesses espaços o grupo analisa a situação, define tarefas, e elabora projetos de intervenção.

O Apoiador tem compromisso a priori com o grupo de trabalho, dando retorno sobre suas avaliações, necessidades externas, bem como, trazendo para dentro das equipes diretrizes definidas nos níveis superiores de poder. Essa relação é estabelecida por base de contratos firmados entre o grupo e o Apoiador, porque quando se firma contratos nas relações, se produz a crença da relação horizontal, autônoma, interdependente e co-responsável. Entretanto, essa relação horizontal não impede que conflitos possam surgir, pois não elimina as diferenças de papéis e de poder, que são habituais no funcionamento de grupos. Para que se tenha clareza desses conflitos, Campos (2005) cita alguns procedimentos metodológicos que o apoiador deve lançar mão para que surja de fato o efeito Paidéia. O primeiro é reconhecer que há circulação de afetos e, conseqüentemente, deve-se pensar em alguns aspectos da transferência. A aplicação do conceito de transferência para a co-gestão indicaria o fluxo de afetos gerados e alimentados nos espaços coletivos, ou seja, na "[...] relação entre Apoiador Institucional e a Equipe, bem como das relações internas à equipe e desta com o processo de trabalho, com a instituição e com figuras da sociedade" (CAMPOS, 2005. p. 188). Afetos como desejos, bloqueios, interdições, incômodos, desafios, inveja, disputa, simpatia, dentre outros, são percebidos de forma estereotipada, gerando padrões fixos de relação que pode bloquear o desenvolvimento Paidéia do grupo. Sabendo disso, o Apoiador deve estar atento aos movimentos do grupo para que os processos afetivos sejam mais uma função Paidéia e não um entrave para o desenvolvimento do coletivo.

Ao contrário dos métodos tradicionais de gestão que trabalham por etapas, coleta de dados, análise e posterior diagnóstico para tomada de decisão, para construir um modo de fazer ou para analisar o seu processo de trabalho, o Método da Roda trabalha com a noção de fusão de todas essas etapas, pois a cada encontro se buscam informações, as interpretam e tomam-se decisões, a partir da construção de conhecimento e intervenção conjunta da realidade. De certa forma, quando se elege um tema a ser trabalhado já está sendo feita uma interpretação prévia, pois para eleger é necessária uma decisão.

Para o Método da Roda a escuta não fica restrita apenas às falas dos sujeitos e suas representações, deve-se também ter informações sobre a prática, os resultados, o processo produtivo e a estrutura. Para tanto, é necessário a observação do agir e da leitura de documentos e registros das descrições das práticas e falas, pois enriquece a análise e interpretação do apoiador sobre os dados trazidos pelos participantes das rodas.

O Método da Roda pretende também realizar a análise simultânea das demandas internas e externas ao grupo. Inicialmente se faz a análise com base em informações já existentes na Organização, ou seja, primeiro analisa-se as práticas nos serviços de saúde onde os trabalhadores participantes da roda atuam como de fato elas acontecem e de forma contínua e sucessiva, essas práticas vão sendo revistas e reformuladas. É um processo sempre incompleto, ainda que objetivando produzir novos sentidos e significados para os temas que vão surgindo para análise na roda (CAMPOS, 2005).

Para a análise de escuta, observação e leitura, o autor recomenda a Análise Ruído e a Reflexiva que permitem o reconhecimento de paradoxos, contradições e de conflitos e não esconde falhas, problemas ou lacunas de modo a produzir dois movimentos: um de paralisia diante do incômodo dos ruídos e outro de enfrentamento reflexivo da dificuldade.

Ao Apoiador Institucional resta estimular modos de escuta e de Análise que facilitem posturas reflexivas. O Método Paidéia admite existir contradições e conflitos entre desejos, interesses e necessidades de sujeitos, grupos, coletivos e organizações e coloca que a gestão ampliada pode oferecer não mais do que recursos (teóricos e metodológicos) para possibilitar aos sujeitos co-geri-los de maneira positiva.

 

O RELATO DA PRÁTICA

O nó do serviço de Urgência em saúde Mental

A Linha de Cuidado em Saúde Mental foi a primeira a ser desenvolvida no hospital porque era essa especialidade que impactava substancialmente nos atendimentos do Pronto Socorro (PS). De acordo com o Setor de Estatística e Informação Hospitalares do Hospital, entre os meses de Maio a Outubro de 2013 foi contabilizado uma média de 40 atendimentos/dia de psiquiatria no serviço de urgência, sendo que três desses, seguiam internados por uma média de três dias, perfazendo o total de 10 pacientes da especialidade de psiquiatria internados por dia no PS. Além disso, o setor de internação seguia com taxa de ocupação de 96% para os 30 leitos existentes, com a média de internação de 17 dias. Dessa forma, entre leitos de internação hospitalar, atendimentos e observação em Pronto Socorro (PS) o hospital atendia média de 90 usuários de Saúde Mental/dia. Outro fator preocupante se dava em razão de que, aproximadamente, 30% dos usuários de Saúde Mental, reincidiam no serviço hospitalar e retornavam entre uma e seis vezes ao serviço, por semestre.

Os pontos de atenção que compõem a Rede de Urgência e Emergência (RUE), recebem além de sua demanda, a clientela "excedente", não absorvida ou mal referenciada na RAS. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS, 2015) recomenda que discutir os critérios de encaminhamento dos usuários para as unidades de pronto atendimento é essencial para a resolutividade da Rede de Atenção à Urgência pois reduz a proporção de pacientes de baixo risco atendidos nessas unidades.

A porta de entrada do Pronto Socorro foi o "termômetro comportamental" da Rede de Atenção Psicossocial, indicando a necessidade de reorganização da rede. Essa análise foi o motor propulsor, que marcou o início de um projeto coletivo da construção das Linhas de Cuidado em Saúde Mental sob a perspectiva de que não bastava a reorganização do serviço hospitalar, mas a construção em Rede das Linhas de Cuidado, ainda que fosse pensado a partir do hospital. O lócus institucional hospitalar, deflagrou-se como o potente nascedouro do nó crítico e inquietações motivadoras desse trabalho. Revelando-se para além do hospital universitário, que representa a academia – em suas dimensões indissociáveis: assistência, pesquisa e extensão -, e, ao mesmo tempo, é a referência macro e microrregional de assistência, mas também tomando a postura de componente da Rede de Atenção à Saúde (RAS).

Empreitamos o caminho inverso, pois tomamos como referência inicial as mazelas emergentes no PS. Consideramos aquilo que sinalizava a demanda da urgência e, a partir de estudos e pesquisa sobre as formas de articulação do hospital com os componentes da atenção básica e psicossocial iniciamos, com vistas ao fortalecimento da rede e por meio do diálogo entre os sujeitos envolvidos, a construção das linhas de cuidado em Saúde Mental no município.

A (des)construção do modo vigente de cuidado e a (re)construção da práxis exigia uma contínua revisão técnica, processual e tecnológica. Diante da necessidade de ampliar, sistematizar e atender às crescentes demandas, foi criado estrategicamente, no mesmo ano, o Núcleo de Apoio à Implantação de Linhas de Cuidados (NULIC).

(Des)atando nós: método NULIC

O Núcleo de Implantação de Linhas de Cuidado (NULIC) é vinculado à Diretoria Técnica do Hospital e objetiva a implantação das Linhas de Cuidado e fomentação do cuidado em rede, a partir da articulação locorregional com vista ao funcionamento contínuo das linhas em qualquer ponto de atenção e ao empoderamento do coletivo para a autonomia e independência na produção do cuidado. A Linha de Cuidados "Visa à coordenação ao longo do contínuo assistencial, através da pactuação/contratualização e a conectividade de papéis e de tarefas dos diferentes pontos de atenção e profissionais" (Portaria n. 4.279, 2010). Busca efetivar o trabalho integrado e corresponsável em todos os pontos de atenção; além de primar pela gestão de compromissos pactuados e de resultados.

Esse processo de construção perdurou por três anos. Primeiramente, o NULIC convidou servidores envolvidos no processo de trabalho em saúde mental no hospital para discutir quem seria o coordenador das linhas de cuidado, posteriormente, explicou o método a ser utilizado.

O método consistiu em reuniões entre os componentes do NULIC, profissionais da área de saúde mental, trabalhadores da Rede e gestores municipais, regionais, técnicos e controle social da Saúde Mental de várias profissões de todos os componentes de cuidado da RAPS sobre o itinerário do usuário da Rede de Saúde Mental. Na primeira reunião, foi explicado ao grupo os objetivos e metodologia de trabalho

A partir da primeira reunião, as subsequentes aconteceram quinzenalmente em salas de reunião do espaço administrativo do hospital, com duração de uma hora e trinta minutos. Participavam das reuniões trabalhadores de todos os componentes de atenção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) dentre eles Psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, educadores físicos que assumiam atividades assistências ou cargos de gestão como coordenador de serviço; coordenador municipal da Saúde Mental; assessores de gestores locais; estudantes de graduação e pós-graduação de diversos cursos. Essas reuniões aconteciam de duas formas:

- Reunião Aberta

Eram reuniões agendadas previamente por e-mail pelo NULIC onde convidávamos os trabalhadores e serviços envolvidos no itinerário do paciente de saúde mental, dispostos a pensar, discutir e buscar soluções para os entraves da assistência. Esse grupo denominado grupo aberto, tinha como objetivos: realizar discussões coletivas; desenhar o fluxo atual (como ocorre na prática); mapear as possibilidades de acesso aos serviços; Levantar os Vetores de Descrição de Problemas (VDP), que enunciavam problemas monitoráveis na concepção dos participantes; elencar os Nós Críticos (NC), que eram as causas dos problemas; discutir os nós a fim de desatá-los a partir da busca de soluções criativas de modo a desobstruir entraves burocráticos de acesso aos serviços se utilizando de articulações micro e macropolíticas; Estimular-nos enquanto um, mantendo a ideia de trabalho em rede.

Conforme os trabalhadores iam explanando como a assistência acontecia na prática, os representantes do NULIC iam desenhado o fluxo real, os entraves percebidos pelos trabalhadores eram colocados na roda. O coordenador da Roda funcionava como um apoiador do grupo, tentava compreender os problemas que fazia sugestões e ampliava a discussão para em seguida, a partir da anotação dos pontos chave da discussão, identificar, descrever e restituir para o grupo a síntese do problema com suas causas e consequências, os VTD e NC. O coordenador se utilizava-se de um instrumento construído pelo NULIC denominado de Mapa de Rede, onde os NC eram descritos e enumerados por ordem de prioridade e também escritas as estratégias escolhidas pelo grupo para desatar os NC, bem como quem, ou qual grupo de trabalhadores ficaria designado para ser o agente da ação e, ainda, era definido o prazo para que os responsáveis pudessem desenvolver as atividades propostas e dar retorno para aquele grupo.

- Reunião Fechada

Consistia em reuniões quinzenais com a participação de técnicos da área e gestores de todos os serviços pertencentes à Rede de Saúde Mental, bem como, ligados a equipamentos de outros setores sociais que faziam intersecção com a saúde mental, com o objetivo de (re)desenhar o fluxo "desatando" os nós críticos levantados nas reuniões abertas. Faziam parte desse grupo, aqueles envolvidos diretamente no NC. Esse grupo produzia pactos, articulações, instrumentos de trabalho necessários (formulários, manuais, projetos e outros) que devem ser validados pelo grupo aberto e demais instâncias dos serviços antes de sua aplicação.

Cada reunião aberta ou fechada gerava uma ata com a assinatura dos participantes e uma agenda de compromissos assinada. A cada novo entrave identificado, o grupo rediscutia os fluxos, e se propunha novos arranjos e pactuaçõe s e consequentemente, novos fluxos.

O objetivo de ambas reuniões era que de forma organizada identificássemos e trabalhassemos os NC na assistência ao paciente em Saúde Mental na RAPS, de modo a ir sistematizando o trabalho multiprofissional nos diversos níveis de atenção. Conforme a Linha de Cuidados tomava forma, eram representadas por meio de fluxos que, contemplavam os serviços necessários, suas inter-relações, e, ainda, todos os instrumentos e processos de trabalho institucionais em cada ponto de atenção.

O produto final era o que nomeamos de "Itinerário terapêutico", o conjunto de instrumentos, como protocolos, formulários e manuais que iam surgindo a medida que os trabalhos do grupo eram desenvolvidos. Para isso foi necessário a articulação do grupo com a gestão nos níveis macro e micro políticos.

Um destaque importante: o esforço do coletivo só foi possível porque as reuniões fomentavam a ideia de trabalho em Rede, cada ator com potencial transformador era visto como trabalhador da Rede de Saúde Mental, independente se era servidor público ligado à prefeitura, ao estado ou à Universidade. Todos discutiam as fragilidades de cada serviço sem culpabilizar esse ou aquele dispositivo.

Obviamente, também tivemos tensões de toda ordem, retrocedemos diversas vezes para rediscutir papéis e funções. Nos sentimos paralisados em inúmeros momentos por causa de interesses políticos e institucionais. Ironicamente, fomos nós inúmeras vezes nossos próprios NC, então, tivemos que aprender a nos desatar e ao mesmos tempo aprender a seguir atados, porque é justamente isso que se pretende a organização do SUS, trabalhadores não só empenhados em seu próprio fazer, mas conectados a fim de qualificar o cuidado e facilitar o itinerário do usuário.

A cada encontro a roda se fortalecia, por ser um processo coletivo e de corresponsabilidade era preenchido de significado para todos aqueles que faziam parte dela; todos pertenciam e se apropriaram daquele projeto. A roda não parava de girar porque havíamos nos constituído um grupo coeso; uma Rede, cuja trama estava fortalecida pelos processos micropolíticos - (pelos sujeitos) – e não somente pelas instâncias governamentais e legislações. O trabalho produziu novos sentidos, cada ação, entrave burocrático, fluxo de referenciamento e contrarreferenciamento fomentavam o cotidiano do trabalho, pensando a singularidade dos sujeitos usuários, e a reafirmação coletiva do direito à saúde.

 

RESULTADOS IDENTIFICADOS COM A PRÁTICA

O impacto da construção da Linha de Cuidado em Saúde Mental no componente hospitalar

O pronto socorro tornou-se a "porta de entrada" referenciada, não atendendo mais os casos de demanda espontânea, que passaram então, a ser atendidos no serviço de urgência municipal – Unidade de Atendimento Integrado (UAI). Os casos eram discutidos junto as equipes dos componentes psicossociais de referência territorial do usuário e quando necessário, os pacientes eram regulados para atendimento de internação. Tal feito, reduziu em 70% o número diário de atendimentos no hospital.

Os casos de internação prolongada (maior que 30 dias), foram extintos, haja vista que a maioria dessas internações se davam em razão de questões sociais complexas, tornando-se campo de intervenções articuladas, a partir da apropriação e envolvimento das equipes dos componentes da atenção básica, psicossocial e também de outros intersetores como judiciário, educação e assistência social. Os casos recorrentes ou outros casos complexos foram discutidos em mini-fóruns da RAPS com alcance social e respostas positivas. Em um ano, o número de pacientes internados foi reduzido para 3% das internações totais.

Enquanto hospital, as reuniões nos fizeram enxergar que nossas fragilidades e tudo que impactavam no Pronto Socorro e nas internações dos leitos de psiquiatria eram, em partes, fruto da dificuldade de articulação entre o hospital e outros componentes da RAPS.

Para sanar essa questão, instituímos reuniões permanentes de "Gestão de Caso" que ocorriam semanalmente entre os profissionais do serviço de internação psiquiátrica, CAPS e APS; mensalmente tínhamos o "Café com Gestão", momento em que reuníamos alguns trabalhadores, diretores do hospital e gestores municipais para discutirmos questões que sobrevinham ainda como dificuldades relacionadas ao processo de regulação de leitos; critérios de referenciamento e contrarreferenciamento; processo interno de admissão, cuidado e transferência; condições clínicas e psicossociais para alta.

Assim, paulatinamente, fomos colocando simbolicamente uma placa de "sejam bem-vindos" aos nossos pares e colaboradores. Abrimos nossas portas e aprendemos a fazer melhor e a conviver em rede.

Um hospital nunca será autossuficiente, porque cuida somente de uma parte da vida do usuário da RAPS somente quando ele está em crise e quando coloca a si ou a outro em risco. Mas será sempre uma parte primordial do cuidado em rede, porque salva vidas, mas também porque devolve o usuário ao território, ao seu lugar de pertencimento, onde realmente o usuário do SUS deve estar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa experiência trouxe resultados significativos considerando vários aspectos. Primeiro, tornou-nos proativos e correponsáveis nos processos políticos e de gestão locorregionais; segundo, o cuidado da RAPS daquele município foi incrementado a partir do diálogo qualificado pelas articulações micro políticas, cooperação mútua, troca de experiências e pelas partilhas entre os trabalhadores da RAPS; terceiro, e mais especificamente relacionado ao serviço hospitalar, contribuiu para uma melhor compreensão do nosso papel enquanto parte de uma Rede, porque enquanto "tecnologias duras", somos avançados, mas no tocante à complexidade de cuidado somos um ponto de atenção transitório, dado que, não é no hospital em que as pessoas vivem a maior parte do tempo e sim no território, dessa forma, os profissionais do componente hospitalar não participam do cotidiano dos usuários. Não obstante, nos transformamos em altamente assertivos no projeto singular de cuidado à medida que todos os casos que chegavam ao HC eram discutidos com trabalhadores dos componentes psicossociais e da atenção primária, por meio das equipes de gestão de caso. Foi uma experiência valiosa que nos mostrou que de fato o SUS não se faz sozinho, mas com trabalhadores, usuários e familiares, na construção coletiva, que representa a luta em defesa do cuidado e da saúde e da vida.

 

 

Referências

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NOTA SOBRE OS AUTORES

Karine Santana Azevedo Zago – Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: karinezagousp@yahoo.com.br.

Jaqueline Teixeira Paiva – Prefeitura Municipal de Uberlândia. E-mail: jaquelinepaivassocial@gmail.com

Aglai Arantes – Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: aglai_arantes@hotmail.com

Valdirene Beatriz Cardoso – Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: valbeatriz01@yahoo.com.br

 

 

Recebido: 18/11/2018
Aprovado: 25/05//2019

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