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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.11 no.2 Belém maio/ago. 2019

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n01tradução01 

Tradução

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n01tradução01

 

Desancarcerar os corpos

 

Transcrição de uma conferência ministrada na Jornada da Associação Francesa de Psiquiatria – A Filosofia e a Psiquiatria. 18/11/2011. Publicada em Psychiatrie Française1 (Vol. XXXXIII, 1/12 Juin 2012, p. 23-37).

Nota do tradutor: Tradução de Pedro Paulo Freire Piani, em português brasileiro, do texto original "Désincarcerér les corps?" publicado em língua francesa, no site http://www.brunolatour.fr/sites/default/files/125-PSYCHIATRIE.pdf, para fins de estudo, sem vantagens pecuniárias envolvidas. Todos os direitos preservados. Alguns termos não seguiram uma tradução literal para o português – nesses casos, optou-se por um termo mais usual no campo de estudo e que não comprometesse a construção do enunciado

 

 

Bruno Latour

Sciences Po, Paris

 

 

Vocês pediram-me para resumir, em alguns minutos, a contribuição da antropologia e da filosofia às bases da psiquiatria! Com esta exposição, tenho medo de cometer uma impostura ou, no mínimo, dar lugar a um erro de audição, já que não sou nem filósofo profissional, nem antropólogo profissional e, obviamente, eu não sou, de modo algum, psiquiatra. Como muitas pessoas, é mais de ajuda psiquiátrica que precisaria agora...

Ao mesmo tempo, eu acharia uma pena perder esta oportunidade de partilhar com vocês a infelicidade na qual nós estamos mergulhados, me parece, já que estamos todos sucumbidos, sem poder mesmo reagir, a isto que a gente pode chamar de uma sucessão “de golpes de DSM”. Nós estamos, daqui a pouco, eu creio, no número 5, novamente, com centenas de novos diagnósticos que ele convém chamar de “doenças medicamentosas”, já que elas são criadas, não para combater uma doença que precederia o medicamento, mas para dar um nome de doença aos efeitos mal compreendidos de substâncias enviadas aos nossos organismos um pouco ao acaso (i). O que equivale a empurrar longe o suficiente a noção de doenças iatrogênicas, as quais estão, pelo menos no final das contas, ao curso de longas estadias no hospital, bravas e boas infecções que os medicamentos à antiga podem o mais frequentemente curar.

No que segue, vou, pois, me permitir empregar o “nós” para chamar a gentileza e partilhar, durante alguns minutos, um pouco de seu fardo. Esta infelicidade que sua sociedade partilha com tantos pacientes é tão desagradável que existe toda uma série de excelentes trabalhos bem documentados, provenientes de antropólogos e também de alguns de seus colegas – indignados, mas infelizmente impotentes sobre esta situação inédita (ii). Houve, na semana passada, acerca da arte, um excelente filme sobre estas questões – filme de Anne Georget, escrito por Mikkel Borch-Jacobsen (iii).

Eu vou explorar com vocês esta situação, começando de um minúsculo domínio das ciências sociais, que eu chamo de antropologia simétrica e que tem por objetivo estabelecer relações com outros coletivos que não estejam fundados nem sobre a noção de cultura nem sobre a de natureza. Há trinta anos que esta antropologia se esforça em evitar utilizar o esquema Nature/Culture que fez muita devastação na antropologia e que vocês conhecem bem no seu próprio domínio, na versão que não é menos devastadora e que porta o nome de Mind/Body. Utilizarei esta expressão em inglês, durante todo o tempo, para bem marcar que isso não é uma evidência natural, mas uma produção antropológica local, situada, que não há necessidade de levar por conta. Nature/Culture tanto quanto Mind/Body são duas maneiras de bloquear toda reflexão sobre o que acontece quando os seres do psiquismo conhecem os efeitos da cura.

Dois conjuntos de trabalhos relacionados à antropologia permitem contornar um pouco esses dois obstáculos.

O primeiro é, com certeza, a etnopsquiatria, que vocês conhecem, seguramente, pelos trabalhos pioneiros de Georges Devereux, o qual introduziu uma fenda que foi alargada por Tobie Nathan com a eficácia que vocês sabem (iv). Eu tive a chance de seguir por algum tempo sua consulta (v). Graças a essa fenda, na minha opinião, essencial para toda filosofia da psiquiatria, se estabeleceram, com outras práticas de outros coletivos, relações um pouco mais iguais (vi). A gente não procura mais, com alguma condescendência, ver nas outras técnicas de cura a versão velada da psiquiatria ocidental, mas a gente se põe a comparar procedimentos distintos para entrar em situações que não têm forçosamente o psiquismo como seu único ingrediente. Esta relação mais igual se caracteriza por três traços: o respeito pela psiquiatria como prática; o reconhecimento de terapeutas, ditos tradicionais, tal como colegas possuidores de outros diplomas e de outras qualificações; e, enfim, a abertura à possibilidade de reconhecer na cura o papel de seres exteriores ao sujeito autônomo. Todo este trabalho comum não pode mais ser simplesmente reconhecido como oposição entre psiquiatria racional e charlatanismo irracional – a extensão da indústria farmacêutica proibindo de qualquer maneira considerar a psiquiatria ocidental como um ser “enfim racional” (vii).

O segundo conjunto de trabalhos vem da “antropologia da natureza” – a expressão, por si mesma, é capital, tal que Philippe Descola a leva ao Collège de France (viii). Neste trabalho, que ele chama de “naturalismo”, Descola não fala do corpo, mas de uma estranha noção que engendra Mind/Body como um dos modos de relação possível que os coletivos (esta é a expressão que todos nós tanto utilizamos para não falar de culturas) mantêm com os seres que os compõem. Eu recordo que o “naturalismo” é uma só das quatro formas que podem tomar estas relações: as três outras – anímica, totêmica e analógica – seja ignorando totalmente a natureza tão bem quanto Mind/Body, seja o completamente inverso, como é o caso do animismo, o qual, ao contrário, faz do corpo o elemento que especifica as almas humanas da qual todos os seres – árvores e animais – são, de fato, compostos (ix). O que me intriga sempre nesta situação, e que Descola mostra, muito discretamente, é que o naturalismo é a mais antropocêntrica das quatro formas de relação, o que não tem o ar de muito chocar seus colegas biólogos ou físicos que não devem ler com muito cuidado. O que prova quão pouco o esquema Nature/Culture tem controle sobre as práticas...

A importância destes trabalhos de antropologia, mesmo que eles não sejam necessariamente compatíveis entre si, é que a gente já pode ver que as desordens que vocês estudam podem ser tomadas nos outros coletivos para todas as outras formas de conflitos que aqueles do naturalismo. Embora Descola não tenha tirado consequências psiquiátricas de seu trabalho, é claro que não se tratam dos mesmos seres e dos mesmos conflitos, que a gente não fica doente da mesma forma, que nós não tratamos com as mesmas terapias, dependendo se a gente encontra-se em um coletivo anímico, totêmico ou analógico. Em qualquer caso, Mind/Body não pode servir de modelo para julgar todos os outros modos e não pode constituir uma forma universal de psiquiatria que poderia ignorar as variações antropológicas.

Uma vez identificados estes trabalhos, é possível se engajar na questão sem recorrer ao esquema Nat/Cul? Isto é o que eu queria tentar nesta exposição.

O primeiro recurso é, evidentemente, voltar sua atenção em direção à exterioridade dos seres cuja ação é referência nas desordens que vocês aprenderam a atender, a seguir, a curar. Esta exterioridade, vocês a conhecem bem, foi esboçada por Devereux; em seguida, foi trilhada indiscutivelmente por Nathan e reina, evidentemente, nos coletivos que não se identificam com o naturalismo. O qual tem a obrigação de situar os distúrbios na maquinaria psicológica do sujeito autônomo ou na máquina chamada equivocadamente de “corpórea” ou “material” da física, tentando sempre, mas sem jamais conseguir, estabelecer um equilíbrio entre os dois. Para utilizar um topos de Nathan, é a diferença entre ansiedade e o medo: lutar contra a ansiedade é compreender que não tem nada na frente e auxiliar o sujeito a tornar-se sempre mais autônomo e respeitoso de sua subjetividade nativa; em seguida, lutar contra os medos é dirigir seu olhar para o que nos assusta, é dizer para os seres que nós temos e nós fabricamos e com o qual temos que aprender a estabelecer relações por intermédio de especialistas e rituais (x). A atenção não vai na mesma direção. E o tratamento não se conduz mais do mesmo modo.

Nesta segunda forma de atenção, nós estabelecemos, com os outros coletivos, relacionamentos todos diferentes, pois reconhecemos que eles estão abertos para formas de transição com seres cuja exterioridade deve ser de alguma forma postulada. Isto não quer dizer que esses seres têm o modo de existência como mesas e cadeiras, mas que eles têm uma maneira própria e que a etnografia de práticas culturais e terapêuticas deve se esforçar para descrever as características. Poderíamos dar-lhes o nome provisório de seres "psicogênicos", no sentido em que geram o psiquismo – pelo menos é assim, conosco, que aprendemos a canalizar suas ações.

Há uma primeira vantagem de tal situação de igualdade com outros coletivos. Esta primeira é a de ampliar a base comparativa de sua disciplina, como se agora dispuséssemos de uma vasta enciclopédia de técnicas de instauração de seres psicogênicos em todo o mundo. Podemos, então, começar a comparar um pouco a sério os modos de produção de sujeitos bem como aqueles que os seguram, os fabricam, os possuem ou, ao contrário, os soltam ou os fazem viver, os perturbam ou os matam. Como bem mostrou Devereux e também Nathan, é um imenso triunfo para poder estender a gama de dispositivos, em particular, em situações de migrações, que há muito tempo deslocou a barreira de povos e seus dispositivos terapêuticos (xi).

Porém, a outra vantagem, que me parece também a mais importante, é permitir o retorno reflexivo do olhar antropológico sobre nossos próprios coletivos. Esses coletivos ditos, erroneamente, racionais e científicos. E, em particular, começar a considerar os medicamentos não com o advento de uma psiquiatria enfim racional, mas como um procedimento, particularmente interessante e controverso, para instaurar seres onde a exterioridade, lá pelo menos, não é uma questão de fato. Sua proveniência exterior é indicada sobre as caixas farmacêuticas graças às etiquetas: eles não vêm do "nosso eu mais profundo". Evidentemente, esses não seriam mais seus laços de causalidade que nos intrigariam então; laços que você conhece toda a fragilidade e também a estranheza de seus efeitos (xii). Nós começaríamos a comparar as cadeias de ação e suas consequências, libertadas da obsessão por cadeias de causalidade; este famoso "chemical imbalance" (desequilíbrio químico) – que eu também mantenho na sua versão inglesa para assinalar a estranheza (xiii).

Nós poderíamos, aliás, ir muito mais longe e não considerar somente os medicamentos, mas toda a instituição do psiquismo em nós, os ocidentais, continuando isto que foi iniciado por Foucault, estendendo sempre mais suas noções de dispositivo. É que precisamos de seres para gerar nossas interioridades (xiv). Ele necessitaria aí acrescentar a pressão do coração, o divã do analista, a telerrealidade, os jogos de vídeo, os filmes de terror; em resumo, o que um dos fundadores da sociologia francesa, Gabriel Tarde, chamaria de "a interpsicologia" – por oposição com a intrapsicologia e da qual ele fez a DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.n01tradução01 212 Rev. Nufen: Phenom. Interd. | Belém, 11(2), 208-219, mai. – ago., 2019. definição mesmo do social. Eu recordaria sua definição: "O que é a sociedade? Poderíamos defini-la, do nosso ponto de vista: a possessão recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um" (p.85) (xv). Potente ideia sobre a maneira como nossos coletivos compõem sua relações por possessão recíproca.

Mas, infelizmente, nós não podemos tirar partido dessas vantagens; falta uma filosofia adequada. E não há nada a fazer. Não vale a pena nos iludirmos com falsas esperanças. Situar no exterior, na instituição psicogênica, tais seres, abre necessariamente polêmicas, visto que nós damos a impressão de abandonar a diferença entre o racional e o irracional. Acredita-se que priva a psiquiatria de sua grande ruptura epistemológica do seu passado de charlatanismo. Como se estivesse "acreditando em fantasmas" ou demônios. Como se nós demandássemos à psiquiatria abandonar sua Grande Narrativa de procura pela Razão, abandonar seu passado arcaico, graças à esta famosa revolução copernicana da qual a periodização pode variar segundo a escola à qual se pertence; alguns o colocam do lado de Pinel, outros de Freud, outros, por fim, no momento em que as drogas finalmente se tornam "eficazes".

E é verdade, eu sou o primeiro a reconhecer: não existe filosofia capaz de servir de base ou de casa de acolhimento a tais seres, pelo menos em nosso clima e nas circunstâncias presentes. Nós não temos a ontologia, não temos um lugar, para aí colocar a presença do não irracional dos seres do psiquismo. Mas, e isto pode ser o lugar onde as coisas podem lhe interessar, não ter o lugar para então arrumar, para então colocar os medicamentos gerais de diagnósticos improváveis. A gente vê bem a que ponto será absurdo utilizar Mind/Body para se assinalar as polêmicas, visto que, se é verdade, em nós, não há lugar filosófico, antropológico para os seres exteriores que os outros coletivos sabem bem instaurar, não há mais ninguém para aí situar a influência, cada dia maior, dos medicamentos.

Os artigos de Marcia Angell no New York Review of Books são muito claros. Situação verdadeiramente trágica, bem estudada no livro de Kirsch, The Emperor New Drugs, bem como no de Roberto Whitaker, pois não há trabalho que permita compreender porque os medicamentos funcionam nem o que pode ser a diferença com os placebos! Como diz Leon Eisenberg, American psychiatry has moved from a state of brainlessness to a state of mindlessness in the 20th century (No século XX, a psiquiatria americana passou de um estado de ausência de sentido para um estado de falta de atenção). Que nos poupem, em todo caso, o argumento de um sistema de cuidado capaz de se opor à "irracionalidade" de técnicas tradicionais. Vamos compará-los, termo a termo, sem aí introduzir, pelo menos, a distorção do racionalismo.

Esse problema atinge vossa sociedade no coração: estamos desarmados na frente desta construção artificial – no bom sentido do termo – sem poder considerá-la ainda como uma forma grave de desrazão. Pelo contrário, essa é toda eficiência do esquema, tão controverso, de Mind/Body: qualquer crítica, qualquer dúvida, qualquer incerteza sobre a eficácia deste domínio, você imediatamente muda para o lado da subjetividade, da irracionalidade, do arcaísmo.

É aqui que você tem que encontrar uma solução, uma arma crítica que escaparia da armadilha Mind/Body e que talvez permita lutar sem ocupar a situação imediatamente de perdedor.

A questão poderia se abrir se nós aceitássemos não exotizar as próprias práticas. O exotismo é um pecado para a antropologia; mas existe um outro pecado para o antropólogo que sou – e este é do Ocidentalismo. Este exotismo que nos faz crer que nós "temos corpos"; que eles estão mergulhados em uma matéria; que esta matéria, esta res extensa, é contínua; que ela é também universal e, nesse sentido, que ela se estende por toda parte, compondo igualmente o substrato de todos os coletivos. E estes corpos, simples concatenação de causas e feitos, se opuseram às coisas do espírito conforme o esquema do naturalismo. A ideia mesma do "chemical imbalance" na versão estandardizada da indústria farmacêutica e pela formatação disciplinar do DSM: tudo o que está no espírito dependerá de uma variação na distribuição dessas concatenações materiais de causa e efeito, variações que os medicamentos viriam favoravelmente remediar. Podemos sair da situação em que, assim que nos recusemos a falar de "brain", estamos imediatamente obrigados a falar de mente. Como se estes que falam de medicamentos, falassem admiravelmente de "cérebro".

Vocês vêem o caminho tênue que eu ensaiei traçar. Normalmente, toda crítica de brainlessness (ausência de sentido) conduz infalivelmente para mindlessness (ausência de atenção). Porém, é dar muito ao inimigo. É supor que um lado de "brain" define bem o corpo, que ele absorve bem a objetividade, a positividade com a qual ele se confunde completamente. Que é isso, efetivamente, "ter um corpo". Mas, então, você aceita fazer de "mind" uma vila gaulesa de Asterix e você abandona ao império dos medicamentos todo o resto. Ora, nós não somos corpos que residem na res extensa. Ninguém jamais residiu na res extensa, que é um meio, de importância capital, para desenhar e conhecer o mundo. A res extensa é o mapa, não o território (xvi). Não mais que não vivemos em um mapa, não residimos no conhecimento do corpo.

A questão torna-se esta: existe uma arma crítica que não empurre imediatamente quem se compromete na crítica aos "excessos da indústria farmacêutica" para defender o espírito, a fala e a subjetividade? Não deveríamos ir, ao contrário, liberar o corpo e o cérebro para torná-los um pouco mais capazes de articulações originais, para darlhes muitos outros poderes para agir do que aqueles que ele reconhece como Mind/Body? Podemos desencarcerar os corpos? Um corpo não é de todo um Body mais uma Mind. Não adianta acusar o pobre Descartes. Ele, pelo menos, ainda tinha em torno si um grupo inteiro de seres com que comprometer: Deus é claro, mas também os matemáticos e Malin Génie, para citar alguns.

Se eu insisto sobre esse ponto, é porque eu tive a chance de residir no Laboratório de Roger Guillemin, no momento em que todas as equipes do mundo estavam lançadas na descoberta, invenção, estabilização, domesticação (escolha sua filosofia da ciência) de encefalinas seguidas de endorfinas (xvii). E, assim, pude observar, em primeira mão, como poderíamos adicionar um novo neurotransmissor ao que compõe um corpo, cuja presença também foi descoberta graças ao fato de que mimetizou substâncias de opiáceos artificiais provenientes de fora; antes disso, são essas substâncias que se tornam, por sua vez, as imitadoras da endorfina... Sem a instituição do laboratório, sem a longa prática de dependência de opiáceos, sem o trabalho de especialistas em cérebro, não teríamos endorfina.

Tudo depende do significado que damos ao verbo "ter" – lembre-se da definição que Tarde dá para interpossessão. Não separe a endorfina muito rapidamente de seu laboratório e da rede que ainda é necessária, hoje, para manter e expandir – para que seus pacientes possam "tê-la". Essa rede deve ser seguida mesmo que a endorfina tenha se tornado um dos termos mais comuns. Atenção, o ponto é delicado e eu vou levá-lo muito rapidamente; peço desculpas: adicionar um novo componente é definir, como Fox-Keller tem visto claramente, uma influência possível sobre o corpo (xviii). Não é definir do que o corpo é composto fora de qualquer influência.

Há um ramo essencial que envolve nossa teoria da ciência e da política, e que eu chamo, por essa razão, de epistemologia política (qualquer epistemologia é política, muitas vezes simplesmente controversa) (xix). A história da descoberta de medicamentos (muitos desses trabalhos foram publicados para o Empêcheurs, graças ao corajoso trabalho editorial de Philippe Pignarre, que vocês certamente conhecem: um trabalho crítico sobre a indústria farmacêutica) mostraria porque nunca se deve separar o conhecimento de sua prática e de sua instituição (xx).

Dispomos, favoravelmente, com o império do DSM, do perfeito gabarito: sem a instituição do DSM, sem as sociedades eruditas que apóiam a padronização, sem sua inclusão nos protocolos de avaliação, sem seu enraizamento nos procedimentos de reembolso, você não pode inscrever seus pacientes nessas novas doenças. O que se compreende perfeitamente com o DSM, frequentemente por se indignar que ele engendre tantas "doenças medicamentosas", para usar a expressão definida acima, falta compreendêlo para ingredientes mais duradouros e estabelecidos, como a endorfina. O que é verdade da Mind, o é também do Body. Nós não podemos nos orientar em tais problemas sem manter sempre em primeiro plano os instrumentos, as profissões, os fluxos de dinheiro, as organizações, as rotinas, as leis que permitem garantir a continuidade espaço-temporal desses fenômenos. É neste ponto que devemos manter, a todo custo, a diferença filosófica e política entre a suposta continuidade das cadeias de causalidade do tipo físico e a composição progressiva, cara e delicada dos diferentes ingredientes que virão a definir um corpo.

Essa diferença é ainda mais importante, pois permitirá identificar o desaparecimento progressivo e a gênese progressiva de doenças inteiras – este é, por exemplo, o trabalho de Ian Hacking (xxi). Você sabe o quanto a doença de múltiplas personalidades teve vida limitada. Foi preciso trabalhar para produzi-la, estendê-la e depois fazê-la desaparecer pouco a pouco! O que muitas personalidades levaram para "ter", por um tempo, essa doença de múltiplas personalidades! Bem, esse tipo de existência, esse envelope espaço-temporal, é o modo de existência de todos os seres chamados a compor nossos coletivos. Nunca devemos assumir sua existência autóctone e nativa, mas sim focar nas redes que as produzem, o único meio crítico, na minha opinião, para começar a limitar o número ou mudar o modo de presença. Há toda uma terapia coletiva que só pode ser feita com a condição de reconhecer as instituições geradoras de corpos e também de espíritos – o que o esquema Nature/Culture ou Mind/Body não pode capturar.

Mas, neste caso, tudo é o corpo que mais sofre. Você pode ver quanto o caminho que procuro trilhar se distingue de um caminho fenomenológico, mesmo que haja uma rica tradição em psiquiatria (lembro do meu entusiasmo em ler Eugene Minkowski). Essa é a ambiguidade do termo "vivido". Quando mencionamos a experiência ou a palavra, acreditamos que devemos nos mover em direção ao Mind e que, assim, nos afastaremos do Body, que seria bem tratado pela materialidade e pela causalidade. Mas é exatamente o oposto. O chamado à experiência é, antes de tudo, para o corpo que deve direcionar a atenção. O corpo também é articulado. Existe apenas Mind/Body para fazer isso de morto. As moléculas também exigem que as consideremos "em sua experiência" e "de acordo com suas articulações" (xxii). Não devemos abandonar o corpo ao inimigo. Sem que isso seja limitado à "experiência vivida do sujeito", deve ser totalmente desarmado diante da invasão do Body. Há espaço para uma definição objetiva do corpo, que o grande filósofo Whitehead chama precisamente de organismo, cuja objetividade é enriquecida pelo apego e tomada de redes científicas, mas que nada têm a ver com esses ersatz de objetos encontrados no esquema Mind/Body.

Para perseguir esta filosofia, seria necessário aceitar um certo pluralismo ontológico que o esquema naturalista interdita, em teoria – embora, claro, na prática, seja outro assunto. Esta é a origem do meu interesse em um livro estranho e ignorado de Etienne Souriau sobre os diferentes modos de existência (xxiii). Basicamente, a questão é se podemos contar além de dois: um Mind; dois, Body... Ou melhor, além de um! Porque, de fato, quando falamos de Mind/Body, a unidade está imediatamente sob os auspícios do mais material dos dois termos, na verdade, um idealismo disfarçado. Nós temos a mente, mas ainda é o corpo. Daí o estado de "mindlessness" que Eisenberg estava falando. (Lembro que uso o inglês para enfatizar no stabilo o caráter étnico, local e provincial dessas noções tomadas por fundamentos universais).

Souriau define, além de um belo modo de existência, a alma – da qual ele diz, soberbamente, que se pode perdê-la... Há toda uma psiquiatria de almas que pode ser perdida, psiquiatria sem relação com a Mind; assim como existem seres objetivos, como a endorfina, sem relação com o Body. Ou melhor, deve-se dizer, seguindo-a, que há objetividades concorrentes e companheiras, uma das quais torna possível seguir as almas e a outra os produtos da ciência, mas, no meio de muitos outros, igualmente objetivos, contudo, cujas capacidades ontológicas ainda são diferentes. Lá, nós realmente sairíamos do jogo do swing que vocês conhecem tão bem, sob o nome, precisamente, de "chemical imbalance". Porém, aqui devemos ser capazes de contar, em filosofia, além de um, dois ou mesmo três (incluindo os movimentos da dialética).

Chegou a hora de concluir sobre a proposição que eu faço a vocês: existe, nessas filosofias, é verdade bem pouco ortodoxas, o suficiente para dar força ao seu pensamento – eu deveria dizer –, na luta da sua empresa? É possível tomar uma outra posição crítica? Poderíamos, então, situar o império e o medicamento de maneira diferente, dizendo: pode ser interessante artificializar o corpo dos pacientes, conectando-os a esses dispositivos de laboratório, porque nos permite "ter", por exemplo, a endorfina (eu continuo neste exemplo). Contudo, a posse por esses dispositivos não define nossos pacientes, ou a nós mesmos, e não tem capacidade de subtrair outras posses e outros dispositivos necessários para sua continuidade na existência.

Isso também é verdade; no entanto, estudei muito esse paradigma pastoral que a indústria farmacêutica continua tomando como modelo, como se apenas estivesse prolongando a mesma busca por medicamentos, na psiquiatria, que Pasteur na luta contra doenças infecciosas (xxiv). Ter uma doença, ter um medicamento, assinar uma rede de produções de conhecimento sobre um ser natural não define a Nature com um N maiúsculo, mas define um tipo de ramificação e conexão. Podemos decidir estender essas conexões, mas essas conexões mantêm buracos suficientes para que possamos passar muitos outros seres. Não dê aos seguidores do Body a capacidade de "preencher", definindo todas essas conexões antecipadamente. Eles estão expandindo suas redes. Muito bem. Mas temos todo o direito de interromper essas conexões, para desviar os efeitos: não há um cantão ontológico que seja delimitado. Deveria ser possível fazer o mesmo trabalho feito por Hacking, nos 365 diagnósticos do DSM 4, para identificar cada vez que o dispositivo de evidência, os instrumentos, as profissões, as fontes de dinheiro que permitem tal extensão, comparando peça por peça, o que for respeitável e o que não for de nenhum modo. A indústria farmacêutica não tem o poder de definir a ontologia e, portanto, a antropologia dos modernos.

Então, vocês compreendem que a implantação de controvérsias nessas redes – e cada "doença medicamentosa" mereceria uma análise aprofundada – não desenha de todo a mesma paisagem que a disputa bastante triste entre os proponentes do medicamento e os da "palavra do sujeito", repetindo indefinidamente a grande cena da revolução científica que deu origem à psiquiatria, enfim, racional. Desde o início dos tempos que em todos os coletivos curamos as desordens de composição do mundo. O nosso não é o menos estranho. Se é perfeitamente legítimo juntar as capturas permitidas pelos laboratórios, é supérfluo concedê-las antecipadamente e sem lutar contra o poder de definir do que o mundo é feito. Este método de deflação das pretensões filosóficas e esta localização das redes talvez permitam fazer circular outros seres psicogênicos, sem exigir deles de imediato que demonstrem se são bacon ou porco – tanto que eles são mesmo do gênero porco. Espero ser perdoado por esta proposta, de ter usado temporariamente o abrigo do "nós", para me dirigir a vocês.

 

 

Nota do Tradutor: mantivemos as referências ao final do texto na mesma ordem da publicação original, assim como a língua em que aparecem no texto em francês. As traduções existentes em português são encontradas ao final da referência.

 

i Irving Kirsch, The Emperor"s New Drugs: exploding the antidepressant myth, Basic Books (2011).

ii Stuart Kirk et Herb Kutchins, Aimez-vous le DSM? Le triomphe de la psychiatrie américaine, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1998). Robert Whitaker Anatomy of an Epidemic: Magic Bullets, Psychiatric Drugs, and the Astonishing Rise of Mental Illness in America, Crown. Sue Estroff, Le labyrinthe de la folie. Ethnographie de la psychiatrie en milieu ouvert et de la réinsertion, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1998). Philippe Pignarre, Comment la dépression est devenue une épidémie, La Découverte, Paris (2001). Anne-Marie Mol, The Body Multiple: Ontology in Medical Practice (Science and Cultural Theory), Duke University Press, (2003).

iii Maladies à vendre, Anne Georget & Mikkel Borch-Jacobsen, 2011, The Factory Productions.

iv Georges Devereux, Essais d'ethnopsychiatrie générale (troisième édition), Gallimard, Paris (1983).

v Tobie Nathan, L'influence qui guérit, Editions Odile Jacob, Paris (1994).

vi Tobie Nathan, La guerre des psys. Manifeste pour une psychothérapie démocratique, Les Empêcheurs, Paris (2006). Tobie Nathan and Isabelle Stengers, Médecins et sorciers, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1995).

vii Marcia Angell « The illusions of psychiatry », The New York Review of Books, July 14th, 2011.

viii Philippe Descola, Par-delà nature et culture, Gallimard, Paris (2005). [Além de natureza e cultura. Tessituras, Pelotas, v. 3, n. 1, p. 7-33, jan./jun. 2015. Traduzido da versão em inglês].

ix Eduardo Viveiros de Castro, Métaphysiques cannibales, PUF, Paris (2009) [ed. bras.: Metafísicas Canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac e Naify, 2015].

x Emilie Hermant, Clinique de l'infortune : la psychothérapie à l'épreuve de la détresse sociale, Les Empêcheurs, Paris (2004).

xi Byron J. Good, Comment faire de l'anthropologie médicale? Médecine, rationalité et vécu, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1998).

xii Philippe Pignarre Le Grand secret de l"industrie pharmaceutique, La Découverte, 2004.

xiii Andrew Lakoff, La raison pharmaceutique, Les Empêcheurs, Paris (2008) ; Robert Whitaker, Anatomy of an Epidemic: Magic Bullets, Psychiatric Drugs, and the Astonishing Rise of Mental Illness in America, Crown, New York (2010).

xiv Livia Velpry & Alan Ehrenberg Le quotidien de la psychiatrie: sociologie de la maladie mentale, Armand Colin (2008); Sue Estroff, Le labyrinthe de la folie. Ethnographie de la psychiatrie en milieu ouvert et de la réinsertion, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1998).

xv Gabriel Tarde, Monadologie et sociologie, Les empêcheurs de penser en rond, Paris (1895/1999) [ed.bras.: Monadologia e sociologia e outros ensaios. São Paulo, Cosac Naify, 2007].

xvi Bruno Latour, Cogitamus. Six lettres sur les humanités scientifiques, La Découverte, Paris (2010). [ed. bras.: Cogitamus: seis cartas sobre as humanidades cientificas. São Paulo, Ed. 34, 2016].

xvii Bruno Latour and Steve Woolgar, La vie de laboratoire, La Découverte, Paris (1988)[ed.bras.: A Vida de Laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1997]; Jeff Goldberg, Anatomy of a Scientific Discovery, Bentham Book, New York (1988); Solomon Snyder, H., Brainstorming. The Science and Politics of Opiate Research, Harvard University Press, Cambridge Mass (1989).

xviii Evelyne Fox-Keller, Le rôle des métaphores dans les progrès de la biologie, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1999).

xix Bruno Latour, L'espoir de Pandore. Pour une version réaliste de l'activité scientifique (traduit par Didier Gille), la Découverte, Paris (2001)[ed.bras.: A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos científicos. Bauru, SP, EDUSC, 2001].

xx Adèle Clarke and Joan Fujimura, La matérialité des sciences. Savoir-faire et instruments dans les sciences de la vie, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1996) ; Steven Epstein, Histoire du Sida tome 1 et 2, Les empêcheurs de penser en rond, Paris (2001).

xxi Ian Hacking, L"âme réécrite. Etude sur la personnalité multiple et les sciences de la mémoire, Les Empêcheurs de penser en rond, Paris (1997).

xxii Hans-Jorg Rheinberger, Toward a History of Epistemic Thing. Synthetizing Proteins in the Test Tube, Stanford University Press, Stanford (1997).

xxiii Etienne Souriau, Les différents modes d'existence. Suivi de "l'Oeuvre à faire" (précédé d'une introduction "Le sphinx de l'oeuvre" par Isabelle Stengers et Bruno Latour) (PUF, Paris (2009 (1943).

xxiv Bruno Latour, Pasteur: guerre et paix des microbes suivi de Irréductions (rééditions avec quelques modifications de l'édition de 1984), La Découverte, Paris (2001).

 

 

 

1 Tradução para o português autorizada pelo autor e em conformidade com a Lei de Direitos Autorais vigente no Brasil. Todos os direitos desta versão são reservados à Revista Nufen: Phenomenology and interdisciplinarity.

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