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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.11 no.3 Belém Sept./Dec. 2019

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo60 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol11.nº03artigo60

 

Narrativas de adoecimento e encontros com um centro de sáude mental italiano

 

Illness narratives and encounter in an Italian Mental Health Day-Care Center

 

Narrativas de adolecer y encuentro con un Centro de Salud Mental Italiano

 

 

Luciane Prado KantorskiI; Mario CardanoII,I; Roberta Antunes MachadoIII, I ; Luana Ribeiro BorgesIV, I

Universidade Federal de Pelotas

Universidade de Turim

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul

Universidade Federal do Pampa

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta narrativas voltadas para a experiência de adoecimento enfatizando rupturas, encontro e ressignificação. Tem como objetivo compreender a experiência de adoecimento e sua ressignificação através da narrativa de pessoas com um percurso num Centro Diurno de Saúde Mental do norte da Itália. Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, baseado num processo de compreensão hermenêutica de 12 narrativas em primeira pessoa de 8 homens e 4 mulheres. A coleta de dados ocorreu nos anos de 2015 e 2016, durante um trabalho de campo no Centro Diurno de Settimo Torinese. Os resultados das narrativas apontam um tempo de rupturas relacionais, afetivas, no trabalho, nos projetos de vida destas pessoas, e um tempo de recomeço com o encontro com o Centro Diurno de Saúde Mental, marcado com novas possibilidades de pertencimento, de estar em comunidade e de valorização da experiência vivida.

Palavras-chave: Doença; Narrativas; Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental.


ABSTRACT

This article presents twelve illness narratives of mental health patients, focusing on biographical disruption and resignification of personal experiences. The aim of the essay is the comprehension of the experience of illness and its resignification through the narrative of people attended by a Day-care Center of Mental Health in the North of Italy. The data collection was carried out in 2015 and 2016, during fieldwork in the Day-care Center in Settimo Torinese. A qualitative analysis of the textual corpus, underpinned in a hermeneutic posture, documents a set of deep biographical breakages in work, love and social relations areas, but also the presence of a set of resources fueled by the care relations in the Day-care center for new possibilities of being in the word and belonging to a community where their experiences can be accepted and appreciated.

Keywords: Illness; Narratives; Mental Health; Mental Health Services


RESUMEN

Este artículo presenta narrativas volcadas para la experiencia de adolecer enfatizando rupturas, encuentro y resignificación. Tiene como objetivo comprender la experiencia de adolecer y su resignificación a través de la narrativa de personas con un recorrido en un Centro Diurno de Salud Mental del norte de Italia. Se trata de un estudio de abordaje cualitativo, basado en un proceso de comprensión hermenéutica de 12 narrativas en primera persona de 8 hombres y 4 mujeres. La colecta de datos ocurrió en los años 2015 y 2016, durante un trabajo de campo en el Centro Diurno de Settimo Torinese. Los resultados de las narrativas apuntan hacia un tiempo de rupturas relacionales, afectivas, en el trabajo, en los proyectos de vida de estas personas, y un tiempo de recomienzo con el encuentro con el Centro Diurno de Salud Mental, marcado con nuevas posibilidades de pertenecer, de estar en comunidad y de valorización de la experiencia vivida.

Palabras-clave: Enfermedad; Narrativas; Salud Mental; Servicios de Salud Mental.


 

 

INTRODUÇÃO

As narrativas como estratégia de pesquisa qualitativa para compreender os processos de adoecimento têm sido muito utilizadas em saúde e em saúde mental e sua importância pode ser atribuída a sua grande potência subjetiva e social de conferir significado e sentidos a experiência humana (Cardano 2007, 2010).

A experiência, para a fenomenologia, fala sobre o modo de ser no mundo, sobre a ação do sujeito no tempo e no espaço, através do seu corpo, ligando a natureza a cultura e indo além das possíveis representações. Nesta perspectiva da experiência do adoecimento interessa conhecer como a interação com o mundo é vivenciada. A relação desta pessoa com o mundo, mediada pela sua experiência compõem a realidade. A experiência da vida cotidiana, não pode se definir nem somente pelas representações abstratas do mundo, nem como uma produção individual do sujeito exclusivamente. (Leal, & Serpa Junior, 2013).

Um dos principais interessados na definição do adoecimento como uma experiência pessoal e social e na formulação de modelos explicativos foi Kleinman (1988) e os trabalhos decorrentes desta compreensão influenciaram a produção científica brasileira sobre o tema. Tem importante contribuição a diferenciação utilizada pelo autor entre os conceitos de illness que diz respeito à experiência humana, ou seja, a como as pessoas percebem, vivem e reagem diante da doença e tudo que ela provoca; o conceito de disease que indica as alterações na estrutura funcional do corpo; e o conceito de sickness que é o processo que atribui valor social, econômico e político à doença. A busca de esquemas lógicos, de atribuições causais e de modelos explicativos de narrar a experiência de adoecimento consistiu no foco dos trabalhos antropológicos de Kleinman.

Rabelo, Alves e Souza (1999) apresentam uma coletânea de estudos que têm como fio condutor a experiência de doença e a narrativa de pessoas que vivem a doença mental e convivem com ela, como os familiares, de um bairro de Salvador. Neste estudo, demonstram como o discurso genérico sobre a loucura assume sentidos diversos nos relatos concretos classificando os signos indicadores de doença mental em onze tipos básicos: signos relacionais, de violência, isolamento, agitação, alterações no discurso, problemas no campo da percepção (delírio e alucinação), ataques e crises, desempenho de papéis sociais, aparência, emoção, comportamento bizarro.

Para Maluf (1999) o interesse da antropologia nas narrativas, nesta capacidade humana de contar histórias, consiste em pensar "a variedade e a riqueza" que compõem esta tessitura concomitante do subjetivo e do social, e tem a capacidade de inserir sentidos e significados em um contexto mais amplo de itinerários pessoais e coletivos, aproximando o singular e o universal.

A potência da utilização das narrativas no campo da saúde, enquanto categoria de mediação entre a experiência e o discurso é retomada fortemente por autores como Williams (1984), Estroff, Lachicotte,, Illingworth, Johnston (1991), Davidson (1993), Maluf (1999), Rabelo, Alves e Souza (1999), Bury (2001), Van Dogen (2003), Onoko - Campos e Furtado (2008), Bastos e Deslandes (2008), Nunes e Torrenté (2009), Nunes, Castellanos e Barros (2010), Favoreto e Camargo Júnior (2011), Leal e Serpa Junior (2013), Onoko-Campos et al (2013), Castellanos (2014) a partir de diferentes abordagens (fenomenológicas, antropológicas, entre outras).

Ricoeur (1997) evidencia a relação entre tempo e narrativa, considerando que as narrativas são as histórias que ainda não foram contadas, e destacando que se algo pode ser narrado, está simbolicamente mediado. Este autor atribui a origem da narrativa a poética de Aristóteles e as aporias do ser e não-ser do tempo de Santo Agostinho e considera a narrativa como mediadora entre a experiência e o discurso, contribuindo para superar o distanciamento entre compreender e explicar. As narrativas além de organizarem interpretações, elas são formas de agenciamento social, pois o encadeamento das ações, os argumentos utilizados quando a história é contada produzem novos sentidos.

Deste modo, o presente artigo tem como objetivo compreender a experiência de adoecimento e sua ressignificação através da narrativa de pessoas com um percurso num Centro Diurno de Saúde Mental do norte da Itália.

 

MÉTODO

Este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa e segue os dois traços metodológicos essenciais da mesma: a priorização do aprofundamento do detalhe em um estudo intensivo com um pequeno número de informantes e a harmonização do método as características do objeto de estudo (Cardano, 2017, 2020).

Deste modo, a pesquisa foi desenvolvida no Centro Diurno de Settimo Torinese na região norte da Itália, particularmente por se tratar de um serviço com um forte empenho de cuidado no território que confere a possibilidade da pessoa em sofrimento psíquico retomar nas mãos o poder sobre sua própria vida. Um serviço inserido no contexto da revolução Basagliana, que impulsionou a extinção dos manicômios na Itália a partir do final dos anos 70 e apropriado das ideais de Basaglia (1979) de sobrepor ao pessimismo da razão o otimismo da prática.

Neste serviço, foi realizado um trabalho de campo de um ano, entre 2015 e 2016 e durante este período foram coletadas as 12 entrevistas narrativas (8 com homens e 4 com mulheres), escritas, traduzidas, revistas e reescritas, contando com um forte vínculo estabelecido ao longo do trabalho de campo, entre pesquisador e os participantes do estudo.

A opção do estudo pelas narrativas em primeira pessoa se deve a possibilidade do sujeito participante do estudo comunicar sua experiência subjetiva de adoecimento através de uma narrativa mínima que colocasse em palavras o seu vivido. Apesar desta ainda ser uma narrativa singular, este participante se constitui num sujeito narrativo hermenêutico quando reflete sobre sua história, demonstra seu pertencimento a uma comunidade linguística, expressa valores e significados ancorados em sua cultura. (Leal, & Serpa Junior, 2013).

Gadamer (1997) em "Verdade e método" trabalha alguns conceitos que fundamentam o processo de compreensão hermenêutico que são: a tradição, o preconceito e a história efeitual. O autor, diz que a tradição apresenta as diversas vozes do que é hegemônico e do que é novo, estando atuante no presente e nas mudanças históricas. Destaca o preconceito em sua positividade, considerando que nossos preconceitos estão mais próximos dos nossos valores e crenças do que da racionalidade. Referindo-se a Heidegger, Gadamer também aponta que todo entendimento pressupõe um pré-entendimento; do mesmo modo qualquer julgamento não pode passa de um pré-conceito. E a história efeitual, destacando a importância do distanciamento histórico que permite buscar no passado elementos para compreensão do presente.

A análise das narrativas neste artigo foi orientada a partir da hermenêutica e encontra-se apresentada em dois temas: narrativas da experiência de adoecimento: um tempo de rupturas; e narrativas do encontro com o Centro Diurno: um tempo de recomeço.

O presente estudo faz parte da pesquisa "A constituição de práticas sociais desinstitucionalizantes no contexto brasileiro e italiano" aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, parecer 750.144 de 13 de agosto de 2014. Foram respeitados todos os preceitos éticos previstos na legislação e todos os participantes assinaram o consentimento livre e informado. As narrativas em primeira pessoa estão identificadas no texto por nomes fictícios, como: Luca, Leonardo, Giovanna, entre outros.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O surgimento do sofrimento psíquico em geral produz importantes rupturas na esfera pessoal e profissional das pessoas que o vivenciam (BURY, 1982; FRANK, 1995). O estigma e o preconceito sobre o adoecimento psíquico ainda promove o silenciamento e o isolamento social dos sujeitos que passam por essa experiência (Felicissimo, Ferreira, Soares, Silveira, & Ronzani,2013; Nascimento, & Leão, 2019).

Ao longo da vida dos participantes desse estudo existiu uma dinâmica constante de reprodução do modus operandi, a partir de uma compreensão da doença como condição limitante. Um processo contínuo de recomeços e rupturas emergiu marcado no discurso um movimento de busca do novo, que abre espaço para uma vida desejante para esses sujeitos que por decisão individual ou coletiva, acessaram os serviços de saúde mental com a intenção de encontrar alternativas de cuidado para seu processo de adoecimento.

A medida em que narram suas histórias esses sujeitos discorrem acerca das rupturas que a experiência de adoecimento produziu em suas vidas e falam como o encontro com o Centro Diurno marcou um tempo de recomeçar. Esses discursos autobiográficos compuseram as temáticas discutidas a seguir.

 

NARRATIVAS DA EXPERIÊNCIA DE ADOECIMENTO: UM TEMPO DE RUPTURAS

A experiência do adoecimento psíquico é marcada por momentos de rupturas na subjetividade e nas relações sociais, laborais e econômicas na vida das pessoas que adoecem. Essas rupturas muitas vezes se estendem às pessoas que convivem com alguém em sofrimento psíquico.

As narrativas que abordam o adoecimento psíquico trazem a experiência do antes, do durante e do depois desse evento, explicitando uma relação com o tempo presente, que retoma o passado como solo para compreensão do vivido e pensa este presente em relação aos desafios, pontos de força e limites num tempo futuro. Todas as histórias contam sobre como se deu o rompimento com a vida pregressa ao adoecimento, como podemos perceber nas narrativas que seguem:

Aos 14 anos de idade eu vim para Turim, porque meus pais são de Sicília. Meu sotaque é siciliano. Eu comecei a trabalhar aqui. Éramos cinco na minha família. Toda minha vida foi para Settimo. Minhas irmãs se casaram, fizeram suas vidas e eu fiz a minha. Minha primeira internação foi em 1973 aos 24 anos de idade, e depois vieram outras. Eu estive internado em pelo menos cinco ou seis lugares. Depois em 1986 eu preciso dizer que eu trabalhei, depois parei. Eu disse que eu trabalhava na fábrica, aí eu briguei e parei de trabalhar. Trabalhei com vidros, na máquina. Eu briguei, tive um colapso nervoso. Eu ouvia vozes quase todo tempo, agora ouço menos. Fui internado no Dom Bosco, com um psiquiatra que trabalha aqui com eles. Em seguida ele me convidou para vir visitar o Centro Diurno. Em resumo, aqui me sinto melhor do que antes (Luca).

A minha história de vida é, por ora, flutuante. Eu tive a primeira crise devido ao distúrbio bipolar, a vinte anos, e em seguida eu perdi minha mãe. Faz um tempo, foi um choque. Eu tive que parar de ir para a universidade porque eu não aguentava mais, e depois desse evento houve outros quatro ao longo dos anos, dos últimos quinze anos. É um contínuo começar e seguir projetos, mas que não consigo terminar. Então, neste momento, essa é a minha visão da minha vida. Sempre procurando seguir algum projeto, alguma coisa, mas não se concretiza e acabo trocando o projeto, por causa dessas crises, que regularmente me acometem. Tenho 36 anos. Ainda jovem, mas não tão jovem (Leonardo).

Faz 47 anos que moro próximo de Settimo. Eu não recordo quase nada de Taranto minha cidade natal apenas que íamos de férias para Taranto visitar a minha avó. Estudei sempre aqui em Torino. Eu fiz todas as escolas e me formei em técnico industrial. Depois entrei para a marinha. Fiquei um ano sem trabalhar, eu passei no concurso da polícia. Eu fui policial por seis anos, mas quando eu fiquei doente eu tive que deixar o serviço. Aqui está um pouco da minha história. Deixei a polícia em 1998 e desde lá eu sou seguido pela psiquiatria. Quando eu cheguei aqui eu estava muito mal, eu já tinha deixado meu emprego na polícia. (Pietro).

Particularmente, as narrativas de Luca e Leonardo evidenciam o fenômeno da migração estudada por Cardano, Scarinzi, Costa, D'Errico (2018), que ocorreu na Itália, nos anos 50 e mais tarde nos anos 70, num período conhecido como do milagre econômico, quando mais de quatro milhões de camponeses pobres migraram da região sul para região norte do país. Os autores analisam este processo migratório e apontam para o impacto do mesmo na saúde mental e no adoecimento destas pessoas.

A sequência das crises interrompe o fluxo social e de trabalho, ora por internações hospitalares, ora por um cessar produtivo na vida cotidiana. A regularidade com que elas acontecem parece algumas vezes inviabilizar, objetiva e subjetivamente, a execução de projetos de vida, o que compromete a perspectiva de avanço na vida. Esse eterno recomeço vem marcado de certa nostalgia da vida pregressa ao adoecimento, em que objetivos de vida foram traçados e ceifados por esse evento, que provocou a captura do olhar psiquiátrico.

Tanto a Revolução Basagliana na Itália como a Reforma Psiquiátrica Brasileira compreendem a pessoa em sofrimento psíquico como um sujeito que possui desejos, capacidades e habilidades para construir projetos, no sentido de serem pessoas com potencialidade para estarem na sociedade e no mundo do trabalho.

O trabalho possui uma centralidade na concepção do ser social e também é uma estratégia importante no campo da saúde mental. Conforme Santos e Carnut (2018, p.162) o trabalho "é uma forte via de subjetivação, é mais uma ferramenta de diálogo com o mundo, é também uma forma de falar sobre si através do que foi produzido".

As narrativas apresentadas nos contam sobre como a experiência do adoecimento mental promoveu uma ruptura marcante com às atividades laborais e subjetivas dos seus locutores. No entanto, a vida e a produção de cidadania não se circunscrevem apenas pelo, e no trabalho, mesmo porque projetamos nossos planos em esferas que vão além dele.

Porém, dependendo da forma como o trabalho se apresenta na vida dessas pessoas ele pode viabilizar a emancipação dos mesmos, dado que o trabalho é um meio de satisfação das necessidades pessoais, como também uma fonte de identificação e autoestima para que as pessoas possam desenvolver suas habilidades humanas e seu sentimento de pertencimento social (Viapiana, Gomes & Albuquerque, 2018).

A concretização do adoecimento em três narrativas segundo as narrativas de Luca, Leonardo e Pietro aconteceu mediante a ruptura com as atividades laborativas, devido a sequência de crises que culminaram em internações hospitalares. O processo de adoecimento é acompanhado de sérias implicações para a identidade dos sujeitos em sofrimento, que são capazes de causar sentimentos de incapacidade para a realização de ações objetivas e subjetivas de vida.

Durante a experiência do adoecimento, as pessoas em situação de sofrimento psíquico são influenciadas pela visão que possuem de si mesmas, e também sobre a influência de como os outros as enxergam e como elas enxergam os outros (Felicissimo, Ferreira, Soares, Silveira, & Ronzani,2013; Nascimento, Brêda, & Albuquerque,2015). Deste modo, às rupturas na experiência de adoecimento também ocorrem na esfera relacional e afetiva, seja com familiares, amigos, colegas de trabalho, vizinhos, enfim, a rede social.

Em geral a família é a primeira organização a ser implicada no provimento de cuidados com o familiar em situação de adoecimento psíquico. A compreensão sobre o papel da família neste cuidado sofreu alterações a partir das transformações no campo da saúde mental, uma vez que a desinstitucionalização possibilitou a permanência dessas pessoas junto à comunidade e seus familiares. Dessa forma, a família passa a ser vista como uma apoiadora no cuidado da pessoa em sofrimento (Santin & Klafke,2011; Ferreira, Sampaio, Oliveira, & Gomes,2019).

No entanto, o impacto de ter um familiar em sofrimento psíquico pode gerar situações de desgaste, sobrecarga física e emocional para os demais integrantes da família. Ciente do impacto do seu adoecimento psíquico para si e para as pessoas da sua família, na narrativa de Antonella, emerge a presença do sentimento de culpabilização que experimentou no início do seu percurso de adoecimento.

Vamos começar dizendo que você não chega bem na internação, porque no momento da chegada você está confuso, devido a doença, por não aceitar a doença, porque sua dignidade está afetada. E isso é comum, entre os que têm a mesma patologia que eu. Tu te perguntas: "Oh Meu Deus! O que eu fiz? Eu devo ter feito algo muito errado, não?" Você começa a pensar no que aconteceu com você e aí você começa a se sentir culpada, porque você faz as pessoas se preocuparem com você, a família e todos que estão ao seu redor. Você se sente culpada por preocupar as pessoas e sente que não merece a preocupação delas (Antonella).

A culpa referida por Antonella, pode estar relacionada a internação e a não aceitação da condição de doente, experimentada no início do seu percurso. Esta culpa, tem forte vinculação ao estigma atribuído ainda hoje as pessoas que experienciam o adoecimento psíquico. Dessa forma, a narrativa de Antonella mostra como a pessoa dirigiu a si própria os estereótipos negativos sobre o adoecimento psíquico, o que permitiu o surgimento do sentimento de culpa.

O estigma internalizado apresenta-se como um obstáculo no processo de recovery dos sujeitos, pois provoca uma série de problemas para quem o vivencia, tais como: exclusão social, impressão depreciativa de si, interferência no arranjo familiar, na inserção no mundo do trabalho, entre outros (Felicissimo, Ferreira, Soares, Silveira, & Ronzani,2013; Nascimento, & Leão, 2019). Esses obstáculos, podem ser observados na seguinte narrativa:

Sou uma pessoa desempregada, que mora sozinha. Simpática, sociável, porém, que está sempre sozinho. Eu tenho trinta e quatro anos. Minha casa está dividida, meu irmão vive abaixo, eu acima. Eu sempre estive sozinho desde os doze, treze anos, sofro de solidão, ou seja, perdi amigos. Estou sozinho, sem namorada, sem amigos, sem colegas, nada. Só às vezes meu irmão fala comigo quando volta do trabalho. E isso me dá problemas porque ficar sozinho o dia todo, sem conversar, não falar com ninguém, é difícil. Depois de adoecer minha vida piorou. Porque os amigos vieram a saber que eu estava doente. Então, se antes eles me viam pouco, agora eles me veem ainda menos. Eles não entendem, para eles eu sou louco. De onde eu venho é essa a crença (Giovanni).

Na narrativa de Giovanni ele se diz se diz simpática e sociável, descrevendo uma imagem positiva de si, no entanto, a solidão é algo que o acompanha desde muito jovem, e com o processo de adoecimento foi piorando. Segundo ele, os amigos o isolaram por não entenderem sua experiência de adoecimento, associando ela a loucura.

A representação que a loucura ainda tem na sociedade, põe a pessoa em sofrimento psíquico, em especial aqueles que passam por um processo de institucionalização, num local de isolamento e despersonalização, tirando desse sujeito a sua cidadania, reduzindo-o a um estigma que impede a sua comunicação e sua existência com e na sociedade, resultando num processo de exclusão social.

E eu, em uma noite enquanto dormia, senti minha cabeça explodir. Eu me senti sozinha, não sabia quem eu era. Não sabia mais meu nome verdadeiro. Eu chamei minha mãe e pedi para ela me dizer quem eu era, pois não sabia mais quem eu era. Então chamaram um médico que me encaminhou para a saúde mental. Eu tinha 21 anos. Eu voltei para a escola, fiz universidade e sou formada. Casei, me divorciei, tive um filho, estive separada dele e hoje convivo com ele. Frequento o Centro Diurno e nos últimos anos, não estive mais internada em hospitais (Chiara).

A primeira vez que eu fui internada, eu tinha saído com uma faca na rua. Eu estava com medo, eu disse "mamma mia", eu não estava realmente ciente do que estava fazendo. Porque imaginei que deveria haver tigres, tive que me armar, porque num mundo tão ruim, eu tive medo e me armei com facas. Eu ouvia pessoas chorando, implorando. E eu me perguntava, onde eu estou, o que estou fazendo? Foi ruim, ficou feio. Desde jovem eu sofria de depressão, mas aos 40 anos fiz isso, fui internada e depois de vir para o Centro Diurno, uma vez risquei um carro com faca, meu pai pagou, mas não fui mais internada. Me sinto bem aqui, posso me confrontar, falar sobre como me sinto e tomar decisões mais segura (Martina).

As narrativas de Chiara e Martina trazem a experiência de ruptura com os padrões e comportamentos socialmente aceitos e esperados de uma pessoa. O obstáculo em entender o que estavam sentindo, vendo e percebendo de forma diferente das demais pessoas, produziram uma ruptura entre a vida antes e após o adoecimento psíquico.

Um estudo desenvolvido por Cândido et al (2012) com servidores de uma instituição de ensino superior com a finalidade de verificar o estigma sobre transtorno mental, identificou que um grupo de participantes associou esse fenômeno a condição de anormalidade e periculosidade, incapacidade e transgressão das normas morais sociais. Esse conceito positivista que associa o transtorno mental a "doença", "anormalidade" e a "periculosidade" se reflete em atitudes, comportamentos sociais e individuais que reforçam o estigma da loucura nas pessoas que estão em processo de adoecimento psíquico.

É necessário criar estratégias de ressignificação sobre o adoecimento mental que tenham a capacidade de transformar os comportamentos da sociedade que ainda estigmatiza essas pessoas, com a finalidade de minimizar atitudes discriminatórias. Sabe-se que o estigma e o preconceito, muitas vezes encontra-se presente no seio familiar. No entanto, em outros, casos, a experiência do sofrimento psíquico pode conduzir a uma aproximação entre a família e o sujeito em sofrimento, como podemos perceber na narrativa a seguir:

Eu já nasci um pouco nervoso, um pouco ansioso. Na escola eu era um pouco bagunceiro, fiz apenas a oitava série e depois comecei a trabalhar. Mesmo no trabalho, eu era uma pessoa muito fechada, não conseguia me relacionar com as outras pessoas. Com o meu pai, tinha um relacionamento de amor e ódio. Porque ele era muito rigoroso com a escola e me batia quando eu não fazia a lição de casa. Mas depois da doença nos aproximamos, começamos a nos dar muito bem (Enrico).

As rupturas vivenciadas e explicitadas nas narrativas exigiram uma reorganização de vida, com vistas a atender às necessidades de cuidado destas pessoas. Contudo, permitiu a eles a possibilidade de reescrever suas próprias histórias, contribuindo para o seu percurso de terapêutico, em um fluxo narrativo de apropriação deste passado e aceitação de um novo presente.

 

O ENCONTRO COM O CENTRO DIURNO: UM TEMPO DE RECOMEÇO

No percurso de vida destas pessoas, as rupturas provocadas pelo adoecimento permitem uma ressignificação da experiência de vida, particularmente no momento de encontro com o Centro Diurno de Saúde Mental de Settimo Torinese. Esse encontro acontece marcado por um conjunto de possibilidades de confrontar-se, de estar em comunidade e de valorização da experiência vivida.

É na realidade da vida que se pode verificar os resultados das intenções institucionais na saúde mental. São as contestações presentes no encontro com o real que Basaglia (2001, p.124) sugere como fornecedora de elementos para reconfiguração prática e clínica. São as verificações da realidade que possibilitam a psiquiatria "contestar-se a si própria". Assim, narrativa de Leonardo traz essa concepção à tona e coloca o Centro Diurno em um lugar de possibilidades.

A última vez que fui internado, em resumo foi provado que velhas terapias não demonstravam nenhum resultado eficaz. Eu era tratado por dois psicólogos e um psiquiatra. E, eu tinha sido acompanhado por eles durante anos, e eles não conseguiram resolver o meu problema, tanto que na última crise, eu retornei de novo para o hospital. O médico, me aconselhou de seguir essa terapia em grupo, e a doutora me propôs, e nada. E, assim estou tentando seguir esse caminho para ver se é mais eficaz, se eu posso realmente encontrar um caminho na minha vida (Leonardo).

Ao identificar em sua experiência de adoecimento que as "velhas terapias" não se mostraram eficazes, a narrativa de Leonardo evidencia a demanda por uma clínica distinta, capaz de produzir rupturas e diferenciações através de um outro caminho. Reconhecer que percursos já trilhados tendem a levar a destinos conhecidos é fundamental quando se pretende alterar o ponto de chegada. A possibilidade de dar novas respostas a questões recorrentes na vida das pessoas é um reconhecimento de que é necessário se produzir algo diferente daquilo que se tinha tentado outrora.

Neste aspecto, a Reforma Psiquiátrica aventou um processo de transformação baseada em princípios e estratégias que buscam ultrapassar a estrutura ou modelo de serviços. Ela firma uma prática clínica do movimento, na qual o caminhar terapêutico conduz a novos elementos e situações que se entrelaçam em dimensões simultâneas no cotidiano de seus agentes sociais (Amarante, 2019). É nesse campo de interação que o sujeito se faz político e social e abre passagem a outras formas de reconhecimento e territorialização. Isso se faz presente na narrativa de Pietro, ao entender que a presença da equipe no seu domicílio permite levar ao reconhecimento identitário. E, também, na narrativa de Luca a equipe é descrita como mediadora das relações com a comunidade e o fazer cotidiano.

Eu estava mal, e meus pais me trouxeram para o médico da comunidade, que era para eu vir para Settimo, para o Centro Diurno, e de explicar minha situação a eles. Meu pai e meu irmão vieram no mesmo dia e chegaram até o doutor que não está mais aqui. Eles vieram até minha casa e desde então eles me conhecem, digamos (Pietro).

Eu fui levado ao Centro Diurno com outras pessoas. Era uma casa onde nos divertíamos, conversávamos, tinha um jardim e muitas coisas boas, depois nos mudamos e o lugar era melhor, porque comíamos melhor. Aqui tem as meninas elas são o elo com a comunidade. Elas compram os alimentos, cozinham, limpam, se não fosse elas, seria difícil (Luca).

Na saúde mental o território existencial é ferramenta e fim terapêutico. É nele que a vida acontece cheia de inconstâncias e possibilidades. Para Neto e Dimenstein (2016) a cidade e o acaso surgem como espaço de encontro e expansão de redes sociais, indispensáveis à reabilitação psicossocial, cabendo ao profissional auxiliar o enlace social das pessoas com transtornos mentais e a comunidade. Neste encontro um novo sujeito se forma, um sujeito coletivo em fluxo que se produz em ato, em um processo instituinte, criativo e de transformações contínuas.

Assim, participação em serviços territoriais de atenção à saúde mental acaba por culminar em sobreposição de intercessores capazes de mobilizar outros recursos de significação da experiência. Estar em comunidade possibilita a sensação de pertencimento, coletividade e esperança. Uma estratégia potente, nesse sentido, tem sido a adoção de espaços grupais como tempo de encontro, apoio e compartilhamento de experiência para o fortalecimento individual e coletivo, como é possível notar nas narrativas que seguem:

Faz dois anos que eu frequento o grupo. É meu ponto de referência. No início eu era muito fechada e não falava com ninguém, e o grupo me ajudou a me abrir com outras pessoas, passei a confiar mais nas outras pessoas, aos poucos comecei a contar a minha história. O grupo me ajudou, me ajudou muito nas minhas relações interpessoais, na interação com diferentes tipos de pessoas, isto é, fez eu me descobrir, me sentir melhor do que antes. Também me trouxe uma humanidade que eu desconhecia, as pessoas daqui têm uma grande humanidade. Antes eu era muito rígida, metódica, tinha menos interesse em interagir com as outras pessoas, eu acho que é isso. O ponto forte deste grupo é que se pode falar dos problemas que você tem, que todos têm e ai você se reconhece. Talvez no início você sinta um pouco de medo. Você aos poucos começa a se sentir mais à vontade, mais livre para falar sobre isso e aprende com as experiências dos outros (Alessandra). No grupo eles fazem uma autoanálise, elevam tua autoestima, assim eu cuido da minha doença e vejo o que posso fazer para também ajudar alguém (Antonella).

É na intimidade dos espaços grupais que os participantes trazem para o discurso o vivido, facilitando o autoconhecimento e a identificação com a coletividade. ZANNI (2017) ao discorrer sobre grupos de autoajuda mútua enfatiza que esses se constituem como espaços de descobertas e emancipações, em que pessoas compartilham experiências comuns buscando encontrar estratégias para melhorar suas vidas. Nele os participantes assumem a corresponsabilidade de ser pontos de suporte e transformação uns para os outros. Corroborando, Vasconcellos (2013) destaca o papel desses grupos em estimular os participantes a expandir redes de amizade e o companheirismo, bem com a construção de outras formas de apoio coletivo. Ainda, lembra que se trata de um ambiente que se propõe acolhedor a expressão dos sentimentos e valorização da experiência vivida como recurso para desenvolver a autoestima e autoconfiança.

Nas narrativas de Lorenzo, Stefano e Luigi, o grupo assume o status ora de espelho, no qual é possível se identificar na fala dos outros e refletir sobre a própria experiência, ora de ancoradouro, no qual é possível apoiar-se e compartilhar parte da bagagem adquirida ao longo do tempo e abastecer para seguir viagem.

Eu tenho sessenta e dois anos. Trabalhei por muitos anos e depois de me aposentar entrei em crise e vim para o Centro Diurno. Neste local, podemos conversar sobre os nossos problemas, sobre o que é bom e o que não é bom na vida, e me ajuda bastante (Lorenzo). Nas reuniões do grupo, nós conversamos, falamos sobre os problemas, depende do dia, pode ajudar você a entender como reagir, como reagir ao problema que você tem, na vida. Podemos falar de qualquer coisa. O que é mais ou menos bom (Stefano).

Para mim esse grupo é importantíssimo, não só pelo contato com a Facilitadora do Grupo, que é ótima, mas pela oportunidade de estarmos todos juntos, de ouvir a história uns dos outros. Na minha opinião isso é mais importante que a psicoterapia, porque uma coisa que aconteceu com você também pode ter acontecido com outra pessoa. Conversamos sobre patologia, quer dizer, eu estava doente, você foi machucado por esse ou por aquele motivo, o meu motivo pode ser o mesmo que o seu. Então você fuma um cigarro, você fala, você faz, você diz e na minha opinião é muito importante também confrontar-se com as outras pessoas do grupo (Luigi).

Essa estratégia se faz terapêutica por destacar as experiências dos sujeitos em grupo, em uma perspectiva de valorização e incentivo ao protagonismo, compartilhamento de informações e exercício narrativo autobiográfico como recursos de superação do sofrimento (Kantorski et al, 2017). Também, tem sido pontuado pelos participantes, o espaço do grupo como potencializador da tessitura de redes de apoio social para além do espaço/tempo do grupo. E, o vínculo como um mediador que permite que ao entrarem em contato com a experiência dos participantes podem apoiar na trajetória singular de superação (Corradi-webster, Leão, & Rufato, 2018).

A lucidez dessa perspectiva força uma dobra sobre a própria existência, um autoconhecimento e uma auto aceitação que produzem um desvio de uma rota que fragiliza, para uma estrada que leva a um futuro de esperança. É assim que o Centro Diurno habita o campo narrativo desses agentes sociais. Ele é a ruptura positiva no caminho e na vida dessas pessoas. Trata-se de uma reafirmação da pessoa para além do adoecimento, uma evocação da identidade sócio-política e de direito diante das arbitrariedades epistemológicas de uma cultura manicomial que descaracteriza e contribui para o apagamento social dessas pessoas. Na narrativa de Antonella vem problematizado um discurso de que a grupalidade fortalece os sujeitos.

Haviam me proposto várias vezes frequentar o Centro Diurno. Comecei a vir, quando saí do hospital. Portanto, o Centro Diurno é um apoio, um grande apoio. As vezes eles conseguem te ajudar, às vezes não, e devemos entender porque você se conscientiza que não é a única quando entra neste Centro, tem muitas pessoas aqui. Eu fiquei surpresa quando me disseram que tem quase duas mil pessoas frequentando aqui. Talvez solicitar reiteradamente as instituições a ter um entendimento diferente sobre nós. É uma coisa que venho repetindo há algum tempo, acho que se fala, e só se pensa na doença. O que não falamos, por exemplo, é o potencial que essa doença oferece a você (Antonella).

Esse componente político é constitutivo das grupalidades, ao passo que não é apenas recurso de construção de redes e vínculos, mas também de novas bases estruturantes da identidade cidadã, com maior reciprocidade, igualdade e participação na vida social. A comunidade, em seus grupos organizados, acaba por catalisar a emergência de sujeitos empoderados diante do exercício constante de individuação, ressignificação da identidade pessoal e social estigmatizada (Vasconcelos, 2013), fortalecendo-se com a própria experiência.

Porque eu me perguntei quando fomos para a reunião. Se aquela senhora que tinha feito essa pergunta: Vamos esquecer que eles não tinham tido um percurso de doença? Vamos tentar voltar quando eles foram considerados "saudáveis"? Eles teriam feito tudo aquilo depois da doença? Porque eles fizeram grandes coisas! Então eu digo, haveria tido essa vontade se não fosse o percurso da doença? Provavelmente não, porque você não sabe nada sobre isso até você estar dentro. Então, nós também começamos a falar sobre o potencial que uma pessoa tem quando melhora, porque ela tem dois aspectos na vida: antes da doença e durante a doença. Não quer dizer que você vai se recuperar por completo e sair logo fora, as vezes você fica amarrado a algum fármaco, alguma terapia, mas isso não quer dizer que não houve uma melhora, inclusive não quer dizer que possamos ser pessoas ainda melhores do que éramos antes da doença (Antonella).

O adoecimento psíquico traz reflexões sobre a vida e suas relações. Passar por uma crise pode implicar em significados distintos, de risco e oportunidade. Assim, as rupturas provocadas pelo adoecimento psíquico e sua compreensão possibilita a ressignificação desta experiência, gerando possibilidades desta pessoa encontrar-se no mundo de um modo melhor, que aquele anterior ao seu adoecimento (Martins, 2017).

As narrativas aqui apresentadas levam a compreensão de que o cuidado em serviços de saúde territoriais e abertos possibilitam fissuras no tecido social abrindo espaço para aceitação da condição de adoecimento psíquico incorporando outros sentidos possíveis para essa experiência. São nas interações sociopolíticas que existe a superação de estigmas e exercita-se a cidadania e a liberdade em um movimento no qual o sujeito e seu processo narrativo compreender a condição fundante para que a recovery possa acontecer. Em uma clínica que perpassa a construção de atos de liberdade e libertação para o empoderamento daqueles que vivenciam a experiência do adoecimento (Ricci, 2017).

Cabe recordar que, Basaglia quando viveu a experiência da transformação psiquiátrica marcou em seus escritos o desejo de que ela fosse contada pela história daqueles que tiveram suas vidas reconfiguradas a partir dessa transformação. Preferiu ele a ideia de que essa revolução clínica habitasse o campo biográfico e não apenas se ocupasse do resgate de atos sociopolítico firmados em portarias ou ordens de serviço (Basaglia, 2010). É isso que esse artigo pretende comunicar. Ele traz a tessitura narrativa daqueles que ressignificaram a experiência do adoecimento e viram nesse modo singular de existir um lugar de potência, rompendo com a redução simbólica e estrutural da "doença mental", produto do modelo teórico psiquiátrico tradicional.

Assim, na busca de encontrar um novo modo de lidar com a experiência do adoecimento, com o apoio do Centro Diurno se reconfigura no percurso terapêutico dessas pessoas como uma oportunidade de trilhar caminhos diferentes e ressignificar as relações com a equipe de cuidado, com a família e a sociedade.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo resgata nas narrativas de doze pessoas que frequentam um Centro Diurno de Saúde Mental em Settimo Torinese na Itália a experiência de adoecimento enfatizando rupturas no mundo do trabalho, no universo relacional e afetivo, e os enfrentamentos aos desafios da vida. As narrativas apontam um tempo de recomeço quando se dá o encontro com o Centro Diurno, evidenciando o território existencial como ferramenta para conferir novos significados nos projetos de vida.

 

 

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Agradecimentos:

Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) por conceder a liberação de Roberta Antunes Machado cursar o seu doutoramento ao Departamento de Cultura, Política e Sociedade da Universidade de Turim por receber Luciane Prado Kantorski como Pesquisadora Visitante em 2019.

 

Nota sobre as (os) Autoras (es):

Luciane Prado Kantorski – Doutora Em Enfermagem (USP – Ribeirão Preto), Brasil. Professora Titular da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: kantorskiluciane@gmail.com

Mario Cardano – Doutor em sociologia e Pesquisa Social (Universidade de Trento), Itália. Professor Ordinário do Departamento de Cultura, Política e Sociedade da Universidade de Turim. E mail: mario.cardano@unito.it

Roberta Antunes Machado – Mestre em Ciências (UFPel). Professora do Curso Técnico em Enfermagem do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS). Doutoranda do Programa de Pós – Graduação da Faculdade de Enfermagem (UFPel) E-mail: roberta.machado@riogrande.ifrs.edu.br

Luana Ribeiro Borges – Mestre em Saúde Coletiva (UNICAMP). Professora Adjunta do curso de Enfermagem da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). E mail: lurb207@gmail.com

 

 

Recebido: 18/10/2019
Aprovado: 08/11/2019

 

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