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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.1 Belém Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.n01editorial 

Editorial

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.n01editorial

 

 

Fenomenologia e interdisciplinaridade: Psicologia, Filosofia e Ciências Humanas

 

 

Tommy Akira Goto; Eduardo Marandola Jr.

 

Temos o prazer de publicar o volume 12, abrindo o ano de 2020 com a participação de um editor convidado, o professor Eduardo Marandola Junior, que reuniu no dossiê "Fenomenologia e Interdisciplinaridade" os resultados oriundos do "V Seminário Local do NOMEAR – Grupo de Pesquisa Fenomenologia e Geografia sobre Interdisciplinaridade", organizado pelo grupo homônimo com o objetivo de expor, debater e divulgar as pesquisas que são desenvolvidas por seus membros.

O NOMEAR é um grupo de pesquisa que tem natureza interdisciplinar, sediado no Laboratório de Geografia dos Riscos e Resiliência (LAGERR), da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Formalmente existente desde 2012, sendo um dos grupos de sustentação do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (ICHSA), que abriu sua primeira turma em 2014.

A interdisciplinaridade é um eixo estruturador da FCA e por isso ela está mais ou menos implícita em todas suas estruturas: grupos de pesquisa, cursos de graduação e de pósgraduação, laboratórios, etc. No caso do NOMEAR, isso se expressa não apenas pela formação multidisciplinar de seus membros, como também na adoção de uma compreensão da geografia que inclui, mas ultrapassa os limites da ciência geográfica. A Fenomenologia, da mesma forma, atua como um marcador interdisciplinar ou, pelo menos, não-disciplinar, na condução de nossas pesquisas. Neste sentido, a presença de nossas discussões e pesquisas no ICHSA, acaba por constituir uma via de mão dupla muito importante: a fenomenologia e a geografia aparecem como elementos interdisciplinares no âmbito do programa, ao mesmo tempo em que a necessidade de enfrentar problemas que não estavam necessariamente em nossa pauta é incorporada no temário e nas perspectivas trabalhadas pelo grupo.

A Fenomenologia é uma filosofia interdisciplinar por excelência. Edmund Husserl em suas "Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica" (1913/2006) já estabelecia a Fenomenologia em intrínseca relação com as outras ciências, pois entendia que por mais diferente que fosse o sentido de "fenômenos" concebido por elas – por exemplo, a Psicologia como ciência dos fenômenos psicológicos; a Geografia como ciência dos fenômenos naturais/geográficos, etc. – a "fenomenologia se refere a todos esses 'fenômenos' e em conformidade com todas essas significações", mesmo estando em uma "orientação inteiramente" diferente, ou seja, na "esfera fenomenológica" (Husserl, 1913, 2006, p. 25).

Atualmente encontramos a Fenomenologia em várias disciplinas científicas na tentativa de realizarem, em suas investigações, outra possibilidade de se fazer ciência, rigorosa e metódica, mas que esteja em pleno diálogo interdisciplinar, para além de nossa tradição disciplinar. Isso porque entre os pesquisadores se percebe um consenso acerca do desequilíbrio disciplinar em nossa tradição; comumente a formação em geral se ampara em saberes hiperespecializados ou tecnocientíficos, gerando muitas vezes pouco mais que uma "incompetência generalizada" (Nicolescu, 1999).

Em 1935, Husserl em sua conferência realizada nas cidades de Praga e Viena nos advertia que "toda a visão de mundo do homem moderno se deixou determinar pelas ciências positivas, e cegar pela 'prosperity' a elas devida, significou um virar as costas indiferente às questões que são decisivas para uma humanidade genuína. Meras as ciências de fatos fazem meros homens de fatos" (Husserl, 1954, 2012, p. 03).

Assim, a Fenomenologia surge como uma possibilidade de se desenvolver pesquisas e estudos, especialmente nas áreas científicas, porque considera, a princípio, toda a pesquisa convergente nas diferentes disciplinas. O seu sentido é de "ciência omni-englobante", ou seja, de ciência da totalidade, e não do "conceito escolar que nos á habitual, o qual engloba apenas um grupo de disciplinas" (Husserl, 1954/2012, p. 05). No entanto, ao mesmo tempo, a relação Fenomenologia e ciências – que por natureza são encontros interdisciplinares – são encontros muitas vezes complexos e difíceis, até "desconfortáveis" como afirma Embree (2011), pela própria particularidade da Fenomenologia, cuja terminologia e método nos leva a "uma maneira de se orientar, inteiramente diferente da orientação natural [convencional das ciências disciplinares] na experiência e no pensar" (Husserl, 1913, 2016, p. 27).

É diante dessa questão que nesse número 12, primeira edição da Revista Eletrônica do Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas (Revista NUFEN) do ano de 2020, apresentamos o Dossiê "Fenomenologia e Interdisciplinaridade" e Ensaios Interdisciplinares, além de uma Tradução inédita em português do texto "Fenomenologia Interdisciplinar" de Don Idhe. O resultado é a construção de perspectivas abertas tanto da geografia quanto da fenomenologia, apresentando-se em contínuo tensionamento com pontos de vista oriundos das ciências sociais (como a Antropologia ou a Sociologia), a Filosofia (como a filosofia da diferença), e perspectivas pragmáticas orientadas para a formulação ou avaliação de políticas públicas. Estes confrontos contribuíram para a ampliação do escopo e alcance das reflexões, o que tem sido desafiador e, ao mesmo tempo, muito instigante.

A área de formação e interesses dos estudantes também tem sido relevante na composição desta agenda mais ampla: estudantes oriundos da Geografia, da Psicologia, da Gestão de Empresas, da Comunicação Social, da Antropologia, da Medicina Veterinária e da Gestão de Políticas Públicas. Como lidar com esta diversidade, na conformação de pesquisas em temas tão distintos quanto espaço público, políticas ambientais, educação e autonomia, arte macabra, grafismos indígenas, memória de agricultores, patrimônio imaterial, ruínas e patrimônio, unidades de conservação e mobilidade urbano-regional?

Na condução dos trabalhos, a Fenomenologia se apresentou como potencial abertura para a interdisciplinaridade. Isso se deveu, sobretudo, pela forma como o ICHSA/UNICAMP foi estruturado, dando, por assim dizer, "um passo atrás", atentando-se à constituição do próprio conhecimento. A epistemologia e os problemas em torno do conhecimento (incluindo aí os políticos, sociais, culturais, históricos e geográficos também, ou seja, em uma perspectiva abrangente da epistemologia) têm um lugar privilegiado no programa, e isso implica que cada um, professores e alunos, considerem questões basilares da prática e do fazer ciência que, de certa forma, estão naturalizadas em nossa formação, colocando em questão seu próprio fazer.

A Fenomenologia, neste contexto, não é operada como um sistema, uma disciplina ou uma tendência teórico-metodológica. Ela tem se apresentado como possibilidade, no esteio de um ambiente de intensos debates e diálogos no qual se nega qualquer a priori acerca de tendências, escolas, conceitos ou paradigmas, buscando a promoção de trânsitos, aberturas, estranhamentos e deslocamentos. Não um caminho pré-definido, mas uma força que participa desta aventura interdisciplinar.

Abrimos o Dossiê com o texto de Eduardo Marandola Jr., originalmente preparado para a mesa-redonda "Fenomenologia, método, ciência e interdisciplinaridade", realizada durante "IV Encontro de Psicologia, Fenomenologia e Realidade Brasileira / II Simpósio Internacional de Fenomenologia e Ciências Cognitivas / I Congresso Internacional de Fenomenologia e Psicologia", ocorrido de 14 a 16 de Setembro de 2017, em Brasília. "Fenomenologia como abertura para a interdisciplinaridade" é um texto que singra a relação ciência-filosofia, propondo que esta é uma das chaves que a fenomenologia apresenta possibilidades para o "ir além" dos marcos das disciplinas. Contextualizado em minha atuação no ICHSA e acrescido de alguns elementos posteriores ao evento, este texto integra a origem do próprio Dossiê, e por isso ele cumpre bem seu lugar aqui.

A seguir, temos o texto de Nara Cristina Moreira de Almeida, "Interposto interdito: uma perspectiva fenomenológico-existencial da interdisciplinaridade". Egressa do ICHSA, sua fala reverbera elementos de sua dissertação (Almeida, 2019), desdobradas no contexto de sua atuação como psicóloga no sistema público de saúde. O artigo propõe pensar a interdisciplinaridade como interposto interdito e como biopolítica, no horizonte ontológico aberto pela meditação heideggeriana, mas levado adiante em vários pontos pela autora.

Gustavo Silvano Batista, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), pesquisador do Nomear e professor visitante do ICHSA, assina o artigo "Gadamer e a questão ambiental". Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, explora a vertente interdisciplinar pela perspectiva das interações da hermenêutica com a fenomenologia na seara ambiental. Seu texto é um convite a explorar esta fronteira de encontro de perspectivas, tendo a ecohermenêutica e a ecofenomenologia como mediadoras.

Em "Experiência etnográfica, deslocamento perspectivo e interdisciplinaridade", Roberto Donato da Silva Junior, professor do ICHSA, nos brinda com uma proposta de interdisciplinaridade centrada no deslocamento perspectivo (do pesquisador, das bases epistemológicas). Este se efetiva de várias formas, tal como propõe Silva Junior, mas é notório o esforço de retirar, tal como outros antropólogos contemporâneos, as roupagens disciplinares da etnografia. Aqui o "para além" é retomado como estratégia de tensionamento de posições e entendimentos, ganhando grande impulso o sentido de alteridade. Trata-se de uma perspectiva de fortes componentes hermenêuticos e cuja centralidade da experiência apresenta um caminho de interações efetivas com debates fenomenológicos.

Vitor Sartori Cordova, sociólogo, doutor em Arquitetura e Urbanismo (PUCCampinas) e atualmente pós-doutorando junto ao Nomear, continua o debate com as ciências sociais, iniciado por Silva Junior, em seu texto "Artérias e poros interdisciplinares: demarcação de território ou inauguração de possibilidades?". Ao revisitar fundamentos da Sociologia e do Urbanismo, Cordova perscruta brechas nas quais a Fenomenologia possa contribuir, em uma tarefa interdisciplinar, a partir da perspectiva corpórea dos lugares.

Na sequência temos o texto de outro egresso do ICHSA, Heitor Matos da Silveira, "Escombros de um pensamento: por entre ruínas e interdisciplinaridade". Trata-se de reflexão tributária de sua dissertação de mestrado (Silveira, 2018), direcionando-a para o pensar e o fazer interdisciplinar. A partir da discussão em torno das ruínas, Silveira corrobora com uma perspectiva fenomenológica da coisa, na esteira de Heidegger e Ingold, assim como do pensamento como acontecimento e inacabamento, na esteira de Deleuze. O resultado é uma proposta desconstrutiva, que propõe o arruinamento como caminho possível para o pensamento interdisciplinar.

Nos Ensaios Interdisciplinares, trazemos artigos que vão discutir desde as questões míticas às questões éticas, passando pelas noções de divino, sagrado e liberdade. David Pessoa de Lira, professor da UFPE, pesquisador e tradutor do Corpus Hermeticum, nos apresenta um estudo "O mito da gênese e da catábase do homem: uma análise eliadeana do corpus hermeticum 1.12-15" que trata de uma análise das estruturas discursivas do mito do Corpus Hermeticum, especificamente ao princípio da coincidência dos opostos a partir da compreensão fenomenológico-antropológica do homo religiosus hermeticus e sua categoria em relação ao fato religioso, tendo como principais aportes teóricos as ideias eliadenas.

Otávio Santana Vieira e Carlos André Macêdo Cavalcanti, pesquisadores da UFPB, discutem no "Gilbert Durand and the hermeticism: religionism, tradition and esotericism" a contribuição de Gilbert Durand para os estudos do hermetismo, onde desenvolve uma série de argumentos sobre uma nova organização epistemológica para as ciências do homem. Os autores identificam ainda o caráter religioso que Durand moldou nos estudos sobre esoterismo que compuseram o discurso acadêmico e não acadêmico, bem como o caráter de vanguarda e dessecularização que suas teorias se apresentaram.

E no campo da educação, Maria Judith Sucupira da Costa Lins e Bruna Rodrigues Cardoso Miranda, ambas as pesquisadores da UFRJ, em "Ética e Liberdade: lidando com os conflitos existentes no ambiente escolar", discutem como a ética e a liberdade são atitudes fundamentais para o desenvolvimento da pessoa, contribuem para a harmonia social e devem ser incentivadas no ambiente escolar. Propõem uma reflexão ética e um aprofundamento filosófico sobre o conceito de Liberdade, baseado fundamentalmente em filósofos como, Jacques Maritain, D. von Hildebrand e outros. A partir desse entendimento, objetivam identificar como essa reflexão é capaz de auxiliar na diminuição dos conflitos existentes no ambiente escolar, mais especificamente, a questão da violência.

Por fim, encerramos oferecendo a essa edição da NUFEN, a tradução de um capítulo de Don Idhe, importante filósofo contemporâneo que realiza discussões interdisciplinares e aplicadas (com os limites que tal palavra pode comportar junto à Fenomenologia). Em seu "Experimental phenomenology: multistabilities", Idhe (2012) debruça-se sobre o fazer Fenomenologia, enfrentando as consequências fenomenológicas para algumas práticas investigativas, seja nas ciências ou nas artes. Traduzimos e publicamos o capítulo nove, "Fenomenologia interdisciplinar", que apresenta uma contribuição pertinente ao nosso escopo. É importante salientar que Ihde organizou, nos anos 1970, seminário que posteriormente fora publicado como livro, com o mesmo título deste capítulo, o que aponta para sua perene preocupação com o tema (Ihde; Zaner, 1977).

Agradecemos a todos que colaboraram tanto para a realização do Seminário, em 2019, quanto àqueles que contribuíram para viabilizar esta publicação. Espero que estes textos, em seu conjunto, possam fomentar tanto maneiras abertas de construção do conhecimento para além das predefinições disciplinares, quanto a participação da fenomenologia entre as potências que alimentam perspectivas abertas e múltiplas, tão necessárias, hoje e sempre.

 

REFERÊNCIAS

Almeida, N. C. M. (2019). Da Religação Interdisciplinar à Religação Ontológica: percursos de uma tentativa de reaproximação entre conhecimento e vida. (Dissertação de mestrado). Universidade Estadual de Campinas, Limeira, Brasil.         [ Links ]

Embree, L. (2011). La Interdisciplinariedad dentro de la Fenomenología. Investigaciones Fenomenológicas, n. 8, 2011, 9-21.         [ Links ]

Husserl, E. (2006). Ideias para uma fenomenologia pura e uma filosofia fenomenológica. Aparecida: Ideias & Letras. (Original publicado em 1913).         [ Links ]

Husserl, E. (2012). A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental: uma introdução à filosofia fenomenológica. Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1936).         [ Links ]

Ihde, D., & ZANER, R. M. (Ed.) (1977). Interdisciplinary phenomenology. Leiden: Martinus Nijhoff.         [ Links ]

Ihde, D. (2012). Experimental phenomenology. 2ed. New York: SUNY Press.         [ Links ]

Nicolescu, B. (1999). O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: Triom.         [ Links ]

Silveira, H. M. (2018). Arruinamentos no retorno a Terra: fabulando memórias e ruínas. (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Ciências Aplicadas, Universidade Estadual de Campinas, Limeira, Brasil.         [ Links ]

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