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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.1 Belém Jan./Apr. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01artigo65 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01artigo65

 

Experiência etnográfica, deslocamento perspectivo e interdisciplinaridade

 

Ethnographic experience, perspective displacement and interdisciplinarity

 

Experiencia etnográfica, desplazamiento perspectivo e interdisciplinaridade

 

 

Roberto Donato da Silva Júnior

Faculdade de Ciências Aplicadas – Unicamp (FCA/Unicamp)

 

 


RESUMO

Pretendo, neste artigo, explorar as potencialidades interdisciplinares da etnografia dando destaque a uma das suas propriedades, denominada aqui de "deslocamento perspectivo". A partir de um esforço de explorar suas potencialidades metodológicas para além dos limites da antropologia, o artigo (1) faz um movimento de recorrer aos elementos constitutivos da etnografia, demonstrando como estes se tornaram nos procedimentos metodológicos antropológicos por excelência, a partir de um olhar para a correlação entre os conceitos de cultura e de etnografia em alguns dos cânones antropológicos; (2) demonstrar o que foi deixado para trás e o que foi conservado das propriedades etnográficas tal como ela se apresenta na atualidade; e, (3) procurar dimensionar porquê e como estas propriedades podem ser colocadas a serviço de processos de construção de pesquisas interdisciplinares.

Palavras-chave: Antropologia; Cultura; Etnografia; Ontologia; Conhecimento interdisciplinar.


ABSTRACT

In this article, I intend to explore the interdisciplinary potentialities of ethnography, highlighting one of its properties, here called as "perspective displacement". From an effort to explore its methodological potentialities beyond the limits of anthropology, the article (1) makes a move to resort to the constitutive elements of ethnography, demonstrating how these became the anthropological methodological procedures par excellence, from a glance of the correlation between the concepts of culture and ethnography in some of the anthropological canons; (2) demonstrate what has been left behind and what has been preserved from the ethnographic properties as it currently stands; and, (3) seek to measure why and how these properties can be placed at the service of processes for the construction of interdisciplinary research

Keywords: Anthropology; Culture; Ethnography; Ontology; Interdisciplinary knowledge.


RESUMEN

En este artículo, tengo la intención de explorar las potencialidades interdisciplinarias de la etnografía, destacando una de sus propiedades, aquí llamada "desplazamiento perspectivo". Desde un esfuerzo por explorar sus potencialidades metodológicas más allá de los límites de la antropología, el artículo (1) hace un movimiento para recurrir a los elementos constitutivos de la etnografía, demostrando cómo se convirtieron en los procedimientos metodológicos antropológicos por excelencia, de un vistazo. para la correlación entre los conceptos de cultura y etnografía en algunos de los cánones antropológicos; (2) demuestre lo que se ha dejado atrás y lo que se ha preservado de las propiedades etnográficas en su estado actual; y (3) buscan medir por qué y cómo estas propiedades pueden ponerse al servicio de los procesos para la construcción de investigación interdisciplinaria

Palabras-clave: Antropologia; Cultura; Etnografia; Ontologia; Conocimiento interdisciplinario.


 

 

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é explorar as potencialidades interdisciplinares da etnografia enquanto uma experiência existencial, ou seja, nos termos de uma "experiência etnográfica". O ponto fundamental é a hipótese de que, dentre os vários atributos etnográficos, um em especial guarda grande potencialidade epistêmica para as práticas interdisciplinares: aquilo que denomino aqui de "deslocamento perspectivo". Tentarei promover um esforço de explorar as propriedades etnográficas e a experiência etnográfica para além dos limites da própria antropologia, de modo a construir as condições de pensá-las como formas de atuação em ambiente interdisciplinares. Trata-se, portanto, de promover uma espécie de "roubo" epistemológico da experiência etnográfica, tentando tirar do monopólio antropológico ou pelos menos a "primazia" da antropologia em torno dessas experiências. Nesse sentido, o artigo (1) faz um movimento de recorrer aos elementos constitutivos da etnografia, demonstrando como estes se tornaram os procedimentos metodológicos antropológicos por excelência, a partir de um breve, circunscrito e arbitrário olhar para a correlação entre os conceitos de cultura e de etnografia em alguns dos cânones do pensamento antropológico; isso, (2) para demonstrar o que foi deixado para trás e o que foi conservado das propriedades etnográficas em nossos dias; e, (3) procurar dimensionar porquê e como estas propriedades podem ser colocadas a serviço de processos de construção de pesquisas interdisciplinares.

Então a primeira questão, é: o que eu estou chamando, muito sumariamente, de deslocamento perspectivo? De maneira muito ampla, entendo o termo como a capacidade de descentramento do olhar/postura do sujeito que pretende produzir algum tipo de conhecimento, a partir da redefinição das condições de produção experiencial e subjetiva desse conhecimento. Ou seja, fazer com que a experiência de produção de conhecimento "sobre" e "com" o outro ofereça uma certa "movência" de perspectiva, aproveitando o que a experiência traz para essa capacidade de se questionar o conjunto de pressupostos (éticos, epistemológicos e metodológicos) de modo a: (1) minimizar as possibilidades de estruturação prévia dos resultados de uma jornada de produção de conhecimento; (2) se abrir para outras possibilidades de conhecimento, diferentes daquelas prescritas pelo processo de formação muitas vezes disciplinar dos agentes de pesquisa; (3) criar as condições de que práticas interdisciplinares que ultrapassem o marco metafórico simplista do "diálogo" e se constituam a partir de uma dinâmica de produção derivada da tensão entre estranhamento e aproximação de conteúdos e procedimentos diversos e não necessariamente correspondentes entre si. Sugiro denominar este movimento de "deslocamento perspectivo" por considerar que as duas preposições mais comumente utilizadas no interior da antropologia para descrever o fenômeno não são adequadas ou suficientes para abranger todas as suas potencialidades e implicações. Refiro-me aqui tanto o movimento empático de "colocar-se no lugar do outro" (muito comum em autores como Bronislaw Malinowski e Clifford Geertz, quanto sua alternativa mais contemporânea de "comunicação involuntária", coloca por autores como Fravet-Saada (2005) e Márcio Goldman (2006). Voltarei a esta diferenciação ao longo de minha argumentação.

Mas, para isso, a primeira coisa que proponho, é analisar como se construiu a primazia antropológica sobre a experiência etnográfica, para depois avaliar de forma mais qualificada os usos etnográficos da antropologia, e as condições de formas de atuação interdisciplinares. Mas então, por que existe tal "primazia", este monopólio, da etnografia por parte da antropologia? E em que condições ela nasceu?

 

ANTROPOLOGIA, CULTURA E ETNOGRAFIA.

Talvez seja certa obviedade afirmar que a antropologia nasce como uma espécie de seara epistemológica que tenta dar conta do "resto", ou seja, dos espaços ontológicos que sobraram no âmbito de divisão de trabalho estabelecida no interior das ciências humanas, com relação, principalmente, à sociologia, à história e à psicologia, lá nos inícios do século XIX. Desde cedo aprendemos que a sociologia dá conta da "sociedade moderna burguesa e capitalista", ou a assim chamada "sociedade ocidental", constituída por uma espécie de fervor histórico inovativo que imprime uma dinâmica tecnologizada ao contemporâneo. Do mesmo modo, aceitamos que a psicologia dá conta da "psique" da constituição subjetiva dos indivíduos, assim como lidamos bem com a ideia de que a história busca a apreensão do "passado" através de transformações históricas, via "documentos". O que foi atribuído à antropologia foi justamente o "resto". Ou seja, povos que pretensamente não deixavam documentos, marcas escritas; povos que pretensamente não acompanhavam o fervilhar da modernidade, e que estavam espacialmente deslocados do centro dessa; e povos que supostamente estavam "em déficit" na corrida cognitiva em busca da racionalidade, a ponto de serem pensados como povos sem individualidade.

Digamo-lo claramente, não existe um princípio ou axioma teórico que permita atribuir um conteúdo à antropologia, constituí-la num domínio de pesquisa definitivamente limitado [...]. Na prática, a antropologia nasceu da descoberta de um mundo não ocidental pela Europa e do desenvolvimento das diversas formas da dominação colonial do Ocidente sobre mundo [...]. Pouco a pouco, constitui-se um campo de estudos, povoados de todas as sociedades não ocidentais que o Ocidente descobriu na sua expansão mundial e que os historiadores abandonaram aos antropólogos desde que o seu estudo não pudesse apoiar-se em arquivos escritos que permitissem igualmente datar os monumentos e os traços materiais de uma história passada e desde que fosse necessário recorrer à observação direta e ao inquérito oral (Godelier, 1978, p. 50).

Na busca por esse universo aparentemente sem dinâmica histórica, sem aceleração tecnológica e sem constituição de individualidades, engendrava-se um certo entendimento, relativamente paradoxal, sobre o modo de vida e o espaço existencial desses povos ditos primitivos, dessas populações entendidas como "selvagens". E é um paradoxo bastante interessante. Por um lado, essas sociedades eram entendidas pela perspectiva eurocêntrica (seja pelo público mais amplo, seja pela nascente comunidade antropológica) como sociedades "simples", onde o econômico, o social, o político e as idealidades não estavam devidamente "separadas". "Observação direta e inquérito oral" seriam, nesse sentido, a única forma de apreensão e entendimento científico desses povos e sociedades.

Por outro, logo surgiu o reconhecimento que essas "sociedades simples" continham suas próprias complexidades, na medida em que a não distinção entre dimensões e esferas produziam "amalgamentos" que, para um certo entendimento, na sociedade ocidental moderna já se encontrava "superada" e "purificada". Os estudos sobre o Potlach (Boas, 1966) e Kula (Malinowski, 1976), sistematizados em Mauss (1992), traziam o entendimento que de muitos dos fenômenos dessas sociedades se constituíam como uma espécie de totalidade "folheada [...] e formada de uma multidão de planos distintos e justapostos. [...] Esta totalidade não suprime o caráter específico dos fenômenos [...], de tal modo que ela consiste, em suma, na rede de inter-relações funcionais entre todos esses planos" (Lévi-strauss, 1993, p. 14):

Nesses fenômenos sociais "totais", como nos propomos chamá-los, exprime-se, ao mesmo tempo e de uma só vez, toda espécie de instituições: religiosas, jurídicas e morais [...]; econômicas – supondo formas particulares de produção e consumo, ou antes de prestação e de distribuição, sem contar os fenômenos estéticos nos quais desembocam tais fatos e os fenômenos morfológicos que manifestam essas instituições (Mauss, 1992, p. 41).

Esta concepção surgiu em claro contraste com o entendimento eurocêntrico das diversas camadas da realidade social nas sociedades industrializadas como espaços segmentados. Segmentação que pode ser evidenciada tanto nos processos de estratificação e racionalização na tradição weberiana, quanto na explicação das determinações estruturais de produção e reprodução sociais em Marx, assim como, na solidariedade orgânica de Durkheim. Então, foi possível construir abordagens científicas distintas para cada uma dessas esferas econômicas, sociais, políticas e cognitivas das sociedades ocidentais, tais como a sociologia, a economia, a psicologia, a geografia, etc. Ou seja, em uma certa visão, amplamente aceita, a sociedade ocidental tinha que se segmentar; a construção da sociedade ocidental seria também acompanhada por um processo de purificação e segmentação das diversas camadas do social, ou do real, tanto do ponto de vista ontológico, quanto do epistemológico. Paradoxalmente, a simplificação (ou a simplicidade) dos povos nãoocidentais era concebida naquele momento como a ausência dessas dimensões passíveis de serem purificadas como no âmbito do espaço dito ocidental. Ficaria muito difícil naquele momento, entender, por exemplo, a economia dissociada dos aspectos religiosos; as dimensões subjetivas, simbólicas, "culturais", separadas dos aspectos políticos. Para os mundos ocidentais, vários arranjos epistemológicos e metodológicos disciplinados e ajustados à segmentação da vida. Para mundos não ocidentais, uma ciência e um arranjo metodológico, que teria, portanto, de ser capaz de dar conta da amalgama paradoxal da simplicidade complexa desses heterogêneos modos de vida.

Então, desde há muito, os antropólogos lançaram-se ao desafio de construir uma metodologia que fosse capaz de dar conta dessa simplicidade, no sentindo de que essas diversas camadas estavam amalgamadas e que a especificidade cultural desses povos, se daria justamente pelo tipo particular de arregimentação. Ou seja, como que em determinadas sociedades e "culturas", se dava a junção entre política e economia? Ou se privilegiava a junção entre aspectos religiosos e aspectos econômicos? De alguma maneira, tratava-se de fazer antropologia, logo nos primórdios, buscando entender as especificidades desses amalgamentos sociais. Quais seriam as propriedades metodológicas que dariam conta desses arranjos, dessa demanda por entendimento de processos de fusão entre dimensões que não eram purificáveis no âmbito dessas sociedades "não-ocidentais"?

Se couber à observação direta e inquérito oral, matérias-primas básicas do fazer etnográfico, a tarefa de apreender a complexidade dessas sociedades, então, todos os desenvolvimentos possíveis de se tratar ou de se entender uma história da etnografia, ou das diferentes possíveis emergências da etnografia, estão relativamente conectadas com a produção de conceito mater de entendimento antropológico, que esteve ou está atrelado ao termo "cultura". À medida que vão surgindo diversas concepções de cultura no meio antropológico, surgem também diversas modalidades de etnografia, que são criadas para dar conta das visões de cultura que são produzidas pelos antropólogos nos processos de análise, de imersão empírica, e ao mesmo tempo, de aglutinação do modelo conceitual que a antropologia vai produzindo nas suas várias modalidades.

A definição inaugural, oficial, institucionalizada de cultura foi cunhada por Tylor por volta de 1870, na obra "A Ciência da Cultura":

Cultura [...], tomada em seu mais amplo sentido etnográfico, é aquele todo complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer outras capacidades e hábitos adquiridos pelo homem na condição de membro da sociedade. A situação da cultura entre as várias sociedades da humanidade, na medida em que possa ser investigada segundo princípios gerais, é um tema adequado para o estudo de leis do pensamento e da ação humana. De um lado, a uniformidade que tão amplamente permeia a civilização pode ser atribuída, em grande medida, à ação uniforme de causas uniformes; de outro, seus vários graus podem ser vistos como estágios de desenvolvimento ou evolução, cada um resultando da história prévia e pronto para desempenhar seu próprio papel na modelagem da história do futuro (Tylor, 2005, p. 31).

A despeito da base evolucionista do conceito (com as implicações negativas já amplamente reconhecidas) esta definição é muito importante não apenas pelo que ela determina do "o que é" cultura, mas, antes, porque engendra um programa de pesquisa no qual a antropologia se debate com ele até hoje, em pelo menos quatro dimensões: o entendimento de cultura como "totalidade integrada" ou integrável de forma complexa; a disposição de analisar as dimensões "do pensamento e da ação humana"; a necessidade de levar em conta a relação entre universalidade e particularidade nas diferentes emergências culturais; e a controversa iniciativa de se classificar as diferentes culturas em graus de evolução. Dessas quatro inserções, vale dizer: 1) a antropologia se dedicou bravamente para se desvencilhar deste ranço evolucionista e biologizante; 2) No entanto, a ideia de totalidade integrada, a articulação pensamento-ação e a tensão universalidade-particularidade estão presentes até os nossos dias, mesmo na atual tendência de preterir o termo cultura em prol das "ontologias". E, em certo sentido, o modo pelos quais diferentes concepções de cultura dosam esses três elementos diz muito sobre modo pelo qual a etnografia se transforma. Talvez, o melhor exemplo disso seja o estabelecimento da relação entre a concepção malinowskiana de cultura e de observação participante. Quanto à primeira:

A) A cultura é essencialmente um aparato instrumental; através dela o homem é colocado em posição de melhor tratar os problemas concretos e específicos que enfrenta em seu ambiente [...]; B) é um sistema de objetos, atividades e atitudes no qual cada uma das partes existe como um meio para um fim; C) é uma totalidade, em que os diversos elementos são interdependentes; D) tais atividades, atitudes e objetos estão organizados em torno de tarefas importantes e vitais, em instituições como a família, o clã, a comunidade local, a tribo e as equipes organizadas em atividades políticas, legais, educacionais e de atividade econômicas; E) do ponto de vista dinâmico, [...], a cultura pode ser analisada sob diversos aspectos tais como educação, controle social, economia, sistema de conhecimento, crença e moral, e, também, modos de expressão criativa e artística (Malinowski, 1986, p. 171-172).

Aqui o "todo complexo" se manifesta em forma de "sistema", com a sinergia entre "pensamento e ação" espraiada em "objetos, atividades e atitudes". De forma mais implícita, a ênfase na particularidade está inscrita na tentativa de se pensar as culturas como entidades isoladas e isoláveis. Não à toa, o receituário básico de uma boa descrição etnográfica de define da seguinte forma:

1) A organização da tribo e a anatomia da sua cultura deve ser registrada num esquema firme e claro. O método de documentação concreta e estatística é o meio a utilizar para a definição desse esquema. 2) Dentro dessa trama, devem ser inseridos os imponderabilia da vida real e o tipo de comportamento. Os respectivos dados devem ser recolhidos através de observações minuciosas e detalhadas, sob a forma de uma espécie de diário etnográfico, só possível através de um contato íntimo com a vida nativa. 3) Deve ser apresentada uma coleta de depoimentos etnográficos, narrativas características, ocorrências típicas, temas de folclore e fórmulas mágicas sob a forma de um corpus inscriptionum, como documentos da mentalidade nativa (Malinowski, 1976, p. 24).

A tendência de se ver cultura como aparato instrumental pode, em um primeiro momento, promover um Malinowski racionalista e seco, dado a modelos explicativos empiristas. No entanto, a dimensão compreensiva de sua abordagem não deve ser negligenciada e pode ser considerada fundante no fazer etnográfico. Não podemos esquecer que o autor sentenciou de forma enfática e quase literária que "estudar as instituições, costumes e códigos, ou o comportamento e mentalidade do homem, sem atingir os desejos e sentimentos pelos quais ele vive, e sem o intuito de compreender o que é, para ele a essência de sua felicidade, é, em minha opinião, perder a maior recompensa que se possa esperar do estudo do homem (MALINOWSKI, 1976, p. 36). Ou seja, é preciso que esteja claro que a pretensão (termo usado aqui no seu sentido positivo) da antropologia em dar conta do econômico, do social, do político e das idealidades, sob o sentido amplo de cultura, se ancorou, também, em uma tentativa de articulação entre dimensões explicativas (referente às dimensões por assim dizer "materiais" das conexões causais) e compreensivas (subjetivas) no interior da etnografia.

Mesmo quando a ênfase hermenêutica tomou conta do mainstream antropológico, a etnografia não consegui fugir da aspiração aos três pressupostos tylorianos. A visão de cultura, tão popularizada, nos anos 1970, pela figura do Geertz em sua obra "A Interpretação das Culturas" (1989), possibilita que cultura possa ser encarada como um texto à espera de uma leitura semiótica, sendo o papel da etnografia a interpretação desse texto.

O conceito de cultura que eu defendo [...] é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície (Geertz, 1989, p. 4).

Que tipo de etnografia é possível, ou desejável em tal abordagem conceitual?

O que o define (a etnografia) é o tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma "descrição densa"; [...] uma hierarquia estratificada de estruturas significantes [...]. O que o etnógrafo enfrenta, de fato é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. Fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido de "construir uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (Geertz, 1989, p. 7).

Precisamos nos atentar que esta leitura, no entanto, não é ou deveria ser uma leitura "ocidental" do nativo, feita pelos olhos do próprio antropólogo, mas se colocando no "lugar" do nativo, ao "tentar ler por sobre os ombros daqueles a quem eles pertencem" (Geertz, 1989, p. 212). Ao colocar todas as suas fichar na solução hermenêutica de cultura e no fazer etnográfico semiótico, o autor não abandona a pretensão de apreender o "todo complexo", mas o faz colocando a materialidade a serviço das estruturas significantes, assim como dá ênfase extrema à opção particularista. Apesar de todo o manancial crítico surgido (dentro e fora da antropologia) quanto à tentativa e a impossibilidade de se "colocar no lugar do outro", Geertz tem como mérito levar às últimas consequências epistemológicas a importância da experiência de "abandono de si" como postulado de apreensão da experiência social exógena à sua no interior da etnografia.

Nos últimos 40 anos, diretamente relacionados ao campo de possibilidades do fazer etnográfico contemporâneo, aparecem as perspectivas que contestam a pertinência do uso do conceito de cultura, a partir que do que se convencionou denominar de "virada ontológica". Aqui, o conceito de "rede" (Latour, 1994) ou de "malha" (Ingold, 2011), buscam solucionar o dilema de cisão que o conceito de cultura garantiu ao pensamento antropológico, junto com o seu oposto complementar "natureza". Ora, se o conceito central da antropologia passa a ser questionado, problematizado e, no limite, descartado, também seriam descartáveis os procedimentos etnográficos? Não propriamente.

Ora, não existem nem culturas - diferentes ou universais - nem uma natureza universal. Existem apenas naturezas-culturas, as quais constituem a única base possível para comparações. A partir do momento em que levamos em conta tanto as práticas de mediação quanto as práticas de purificação, percebemos que nem bem os modernos separam os humanos dos não-humanos nem bem os "outros" superpõem totalmente os signos e as coisas (Latour, 1994, p. 9 – destaques no original).

Estaria aqui, com Latour, consolidada teoricamente não apenas a dissolução das fronteiras natureza-cultura como substrato fundamental da antropologia, mas também a busca (já quase secularmente iniciada) de se constituir a antropologia e a própria etnografia como apropriada para além da designação "não ocidental". Tendo como preocupação central a formulação de uma poderosa antropologia da ciência e dos laboratórios, a questão fundamental estava em formular a tese de não apenas modos de vida "não ocidentais" se constituíam em amálgamas complexas, mas toda e qualquer experiência (ou rede) sociotécnica.

Este dilema permaneceria sem solução caso a antropologia não nos houvesse acostumado, há muito tempo, [...] o tecido inteiriço das naturezas-culturas. Mesmo o mais racionalista dos etnógrafos, uma vez mandado para longe, e perfeitamente capaz de juntar em uma mesma monografia os mitos, etnociências, genealogias, formas políticas, técnicas, religiões, epopeias e ritos dos povos que estuda. Basta envia-lo aos arapesh ou achuar, aos coreanos ou chineses, e será possível obter uma mesma narrativa relacionando o céu, os ancestrais, a forma das casas, as culturas de inhame, de mandioca ou de arroz, os ritos de iniciação, as formas de governo e as cosmologias. Nem um só elemento que não seja ao mesmo tempo real, social e narrado (Latour, 1994, p. 11).

A etnografia se apresenta aqui como uma espécie de exercício de tessitura dessas redes, não necessariamente um espelho do que seria a própria rede, mas seria uma confecção criativa do antropólogo, tentando dar conta de pelos menos alguns aspectos dessa complexidade, muito próximo de um reconhecimento da importância e atuação do próprio observador na constituição inventiva dessas redes. Mesmo aqui, a aspiração à totalidade integrativa não é, como se pode perceber claramente, descartada. Ao contrário, sua importância deriva justamente desta capacidade.

Assim, podemos inferir que, mesmo com uma pequena demonstração das várias possibilidades de entendimento "cultura-etnografia" ou de "ontologia-etnografia", sejam elas mais afeitas a olhares instrumentais ou hermenêuticos, forjadas em contexto não ocidentais ou situações hiper-tecnificadas como em um laboratório, dois aspectos parecem se manter e constituir a grande contribuição epistemológica do fazer etnográfico: a busca pelo "todo complexo" e a articulação entre explicação e compreensão. Nascida para dar conta desses processos de complexificação, ela tem essa função primordial de articular dimensões que, em determinadas situações de produção de conhecimento, apresentam-se separadas. A etnografia formula, então, uma descrição articuladora. Essa propriedade é fundamentalmente dependente dos esquemas compreensivos, porque almeja apreender o "outro" em seus próprios termos. Para alguns, o nativo; para outros, o outro aproximado, aquele que pode ser seu vizinho, mas que constrói, no contexto do contemporâneo, mundos diversos e sobrepostos. A questão fundamental é que busca pelo outro "em seus próprios termos" não se faz sem o que é amplamente conhecido na literatura antropológica como experiência etnográfica. Ou seja, a vivência de uma situação transformadora do próprio etnógrafo, em termos subjetivos, pelas condições apresentadas pela pesquisa de campo, no mundo do outro. Uma experiência crua de alteridade, de fricção produzida pelos estranhamentos e desconfortos de se apresentar em um mundo em que, em alguma medida, não é o seu. Existem potencialidades interdisciplinares nesse movimento?

Antes de se referir diretamente a esta questão, é preciso abordar de forma mais detida e mediada o "colocar-se no lugar do outro". Durante muito tempo, essa possibilidade foi tomada pelos antropólogos como constitutiva daquilo que denominamos aqui de deslocamento perspectivo. Além da tentativa de descrições integradas dos fenômenos, os antropólogos de alguma maneira sempre buscaram fazer esta espécie de transcendência, de descentramento de olhar na busca de captar a perspectiva do outro. O consenso atual da teoria antropológica é que esta apreensão simplesmente não é possível (Goldman, 2006 e 2008; Fravet-Saada, 2005).

Impossível – a partir da construção do seu eu, dos seus pressupostos, da sua vida, da sua historicidade, dos seus alicerces existenciais – conseguir abandonar completamente esses alicerces para captar e entender o outro como se fosse o outro. Se há este reconhecimento, o que vem no seu lugar é que a busca de apreender o outro em seus próprios termos gera um efeito colateral interessante. Deriva daí, um "terceiro olhar", no sentindo de um deslocamento por meio das frestas da alteridade, de uma perspectiva cambiante, na medida em que ele ajuda o etnógrafo a descentrar os próprios pressupostos, seus efeitos de produção de "verdade", "naturalidade" e "normalidade". Essa tentativa sempre se construiu na clivagem entre a dimensão explicativa no efeito transitivo da dimensão compreensiva, tentando olhar as conexões de sentido da produção do modo de vida do outro. Ou seja, a questão fundamental aqui, é que a experiência etnográfica e o deslocamento perspectivo precisam, para que a aventura etnográfica seja exitosa, promover um efeito de "suspensão" e "suspeição" do conjunto de pressupostos existenciais constitutivos da individualidade do etnógrafo. Um ataque aos elementos vinculantes de validade de si que o conecta com o seu próprio mundo.

É neste abalo existencial é que a experiência etnográfica ganha a potencialidade epistemológica de se abrir a outras metafísicas, outros postulados produtores de verdade e normalidade. E isso está intimamente relacionado com a capacidade de se problematizar os esquemas teórico-metodológicos que nos fornecem repertórios de causalidades previamente estabelecidos, aqueles que geralmente usamos para "enquadrar" os outros nos nossos próprios termos. Tudo isso é muito caro entre os antropólogos: uma boa etnografia precisa de alguma forma ser livre dos pressupostos de causalidade que nós carregamos na nossa história e na nossa própria compreensão, de modo que consigamos entender quais são os pressupostos de causalidade para que aquele outro povo, que aquele grupo, aquela outra sociedade, aquele outro modo de vida, conserve e organize sua própria existência. Não se trata necessariamente de se entender o mundo como completamente indeterminado, destituído de leis organizativas, mas implica em tentar produzir uma espécie de autocritica de construção das nossas causalidades, buscando entender outros modelos de organização da vida, por outras concepções.

Então é possível afirmar que a aventura etnográfica guarda, pelo menos, três grandes características completando-se uma a mais das duas já previamente destacadas: Ou seja, além de, como vimos, (1) produzir propriedades descritivas articuladoras, em (2) construção conjunta entre elementos explicativos e compreensivos; ela precisa, também, (3) ser produzida na tensão entre estranhamento e aproximação com o outro, capaz de fomentar uma experiência de deslocamento perspectivo.

Mas porque o deslocamento perspectivo se apresenta como tão central na constituição do aporte etnográfico e que condições ele possibilita o efeito de suspensão e suspeição dos pressupostos do etnógrafo? A experiência etnográfica, como vimos, está intimamente ligada a necessidade de estar com outro no universo do outro, ou seja, do exercício real de se situar para além do seu próprio mundo, no ato material ou simbólico de viajar, vivendo e experimento de forma carnal a vida do outro. Digo "material ou simbólico" porque não é necessário se deslocar até a Amazônia ou até a Papua Nova Guiné para se viver a radicalidade de uma situação de alteridade. Pode-se vivenciá-la com os empresários da Avenida Paulista, com os cientistas imersos em um acelerador de partículas ou mesmo em uma "cracolândia". Trata-se de, nesse deslocamento, se viver uma experiência que não é a sua. E de se aproveitar do desconforto, da dor, do sofrimento que esse processo de deslocamento, de busca pela vida do outro gera e causa no antropólogo. E é aí, talvez, que o deslocamento perspectivo possa ter seus frutos mais interessantes.

São muitos os "causos", alguns mais outros menos famosos, sobre como os efeitos de experiências constituíram-se na chave epistemológica da produção de etnografias. Anthony Seeger, em "Os Índios e Nós" (1980) descreve como a necessidade de comer o fez ter de aprender a pescar, caçar e plantar, situação que o colocou na condição de ser tutelado por uma criança de 12 anos. Ou seja, para os Suya, o autor tinha as propriedades cognitivas e motoras próprias da infância.

Tratavam-me como um menino de 12 anos quando partimos, pois eu sabia remar, pescar e caçar pelos arredores, como faz um menino de 12 anos. Sabia conversar adequadamente, mas sem o discernimento e controle de imagens e metáforas que os adultos sabiam empregar. Acima de tudo os jovens devem ouvir e aprender, e de certo modo eu era um menino ideal de 12 anos (Seeger, 1980, p. 35).

Quais são os efeitos de uma experiência que incide sobre um eminente antropólogo norte-americano, com grande reconhecimento no mundo acadêmico, ao chegar no limite da fome, ser ridicularizado constantemente por sua inabilidade flagrante com as coisas corriqueiras daquele mundo e se conformar com a posição de uma criança em pleno e satisfatório processo de aprendizado? Esse movimento é muito interessante, porque promove e é possibilitado por um momento em que o etnógrafo está longe da sua casa, já passou por todas as dificuldades de acesso e viagem ao "campo" onde ele deseja construir a sua etnografia, com as devidas preocupações se será aceito ou não pelo grupo que pretende conhecer e pesquisar, estando muito preocupado se vai conseguir ou não fazer o seu trabalho. É um movimento difícil e doloroso de constituição de um quadro subjetivo de constantes dúvidas, instabilidades e redefinições, que torna o etnógrafo subjetivamente alquebrado.

Claude Lévi-Strauss, ao defender a tese de que Jean Jacques Rousseau é o grande fundador das ciências humanas, redige uma magnífica passagem sobre este momento de construção de quadro de dificuldades existenciais que o etnógrafo é destinado ao lançarse ao trabalho de campo, quando dominado pela doença, pela saudade, pelo estranhamento em relação ao outro. Imerso no mundo do outro, ele se encontra paradoxalmente entregue ao seu próprio "eu", sem nenhuma das suas amarras de certezas, de verdade, em constante e quase interminável abalo.

Cada vez que está em seu campo de ação, o etnólogo vê-se abandonado a um mundo onde tudo lhe é estrangeiro, frequentemente hostil. Não tem senão este eu, do qual dispõe ainda, para permitir-lhe sobreviver e fazer sua pesquisa; mas um eu física e moralmente abatido pela fadiga, pela fome, o desconforto, o choque com os hábitos adquiridos, o surgimento de preconceitos no qual nem suspeitava; e que se descobre a si mesmo nessa conjuntura estranha [...]. Na experiência etnográfica, [...], o observador coloca-se como seu próprio instrumento de observação. Evidentemente precisa aprender a conhecer-se, a obter um simesmo, [...], uma avaliação que se tornará parte integrante da observação de outras individualidades. [...] Porque para conseguir aceitar-se nos outros, é necessário, primeiro, recusar-se a si mesmo (Lévi-Strauss, 1993, p.44).

Recusar-se a si mesmo. É neste momento que o deslocamento perspectivo tem condições de fato de acontecer. Porque é neste momento, em que as verdades estão abaladas, que é possível se desprender de si para a tentativa de apreensão do olhar do outro. Neste momento de estranhamento, dor, desconforto e sem qualquer tipo de resguardo é que se torna possível olhar criticamente para si mesmo, colocar o seu próprio mundo em suspensão e, a partir daí, se dispor a aprender com o universo do outro. É nesse corpo frágil e vulnerável, portanto, que se constitui a encruzilhada epistemológica entre a "afetividade" e a "intelectividade" de uma experiência de conhecimento completamente inversa àquelas que as hostes objetivistas de nossa cientificidade nos possibilitou engendrar, posto que se produz justamente na defesa de perspectivas epistemologicamente cerradas (nossas disciplinas, nossas opções teóricas e nossos enquadramentos políticos). Aqui surge o terceiro olhar que possibilita construir ou inventar (Wagner, 2010) o universo do outro, em termos que não são os termos produzidos por uma perspectiva socialmente estruturada em termos de nossa "verdade". É aqui que existe, portanto, as possibilidades epistêmicas de deslocamento perspectivo.

Adicionalmente, estas situações de aprendizado sobre o outro, a partir de um questionamento sistemático de si e de seus próprios pressupostos, engendra também as condições de uma espécie de etnografia reversa (Wagner, 2010) que dispõe uma dupla possibilidade: as condições do "nativo" constituir um saber sobre o mundo do etnógrafo, assim como as condições dele próprio formular uma descrição renovada sobre o seu mundo. A constituição de uma espécie de universalismo autocrítico, muito menos colocado pela comparação entre mundos, mas pela tensão entre eles, a qual se torna explícita. O valor heurístico é feito por um triplo vetor. Do "eu" ao "outro"; do "outro" ao "eu"; e do "eu" a um "outro eu".

Pois bem, se a etnografia, quando entregue por uma experiência constituída pelo deslocamento perspectivo, permite um olhar integrativo entre diferentes dimensões (ecológicas, econômicas, sociais, políticas, simbólicas, etc), na transposição entre procedimentos explicativos e compreensivos, quais seria as suas contribuições para o desenvolvimento das crescentes práticas interdisciplinares? Se os recursos interdisciplinares têm sido apontados como fundamentais para apreensão da crescente complexidade do mundo contemporâneo, atravessada por riscos reflexivos das mais diferentes matizes e cruzamentos, qual seria a contribuição das propriedades etnográficas aqui destacadas e cultivadas? Qual é o valor do deslocamento perspectivo para um ambiente epistêmico transcendente à própria antropologia? Estariam aqui, dadas as condições para uma possível epistemologia política da alteridade?

 

DA ANTROPOLOGIA À INTERDISCIPLINARIDADE

Como cultivar interdisciplinaridades que transcendam a afável, mas limitada, imagem do "diálogo dos saberes", que engendra uma espécie de esperanto epistemológico, modelo que apenas cientificidades similares e correspondentes entre si são capazes de estabelecer? Processos interdisciplinares pautados por tensões de estranhamento, aproximação, distanciamento e reaproximação, seriam possíveis? Como conseguiríamos uma epistemologia política de alteridade, para além do universo antropológico? Devo destacar, não se trata de "antropologizar", como muitas vezes já se desejou, as ciências humanas e sua relação com as ciências naturais. Não se trata de resgatar o sonho levistraussiano de colocar a antropologia como "ciência-mãe" das humanidades (Lévi-Strauss, 1975). Trata-se de trazer a etnografia e possibilitar que ela seja utilizada por diversas ciências, interagindo com outros métodos e outras possibilidades teórico-conceituais para a articulação de diferentes ciências e de diferentes saberes. Como certamente este não é um empreendimento individual, mas demanda esforços coletivos de significativa proporção, pretendo aqui sugerir um conjunto de encaminhamentos possíveis.

Em primeiro lugar, trata-se de promover uma espécie de generalização do conceito de alteridade, buscando trabalhar com a perspectiva do estranhamento, como um dado, ou como um elemento que seja produzido, confeccionado e atualizado, constantemente nas nossas relações. Sejam elas com povos, grupos, dimensões e realidades muito diferentes das nossas, sejam com povos, dimensões e realidades nas quais nós nos entendemos como pertencentes. Se parte importante de nosso pensamento sociológico estabelece o conflito como o vetor fundante da "ontologia do social", talvez evidenciar as dinâmicas de alteridade (estranhamento, equivocação, aproximações e distanciamentos) a este vetor seja bastante interessante, como uma das formas de se compreender o mundo contemporâneo. Nesse sentido, se são válidas as perspectivas teóricas que tomam o risco como elemento reestruturador das relações sociais e ecológicas (Beck, 2010), evidenciar como em um mesmo dado experiencial (uma ameaça global, por exemplo) é apropriado por diferentes arranjos sociopolíticos pode ser de grande valia. Toma-las pela perspectiva da alteridade pode ser epistemologicamente muito relevante. Não se trata de tornar "alteridade" uma espécie de coringa conceitual, aplicável a qualquer relação de forma redutora, mas de se atentar para a "dimensão alteridade" das relações.

Em segundo lugar, adentrando-se aqui na problemática interdisciplinar, é necessário tomar as dinâmicas possíveis entre estranhamento e aproximação como recurso epistemológico possível às próprias relações intra, extra e transcientíficas. Ou seja, reconhecer como diferentes campos, grupos e instituições científicas possibilitam uma multiplicidade de modos de ser e agir perfeitamente suscetíveis a processos de equivocação (Viveiros de Castro, 2015), tomando, assim, as dinâmicas de produção de alteridade como fundantes dos processos de produção de conhecimento.

Essas duas sugestões endereçam uma possível contribuição da experiência etnográfica às práticas interdisciplinares que seria, antes de tudo, a de se promover o deslocamento perspectivo entre as diferentes cientificidades presentes em contexto de produção de conhecimento não disciplinar. Ou seja, para que eu consiga me apropriar e cultivar relações interdisciplinares, devo, antes de tudo me aventurar pelas dinâmicas de alteridade em outras searas científicas, me colocando como aprendiz destas. Para tanto, preciso (precisamos) estar aberto a vivenciar todos os incômodos de abandono da autoridade científica cultivada por anos de educação acadêmica e experimentar novamente a postura da criança em pleno processo de inserção no mundo científico dos outros. Conhecer outras cientificidades, engendrar uma problematização da sua própria e refazê-la, em outros termos.

Mas existem, também, três contribuições possíveis e aplicáveis do fazer etnográfico na própria constituição das agendas de pesquisa interdisciplinares. Em primeiro lugar, se, sob o domínio da antropologia, o etnógrafo tece uma descrição articuladora entre as diversas dimensões de uma "cultura" ou de uma "ontologia", sob a égide de uma epistemologia política de alteridade, a tessitura descritiva pode recorrer a diferentes cientificidades para qualificar o processo de arregimentação explicativa de problemas complexos e multidimensionais. Talvez, precisamente neste momento, teríamos condições de "desantropologizar" a etnografia, no sentido de que antropologia deixaria de ser o contexto epistêmico de objetivação da descrição etnográfica, para situá-la em um contexto multifacetado, constituído de repertórios díspares, oriundos de diferentes cientificidades. Mais do que nunca, a tentação de esquemas explicativos apriorísticos sedentos por aplicação de modelos de causalidade preestabelecidos, próprios dos modelos rígidos de disciplinaridade, precisariam ser renunciados para que a ideia de uma tessitura descritiva articuladora de ontologias e epistemes se faça possível. Assim, em segundo lugar, seria preciso reforçar as tendências interdisciplinares que se constituem a posteriori do problema a ser enfrentado. Ou seja, precisaríamos da adoção de um pragmatismo capaz de colocar os esquemas teóricometodológicos de tradições científicas diferentes a serviço dos problemas complexos dados pela própria dinâmica dos fenômenos. Nesse sentido, em terceiro lugar, outra contribuição possível seria a de promover, neste processo de tessituras descritivas interdisciplinares, a articulação ou rearticulação entre esquemas explicativos e compreensivos, tanto no interior das ciências humanas, como também entre estas e ciências naturais.

Por fim, uma última consideração. Podemos como é perceptível, entender a experiência etnográfica como uma aventura transitiva: entre "eu" e "outro"; entre dimensões da existência; e entre procedimentos analíticos causais (explicação) e hermenêuticos (compreensão). Mas é importante destacar que o próprio processo de deslocamento perspectivo se constitui em um "entre" para além do "eu" e "outro". Antes de tudo trata-se de uma aventura entre processos intelectivos e afetivos. Diferentemente de uma visão amplamente estabelecida na antropologia contemporânea de etnografia como um processo comunicacional unicamente afetivo (Fravet-Saada, 2005), enfatizamos aqui a intercorrência não distintiva – seja no campo, seja no escritório ou nas tentativas atuais de articulá-las por meio da experiência artística (Ingold, 2015) – entre processos de intelecção e afetividade. Fazer etnografia parece, então, estar indissociável de uma postura curiosa e pueril na qual perguntar e obter resposta engendra formulações intelectuais e transformações subjetivas de forma complexa.

Nesse sentido, na radicalização da alteridade e na busca de um deslocamento perspectivo, toda intelectividade está atravessada por processos afetivos; toda produção de conhecimento é participe de afetividade. Porém, "ser afetado" (Fravet-Saada, 2005) está longe aqui da construção empática pretensamente "amorosa" de construção de uma espécie concerto de saberes "reencantados" (Leff, 2002). Esta amorosidade pode estar presente, mas também não é plausível descartar que esse processo é feito por dores, desconfortos, sentimentos de pequeneza e arrebatamento desorientador para além desse sentimento de comunhão com o outro. É nesse processo que a afetividade pode contribuir para uma produção de uma intelectividade descentrada, deslocada. Uma afetividade incômoda pode contribuir para promover uma espécie de intelectividade comedida, autocrítica e auto vigilante, principalmente, contra a tentação de construção de superioridades epistemológicas.

Finalmente, já que o momento é propício para se afirmar que "etnografia não é antropologia" (Ingold, 2015), podemos, então, afirmar que a experiência etnográfica pode, e deve, ser... interdisciplinar.

 

Referências

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Nota sobre o autor

Roberto Donato da Silva Júnior – Doutor em Ambiente e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação em Ambiente e Sociedade do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (DAS/NEPAM/IFCH/UNICAMP). Professor Doutor do Núcleo Geral Comum (NGC), do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (ICHSA) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) e do Doutorado em Ambiente e Sociedade do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), todos no âmbito da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: robertod@unicamp.br

 

Recebido em: 20/01/2019
Aprovado em: 20/03/2020

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