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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.1 Belém jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01tradução02 

Traduçaõ

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12. nº01tradução02

 

Fenomenologia interdisciplinar

 

Interdisciplinary phenomenology

 

Fenomenología interdisciplinaria

 

 

Don Ihde

Stony Brook University

 

A visão inicial e mais otimista de Husserl sobre o futuro da fenomenologia era de que todas as ciências poderiam e deveriam ser reconstruídas a partir de linhas fenomenológicas. Senão todas, pelo menos algumas ciências poderiam se beneficiar da fenomenologia como sugerido em seu trabalho. Por exemplo, a psicologia empírica da percepção poderia se abrir para as novas direções oferecidas pela fenomenologia descritiva, na qualidade de ciência essencial. Husserl defende que uma ciência essencial ou eidética necessariamente precede uma ciência empírica e que a descoberta de um campo mais amplo e profundo de possibilidades perceptivas de figuras multiestáveis2 ilustra o que existe em um nível essencial, a partir do qual qualquer conjunto empírico de sedimentos pode surgir.

Uma vez que a inversão fenomenológica ocorreu, o campo mais amplo de possibilidades é o essencial, dentro do qual arranjos particulares ganham forma. Nem todos os campos de possibilidades estão dispostos do mesmo modo, como mostra uma comparação entre a investigação com fenômenos multiestáveis e a breve incursão em ocorrências similares com objetos materiais. Mas todos os campos de possibilidades exibem algum tipo de topografia, que se torna evidente somente quando o campo em si é aberto para a intuição essencial do olhar fenomenológico rigorosamente descritivo.

Esta ênfase husserliana no primado do possível é o aspecto radical da fenomenologia e exemplifica a sua reivindicação de ser fundacional no que diz respeito ao campo da experiência humana. Mas há um outro lado da questão da relação da fenomenologia com as outras disciplinas. Na segunda metade do século XX, já não era possível a uma pessoa adquirir uma proporção suficientemente grande de conhecimento em todas as disciplinas, ou mesmo conhecer as variações possíveis em um dado domínio de investigação. Em vista disso, a investigação e a crítica fenomenológica dos campos de possibilidades necessitam da consulta às disciplinas já constituídas. Tenho enfatizado a necessidade da experiência em primeira pessoa ao fazer fenomenológico – esta é, de fato, a primeira tarefa para a fenomenologia. A verificação experiencial é a segunda tarefa, na medida em que as experiências relatadas ou tomadas de outros devem ser escrutinadas tanto quanto possível, como experiências realizáveis. Mas como o campo essencial é todo o campo da experiência possível, ele já é, em princípio, intersubjetivo, aberto a todo aquele que se mostrar disposto e preparado para proceder à investigação.

As disciplinas das quais a fenomenologia deve extrair material para exame já contêm intuições latentes e formas de variações que podem ser reinterpretadas fenomenologicamente. A tarefa é discernir quais são os principais problemas em relação ao quadro que a fenomenologia, como uma ciência do possível, oferece.

A conexão da fenomenologia com outras disciplinas não é algo original deste trabalho. Foi apontada particularmente pelo filósofo contemporâneo Paul Ricoeur. O uso "diagnóstico" de uma série de disciplinas em seu pensamento baseia-se no poder informativo das disciplinas constituídas. Sua ênfase na outridade genuína das disciplinas complementa a reivindicação menos cautelosa do primeiro Husserl3.

Seria muito ambicioso e presunçoso sugerir uma total reorganização das disciplinas a partir de linhas husserlianas. Além disso, terminar com um sistema de fenomenologia aplicada violaria a modesta apropriação de uma abordagem americana pragmática das coisas.4. Mas noto um desenvolvimento fenomenológico em cada uma das principais divisões das disciplinas. Sempre que possível, sugerirei o desenvolvimento na área geral da experiência e seu papel nas ciências ou artes. Não estou sugerindo que estes desenvolvimentos sejam mais básicos ou importantes do que outras influências fenomenológicas nas disciplinas, apenas que eles ilustram como se pode lidar com um problema em uma dada disciplina de uma maneira fenomenológica.

 

AS CIÊNCIAS NATURAIS

De um ponto de vista fenomenológico, as ciências naturais podem ser chamadas de ciências noemáticas, na medida em que seus domínios de objetividade vinculam-se primeiramente aos correlatos de objeto. Do seu próprio ponto de vista, as ciências noemáticas podem estar pouco preocupadas com o modo como um determinado campo de investigação se relaciona com a intencionalidade humana. Filosoficamente, entretanto, esta concentração no noema pode permitir que as questões noéticas correlacionadas sejam negligenciadas. A questão de como um determinado fenômeno é ou pode ser tornado presente, necessariamente, conduz a uma direção filosófica. Para a fenomenologia, a prática da ciência é uma forma particular de desenvolvimento da intencionalidade humana. Assim, uma questão importante é como o observador está e pode estar intencionalmente relacionado a um fenômeno; nos contextos científicos contemporâneos, este pode ser um problema extremamente complexo.

Observar implica algum tipo de experiência, constituindo-se em uma questão para o fenomenólogo que se põe a investigar na ciência contemporânea. Por enquanto, vou deixar de lado três aspectos claramente importantes da observação no contexto científico: a atenção à maneira como ocorre a observação dentro de uma comunidade de discurso técnico (notavelmente diferente do discurso ordinário), as práticas laboratoriais que são tomadas como garantidas nesse contexto, e a relação da observação com a teoria preditiva enquanto tal. Cada um destes problemas é importante e foi tratado na filosofia da ciência. Diferentemente, meu foco incidirá em alguns elementos perceptivos básicos que fazem parte da observação científica. Existe pelo menos uma analogia entre a experiência científica e o entendimento fenomenológico da experiência. Ambos desconstroem e transformam a experiência ordinária. O cientista sabe implicitamente que as intuições são constituídas. O que ele vê pode ser muito diferente do que o indivíduo desinformado vê, e isso se relaciona com o contexto noético, que é bastante diferente e tecnicamente desenvolvido na ciência. É necessário que tanto a ciência quanto a fenomenologia sejam capazes de desconstruir o que é dado para que seus estratos mais profundos possam ser descobertos; nisto, ambos o transformam para que possa ser intuitivo.

A separação dos cientistas pelos pontos de vista de suas expectativas ordinárias conduz a visões diferentes das coisas, o que pode causar problemas. Hoje, as ciências tendem cada vez mais a trazer microfenômenos para seus centros de interesse. Teoria de partículas e teoria genética são exemplos paradigmáticos de disciplinas relacionadas com microfenômenos.

A observação de microfenômenos, considerada para além da questão da teorização predicativa, coloca problemas novos para o entendimento da observação científica. Muitas vezes, os cientistas mantêm um forte senso de realismo ao lidar com microfenômenos, mas quanto mais microscópicas as observações, mais difíceis elas são de observar. A ciência pergunta se existe ou não uma unidade indivisível última da realidade física. A questão correlata é se há ou não um limite à observabilidade. Por exemplo, partículas são encontradas pelos seus traços; elas são esmagadas em outras entidades a velocidades ultra-elevadas, o que permite que aquilo que permanece destas colisões seja examinado por vestígios. Aqui, as percepções ordinárias são aparentemente deixadas para trás, tentando frequentemente a ciência à hipótese, como um eco antigo dos atomistas gregos, na qual as partículas menores não somente são impossíveis de se perceber de fato, mas impossíveis de detectar em princípio. Neste limite, o realismo da própria investigação fica sob suspeita, pois se torna difícil, se não impossível, discernir a diferença entre uma entidade puramente teórica (ou imaginada) e uma entidade empírica.

Observações desse tipo são feitas por meio de instrumentos. De fato, quanto mais minucioso o fenômeno, maior e mais complexo são os instrumentos.5 É aqui que um conjunto interessante de questões pode ser levantado para a fenomenologia.

O que acontece com e na percepção quando ela ocorre por meio de um instrumento? Como é a intencionalidade perceptiva do observador mediado, e com que resultado? Tais questões levam a uma fenomenologia de percepções instrumento-mediadas como importante para entender como a ciência contemporânea situa suas observações e a defesa de seus resultados.

Que tais observações ainda são percepção é bastante claro. O cientista observa as leituras de seus instrumentos e os traçados sobre fotografias e placas geradas por computador e, pelo menos para confirmações de suas teorias, relaciona-se a um mundo através, com, ou por instrumentos.

Um filósofo da ciência orientado fenomenologicamente, Patrick Heelan, argumentou que o uso de instrumentos modifica substancialmente a percepção. Ele sustenta que os "mundos" constituídos por meio da experiência perceptiva direta ou mundana e o "mundo" desenvolvido por meio de instrumentos científicos são diferentes, sendo o "mundo" ordinário constituído por percepções ordinárias e o "mundo" científico constituído por percepções instrumento-corpóreas (Heelan, 1967).

Levei essa sugestão para um contexto um pouco mais amplo para considerar o que ocorre quando a experiência é dirigida através, com e entre artefatos tecnológicos (máquinas), dos quais os instrumentos científicos são uma subclasse (Ihde, 1974). Algumas ilustrações deste desenvolvimento, ainda preliminar, apontarão as implicações da percepção instrumento-mediada. Nas citações a seguir, substitua "instrumento" por "máquina", e o ponto ficará claro.

Começo com certas experiências simples com máquinas e com os tipos simples de máquinas que posso encontrar. Pego um lápis ou um pedaço de giz e começo a passá-lo de um lado a outro da mesa ou do quadro-negro. Após um exame cuidadoso desta experiência, de repente descubro que experencio o quadro-negro ou a mesa por meio do giz – eu sinto a suavidade ou a rugosidade do quadro na ponta do giz. Este é, evidentemente, o mesmo homem cego de Merleau-Ponty que experiencia o "mundo" na extremidade de sua bengala. Se eu for descritivamente rigoroso, devo dizer que aquilo que sinto é sentido localmente na ponta do giz ou, melhor, na junção giz-quadro-negro. O "término" da minha extensão intencional para o mundo está no quadro-negro, me revelando (ao contrário do empirismo) que o toque é também um sentido de distância. Se continuar a reflexão em termos do entendimento fenomenológico da intencionalidade como experiência em um mundo, noto que há algo curioso sobre esta experiência. Primeiro, no caso em tela, está claro que eu não experiencio o giz primeiramente nem como temática e nem como um objeto. Em vez disso, o que experiencio é o quadro-negro e, mais precisamente, um certo aspecto complexo da presença do quadro-negro como textura, dureza, resistência, etc. Discirno que experiencio o quadro-negro por meio do giz, exatamente aquele que está sendo tomado em minha "auto-experiência". Com isso quero dizer que o giz é apenas secundariamente um "objeto", enquanto ele é absorvido primariamente em minha experiência como uma extensão de mim mesmo. É verdade que o giz não é totalmente absorvido, pois tenho o que poderia ser chamado de "foco de eco", no qual sinto simultaneamente uma certa pressão na junção dedos/giz com aquela que sinto na ponta do giz. No entanto, o quadro é o foco primário que sinto (Ihde, 1974, p. 271 – destaques no original). Uma interpretação fenomenológica do que acontece em um tipo de experiência máquino-mediada é mostrada na próxima citação, na qual sigo a mesma interpretação correlacional geral de noema-noesis, aqui denominada de correlação humano-mundo.

Este fenômeno pode agora ser explicado em termos do modelo de correlação que já observei. Contudo, é importante notar onde a máquina é colocada dentro da correlação. No primeiro caso acima, fica claro que a colocação adequada da máquina deve estar na própria linha de correlação:

Humano-máquina → mundo.

A máquina está "entre" mim e o que é experenciado e é neste sentido um "meio" da experiência no foco primário. Aqui, porque o giz não é tematizado, pode ser falado como uma parte simbiótica parcial do ato noético ou da experiência do correlato noemático no mundo. Isto pode ser simbolizado como segue pela introdução de parênteses:

(Humano-máquina) → mundo.

Com isso, temos um tipo de relação humano-máquina, uma experiência por meio de uma máquina. A estrutura correlacional da intencionalidade permanece, na medida em que experiencio algo diferente da máquina que está sendo usada e, ao mesmo tempo, minha experiência é estendida por meio da máquina para essa realização intencional. Posso descrever o giz como tendo uma relação de transparência parcial entre mim e o que é outro. No tato, quanto melhor a máquina, mais "transparência" haverá. Da mesma forma, posso agora usar uma linguagem que fala da máquina como parte de mim ou como tendo me possuído, no que diz respeito à experiência (Idhe, 1974, p. 272 – destaques no original)

Denomino corporificação a experiência máquina (ou instrumento-mediada) na qual o instrumento possui ou captura a experiência que engaja corporalmente o mundo, seja ela primariamente cinestésica-tátil, seja a corporificação da extensão da visão (telescópio) ou do som (telefone). Estas relações estendem genuinamente a intencionalidade ao mundo e, quando operam devidamente, o senso de um novo realismo no fenômeno pode ser retido. Mas esta extensão não é sem outras implicações.

Contudo, nesses casos, a própria transparência é enigmática. É claro que eu experencio o quadro por meio do giz, mas é igualmente claro que o que é experenciado é de alguma maneira transformado. Eu não experencio o quadro por meio do giz da mesma maneira que experencio o quadro "em carne e osso" com meu próprio dedo. Assim, quando comparar minha experiência do quadronegro por meio do giz com a experiência com meu dedo nu, posso notar que em ambos os casos obtenho uma textura em sua rugosidade ou suavidade. Mas, com meu dedo obtenho também calor ou frieza, uma sensação de propagação da espacialidade do quadro, talvez até seu empoeiramento ou asseidade. Há uma riqueza maior do toque nu no quadro-negro em relação ao quadro-negro experienciado por meio do giz. Agora posso falar das experiências do quadronegro por meio do giz como uma experiência reduzida quando comparada com meu toque "nu" no quadro. Suponha, no entanto, que eu substitua o giz por um instrumento mais sensível, digamos que uma sonda de dentista feita de aço inoxidável com uma boa ponta no final. Ao traçar a sonda em todo o quadro, noto mais distinta e claramente do que antes, cada imperfeição da superfície do quadro. Cada marca ou rachadura aparece por meio de minha sonda de uma maneira amplificada; talvez até o que eu não vi nem senti com meu dedo nu se torne presente por meio do aço da sonda. Uma presença microscópica é amplificada por meio da sonda, estendendo assim a minha experiência do quadro a um nível de discernimento não observado previamente. Em cada uma dessas variações na experiência por meio de máquinas, a relação de corporificação se dá pela experiência da outridade por meio da máquina, mas esta experiência transforma ou contrasta com a minha experiência ordinária de "carne e osso" (Ihde, 1974, p. 272-273 – destaques no original).

Contudo, a instrumentação que corporifica a percepção não é a única possibilidade instrumental para a percepção. Em um polo bastante diferente do continuum correlacional, uma possibilidade diferente pode ser notada.

Suponha que eu desça aos porões de uma universidade moderna e me depare com uma sala cheia de mostradores, medidores, reostatos e interruptores que são observados atentamente por um engenheiro de aquecimento. Suponha que este centro de controle monitore todos os sistemas de aquecimento e resfriamento dos escritórios e dormitórios. O engenheiro no caso "lê" seus mostradores e se um deles sobe, indicando que um determinado quadrângulo está superaquecendo, ele simplesmente precisa girar um mostrador e esperar para ver se o calor começa a se normalizar. Se isso acontecer, tudo bem, se não, ele terá que chamar o síndico para identificar o problema. Neste caso o engenheiro está envolvido nas experiências de máquina. Retornando ao nosso modelo correlacional, esta experiência de máquina é curiosa. Por meio da máquina algo (presumivelmente) ainda acontece em outro lugar, no entanto, o engenheiro não experencia o término da intenção que atravessa a máquina. Assim, podemos expressar a relação da seguinte maneira:

Humano → (máquina-mundo).

Seu término experiencial primário está com a máquina. Assim, chamarei esta relação como uma relação hermenêutica. Há uma opacidade parcial entre a máquina e o mundo e, portanto, a máquina é como um texto. Posso ler um autor, mas o autor está presente apenas indiretamente no texto. É precisamente em tais situações que as possibilidades kafikianas podem surgir (imagine que o mostrador de calor tenha quebrado e, de fato, quando o engenheiro pensa que o calor está diminuindo, ele está na realidade subindo, ou imagine um secretário acadêmico6 que se relaciona mais diretamente com computadores que com os estudantes). É claro que, nestas instâncias, ainda há a possibilidade de empregar a diferença entre tipos de experiências mediadas e não mediadas; o engenheiro poderia ir para o próprio dormitório em questão para notar o que estava acontecendo. Em alguns casos, os instrumentos sondam áreas até então desconhecidas, nas quais essa verificação não é possível e, neste caso, temos uma situação hermenêutica genuína na qual o hermeneuta entra na caverna para ouvir o provérbio do oráculo, restando a nós apenas contar com sua interpretação. Assim, aqueles instrumentos que sondam os mundos ultramicroscópicos do átomo deixam espaço para dúvidas sobre o que está precisamente "do outro lado" da máquina (Ihde, 1974, p. 175-176 – destaques no original).

Embora isso seja muito esquemático, aponta uma área em que uma fenomenologia da percepção é relevante para um problema cada vez mais importante na investigação de microfenômenos. Esta fenomenologia deve, em última análise, ser capaz de delinear as condições das possibilidades de observação instrumento-mediada e dos problemas daí decorrentes. Mas, para fazer isso em detalhes, é necessário estar informado pela prática da própria ciência. É também uma fenomenologia que é elevada à condição de filosofia da tecnologia, alcançando o mesmo nível de importância de que goza a filosofia da ciência, cujo foco está sobre o conceito de teoria.

 

AS CIÊNCIAS SOCIAIS Se a concentração na outridade no campo noemático conduz a denominar as ciências naturais como ciências noemáticas, as ciências sociais puderam ser denominadas como ciências noéticas, isso porque as ciências sociais, notavelmente a sociologia e a antropologia, mas também a história e algumas versões da psicologia, se concentraram no campo dos significados humanos constituídos. As ciências sociais, ou humanas, se voltam para questões que, em sentido fenomenológico, podem ser chamadas de questões sobre a origem, desenvolvimento, estrutura e sedimentação de contextos de crenças, à medida que atingem a ação humana.

O trabalho fenomenológico nas ciências sociais é provavelmente mais conhecido e mais desenvolvido do que nas ciências naturais, e por isso há várias fontes fenomenologicamente consistentes. Um exemplo é o marcante trabalho pioneiro de Alfred Schutz (veja Colected Papers I: The problem of social reality – Schutz, 1962, editada por Maurice Natanson), além do desenvolvimento e ascensão recente da etnometododologia liderada por Harold Garfinkel (1967/2018).

Entre estes dois desenvolvimentos fenomenológicos bem conhecidos nas ciências sociais está o trabalho de Peter Berger e Thomas Luckmann, que assumiram a tarefa de um desenvolvimento fenomenológico da sociologia e da sociologia do conhecimento. Apontarei brevemente alguns elementos de sua obra The Social Construction of Reality (Berger; Luckmann, 19667) para ilustrar como a fenomenologia opera enquanto uma ciência noética das ciências sociais.

Uma vez que a linguagem básica e o sistema conceitual da fenomenologia é apreendido, é muito fácil fazer a transição para a linguagem técnica empregada por Berger e Luckmann (mais intimamente derivada de Husserl e Schutz do que a linguagem utilizada neste artigo). Eles, também, sustentam que as considerações filosóficas e pré-sociológicas devem ser atendidas antes que a sociologia possa começar. "O método que julgamos mais conveniente para esclarecer os fundamentos do conhecimento na vida cotidiana é o da análise fenomenológica, método puramente descritivo, e como tal 'empírico' mas não 'científico', segundo o modo como entendemos a natureza das ciências empíricas" (Berger; Luckmann, 1966/1985, p. 36).

Eles consideram que a tarefa preliminar primária das ciências sociais é o entendimento do que e como o mundo da vida cotidiana é constituído. Em suma, a tarefa descritiva é uma análise do que já está sedimentado e tomado como garantido, uma fenomenologia da atitude natural.

Entre as múltiplas realidades há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência. É a realidade da vida cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade predominante. A tensão da consciência chega ao máximo na vida cotidiana, isto é, esta última impõe-se à consciência de maneira mais maciça, urgente e intensa. É impossível ignorar e mesmo é difícil diminuir sua presença imperiosa. [...] Este estado de total vigília de existir na realidade da vida cotidiana e de apreendê-la é considerado por mim, normal e evidente, isto é, constitui minha atitude natural (Berger; Luckmann, 1966/1985, p. 38).

O que está aqui examinado é a ascensão, a estrutura e a constituição de um significado-estrutura, o estado social noético da vida cotidiana.

Uma vez que a região de investigação é clarificada, a descrição prossegue de maneira fenomenologicamente típica. A variedade de experiências na vida cotidiana é tomada como uma série de zonas que mostram a si mesmas, aproximando-se claramente da estrutura foco-campo-horizonte elaborada anteriormente nos exemplos multiestáveis.8

A realidade da vida cotidiana está organizada em torno do "aqui" de meu corpo e do "agora" do meu presente. Este "aqui e agora" é o foco de minha atenção à realidade da vida cotidiana. Aquilo que é "aqui e agora" apresentado a mim na vida cotidiana é o realissimum9 de minha consciência. A realidade da vida diária, porém, não se esgota nessas presenças imediatas, mas abraça fenômenos que não estão presentes "aqui e agora". Isto quer dizer que experimento a vida cotidiana em diferentes graus de aproximação e distância, espacial e temporalmente. A mais próxima de mim é a zona da vida cotidiana diretamente acessível à minha manipulação corporal. [...] Sei, evidentemente, que a realidade da vida cotidiana contém zonas que não me são acessíveis desta maneira. Mas, ou não tenho interesse pragmático nessas zonas ou o meu interesse nelas é indireto, na medida em que podem ser potencialmente zonas manipuláveis por mim. Tipicamente meu interesse nas zonas distantes é menos intenso e certamente menos urgente (Berger; Luckmann, 1966, 1985, p. 39)

Além disso, em um interesse noético social, uma sociologia fenomenológica toma nota da natureza intersubjetiva das estruturas da vida cotidiana. "A realidade da vida cotidiana além disso apresenta-se a mim como um mundo intersubjetivo, um mundo de que participo juntamente com outros homens. Esta intersubjetividade diferencia nitidamente a vida cotidiana de outras realidades das quais tenho consciência." (Berger, Luckmann, 1966, 1985, p.40). Aqui, o campo de interesse restringe-se aos fenômenos noéticos, intersubjetivos e ao isolamento do estrato de significados sociais, sendo o segundo o objeto da sociologia fenomenológica.

O que tem a maior importância é que eu sei que há uma contínua correspondência entre os meus significados e os seus significados neste mundo que partilhamos em comum, no que respeita à realidade dele. A atitude natural é a atitude da consciência do senso comum precisamente porque se refere a um mundo que é comum a muitos homens (Berger, Luckmann, 1966, 1985, p. 40 – destaques no original)

O problema da investigação, assim, torna-se a estrutura da realidade da atitude natural, da vida cotidiana em sua constituição intersubjetiva. A sedimentação ocorre na estrutura intersubjetiva noética e os processos de sedimentação são considerados fenomenologicamente. Berger e Luckmann vêem este processo como ocorrendo em grande parte por meio da tradição e por meio do que eles (seguindo Schutz) denominam de objetivação. A objetivação é o processo de mudança da experiência para a linguagem que, por sua vez, é um vínculo social e a instituição de significados intersubjetivos. Sedimentação e tradição, assim, são o pano de fundo contra o qual a vida empírica cotidiana ocorre.

O que aparece aqui é uma nova estrutura de horizonte (origens: real, construída, perdida, etc.) que limita as possibilidades de um campo:

Somente uma pequena parte das experiências humanas são retidas na consciência. As experiências que ficam assim retidas são sedimentadas, isto é, consolidam-se na lembrança como entidades reconhecíveis e capazes de serem lembradas. Se não houvesse esta sedimentação o indivíduo não poderia dar sentido à sua biografia (Berger, Luckmann, 1966,1985, p. 95).

A sociologia fenomenológica vê a sedimentação como tendo uma origem experiencial (imediata) e como a gênese de significados objetivados (crenças tomadas por certas). Berger e Luckmann dão o seguinte exemplo simples:

Por exemplo, só alguns membros de uma sociedade de caçadores têm a experiência de perder suas armas, sendo obrigados a combater um animal selvagem unicamente com as mãos. Esta assustadora experiência, quaisquer que sejam as lições de bravura, astúcia e habilidade que produza, fica firmemente sedimentada na consciência dos indivíduos que a sofreram. Se vários indivíduos participam da experiência ficará sedimentada intersubjetivamente, podendo até talvez formar um profundo laço entre esses indivíduos (Berger e Luckmann, 1966, 1985, p. 96).

Esta experiência primária, partilhada por alguns, pode, no entanto, ser objetivada como uma experiência possível.

Sendo, porém, esta experiência designada e transmitida linguisticamente, tornase acessível e talvez fortemente significativa para indivíduos que nunca passaram por ela. A designação linguística […] abstrai a experiência de suas ocorrências individuais biográficas. Torna-se uma possibilidade objetiva para todos, ou pelo menos para todos os indivíduos de certo tipo […], isto é, torna-se anônima em princípio, mesmo quando ainda associada a feitos relativos a indivíduos particulares (Berger, Luckmann, 1966, 1985, p. 96-97).

Desta maneira, a objetivação conduz à instituição, à ritualização e à sedimentação das possibilidades sociais.

Para Berger e Luckmann este processo acontece, principalmente, por meio da linguagem, a qual é a portadora da sedimentação social. "A linguagem torna-se o depósito de um grande conjunto de sedimentações coletivas, que podem ser adquiridas monoteticamente, isto é, como totalidades coerentes e sem reconstruir seu processo original de formação (Berger, Luckmann, 1966,1985, p.97). Quando isso acontece, o sedimento social torna-se uma crença aceita, tomada como assumida, que pode variar ou até mesmo perder sua justificativa. Torna-se uma estrutura estática, um dado, dentro da realidade social.

Não irei mais longe nesta análise, a não ser para dizer que, vista como uma estrutura noética, a fenomenologia da vida cotidiana e seus sedimentos podem tratar de aspectos da sedimentação como as simplificações necessárias para permitir que os sedimentos sejam tipificações facilmente transmitidas, assim como a maneira na qual a sedimentação se torna abstrata e ritualizada, equiparando-se ao conhecimento (social) e transmitida de pessoa para pessoa.

Estudos antropológicos mostram várias construções empíricas nas sociedades humanas, e até mesmo variantes no interior dessas sociedades. O que interessa a uma ciência noética é a natureza da estrutura de sedimentação e a tradição que produz estas variantes.

 

AS ARTES

O terceiro conjunto de disciplinas que uma fenomenologia interdisciplinar deve articular são as artes, tanto literárias como as finas ou belas-artes. Funcionando a partir de campos de possibilidades, a fenomenologia certamente encontrará nas artes uma fonte rica, uma vez que elas estimulam muito a imaginação criativa. As artes, tomadas como disciplinas em que as possibilidades são exploradas e exibidas por qualquer motivo (arte por si só ou para outros propósitos), possuem uma relação profunda com um elemento central da fenomenologia, explorando a prática da possibilidade, o que constitui para as artes a necessidade da fenomenologia. Há uma profunda relação entre a exploração da possibilidade artística e a exploração da possibilidade na fenomenologia, que revela o parentesco entre a fenomenologia e a arte. A estética fenomenológica, na qual têm sido realizados alguns trabalhos, considera as artes como exercícios em suas variações. As artes visuais, por exemplo, procuram explorar o campo das possibilidades visuais; a música explora a dimensão auditiva; a escultura e a arquitetura exploram o espaço e o material; e a dança (e alguns esportes) explora o campo do movimento corporal.

Embora não faltem aspectos noemáticos e noéticos, as artes, ao contrário das ciências noemáticas e noéticas, exercitam a própria intencionalidade como variacional. Há uma ludicidade na arte profundamente relacionada à ludicidade fenomenológica, e é possível ver a prática do artista como fenomenologicamente latente por princípio. Na atualidade, exercitando variações de fantasia, as artes ecoam o dito aristotélico de que a poética é, em última análise, mais verdadeira do que a história. O não descoberto é encontrado e criado fora da possibilidade.

Dada essa relação entre fenomenologia e arte, não é por acaso que quase todos os fenomenólogos (pelo menos desde Husserl) fizeram algum comentário sobre as artes ou realizaram uma incursão mais sistemática para examiná-las. Martin Heidegger examinou a poesia ("Existence and Being"10, por exemplo – Heidegger, 1949); Jean-Paul Sartre explorou numerosos tópicos literários ("Situações" – Sartre, 1947/2006); Maurice Merleau-Ponty examinou a arte visual ("Signos" e "Sens et non-sens" – Merleau-Ponty, 1960; 1991; 1948); entres muitos outros.

Houve também tentativas de desenvolver uma estética e uma teoria literária fenomenológicas. Destacam-se as obras de Roman Ingarden, "A obra de arte literária" (INGARDEN, 1931; 1973) e de Mikel Dufrenne, "Phénoménologie de l’expérience esthétique" (1953).

Mas para comentar a fenomenologia e a arte em um nível mais básico, o nível em que a riqueza variacional da arte emerge, é preciso olhar para a atividade da imaginação. Ela tem sido tema de muitos fenomenólogos, mas um dos trabalhos mais sistemáticos acaba de aparecer: "Imagining: A phenomenological Study", de Edward S. Casey (1976).

Uma fenomenologia da imaginação abrange todas as artes e isola uma dimensão intencional essencial nas disciplinas que se esforçam para exibir possibilidades. A análise de Casey está consciente desta direção, tendo profunda relação com a fenomenologia. Sua tese, que emerge de um estudo concreto e descritivo da imaginação, propõe que esta é exclusivamente autônoma, embora inicialmente ele caracterize esta autonomia como frágil11.

O reconhecimento do caráter frágil da autonomia imaginativa em relação a outros tipos mais densos de autonomia pode ajudar a entender porque a ação autônoma do imaginar foi tantas vezes questionada – ou simplesmente ignorada – por investigadores anteriores. É como se tivessem feito a seguinte pergunta cética: Como pode uma experiência tão tênue, frágil e fugaz quanto o imaginar ser autônoma? Está ausente na pergunta a possibilidade de que o imaginar, tenazmente, possa fornecer uma pista para o seu modo de autonomia. Talvez o imaginar seja autônomo na sua própria insubstancialidade. Mas o que seria então autonomia imaginativa? A resposta a esta questão pode ser encapsulada nas seguintes declarações:

1. A autonomia da imaginação consiste na sua estrita independência em relação a outros atos mentais, a seu ambiente e a todas as preocupações humanas prementes. 2. A autonomia de imaginar consiste na liberdade do espírito da qual a imaginação é inequivocadamente capaz (Casey, 1976, p. 191 – destaques no original).

Esta fenomenologia da imaginação mostra, em contraste com muitas teorias anteriores, que o papel da imaginação é uma função irredutível da intencionalidade. Esta autonomia, a autonomia da multiplicidade dos atos intencionais, é uma função irredutível do espírito.

Reconhecer a multiplicidade do espírito – multiplicidade confirmada precisamente pela existência de diferenças eidéticas entre os vários tipos de atos mentais – deve substituir uma visão vertical do espírito se queremos evitar as consequências nocivas de um pensamento exclusivamente hierárquico. A autonomia da imaginação somente tem o seu lugar dentro da estrutura múltipla do espírito – um lugar que não é passível de classificação como superior, inferior ou mesmo como intermediário, por mais singular que possa ser (Casey, 1976, p. 178)

Essa parece ser uma pretensão modesta para a imaginação. É frágil e é apenas uma de um conjunto de atividades mentais. Além disso, Casey argumenta que a imaginação por si só não é necessariamente criativa, quer no sentido artístico ou não, "não há nenhuma conexão inerente ou necessária entre o imaginar e ser criativo; eles estão conectados apenas contingencialmente" (Casey, 1976, p. 188). No entanto, de acordo com Casey, a autonomia frágil da imaginação tem um papel único. É a atividade intencional que abre o campo da possibilidade pura.

A possibilidade pura, finalmente, é a expressão tética da liberdade imaginativa do espírito. Mesmo que o puramente possível esteja sujeito a certos limites formais e práticos, estes limites últimos não são, nem proximamente, tão constritivos como os impostos sobre o que quer que seja empiricamente real. A possibilidade pura habilita o livre movimento do espírito a atravessar um terreno consideravelmente mais vasto do que a região ocupada pelas coisas percebidas e lembradas. [...] Cada viagem em tal domínio é potencialmente interminável, uma vez que uma determinada série de possibilidades puras não tem término fixo. Aqui a liberdade é aquela de nunca ter que chegar a um fim pré-estabelecido ou peremptório (Casey, 1976, p.199 – destaques no original).

A possibilidade como tal surge da imaginação, afirma Casey, porque é da natureza da imaginação variar de si mesma. As variações são a própria vida da imaginação.

No presente contexto, tal multiplicidade assume a forma específica de variabilidade, ou seja, a liberdade do espírito para variar indefinidamente e sem fim. Variação significa multiplicidade; sendo uma variação sobre outra coisa, uma determinada variação implica sempre outras variações, reais ou possíveis. Consequentemente, um ato mental, cujas operações básicas continuamente engendram variedade, será livre no sentido especial de dar origem a múltiplas opções, direções e rotas (Casey, 1976, p. 200 – destaques no original).

Assim, apesar de suas reivindicações muito moderadas para a imaginação, admitindo sua fragilidade, e da ausência, em sua perspectiva, de inferioridade ou superioridade em relação a outras dimensões mentais (intencionais), Casey acaba por assumir no imaginar uma ligação com a liberdade humana.

Ser livre desta maneira é realizar a liberdade do espírito ao máximo. O espírito humano prospera na variação, mesmo que procure unificação; e imaginar, mais do que qualquer outro ato mental, procede pela proliferação: é a maneira primária na qual a mente e seus conteúdos se diversificam. O espírito é livre – é realmente mais livre – no imaginar (Casey, 1976, p. 200-201).

Sem prejudicar as conclusões de Casey, abro exceção para a afirmação da localização da liberdade apenas na imaginação. Fenômenos multiestáveis também abriram o caminho para encontrar variações e possibilidades na percepção. Aceitar a recalcitrância de variações na percepção, a qual está ligada à práxis básica da vida corporal (em contraste com a liberdade flutuante da imaginação), continua apropriado em cada dimensão da intencionalidade que exibe um campo de possibilidade.

No entanto, a imaginação, com sua liberdade de dissociação, de colocar o imaginar longe das preocupações mundanas em sua própria epoché natural, traz à tona, direta e imediatamente, a variabilidade. Mais prosaicamente, a variabilidade infinita do imaginar pode ser vista em sua espontaneidade e em sua capacidade de continuar indefinidamente sem levar em conta as restrições. "Assim como raramente somos coagidos a imaginar, raramente somos obrigados a proceder de acordo com aquilo que já imaginamos" (Casey, 1976, p. 179-180).

Já foi mencionado como a capacidade de variar as coisas é essencial para a filosofia fenomenológica. Casey vê a mesma capacidade como essencial para as artes.

A atividade possibilitadora da imaginação na arte abre um domínio experiencial que de outra forma não estaria disponível, nem para o artista nem para o espectador. Este é um domínio em que tudo aparece como puramente possível. Dentro dos limites espaço-temporais de uma determinada obra de arte, surge o domínio do puramente possível quando o imaginar funciona autonomamente (Casey, 1976, p. 206 – destaques no original).

O reino do possível, aberto por variações imaginativas, é o terreno comum das artes e da fenomenologia – cada uma de acordo com seu respectivo propósito.

É o imaginar como autônomo que introduz o fator de possibilidade pura na experiência estética. Somente uma imaginação autônoma pode projetar, explorar e povoar o domínio do puramente possível na arte. Este domínio é intrínseco ao próprio ser das obras de arte, e ainda assim é deixado de lado sem explicação em teorias representacionalistas e expressivistas, ambas as quais não conseguem apreciar a atividade autônoma da imaginação na criação artística e nem se regozijar com ela. […] Na arte – seja no fazê-la ou no contemplá-la – não só percebemos ou sentimos; também imaginamos, entrando assim em um reino que, de outra forma, teria permanecido fechado para nós (Casey, 1976, p. 207 – destaques no original).

Multiplicidade, variação, possibilidade pura: esta é a região em que uma arte saudável e uma fenomenologia rigorosa podem e devem atuar. Se esta região é frágil, como Casey afirma, ou a fonte final de descoberta tanto do real como do irreal, como Husserl considerava, fenomenologia e arte realmente são da mesma família.

No entanto, o espírito da fenomenologia, que a torna tão diferente de seus parentes mais próximos, liga a sua jovialidade ao desejo de criar novas ciências. Somente por meio da variação, defende Husserl, o invariante se mostra; somente por meio da fenomenologia é possível uma ontologia fundamental, afirma Heidegger. Nenhuma destas reivindicações diz respeito às artes; mas são essenciais à fenomenologia. Mas isto é simplesmente dizer que a arte não é filosofia e a filosofia que não é arte, mesmo que uma filosofia artística seja preferível a qualquer outro tipo.

 

REFERÊNCIAS

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Casey, E. (1976). Imagining: a phenomenological study. Bloomington: Indiana University Press.         [ Links ]

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Nota do Autor:

Don Ihde – Distinguished Professor do Departamento de Filosofia da Stony Brook University (State University of New York), nos Estados Unidos. Seu trabalho abrange a filosofia da ciência e da tecnologia, a fenomenologia e a hermenêutica, direcionando-se mais recentemente para a pós-fenomenologia, as tecnologias de imagens e as relações com a tecnociência. Coordena o Technoscience Research Group (Grupo de pesquisa em Tecnosciência) e o Technoscience Research Seminar (Seminário de Pesquisa em Tecnosciência). dihde@notes.cc.stonybrook.edu.

 

Recebido em: 20/02/2020
Aprovado em: 20/03/2020

 

1 Original publicado em inglês como capítulo do livro: Ihde, Don. (1977/2012). Experimental phenomenology: multistabilities. 2ed. (pp. 97-112) Albany: SUNY Press. Tradução de Eduardo Marandola Jr. e Jamille da Silva Lima. Agradecemos ao autor e à SUNY Press pela cessão dos direitos para esta tradução.
2 O conceito é utilizado por Ihde para expressar a indissociabilidade do ser humano (mergulhado na cultura) com a tecnologia. Para o autor, as tecnologias recebem sentido a partir de seu uso, resultando em uma multiplicidade de sentidos que lhes confere uma ambiguidade inerente. A partir dos usos e sentidos estes fenômenos adquirem estabilidades, embora se mantenham múltiplos, o que caracterizaria, para Ihde, a multiestabilidade da de artefatos tecnológicos. (N.T.)
3 O "diagnóstico" de Paul Ricoeur, característica de todo o seu trabalho, pode ser compreendido como uma abordagem interdisciplinar. Ver especialmente Ricoeur (1966).
4 Ihde refere-se à própria apropriação realizada em seu livro. (N.T.)
5 O físico Kosta Gavroglu, acredita que este não é um traço acidental na busca pelo microfenômeno, mas que é tanto maior quanto for a instrumentação envolvida.
6 "Registrars" no original. O autor se refere ao profissional das instituições de ensino superior dos Estados Unidos que processa as solicitações de matrícula, cuida do calendário e da distribuição das aulas, além de manter as listas de presença e o registro permanente das notas dos estudantes. Não temos, no Brasil, uma função equivalente, por isso optamos por traduzir como "secretário acadêmico", buscando manter o sentido que o autor almeja com o exemplo. (N.T.)
7 O livro foi traduzido em português por Floriano de Souza Fernandes, publicado pela Editora Vozes em 1973, com o título "A construção social da realidade", tendo várias reedições desde então. Todas as citações foram transcritas desta tradução, cuja indicação de página corresponde à 11ª edição brasileira, de 1985. (N.T.)
8 Aqui o autor se refere aos capítulos precedentes do livro. (N.T.)
9 Referência ao conceito "ens realissimum" que indica o fundamento da determinação das coisas desde a tradição ontoteleológica, passando por reformulações em Kant e problematizações na tradição fenomenológica, como em Heidegger. (N.T.)
10 Trata-se da primeira tradução de obras de Heidegger para o inglês, composta de quatro ensaios oferecidos por ele a Stefan Schmanski, que o visitou na Floresta Negra, antecedidos de uma longa introdução escrita por Werner Brook. Os quatro ensaios são: "Remembrance of the poet", "Hölderlin e a essência da poesia", "Sobre a essência da verdade" e "Que é a metafísica?", todos, com exceção do primeiro, foram traduzidos e publicados em português. (N.T.)
11 Casey utiliza o termo "thin", que significa "fino" ou "estreito", tendo como referência o sentido físico. O autor o utiliza buscando contrapor às formas densas da autonomia, por isso optamos por esta tradução que, em português, mantém de maneira mais aproximada o sentido almejado pelo autor. (N.T.)

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