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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.2 Belém May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo65 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02artigo65

 

Segurança e saúde no trabalho e o sofrimento ético

 

Safety and Health at Work and Ethical Suffering

 

Seguridad y Salud en el Trabajo y el Sufrimiento Ético

 

 

Laura Soares Martins NogueiraI; Paulo de Tarso Ribeiro de OliveiraII; Márcio Mariath BellocII

I Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho II Universidade Federal do Pará

 

 


RESUMO

O presente artigo traz uma análise, realizada a partir da fala dos trabalhadores associada a reflexões alicerçadas na teoria da Psicodinâmica do Trabalho e de autores que dialogam com a Sociologia do Trabalho, de como a gestão da segurança e saúde de uma empresa da cadeia produtiva de alumínio instalada na região norte do Brasil é vivenciada subjetivamente pelos trabalhadores. Na pesquisa de cunho qualitativo, utilizou-se a entrevista coletiva e Análise de Núcleo de Sentidos como proposta metodológica. Trabalhadores foram ouvidos acerca do que fazem/faziam no seu trabalho. Relataram sofrimento por vivenciar ações em que a segurança e a saúde são submetidas à lógica da produção, evidenciando situações de sofrimento ético. Este sofrimento é resultante de uma cultura organizacional que privilegia as regras de segurança no trabalho ao mesmo tempo em que a produção obriga ao descumprimento das mesmas regras.

Palavras-chave: Subjetividade; Sofrimento; Organização do Trabalho; Segurança do Trabalho; Amazônia.


ABSTRACT

This article presents an analysis based on the workers speech associated with reflections based on the theory of Work Psychodynamics and on authors who dialogue with the Sociology of Work, on how health and safety management is subjectively experienced by workers of a company in the aluminum production chain installed in northern Brazil. In the qualitative research, the collective interview and Sense Core Analysis were used as a methodological proposal. Workers were heard about what they do/did in their work. They reported suffering for experiencing actions in which safety and health are submitted to the logic of production, highlighting situations of ethical suffering. This suffering is the result of an organizational culture that favors the rules of safety at work, at the same time that production forces the non-compliance with the same rules

Keywords: Subjectivity; Suffering; Work Organization; Occupational Safety; Amazon Region


 

 

INTRODUÇÃO

No cenário do trabalho contemporâneo, diversos riscos à segurança e saúde são enfrentados pelos trabalhadores nos processos de produção. Riscos visíveis, mensuráveis, que apontam para o ambiente e condições de trabalho, mas também riscos invisíveis, resultantes da relação subjetiva do trabalhador com o seu trabalho, dos quais salientamos aqueles frutos de dadas organizações de trabalho, que revelam as relações sociais entre os diversos agentes da produção marcadas pelo poder, hierarquia, competição, cooperação, individualismo, solidariedade, maior ou menor autonomia e que colocam a prova à saúde mental dos trabalhadores.

O capitalismo não só se configura como um modo de produção e, portanto, de reprodução da vida material, mas a partir da base material e das relações sociais faz emergir a ideologia que o sustenta. Em diversas empresas, a cultura organizacional forjada sob a lógica capitalista tem assumido papel relevante na vivência de sofrimento relatado por trabalhadores que podem resultar em adoecimento mental e nas situações mais extremas levar o trabalhador ao suicídio. Para a teoria da Psicodinâmica do Trabalho (PdT), uma das manifestações do sofrimento daqueles que trabalham tem recebido a designação de sofrimento ético (Vasconcelos, 2013).

O presente estudo se propôs a responder: Quais aspectos da organização do trabalho calcadas na Gestão da Saúde Ocupacional podem impactar em vivências de sofrimento ético dos trabalhadores? Pergunta de pesquisa que surge como desdobramento do projeto de extensão denominado "Saúde do Trabalhador e Direitos dos Vitimados por Acidente de Trabalho no Complexo do Alumínio – Barcarena (PA)" desenvolvido no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Federal do Pará, no período de 2016-2018, em parceria com a Fundacentro e outras instituições. O projeto de extensão foi aprovado pelo EDITAL: PROEXT – 2016 com financiamento do Ministério da Educação e Cultura/Secretaria de Educação Superior (MEC/SESu).

A pesquisa ocorre em continuidade aos estudos iniciados em 2007 em outra empresa da cadeia do alumínio no estado do Pará cujos resultados são encontrados em Nogueira (2011). Naquele momento, abordou-se como a gestão da segurança ocupacional realizada pela empresa estudada era vivida subjetivamente pelos trabalhadores. Agora, outra empresa da cadeia do alumínio da mesma região foi estudada, com o objetivo de compreender as relações entre organização de trabalho, gestão da segurança e saúde do trabalhador moldadas pelos princípios da reestruturação produtiva e os processos de subjetivação do trabalhador, mas marcadamente o que se refere aos dilemas éticos e sofrimento ético experienciados por estes em seu labor.

 

CONTRIBUIÇÕES DA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

A Psicodinâmica do Trabalho é utilizada como aporte teórico nesta pesquisa. Ao ser elaborada por Christophe Dejours, a PdT toma por objeto de estudo as relações dinâmicas entre a organização do trabalho e processos de subjetivação – no que se entende como atribuição de sentido construído na relação do trabalhador com sua realidade de trabalho. Estes processos ganham expressão em modos de pensar, sentir, agir individuais ou coletivos.

Dejours traz à cena a dimensão da subjetividade na sua relação com o trabalho no momento em que, no mundo contemporâneo, novas formas da organização do trabalho, de gestão e administração, no rastro das reestruturações produtivas e de políticas neoliberais, negam a livre expressão das subjetividades, mas as cooptam em prol da produção e da lucratividade. Como consequência, observa-se o aumento de patologias e em especial das doenças mentais associadas ao trabalho. Entretanto, o crescimento das doenças mentais no trabalho não é tudo, Mendes (2007) pontua que as reflexões de Dejours sobre a relação trabalho e subjetividade revelam que no mundo do trabalho, em que prevalece a precarização do emprego e o sofrimento ético associado à banalização das injustiças e do mal, têm surgido patologias sociais, tais como a sobrecarga, a servidão voluntária e a violência.

A teoria da PdT problematiza a questão - Por mais rigorosa que seja a organização do trabalho, com instruções e procedimentos claros, as mesmas não podem ser atendidas na sua integralidade. Havendo, portanto, uma discrepância entre o trabalho prescrito e o trabalho real.

Trabalhar seria assim a capacidade de preencher a lacuna entre o prescrito e o real. O sujeito deve acrescentar algo às prescrições para que os objetivos propostos sejam cumpridos, ou ainda, deve acrescentar algo de si mesmo para enfrentar o que não funciona quando tenta seguir de modo escrupuloso as prescrições. Como o trabalhador reconhece a distância entre o que é dado no plano da realidade e as prescrições? O sujeito o reconhece sob a forma de fracasso. O trabalho real se apresenta como resistência à consecução dos procedimentos prescritos, ao saber-fazer, à técnica, ao conhecimento e gera sentimentos de impotência, irritação, cólera, esmorecimento, decepção. Deste modo, "O real se apresenta ao sujeito por meio de um efeito surpresa desagradável, ou seja, de um modo afetivo" (Dejours, 2004, p. 28). Inicialmente, segundo Dejours (2007b), o sofrimento ocorre na passividade do sentir, experimentar, em seguida, o sofrimento se condensa na subjetividade e se transforma em exigência psíquica, em busca de solução. Trabalhar significa tolerar o sofrimento ao longo do processo que permite superar os obstáculos. Ao fim, vencendo a resistência do real, o sujeito pode transformar-se a si mesmo tornando-se mais experiente, mais competente, mais hábil.

Trabalhar, segundo a teoria de dejouriana, não é somente uma relação individual entre o sujeito e sua tarefa, já que implica sempre uma relação com o outro em processos de cooperação que se estabelecessem a partir da construção, adaptação, transmissão e respeito às regras. Dejours (2007b) propõe-se a explicar como as pessoas se mobilizam para cooperar no trabalho. A resposta aponta para o binômio contribuição/retribuição. Assim, a mobilização para o trabalho resulta da troca entre contribuição para a organização do trabalho por um lado e a espera por retribuição de outro.

A organização do trabalho sob a ótica de dejouriana é resultado de um processo intersubjetivo, que abarca diferentes sujeitos em interação com uma dada realidade. O trabalho então se manifesta como lugar da produção de significações psíquicas e de construção de relações sociais. Processos, em que ocorrem conflitos, negociações, consensos para o estabelecimento de regras e compromissos que compõem a organização do trabalho.

Ainda, trabalhar não se resume necessariamente às experiências patológicas. O trabalho pode suscitar prazer e favorecer o equilíbrio e a saúde mental. O sofrimento, por sua vez, não é um fim no processo entre subjetividade e o trabalho, mas de outro modo, é um ponto de partida. O sofrimento leva à proteção da subjetividade na sua relação com o mundo do trabalho e pode ser um caminho para superar a resistência do real.

O sofrimento na perspectiva dejouriana assume diversas formas - sofrimento criativo, sofrimento patogênico e sofrimento ético. Detemo-nos aqui no sofrimento ético. De acordo com Vasconcelos (2013), sofrimento ético pode ser entendido como uma vivência de sofrimento experimentada pelo sujeito quando participa de situações de trabalho das quais discorda, que vão de encontro aos seus valores, quando é demandado a agir de forma contrária aos seus princípios morais. O conflito ético assume o caráter de um conflito moral e emocional do sujeito com ele mesmo.

Para Dejours, Deranty, Renault e Smith (2018) o sofrimento ético está associado às formas de organização do trabalho submetidas à lógica da reestruturação produtiva. Afirma a impossibilidade de controle desejado pela "qualidade total", considerando-a como um ideal que enquanto tomado como realidade impulsionam os trabalhadores a esconder a realidade. Assim, a necessidade de mentir se impõe na vida profissional, corrompendo inevitavelmente as regras e a ética dos ofícios. Como resultado dor, sentimento de deslealdade, traição de valores, perda da autoestima.

Observa-se que a gestão e seus discursos criam mecanismos que atuam para minimizar o sofrimento ético em um processo que Dejours (2015) denomina cinismo da resignação. Compactuar com o não cumprimento de normas, com estratégias que vão de encontro ao senso moral de cada um, passa a ser aceito pelo coletivo. Mensagens dúbias, veladas ou mesmo explícitas transmitidas em treinamentos e outra forma de circulação de informações no ambiente empresarial indicam que "na guerra econômica, vale tudo", pois sem produção não há empregos.

Como a maioria passa a aceitar o "vale tudo"? Para o autor, as mensagens trazidas do exterior como ideias pré-elaboradas que circulam no espaço da empresa passam a eximir os trabalhadores da capacidade de julgar. A derrocada do pensamento torna-se grave e o sofrimento ético é aliviado paulatinamente pelo cinismo da resignação.

A acrasia (fraqueza de vontade) está no cerne do cinismo da resignação permitindo ao sujeito não sucumbir à angústia provocada pelo sofrimento ético. Sua motivação não reside na razão, mas na comodidade. Entrar em resistência é mais trabalhoso. Opera-se assim uma clivagem, sabe-se o que é justo e bom e isto define muitas tomadas de decisão da vida em geral, mas na vida profissional são feitas escolhas inversas ao que indica o próprio senso moral (Dejours, 2015).

 

ÉTICA NO TRABALHO

Para melhor compreender como as organizações de trabalho podem levar a vivências de sofrimento ético pelos trabalhadores, propomos a seguir um diálogo com autores que muito contribuem para o campo da sociologia do trabalho e das relações entre o trabalho e a subjetividade dos trabalhadores.

Um processo de produção ocorre em dada sociedade não somente em decorrência do ambiente, matéria-prima, ferramentas e a alocação de mão-de-obra. Para o sistema funcionar faz-se também necessário uma materialização do regime de acumulação na forma de hábitos, redes de regulamentação que favorecem a unicidade do processo. Quando interiorizados, o conjunto de regras, procedimentos que pautam as relações sociais são denominados de modos de regulação (Harvey, 2008). Aspecto que implica o controle do trabalho pela disciplinarização da força de trabalho. No modo de produção capitalista o controle social do trabalhador ocorre não só no plano físico, mas também no plano mental; e vários são os instrumentos empregados para tal. Como afirma o autor, o processo educacional, o treinamento, a persuasão, a mobilização de certos sentimentos sociais como a ética no trabalho, lealdade aos companheiros, assim como processos psicológicos como a busca de identidade no trabalho, iniciativa individual, solidariedade social são fatores imbrincados em um dado modo de regulamentação.

Observou-se entre taylorismo-fordismo e o modo de acumulação flexível, o incremento do individualismo em detrimento da ação coletiva marcando as relações no âmbito do trabalho. Linhart (2007) explicita esta mudança ressaltando que no taylorismo a margem de liberdade do trabalhador centrava-se no seu saber e poder não oficiais capazes de resolver adversidades do processo de trabalho e propor melhorias no desempenho da empresa. Já a introdução de novas tecnologias no processo de trabalho impõe aos trabalhadores seguir rígidas instruções. Eles devem cooperar às claras, expondo seus conhecimentos e os colocando a serviço da produção e do lucro. Exige-se do trabalhador que deixe de cooperar clandestinamente, que abdique de uma cultura e consciência operária e de uma relação conflituosa com a empresa por consentimento e solidariedade a ela, o que traz por consequência o rompimento dos laços de solidariedade horizontal entre os trabalhadores. Há uma expropriação do conhecimento, da expertise, e são os consultores que definem como os trabalhadores devem trabalhar (Linhart, Aucher, & Barnier, 2016).

De outro modo, na empresa mais eficaz e competitiva, observa-se um forte tom moral que justifica como a obtenção de lucro pode ser algo atraente, interessante, estimulante, inovador ou meritório (Boltanski & Chiapello, 2009).

A captura da subjetividade do trabalhador assalariado pelo modelo toyotista de organização do trabalho mostra os laços orgânicos entre a instância da produção e a instância da reprodução social. Seriam pelo menos três os elementos mediativos da "captura" da subjetividade no processo de produção do capital toyotista, a saber: novas formas de pagamento, o trabalho em equipe e a emulação pelo medo decorrente da precarização do mundo do trabalho. (Alves, 2007). Destacamos aqui o primeiro elemento, apesar da utilização do incentivo salarial não ser um instrumento gerencial novo, assume novas configurações como no aspecto da segurança. Um exemplo é o bônus por produtividade quando atrelado ao cumprimento de metas como ausência de acidentes em equipes de trabalho.

Dejours (2007a) assinala que na vida e no mundo do trabalho contemporâneo, desemprego, adoecimento no trabalho e exclusão social passam a ser vivenciados na sociedade como fenômenos que assumem caráter natural e não como fruto de injustiça.

No âmbito do trabalho, a crença acerca do desemprego, adoecimento e exclusão como resultantes de uma crise econômica sistêmica e que não implica em responsabilidade de ninguém permite uma postura de resignação. Para o autor, a tese da causalidade do destino não implica uma inferência pessoal dos sujeitos, mas é fruto de ideário que é dado externamente e que aponta para a "banalização do mal". Esta expressão é utilizada pelo teórico francês no sentido empregado por Hannah Arendt ao analisar o julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann na obra "Eichmann em Jerusalém". Desta feita, a "banalização do mal" remete ao processo que favorece a tolerância social para com o mal e a injustiça.

Arendt (1999), que assiste ao julgamento de Eichmann, observa não o monstruoso gênio do mal como construído pela imprensa da época, mas um sujeito medíocre. Um burocrata que fazia cumprir a risca a regra e a sua missão estabelecida depois de decretada a solução final: transportar pessoas destinadas aos campos de concentração e extermínio (principalmente judeus, ciganos, homossexuais e dissidentes políticos), calculando com exatidão e organização os tempos e distâncias de percurso, e até a quantidade de pessoas nos vagões, prevendo já ali as mortes causadas pelo longo tempo e exaustivo deslocamento em condições que se quer eram estabelecidas para animais. A precisão e o horror desse crime humanitário eram alicerçados, lembra Arendt, na burocratização, na transformação das pessoas em números, em coisas. Recorda-nos a autora, que burocracia significa governo de ninguém. É dizer que o extermínio iniciava pelo ato banal burocrático.

O espaço do trabalho, na perspectiva dejouriana, torna-se locus do sofrimento ético, pois entre as características do trabalho contemporâneo estão, por um lado, o discurso da gestão empresarial que valoriza a transparência, a participação, o engajamento, o comprometimento com regras, valores e objetivos da empresa e, por outro lado, práticas alicerçadas na mentira, na aceitação do "trabalho sujo" e no "cinismo viril", que pautam atitudes de gestores e trabalhadores que aderem à lógica da produção a qualquer preço.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O COMPLEXO DO ALUMÍNIO NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

O processo de industrialização minero-metalúrgica na Amazônia brasileira ocorreu na década de 80 do século XX quando empresas cuja composição acionária envolvia capital nacional e transnacional iniciaram suas instalações na região. Com staff composto de gestores vindos de outras regiões, elas se utilizaram da mão-de-obra local, barata e com menor grau de escolarização para desenvolver suas operações.

Inseridos no novo contexto industrial, esses trabalhadores de "chão-de-fábrica" enfrentaram novos ambientes e novas formas de organização do trabalho, inclusive marcadas por processos de reestruturação produtiva que se intensificaram e ganharam força no Brasil nos anos 90, cujas empresas da cadeia produtiva do alumínio no norte do Brasil são expressão.

Essas empresas, para atender dispositivos legais, necessitaram implantar processos que garantissem segurança e saúde de seus trabalhadores, em especial, no contexto de múltiplos riscos. Nas empresas do complexo do alumínio diversos riscos podem ser observados, como: os físicos (temperaturas elevadas, ruído intenso); os químicos (com a utilização de mais de 50 substâncias químicas nos processos produtivos, por exemplo, acetileno, ácido clorídrico, soda cáustica, cloro, coque, piche, alumínio, etc); os ergonômicos (atividades repetitivas, posturas inadequadas, carregamento de peso), entre outros (E. Santos, 2009; Nogueira, 2011).

No modelo de gestão adotado, a atribuição de responsabilidades dos atores mais diretamente envolvidos com a gestão da segurança e saúde ocupacional revela nítida distinção entre aqueles a quem cabe à definição de metas e objetivos, bem como a tomada de decisões estratégicas (direção, gestores); aqueles que difundem conhecimentos e igualmente tomam decisões estratégicas (técnicos) e aos que cabe a implantação das estratégias definidas, onde então aparecem os trabalhadores operacionais e demais atores envolvidos.

Em que pese a NORSK HYDRO (2017) afirmar que acidentes e processos de adoecimento causam sofrimento humano e ineficiência para as organizações e utilizar princípios da qualidade total para a Gestão da Segurança e da Saúde Ocupacional, relatos de acidentes e processos de adoecimento continuamente são associados pelos trabalhadores às atividades laborais que desenvolvem nas empresas, assim como denúncias têm sido realizadas por sindicatos e associações de trabalhadores do setor desde o fim dos anos 90 até os dias atuais.

Nesse momento, dois aspectos precisam ser considerados. Primeiro, no bojo da reestruturação produtiva nessas empresas, incrementos tecnológicos se fizeram notar favorecendo o controle dos riscos. Apesar de tais investimentos com ganhos nas condições de trabalho, é significativa a percepção dos trabalhadores frente às melhorias – o trabalho não foi alterado a ponto de ocasionar o desaparecimento do trabalho "pesado", ainda considerado desgastante por eles como se pode observar em Nogueira (2011). Fala dos trabalhadores que ainda se repete na atual empresa estudada. Outro aspecto importante do processo de reestruturação produtiva é a cada vez mais frequente utilização da mão-deobra terceirizada. De acordo com dados do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos/Central Única dos Trabalhadores - DIEESE/CUT (2014), a cada dez acidentes de trabalho no Brasil, oito deles ocorrem com trabalhadores terceirizados.

Recentemente, a Reforma Trabalhista, prevista na lei n° 13.467 de 13 de julho de 2017 vem sendo duramente criticada por pesquisadores e juízes do trabalho. Souto- Maior (2018) aponta que além das impropriedades técnicas da lei que impedem a sua aplicabilidade, muitos itens se contrapõe as normas constitucionais e convencionais, em especial no que tange a melhoria da condição social dos trabalhadores. Por sua vez, para o DIEESE (2017) a Reforma Trabalhista tende a agravar o processo de precarização do trabalho com a redução do poder de negociação e contratação coletiva dos sindicatos; redução dos direitos previstos na legislação que vigorava anteriormente, entre outros aspectos.

Tal cenário reflete a precarização/precariedade do trabalho. Perdas salariais, perdas de benefícios, redução do número de trabalhadores, pressão por maior produtividade e qualidade, crescente processo de terceirização e informalidade, maior exposição aos riscos que tornam os trabalhadores mais vulneráveis ao adoecimento.

Facetas do que Antunes (2018) analisa como outras modalidades e modos de ser da precarização, característicos da fase da flexibilidade toyotizada, que refletem traços de continuidade e descontinuidade em relação à forma taylorista-fordista. Para o autor, o modelo taylorista-fordista tinha e ainda tem aspecto mais regulamentado e contratual apesar de ser mais despótico. Já a segunda forma de degradação do trabalho de cunho mais flexível, toyotizado, apesar de seu traço mais participativo, exige maior envolvimento interiorizado, levando o trabalhador a acreditar que é "colaborador", "parceiro" no cumprimento de metas e desenvolvimento de competências, o que tem favorecido a enorme desconstrução dos direitos sociais. Assim, indica o movimento pendular da força de trabalho que se desloca para o lado da perenidade de um trabalho que se reduz, intensifica seus ritmos e perde cada vez mais direitos; por outro lado, em uma superfluidade que se expande e gera trabalhos precários e informais com grande potencial de gerar sofrimento e adoecimentos aos trabalhadores.

 

MÉTODO

O grupo que participou da pesquisa foi composto por seis trabalhadores. Todos do sexo masculino, com idades variando entre 30-60 anos e com mais de um ano de atividade na empresa estudada. No momento da entrevista 5 trabalhadores estavam na ativa e 1 trabalhador tinha sido afastado por adoecimento. Contudo, os participantes tinham experiência de trabalho nas áreas operacionais. É comum na empresa em questão que os trabalhadores revezem entre diversas áreas, executando tarefas operacionais distintas, fato que permite a vivência e o conhecimento do trabalho uns dos outros o que favoreceu a homogeneidade do grupo.

Como critério de inclusão, foram escolhidos trabalhadores diretos da empresa com mais de um ano de atividade nas áreas operacionais da mesma e que aceitaram participar do estudo. Assim, foram excluídos trabalhadores com menos de 1 ano de experiência, aqueles atuando em empresas terceirizadas ou que atuassem nas áreas administrativas, técnicas ou de gestão.

A abordagem qualitativa em pesquisa na área da saúde considera o seu objeto saúde-doença como fenômeno social prenhe de significação e intencionalidade. No intuito de compreender como os trabalhadores significam a relação entre segurança, saúde e trabalho, tornou-se imprescindível à comunicação dialógica. Como instrumento para a coleta de dados, elegeu-se a entrevista coletiva. De acordo com Mendes (2007), a entrevista seja ela individual ou coletiva deve centrar-se na relação pesquisadores-pesquisados, na observação dos conteúdos latentes e manifestos, na organização do trabalho, nas vivências de prazer e sofrimento no trabalho, como ainda nos processos de subjetivação e de saúdeadoecimento. Assim, as entrevistas devem ter por foco a linguagem e utilizar técnicas de associação livre, deflexão e estimulação. No presente estudo, a entrevista coletiva utilizada seguiu um roteiro semi-estruturado composto de quatro temas – a rotina de atividades de trabalho; riscos do trabalho; a gestão da segurança e saúde da empresa e a avaliação dos trabalhadores sobre esta gestão.

Antes da realização das entrevistas, a entrada no campo ocorreu através de contato com um dado sindicato do município de Barcarena (PA) que se responsabilizou por organizar reunião com trabalhadores para apresentação dos pesquisadores e da pesquisa. Após esta primeira reunião, em momento subsequente o sindicato fez convite aberto aos trabalhadores sinalizando o dia, horário e local para a realização da entrevista coletiva. A mesma ocorreu na sede do Sindicato em setembro de 2017.

Para os trabalhadores convidados a participar da pesquisa e que compareceram de acordo com o estipulado, foi feita a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e solicitado suas respectivas assinaturas. Em seguida, a entrevista foi conduzida por um pesquisador, enquanto outro pesquisador gravava o áudio para posterior transcrição do material.

Algumas condições são necessárias para o desenvolvimento de pesquisa no âmbito da saúde, dentre elas aspectos éticos são imprescindíveis, tais como: a participação voluntária dos sujeitos, a garantia de anonimato dos mesmos. O que foi realizado. Neste sentido, salientamos que os nomes de trabalhadores usados no presente texto são fictícios e foram escolhidos aleatoriamente. Ainda, ressaltamos que a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará sendo aprovada de acordo com o Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE 79447517.8.0000.0018).

Em sequência, sobre o texto transcrito, estabeleceu-se uma categorização em que foram destacadas das falas dos trabalhadores seis expressões que conduziram a análise proposta e que são descritos a seguir. Vale salientar que as expressões não foram escolhidas aleatoriamente, mas elas representam a importância atribuída pelos trabalhadores a estas questões, critério central da Análise de Núcleo de Sentidos (ANS) como proposto por Mendes (2007), o que fundamentou as análises aqui realizadas.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Construídas a partir do consenso entre os trabalhadores e por seu potencial de respostas as indagações da pesquisa, foram elencadas 06 expressões utilizadas pelos próprios trabalhadores guiando as interpretações realizadas e que são apresentadas a seguir:

1."Os riscos são enormes" - Os trabalhadores relatam que nas áreas operacionais da empresa os riscos são: físicos como calor e ruído muito intensos, químicos dos quais citam a soda cáustica e os vapores cáusticos, e os riscos ergonômicos. David afirma: "O nosso trabalho lá é um trabalho pesado, um trabalho forçado, a gente manuseia válvulas muito pesadas, é um risco ergonômico muito grande ali". Ainda, a utilização de equipamentos de proteção individual aponta para o real e prescrito do trabalho. Um dos relatos nos mostra que é necessária à utilização da máscara para mitigar o impacto da inalação de gases e particulados, contudo o calor intenso das áreas associado às atividades executadas a céu aberto sob o sol, favorecem que o suor molhe de tal modo a máscara impedindo com que respirem, gerando incômodo, daí retirarem as máscaras para respirar com conforto e realizar o trabalho.

2."Temos poucos operadores" - A escala de trabalho por turnos que atualmente funciona na empresa é de seis dias corridos por quatro dias de folga. Na área operacional, três turnos funcionam initerruptamente e cada equipe trabalha 8 horas por dia. Os trabalhadores afirmam que até recentemente a folga de quatro dias não estava sendo cumprida e muitas das vezes eram solicitados a retornar a empresa depois de somente dois dias de folga. Ao serem questionados sobre esta redução afirmaram que ela ocorre pelo menor número de operadores, produzindo equipes quebradas. Assim, "Funcionário que está doente, tem equipe que está quebrada, funcionário teve um problema de saúde, operou do ombro, está afastado, o outro teve problema na coluna, se afastou e a gente tem que suprir essa necessidade nas equipes", diz o trabalhador Simas.

3."Onde a produção está em primeiro lugar" - "Onde a produção está em primeiro lugar, né?" o trabalhador Alex questiona. Muitas são as falas que revelam um descompasso entre o discurso da segurança em primeiro lugar e o processo produtivo como de fato se vivencia cotidianamente. Assim, observemos o relato:

Enclausuraram esse equipamento, o caminhão com a acústica. E agora já até tiraram, eu não sei o porquê (...) Eu disse: Nossa! Esse equipamento com um ruído elevado, não tem por quê? Porque muitas das vezes, realmente o funcionário ele (...) assim, você vai fazer manutenção no equipamento, o teu gerente quer pra ontem (...) Até você tirar todo (...) toda essa manta que está enclausurando ele ali, vai levar uma hora de tempo, duas horas de tempo. Então, ele prefere chegar e logo fazer a manutenção para não perder tempo. Eu não sei o porquê tiraram isso aí (Simas).

Na sequência do diálogo, ele mesmo concluiu: "Porque o gerente não quer saber disso não. Ele não quer saber se o ruído está elevado. Tem que chegar lá e fazer mesmo. Ele quer saber se o equipamento está funcionando pra ele soltar a bomba". O trabalhador ainda evidencia na dinâmica da produção que apesar da compreensão dos riscos pelos trabalhadores, eles também são levados a burlar os critérios de segurança, como observamos a seguir:

(...) a gente sabe que quando a gente trabalha que os riscos são enormes e acidentes acontecem, mesmos com todos o EPIS, mas a questão é: Como a gente é mandado para a área é que é a situação? Pressão psicológica, assédio moral. A tua atividade é para 5 operários (...) eu trabalhei na digestão, uma manobra de bomba de 300 digestores lá! Tem que ser no mínimo 5 pessoas, para fazer o trabalho (...) 5 a 6 pessoas e se faz com 2 pessoas e 1 rádio para te comunicar com a sala de comando, contudo a situação de abertura de válvula, a gente faz e sai correndo na área pra abrir a válvula e tem válvula que é maior que eu! Eu tenho 1,75 m. (Simas).

O que se observa é que para executar uma tarefa premente, trabalhadores e gestores avançam com a produção em detrimento da segurança. 4."Não registrar como acidente de trabalho" - Na empresa estudada, assim como, em outras da cadeia do alumínio no Pará, o acidente de trabalho é negado, escamoteado seja pela empresa ou mesmo pelos trabalhadores. No caso das empresas, o acidente de trabalho para além das implicações legais, macula a sua imagem junto à sociedade. Para os trabalhadores, o acidente de trabalho lhes imputa um "erro" que pode lhes custar à demissão.

De alguns episódios narrados, encontra-se o de um trabalhador sobre uma operadora que se acidentou no período em que ele se encontrava substituindo o gestor operacional que gozava o período de férias. No primeiro momento, ela esconde o acidente, mas com medo de ser denunciada o comunica e pede para não ser encaminhada para enfermaria e que não seja feito o registro do acidente. O seu temor é de ser punida.

Do mesmo modo, a empresa, segundo os trabalhadores ouvidos, em casos até mesmo de acidentes mais graves omite o registro de acidente de trabalho, deixando o trabalhador em casa e levando-o a empresa somente para registrar o ponto. É o que explicita o relato abaixo:

Uma colega que se acidentou lá teve projeção de soda cáustica no rosto... O que eles fizeram para não dar o acidente? Eles pediram para ela bater o ponto dela lá no ambulatório. Ela chegava de ambulância na fábrica. Eles desciam ela, colocavam em um carro e iam lá pra dentro. Lá no ambulatório batia o ponto dela e voltava pra casa. Então ela ficou esse período ... mas, ela ia toda exposta, ia toda enfaixada, com ferimento tudinho. Ela ia bater o ponto dela lá. (David)

Relato que evidencia a explícita burla do direito do trabalhador de afastamento do trabalho para cuidar da saúde realizada pela empresa com a intenção de zelar por sua própria imagem frente aos acionistas e a sociedade.

5."O problema não é a empresa, é a gerência" - Alex diz: "O problema não é a empresa, é a gerência", outro afirma: "O quadro administrativo deixa muito a desejar" (Josué). Tomadas de decisão pouco criteriosas, que afetam ou prejudicam os trabalhadores ocorrem porque os gerentes têm medo de perder o cargo que ocupam. Do mesmo modo entendem que ocupar um cargo de gestor na empresa não necessariamente passa pela competência técnica e administrativa, mas por relações com superiores marcadas pela bajulação, portanto são vistos como "puxa-sacos". 6."A questão: dizer ou não dizer" - Os trabalhadores têm compreensão da dimensão coletiva do trabalho e da necessidade de cumprir as regras de segurança "(...) a gente tem que usar, e se você não usar você pode cometer acidente com você e com os outros." (Aurélio). Todavia, o descumprimento das regras é frequente, seja por parte dos gerentes seja por parte dos trabalhadores. Vale salientar, que premiações ou participação nos lucros da empresa são definidas, entre outros critérios, por trabalhadores e equipes sem registro de acidentes.

No caso das omissões dos acidentes de trabalho, deve-se notificá-los, mas é comum omitir o seu ocorrido. Como vemos a seguir:

Já, aí é que tá o negócio, a questão, dizer ou não dizer, que tu te acidentou ou não porque tu é ... pode pegar uma advertência, aí todo o planejamento que tu faz um ano todinho, cai em 1 segundo, não só isso como tira o planejamento de um ano que tu faz uma confraternização, se tu te acidentar e tiver um relatozinho ninguém tem mais essa confraternização, são várias questões ... (Alex).

Do mesmo modo, relatar ou não o acidente se aproxima do cumprir ou não as normas de segurança. Muitos optam por não cumprir ao ceder às pressões mesmo que veladas dos gerentes que colocam a produção em primeiro lugar. Instala-se aí o terreno propício para o sofrimento ético e a banalização do mal.

Também, não se deve desconsiderar a naturalização que ocorre com o tempo de situações que burlam a segurança e colocam em risco os trabalhadores, tornando banal a injustiça que se materializa na culpabilização do trabalhador por um acidente, sua punição, inclusive com a possibilidade de sua demissão sob os olhares dispersos e postura submissa de outros colegas de trabalho.

A segurança e saúde ocupacional é um tema significativo e está presente na própria missão institucional das empresas da cadeia do alumínio. Constitui-se como um traço da cultura organizacional, a ponto de os trabalhadores afirmarem na entrevista coletiva à existência de uma "cultura de segurança" expressa na ideia da "Segurança e Saúde do Trabalhador em primeiro lugar, acima mesmo da produção". Considerada como um traço fundamental da cultura organizacional, a segurança enquanto valor deve ser introjetada pelos trabalhadores como revelado no estudo de Nogueira (2011).

Sem desconsiderar os avanços no âmbito da segurança alcançados pela empresa, diversas críticas à gestão em SST são tecidas pelos trabalhadores. Em que pese o discurso sustentado pela cultura organizacional da "segurança em primeiro lugar", para os trabalhadores a Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional da empresa se submete à gestão da produção, como observado na entrevista coletiva.

Se contribuir para a segurança depende da tomada de atitude racional do trabalhador, levando-o a optar pelo cumprimento da regra e das normas, o seu oposto, o acidente de trabalho, longe de ser abordado em sua complexidade, é concebido pela empresa como fruto de comportamentos isolados de operadores que não foram capazes de internalizar a importância do tema. O acidente explicita uma má escolha do trabalhador que se torna responsável moralmente por sua ocorrência – o acidente é visto como erro individual.

Outro aspecto a se destacar é que se tornou uma prática da empresa a não realização do registro de acidentes com menor gravidade, ou mesmo das doenças profissionais ou doenças do trabalho. Na maioria das vezes o que acontece é que só é notificado o acidente típico e em especial, aquele que comporta gravidade.

Ao serem indagados sobre o que aprenderam na empresa frente às situações de acidente de trabalho, foram unânimes em afirmar que o procedimento a ser tomado é o relato imediato ao gerente que deve encaminhar o acidentado ao ambulatório para avaliação. Nas situações em que esse fluxo não é seguido, um trabalhador não esconde sua indignação e questiona: "Onde a produção está em primeiro lugar, né!".

Nos relatos dos trabalhadores é perceptível a existência de acidentes de trabalho ocorridos cuja Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) não foi emitida. A omissão dos acidentes, adoecimentos em que não se busca estabelecer relação com o trabalho e situações em que os trabalhadores mesmo impossibilitados para desempenhar suas funções permanecem na empresa na condição de "restrito", têm colaborado para novos acidentes.

No diálogo com os trabalhadores algumas vezes aparece o termo restrito, o que significa estar na área de trabalho, mas impossibilitado de cumprir as tarefas contumazes. Dessa feita, o trabalhador é mandado a desenvolver tarefas ditas mais leves, ou mesmo é deixado "encostado", "sem ter o que fazer na área". Estas situações são vistas pelos trabalhadores como humilhantes, pois com restrição para trabalhar tornam-se alvo fácil para gracejos e insinuações dos gestores e próprios colegas de trabalho.

Mecanismos sutis de controle utilizados pela gestão, como atrelar o baixo número de acidentes de uma determinada equipe de trabalho ao critério de maior resultado na participação dos lucros da empresa, visam ao engajamento dos funcionários, no intuito de "não zerar o placar", ou seja, o número de dias sem acidentes. Esta estatística é obtida "a duras penas" e em muitas situações atinge a real segurança e saúde dos trabalhadores.

Portanto, pode-se compreender que o medo da punição ou mesmo demissão é um dos motivos que levam os próprios trabalhadores a omitirem o acidente de trabalho. O que se coaduna com estudo realizado por F. Santos (2019) com metalúrgicos da região de Campinas, este indica como em modelos de reestruturação produtiva, trabalhadores escondem problemas de saúde gerados pela intensificação do ritmo do trabalho por medo de demissão.

Diante de situações imprevistas ou que haja necessidade de intensificar a produção, as normas de segurança são mais facilmente colocadas em segundo plano com a anuência velada de gestores e mesmo dos companheiros de trabalho. Momentos que colocam o trabalhador diante de um dilema ético, fazer ou não o prescrito, compreendido como o correto em termos de segurança, ocasionando tomadas de decisão capazes de gerar sofrimento.

Ao relatar que em determinado momento foi convidado a assumir funções administrativas, um dos trabalhadores ouvidos diz que ao identificar e apontar erros com potencial de causar desperdício e acidentes passou a ser hostilizado por gestores e os próprios colegas de trabalho. Em que pese gostar intensamente da atividade administrativa, percebeu que não mais deveria apontar os erros e chegou a solicitar o retorno às atividades operacionais em decorrência do sofrimento ético experienciado.

No discurso dos trabalhadores, percebe-se uma oscilação entre atribuir culpa, considerando como causa do acidente de trabalho a falta de atenção ou a autoconfiança dos próprios operadores; e o sentimento de injustiça e impotência diante dessa situação de culpabilização imposta pela empresa, o que aponta novamente para o sofrimento ético.

Quando defende o discurso que valoriza aquele que "veste a camisa", engajado e comprometido com a produção, capaz de assumir cada vez mais responsabilidades, o trabalhador reproduz o que dele é esperado: enfrenta os riscos que o trabalho se lhe apresenta.

O sofrimento que se expressa nas falas dos trabalhadores e mesmo na ausência de palavras para nominá-lo revela não só a ausência de reconhecimento quando do adoecimento do trabalhador, mas se direciona ao dilema ético e sofrimento ético na medida em que evidencia uma "pressão" por parte de gestores e mesmo colegas de trabalho para optar por ações arriscadas, potencialmente capazes de gerar acidente não só do próprio indivíduo, mas dos demais colegas de trabalho. Por outra feita, aproxima-se do sofrimento ético na medida em que os trabalhadores identificam situações de injustiça, seja na análise de acidentes que culpabilizam os trabalhadores, seja frente à constatação de que a produção é mais importante do que a saúde e a vida do trabalhador. "E o ser humano onde fica?", indaga Alex.

Os gestores conhecem as consequências de um acidente, mas mesmo assim incentivam as ações dos trabalhadores por produção, independente dos riscos que essa conduta traz. Como nos diz Dejours (2007a) não por maldade, como um traço individual, mas pelo medo de não corresponder às expectativas de produção impostas pela empresa.

Assumir a gestão no mundo do trabalho hoje pode implicar a necessidade de realizar um "trabalho sujo", sujeito às distorções comunicacionais. No cenário ora apresentado existe um discurso em defesa da segurança por parte dos gestores que não se concretiza como apontado por alguns trabalhadores. Como manter esse discurso sendo ele falacioso? Mais uma vez recorrermos a Dejours (2007a). O autor acredita que o fator econômico per si seria incapaz de explicar o "trabalho sujo". Portanto, defende a ideia de que ocorre uma subversão da razão ética apontando para os opostos - coragem e covardia - a possibilidade de aceitação social da transformação de um vício em virtude. No centro da questão está a ideia de virilidade. Para ser agressivo é necessário ser corajoso. Só os "viris" conseguem realizar o "trabalho sujo". De outro modo são considerados fracos, frouxos, sujeitos em que a virilidade e a masculinidade são postas em xeque. Ser gestor (ou mesmo trabalhador) na empresa contemporânea pode significar ser viril, ou seja, corajoso o suficiente para atender aos reais objetivos que garantem a sobrevivência do negócio que em última instância garantirá a sobrevivência dos mais fortes e mais adaptados às exigências do mercado de trabalho em que se acredita ser impossível um lugar para todos.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O sofrimento ético que emerge na fala dos trabalhadores da empresa estudada demonstra relação com a Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional que ao mesmo tempo que discursivamente enfatiza o cumprimento das regras de segurança evidencia, através das demandas da gestão, que a produção ocorra em primeiro lugar. Inclusive, acima das questões de segurança e saúde.

Gestão da Segurança e Saúde Ocupacional que se firma sobre princípios toyotistas em que a coptação da subjetividade daquele que trabalha também coloca em xeque os valores éticos individuais e de grupo. Mas, como opera a cooptação das subjetividades? Pode-se pensar que opera de modo perverso. Não a perversão entendida como uma estrutura psíquica, porém de enunciações perversas, de formas discursivas forjadas culturalmente como definido por Dufour (2013). O enunciado de que a segurança e saúde é o trabalhador quem faz, a partir de suas ações individuais e que seu contrário, o acidente, é culpa deste mesmo trabalhador aponta para a negação de que a própria gestão do trabalho, construída a partir de múltiplas relações de poder entre níveis hierárquicos distintos e entre os pares, contribui para situações que colocam em risco a segurança e saúde do trabalhador.

Seguindo o pensamento de Dufour (2013), pode-se concluir que é no projeto perverso, liberal, que o sujeito é trazido a primeiro plano, ele e suas pulsões. Ocorre uma interiorização das leis de mercado – a produção acima de tudo, inclusive, da segurança e da saúde, gerando o descrédito de toda instância terceira entre os indivíduos. O que se anseia é a satisfação das próprias pulsões através de tudo que a economia global trata imediatamente de oferecer – por exemplo, um emprego que lhe dá acesso aos bens materiais.

Para alguns, não sem sofrimento psíquico e muitas das vezes sofrimento na carne, no corpo. Existe uma violência simbólica, que se assemelha a proposição de Souza (2009). Atribuir a culpa do acidente ao trabalhador é naturalizar relações de desigualdade originadas do embate capital x trabalho. O trabalhador e seu conhecimento são desconsiderados nas tomadas de decisão sobre o processo de trabalho. Portanto, são negados como sujeitos ao serem considerados como "força de trabalho".

Com a reflexão proposta pretende-se contribuir para debate no campo da segurança e saúde no trabalho ao se apontar para os fatores da organização do trabalho que influenciam as tomadas de decisão de trabalhadores e gestores em SST e que em última instância podem torná-los suscetíveis ao sofrimento e adoecimento mental. Em especial, no momento em que o governo federal promove a revisão dos dispositivos legais (normas regulamentadoras) que objetivam a garantia de trabalho seguro e sadio através da prevenção de riscos nos ambientes de trabalho. A revisão proposta é defendida pelo governo no intuito de modernizar os dispositivos, tornando-os mais flexíveis as demandas atuais do mundo do trabalho brasileiro que apresenta altos índices de desemprego e remete a urgente criação de postos de trabalho. Construir dispositivos que considerem a relação entre subjetividade e a organização do trabalho na gestão da segurança e da saúde dos trabalhadores pode se constituir como adequada estratégia na prevenção de acidentes e doenças no trabalho.

 

 

Referências

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Nota sobre os autores

Laura Soares Martins Nogueira: Doutora em Desenvolvimento Socioambiental, tecnologista da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO). E-mail: launog02@gmail.com

Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira: Doutor em Ciências / Saúde Coletiva, Professor Associado III da Universidade Federal do Pará (UFPA), E-mail: pttarso@gmail.com

Márcio Mariath Belloc: Doutor em Saúde Coletiva, Professor Visitante na Universidade Federal do Pará junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Professor do Mestrado em Salud Mental da Universidad Nacional de Córdoba (Argentina). E-mail:mmbelloc@gmail.com.

 

 

Recebido em: 18/02/2020
Aprovado em: 06/06/2020

 

 

1 O primeiro tipo de câncer mais frequente na população feminina brasileira é o câncer de pele não-melanoma.
2 Definimos como início do tratamento quimioterápico até a terceira sessão de quimioterapia, que corresponderia até dois meses de tratamento medicamentoso. Em nosso estudo realizamos as entrevistas durante a segunda ou terceira sessão da medicação, excluímos a primeira sessão por considerar uma experiência que poderia apresentar característica invasiva, assim a primeira sessão foi destinada para o acolhimento emocional das pacientes e no final da sessão foi realizado o convite para as entrevistas experienciais.
3
Tal proposta vem sendo desenvolvida desde 2013 por Ana Rafaela Pecora Calhao, uma das autoras do artigo, em colaboração com residentes de psicologia, em trabalhos de pesquisa do Hospital Universitário Júlio Muller, vinculado a Universidade Federal de Mato Grosso, que consiste na execução de pesquisas na área da saúde. Embora desenvolvida desde 2013, a proposta se consolidou com a pesquisa de dissertação "Mulheres com câncer de mama: estudo centrado na pessoa para compreensão das percepções com acento afetivo e emocional", que origina o presente artigo, tendo Ana Rafaela Pecora Calhao como orientadora.
4 As participantes foram comunicadas sobre a condição voluntária na contribuição do estudo, sobre a natureza da pesquisa e os objetivos, sobre os riscos e os benefícios, sobre as indenizações que poderiam ser feitas. As participantes desse estudo assinaram o TCLE.
5
Omitimos algumas palavras pertencentes a classe 01, que apresentaram frequência e khi2 elevado, como a palavra lá, que apresentou função de advérbio de lugar, e as palavras irmão e avó que apresentavam sentido próximo a palavra mãe, A palavra mãe foi selecionada por apresentar khi2 maior que as duas palavras sucessoras na lista de palavras da Classe 01.
6
As palavras exame, tomar e medicação, pertencentes a Classe 04, quando foram analisadas no contexto das entrevistas experienciais apresentavam proximidade com a palavra quimioterapia, que foi preservada como palavra significativa da Classe 04. A palavra já foi suprimida por apresentar função de advérbio, e a palavra Doutor teve, em grande parte dos relatos, a função de interjeição.
7 As palavras, também pertencentes a Classe 02 (Figura 01), como assim, questão e então exerceram no contexto dessa classe a função de advérbio, a palavra coisa referia-se a uma interjeição, a palavra gente apresentou o mesmo sentido da palavra pessoa, que foi escolhida para ser representativa da classe, e a palavra olho expressava sentido próximo ao verbo olhar, que já havia sido selecionada como relevante na Classe 02
8 As palavras oração, cair, justo e propósito, apresentaram o sentido próximo ao verbo encarar, possuindo também uma significação de enfrentamento, por esse motivo selecionamos a palavra encarar como a terceira palavra mais relevante da Classe 03. A palavra assim apresentou a função de advérbio sendo então retirado da seleção das palavras mais relevantes, e as palavras deixar, melhor e dizer também apresentaram no contexto das entrevistas experienciais aproximações com os sentidos presentes no verbo vencer, que também foi escolhido como uma palavra relevante da classe.

 

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