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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.2 Belém maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33 

Reflexão

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº02rex.33

 

Ser mulher trabalhadora e mãe no contexto da pandemia COVID-19: tecendo sentidos

 

Being a Working Woman and Mother During a COVID-19 Pandemic: Sewing Senses

 

Ser Mujer Trabajadora y Madre en el Contexto de Pandemia COVID-19: Tejiendo Sentidos

 

 

Shirley Macêdo

Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF)

 

 


RESUMO

O presente relato foi escrito como um processo de coser uma colcha de retalhos, a partir do movimento de tecer linhas em busca de sentidos. A autora, uma docente pesquisadora, partiu da própria experiência no contexto do distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19, nesse ano de 2020, e realizou uma análise fenomenológica, recortando trechos de sua narrativa pessoal (em itálico) que remetessem aos sentidos dessa experiência, interpretando-os com base na literatura sobre COVID-19, trabalho, gênero, mulher, maternidade e docência. Como resultados do processo, percebeu que teve sua qualidade de vida afetada quando não pôde exercer sua função no local de trabalho e foi convocada a assumir sobremaneira as tarefas inerentes a seus papeis para além da profissão, sem sair de casa. Concluiu sobre possibilidades de enfrentamento e ressignificação do sofrimento na pandemia pela mulher trabalhadora e mãe: assumir e compartilhar o sofrimento; abrir-se a tarefas autorrealizadoras; organizar-se no tempo.

Palavras-chave: Mulher; Trabalho; Maternidade; Universidade; Docência


ABSTRACT

This report was written as a process of sewing a patchwork quilt, from weaving threads in search of meanings. The author, a researcher professor, started from her own experience in the context of social distancing caused by the COVID-19 pandemic, in this year of 2020, and made a phenomenological analysis, clipping personal narrative excerpts (in italics), which referred to the meanings of this experience, interpreting them based on the literature on COVID-19, work, gender, women, motherhood and teaching. As a result, she realized that her quality of life was affected when she was unable to exercise her function in the workplace, and was called upon to assume the tasks of her role beyond the job, without leaving home. She concluded about the possibilities of coping with suffering, resignifying suffering in the pandemic by the working woman and mother: assuming and sharing suffering; opening up to self-fulfilling tasks; organizing in time.

Keywords: Woman; Job; Maternity; University; Teaching.


RESUMEN

Se escribió este relato como un proceso de coser una colcha de retazos, a partir del movimiento de tejer líneas en búsqueda de sentidos. La autora, docente, investigadora, partió de su experiencia en el contexto del alejamiento social provocado por la pandemia de la COVID-19, en 2020, realizó análisis fenomenológico, recortando fragmentos de su narrativa personal (en bastardilla) que remitieron a los sentidos de esa experiencia, interpretándose con base en la literatura sobre COVID-19, trabajo, género, mujer, maternidad y docencia. Como resultados, percibió que tuvo su calidad de vida afectada cuando no pudo ejercer su tarea en local de trabajo y convocada a asumir las tareas inherentes a sus papeles más allá de profesión, sin salir de casa. Concluyó sobre posibilidades de enfrentamiento y resignificación del sufrimiento en la pandemia por la mujer trabajadora y madre: asumir el compartir el sufrimiento; abrirse a tareas autorrealizadoras; organizarse en el tiempo.

Palabras clave: Mujer; Trabajo; Maternidad; Universidad; Docencia.


 

 

Chegaremos ao fim do ano com um saldo de mortes evitáveis porque não pudemos consumir menos, produzir menos e amar mais, nossas fragilidades subjetivas cooptadas por um estilo de vida kamikaze. E consumíamos para esquecermos que não nos conhecíamos e não nos amávamos o suficiente. Esta crise sem precedentes coloca em evidência quem éramos, quem somos e nos questiona: quem queremos ser daqui para a frente? (Daltro e Barreto Segundo, 2020, p.7/8).

05:30h da manhã. Acordo como tem sido comum ao longo de mais de 17 anos como mãe e quase 20 como esposa e dona de casa. Primeiro vem o café da manhã deles, depois meu banho, depois meu café... Mas, atualmente, todos estão em casa 24 horas ininterruptas e dispensei a colaboradora. Estou exausta...

Corona Virus Disease (COVID-19) surgiu na China em 2019 e se espalhou por outros países, tendo a Organização Mundial de Saúde declarado, em março de 2020, a doença como pandemia e maior emergência internacional de saúde pública que se enfrenta em décadas. Diante disso, houve significativos impactos na economia, na saúde pública e na saúde mental da sociedade, principalmente em virtude do distanciamento social como medida de controle de transmissão da doença, quando as pessoas foram convidadas a não sair de casa (Bezerra, Silva, Soares & Silva, 2020; Faro et al, 2020; Medeiros, 2020; Schmidt, Crepaldi, Bolze, Neiva-Silva & Demenech, 2020; Silva, Santos & Oliveira, 2020).

Nesse contexto, Bittencourt (2020) afirma que "permanecer em casa é um ato político" (p.171), salientando que as pessoas aproveitam o tempo para colocar os afazeres domésticos em dia, fortalecer ou não laços familiares, estudar, ler, ouvir música, assistir filmes ou fazer quaisquer atividades que possam melhorar a qualidade de vida em estado de reclusão. Mas ressalta que, para alguns pais, é exaustivo ficar com os filhos em casa, já que eles estão acostumados ao ritmo acelerado da vida urbana, a uma rotina de afastamento e não de proximidade com os que mantêm relação afetiva.

No entanto, vale lembrar, aqui, que a responsabilidade pelo trabalho doméstico formal ou não, ainda é, no Brasil, exclusivamente destinada às mulheres, representando uma desigualdade entre os gêneros masculino e feminino. Esse trabalho é marcado por dor, opressão e adoecimento, principalmente diante da naturalização da posição subalterna que a mulher ocupa na sociedade e na hierarquia da estrutura familiar tradicional, que a leva à exaustão diante dos cuidados requisitados por todos os membros da família. Muitas vezes, a própria mulher internaliza, nas relações de poder vigentes na sociedade, que cabe a ela a obrigação desses afazeres, dispensando muito pouco tempo para cuidar de si mesma, descansar ou buscar meios de lazer (Porto, 2008).

Lembro, ao acordar, que, por causa da pandemia, não há nenhum horário rígido a seguir. Mas eu não consigo ficar na cama. Uma vez li um artigo que apresentava uma pesquisa com mulheres, intitulado "'... Não tem jeito de eu acordar hoje e dizer: hoje eu não vou ser mãe!': trabalho, maternidade e redes de apoio", de Souza, Teixeira, Loreto e Bartolomeu (2011). Essa frase é a nossa cara. Mãe é expediente 24horas. As obrigações que internalizei como mãe, esposa e dona de casa me convidam: café da manhã, cuidados da casa, almoço, louça, roupa, jantar, cama, mesa e banho.

Assim, não é que eu não me sinta bem ao lado de quem amo. A exaustão está em ter que dar conta de atividades que não suporto fazer e, mesmo que eu possa brincar e rolar, ver filmes e TV, fico tão cansada com os afazeres domésticos que, muitas vezes, não consigo nem ler, algo importante para a minha profissão. Às vezes, penso que estou mais afastada dos que amo estando em casa que quando trabalho muito. Porque quando eu dou conta do meu trabalho profissional, fico para eles, por eles...

No entanto, esse círculo vicioso desencadeado pela pandemia, que já perdura por alguns meses, diariamente, sem finais de semana ou feriado, toma um tempo... Tempo que tem afetado sobremaneira a saúde e a qualidade de vida de muitas pessoas, embora o foco aqui sejam as mulheres, mais especificamente as trabalhadoras docentes de Instituições de Ensino Superior (IES), que já enfrentam, além do produtivismo acadêmico que suas realidades profissionais lhes impõem, as jornadas duplas/triplas de trabalho que assumem ao serem mães e donas de casa (Borsoi, 2012; Borsoi & Pereira, 2011; Fabbro & Heloani, 2010).

Sobre isso, Borsoi & Pereira (2011) realizaram um estudo que discutiu aspectos da atividade acadêmica que impactam a saúde de docentes de IES públicas e o modo de organizar o seu tempo dentro e fora do âmbito laboral, ou seja, nos espaços público e privado. Constataram que professores homens e professoras mulheres lidam de forma diferente com suas atribuições. As mulheres estavam mais propensas a maiores jornadas de trabalho; a dividirem/sobreporem necessidades profissionais e incumbências domésticas, flexibilizando o uso do tempo privado; e a sofrerem e/ou adoecerem psiquicamente.

Penso que se eu não fosse quem sou, já teria surtado. Minha sorte é que sempre fui BOMBRIL, com mil e uma utilidades. Não consigo ficar parada. Quando a coisa fica feia, imediatamente vejo uma live, tento falar por WhatsApp com algumas pessoas. E embora tenha que acordar cedo, também tenho corrido pela manhã, quando dá, algo que não fazia há um bom tempo, o que tem ajudado...

Segundo Moraes (2020), o confinamento nesta situação social de pandemia implica em níveis elevados de estresse e pode comprometer a saúde mental das pessoas, pois a diminuição das interações sociais prejudica o sentimento de pertença do sujeito a determinados grupos que o auxiliam em momentos de crise. Isso, atrelado a distúrbios do sono, ansiedade, medo, irritabilidade, mudanças no apetite, consumo de álcool e outras drogas (para amenizar a situação), pode levar a sérios processos de doença mental, principalmente em indivíduos mais vulneráveis. O autor propõe que uma das formas que se pode encontrar de não comprometimento da saúde mental em tempos de pandemia é manter contato on-line com família e amigos, assim como fazer exercícios físicos, manter uma alimentação saudável e praticar hobbies.

No entanto, não estar indo trabalhar presencialmente é complicado demais. Estar sem contato com meus alunos, longe da supervisão, das orientações, longe do lugar que me faz pensar, produzir e me realizar, é um martírio. Reconheço-me no meu trabalho... Sonho com isso desde 1989. Sou docente desde 1998 e de uma instituição pública desde 2012. Amo o que faço, adoro sala de aula. Sinto êxtase ao produzir artigos, elaborar projetos, participar de eventos, dar orientação, viajar, conhecer novas ideias em congressos...

Para a mulher, que sempre enfrentou preconceitos ao longo da história, não estando em pé de igualdade com o homem, o trabalho adquiriu um sentido particular de honra e de afirmação de si mesma como indivíduo que participa da vida em sociedade. Vale, aqui, lembrar a máxima de Confúcio (551-479 a.C.) "escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida". Essa frase é pertinente para compreender o sentido que o trabalho como profissional tem para a mulher, como também para o homem.

No entanto, é inegável que a situação das mulheres na sociedade do capital é bem distinta daquela vivida pelos homens, pois é evidente que há diferença em relação a gênero masculino e feminino, em roupas, corpos, atitudes, interesses. Para serem inseridas no mundo do trabalho e efetivamente participarem das relações sociais de produção, muitas vezes as mulheres foram impelidas a negar seu ser mulher, o que é impossível (Marques, 2019).

Simone de Beauvoir (1908-1986) mostrou, na obra "O Segundo Sexo" (escrita em 1949), que qualquer mulher que se pretender situar para além do seu sexo, está agindo de má fé, pois, para se afirmar enquanto tal e membro ativo da sociedade, ela precisa escolher-se a si mesma como é, já que "não se nasce mulher: torna-se mulher" (Beauvoir, 1980, p. 9).

Desde pequena, quando via a submissão da minha mãe (que nunca trabalhou fora) em relação ao meu pai, eu me prometi que iria trabalhar para ter meu próprio sustento. Jamais pediria um real a qualquer homem que estivesse ao meu lado. Mesmo assim, casei. Fui mãe tardia, porque primeiro quis ter meu teto comprado com meu dinheiro. Quis primeiro ter independência profissional, para só depois construir família...

Neste sentido, a obra de Beauvoir é um estímulo para que uma mulher não negue sua existência, mas tente compreender criticamente sua situação e não a ignore, refletindo sobre suas condições e possibilidades, ressignificando o sentido de sua vida na tentativa de um exercício da liberdade, mesmo que, em uma primeira análise, o ser mulher é menos livre do que o ser homem. Essa condição pode ser modificada, justamente pelo fato do ser humano poder conquistar sua liberdade (Marques, 2019).

Uma das maneiras de se fazer isso é pelo trabalho (Beauvoir, 1980), através do qual a mulher pode se afirmar concretamente como sujeito. Está-se, aqui, no campo das possibilidades, como nos diria Merleau-Ponty (1908-1961), já que essa afirmação do ser mulher define a condição de transcendência da corporeidade feminina: pela liberdade a mulher tem condições de ser sujeito de todas as suas experiências, posto que está lançada no mundo-com-outros.

No meu caso, foi o trabalho que me permitiu ser mais livre. Trabalho desde meus 17 anos. A partir daí, tudo meu foi eu quem comprou. Ia para a universidade de ônibus, mesmo que tivesse o carro do meu pai disponível. Eu me impus: 'Shirley, você só vai dirigir SEU primeiro carro'. Queria independência e sabia que eu apenas a conseguiria pelos frutos do meu trabalho. Como sempre fui muito estudiosa, cheguei a concluir dois cursos superiores. Mas antes de terminar o primeiro, ingressei no segundo. Estava em um programa de trainee, concluindo Administração, quando entrei no curso de Psicologia. Conclui o primeiro curso, mas abandonei aquele programa, porque foi em projetos de Iniciação Científica que me identifiquei com as atividades de pesquisa e me disse: é isso ai que eu quero!

Fabbro e Heloani (2010), ao estudarem os temas mulher, maternidade e trabalho acadêmico, realizaram uma pesquisa com professoras universitárias, constatando, dentre outros resultados, que para elas o trabalho intelectual se mostrou sedutor, as engrandeceu e as fez se sentirem vivas, em constante troca de experiências, pois elas consideravam que realizavam um trabalho bastante significativo e muito prazeroso, no sentido da produção de conhecimento e da formação de novas gerações.

Como professora universitária, sinto-me tão bem fazendo pesquisa! A partir do PIBIC, na graduação em Psicologia, veio Aperfeiçoamento em pesquisa, Especialização, Mestrado, ensino em IES privadas, Doutorado e um concurso em uma instituição federal. Tudo isso foi muito realizador! Entre 1998 e 2012, eu não parava. Aulas dia e noite. A maternidade chegou intercalando, em 2003 e 2006. A gravidez também era um sonho. Queria ter dois filhos: um menino e uma menina. Fui agraciada exatamente nessa ordem. Mas, para engravidar, passei por processos dolorosos e precisei fazer duas cirurgias por ser portadora de endometriose congênita. Então, ser mãe foi uma escolha que me engrandeceu como mulher. No entanto, meus filhos cresciam vendo a mãe entre idas e vindas para diversas organizações, de segunda a sábado, esporadicamente aos domingos. Cheguei a trabalhar em quatro faculdades ao mesmo tempo, além de manter atividades de consultoria e de atendimento psicológico em consultório particular.

Pensando em aliviar a carga de trabalho, no meio de um curso de Doutorado, submeti-me a um concurso em uma IES pública federal em 2012. E cá estou.

Antecipei a conclusão do Doutorado em pleno processo de adaptação minha e dos filhos a uma nova cidade, com o marido ainda onde morávamos. Com o tempo, o trabalho se multiplicou, não diminuiu, mas a realização aumentou, pois amo escrever, editar, pesquisar, orientar, publicar etc.

Importante, aqui, lembrar aquele estudo de Souza, Teixeira, Loreto e Bartolomeu (2011) já referendado. A pesquisa deles foi sobre a interface família-trabalho remunerado para mães jovens e tardias, com uma amostra composta por docentes e funcionárias ativas de uma universidade federal que foram mães entre os anos de 2000 e 2007. Os autores constataram que as docentes possuíam uma sobrecarga de trabalho maior que as técnicoadministrativas, pois suas atividades não se esgotavam, e a execução dessas não ficava restrita ao local formal de trabalho. Muitas vezes, elas precisavam trabalhar à noite, aos finais de semana e feriados.

Fabbro e Heloani (2010), por sua vez, afirmaram que mulheres daquela pesquisa que se submetiam a estender sua jornada de trabalho em casa, terminaram enfrentando conflitos nas relações familiares, pois o mundo privado se articulou com o mundo do trabalho. Concluíram os autores que "a relação trabalho, gênero e maternidade, pode, considerando a classe social, os recursos sociais e a própria motivação da mulher para ser mãe, ser geradora de conflitos pessoais e profissionais" (p. 179). Isso, entre outras coisas, pôde ocorrer porque, para aquelas mulheres, o trabalho fora de casa envolvia um sentido de vida, tendo se tornado um suporte importante para a identidade social delas, não apenas porque investiam no trabalho para se afirmar como sujeito, mas também por recusarem depender financeiramente dos maridos, reivindicando suas autonomias na relação matrimonial e tentando construir segurança para o futuro.

No entanto, os autores também alertaram que, mesmo que a maternidade não seja mais valorizada pela sociedade como antigamente, ainda é uma experiência importante e significativa para a mulher (como também para o homem), ou seja, ainda há o desejo em ser mãe. Entretanto, como o exercício da profissão também proporciona uma identidade própria, socialmente supervalorizada, exige-se, obrigatoriamente, que a mulher contemporânea seja bem-sucedida, forte e guerreira.

Mais recentemente, Silva, Pereira, Antunes, Silva e Castelari (2019) promoveram um grupo focal com cinco docentes da UFMG, constatando que a maternidade era vista como um marco nas vidas dessas mulheres e que o trabalho delas era sentido como fonte de realização pessoal. No entanto, apesar de considerarem natural conciliar esses papéis, na prática elas narraram uma sobrecarga em relação aos afazeres, levando-as a buscarem ajustamento ao conciliar maternidade e carreira profissional.

Como é nas práticas sociais que se constitui a identidade, na medida em que essas mulheres exercem a profissão ao mesmo tempo em que são mães, constroem suas identidades "por meio do fazer e ser mãe e profissional" (Fabbro & Heloani, 2010, p. 178), ou seja, realizando tarefas domésticas e laborais simultaneamente. O estudo de Fabbro e Heloani identificou, também, que as docentes investigadas passaram a ocupar posições de prestígio e reconhecimento, no entanto, no exercício da maternidade eram inseguras, possuíam incertezas e sentiam-se muito culpadas, o que influenciava na construção de suas identidades como mães.

A busca desse lugar de estabilidade financeira como concursada me ajudou a dar mais segurança ao futuro dos meus filhos, ao mesmo tempo em que me ajudou no processo de reconhecimento de um lugar que dia e noite eu sonhava em conquistar. Sou reconhecida e me reconheço como uma excelente professora, mas, mesmo que meus filhos digam que sou a melhor mãe do mundo, não me reconheço como uma boa mãe.

A ascensão no mercado de trabalho foi um dos motivos que fez com que as mães do estudo de Silva et al (2019) resolvessem adiar as responsabilidades que a maternidade exige para investir em estudo e trabalho até obter estabilidade para criar seus filhos, além do que a maternidade para elas consistia em um desafio.

Fui mãe tarde, porque investi em estudos e trabalho para conseguir oferecer aos meus filhos um bom padrão de vida. Ser mãe foi uma escolha, tardia, mas efetivada. Então a culpa é muito grande, porque eu os amo mais do que tudo, mas sinto-me sufocada, exaurida em minhas forças. A obrigação de cuidar deles é minha. Talvez o que me corrói é essa obrigação moral, de ser a mãe perfeita, de ser a supermulher nota mil, porque sempre achei que deveria ser boa em tudo. E errei feio...

Fabbro e Heloani (2010) argumentaram que o cuidado dos filhos é algo que perturba a mulher trabalhadora, pois, mesmo assumindo esse cuidado, muitas vezes ela se vê sobrecarregada com as atividades profissionais, tendo dificuldades de encontrar uma saída para resolver este conflito. Interessante como, no relato acima, a mulher introjeta a obrigação do cuidado com todos como valor, além do sentimento de culpa que a corrói diante dessa obrigação moral em conflito com o amor que sente pelos filhos, denotando que "as atividades realizadas pelas mulheres na esfera doméstica sejam naturalizadas, tidas como parte essencial da natureza feminina, associadas à representação da amorosidade" Porto (2008, p.288).

Vê-se, portanto, o cuidado dos filhos e os afazeres domésticos como sendo atribuições que se relacionam com a maternidade e não com a paternidade, denotando a divisão sexual do trabalho no âmbito doméstico, algo já apontado por estudos que buscaram investigar o envolvimento de homens e mulheres no trabalho doméstico, na família e no cuidado com os filhos (a exemplo da pesquisa de Bruschini & Ricoldi, 2012).

Em se tratando especificamente de professoras universitárias, Fabbro e Heloani (2010) realçaram que as participantes de sua pesquisa se sentiam obrigadas a seguir um tipo ideal de mãe e, ao perceberem que não estavam exercendo esse papel como exigido e esperado pela sociedade, sentiam-se culpadas. "Tornar-se mãe revela um movimento complexo de, ao mesmo tempo interiorizar papéis impostos socialmente, mas também buscar novas formas de viver e ser mãe" (p. 181). Assim, aquelas docentes necessitavam reafirmar que ser mulher acadêmica não implicava em deixar de ser mãe, numa tentativa de superar a contradição e alcançar reconhecimento de uma nova forma de ser mulher-mãeacadêmica: alguém que luta para alcançar seus projetos de vida, que não se resumem a seus filhos.

Para mim, no entanto, dar conta do trabalho antes de chegar a casa e ainda depois que chegava realmente sempre foi uma rotina. Mas trabalhar fora para mim é prazeroso, me engrandece como pessoa. Chegava a casa, cansada, sem dúvida,, mas com um sorriso largo de quem "cumpria sua missão" diariamente. Para me ajudar no cuidado com os filhos, sempre recorri a familiares ou secretárias (as ditas domésticas). No entanto, após a mudança de cidade, só pude contar com as domésticas e não mais com a minha mãe, minha sogra, minhas irmãs. Assim, muito antes da pandemia, eu já não tinha momentos de lazer com as amigas, sozinha ou com o marido (saudades das nossas antigas sextas-feiras à noite em nossa cidade natal), sem contar que, desde que fui mãe, o tempo para mim ficou bem comprometido em todos os sentidos.

Nesse recorte da narrativa, é interessante compreender como uma rede de mulheres se forma para manter o trabalho doméstico, no caso, as secretárias, a mãe, a sogra, as irmãs, o que indica a desigualdade entre mulheres e homens, além da divisão sexual do trabalho no âmbito privado do domicílio, como ressaltam Bruschini e Ricoldi (2012), perpetuando a supremacia dos homens no âmbito público do mercado de trabalho, mesmo após tantos avanços da mulher no mercado de trabalho e das lutas dos movimentos feministas quanto à igualdade de direitos entre homens e mulheres.

As docentes do grupo focal promovido por Silva et al (2019) também revelaram a importância da rede de apoio em suas cidades de origem, e como foi dificultoso para elas tornarem-se mães longe da família. Em sintonia com esse estudo, Fabbro e Heloani (2010) já haviam enfatizado que as professoras que eles estudaram, ao abraçar uma carreira acadêmica, tiveram que delegar parte de suas atribuições como mãe a uma ajudante ou membro da família, mas salientavam que isso não podia ser visto como descaso por parte delas. Adicionalmente, Souza, Teixeira, Loreto e Bartolomeu (2011) constataram que uma das dificuldades referida pelas entrevistadas de sua pesquisa (docentes e técnicas administrativas concursadas) foi a de estar longe dos familiares, por ter saído das suas cidades natais para residir em outras localidades, por conta do emprego. Diante dessa mudança, para dar conta do cuidado com os filhos, os cuidados pessoais assim como os momentos de lazer sempre eram delegados ao segundo plano, sendo, na ordem de prioridade, o tempo pessoal o último a ser destinado por elas.

Souza, Teixeira, Loreto e Bartolomeu (2011) ainda identificaram que as mulheres investigadas, muitas vezes, se submetiam a uma dupla ou tripla jornada de trabalho, buscando atender a diferentes demandas dos diversos papéis que exerciam (trabalhadora, mãe, esposa, dona de casa). Era conflituoso para elas escolher entre necessidades pessoais e familiares. Estar diante dessas situações gerava naquelas mulheres insatisfação e dúvidas sobre se priorizavam o trabalho ou a família.

Certamente que essas questões afetam sobremaneira a qualidade de vida e a saúde de docentes mães. Como agravante, no estado pandêmico em que se encontra o mundo, as instituições de educação no Brasil optaram por realizar atividades remotas, convocando docentes a produzi-las on line diretamente de casa. Nas IES públicas, apenas as aulas foram suspensas. No entanto, as atribuições de uma docente pesquisadora envolvem, para além do ensino, a pesquisa e a extensão, que se desdobram em orientações de iniciação científica, Mestrado e Doutorado; bancas de defesa de pósgraduação (que não foram suspensas e são feitas por videoconferências); confecção, pareceres e edições de artigos científicos; reuniões diversas (que passaram a ser por plataformas digitais); análise de projetos; parecer de processos etc.

Amo fazer tudo isso, mas no contexto da pandemia não consigo realizar a contento as atividades remotas. Interessante que eu levava muito tempo para fazer tudo isso e entrava madrugada dentro. Trabalhava sábados, domingos e feriados, mas dava conta de tudo. Porque estou levando mais tempo? Porque estou tão lerda de pensamento? Porque estou tão impaciente?

Talvez esses questionamentos estejam relacionados à desigualdade de gênero, quanto à divisão sexual do trabalho doméstico, que a mulher sente na pele mais prementemente nesse confinamento em que ela se encontra, no âmbito domiciliar, privado, sentindo-se impedida de protagonismo profissional no âmbito público, do trabalho, fazendoa vivenciar as agruras do ser mulher e mãe em detrimento daquilo que para ela é muito significativo e realizador: a vivência como trabalhadora.

Alguns podem dizer, contudo, que a rotina comum de trabalhos domésticos já faz parte da experiência humana da mulher trabalhadora e mãe, e que todos sabem o risco quanto à saúde mental de quem está subordinada a jornadas duplas e/ou triplas de trabalho. No entanto, estar sempre em casa para mulheres trabalhadoras se constitui um estranhamento, pois que, mesmo sendo mãe, esposa e dona de casa, o sentido das suas vidas sempre foi o trabalho, mas o trabalho fora de casa, referente à profissão, como já se enfatizou pelas ideias de autores expostas acima.

E eis que me vejo, como mulher, nesse contexto de distanciamento social, incompetente para dar conta de papéis que sempre exerci, mas nunca, como atualmente, isso me foi tão unicamente exigido e repercutiu de forma tão negativa na minha estima, na minha saúde e na minha qualidade de vida.

Amo o meu trabalho como docente, portanto, mesmo enfrentando adversidades e cansada ao final do dia, o prazer era imenso. Agora mesmo preciso parar porque hoje é dia de fazer feijão. Dispensei a colaboradora desde 18 de março. Tento fazer comida para dois ou três dias, evitando lavar louças e ir ao fogão, duas coisas para as quais não tenho talento. É sofredor demais não se reconhecer naquilo que faz. Não fui eu quem herdou o talento da minha mãe para a cozinha, foi minha irmã. Sinto-me culpada por isso, porque não gosto, porque faço de má vontade quando faço por obrigação.

Na prática, o trabalho é uma das esferas que dá sentido à vida humana (Antunes, 2009), sentido que favorece o enfrentamento do sofrimento que o trabalho também envolve. Prazer e sofrimento são duas faces de uma mesma moeda, cujo retorno ao investimento está no sentido que o sujeito percebe que seu trabalho tem para os outros, simbolicamente pago pelo reconhecimento. Segundo Dejours (2004), é como se o sujeito dissesse a si mesmo: "sofri, mas não foi em vão". No entanto, reconhecer-se no que faz também é uma das prerrogativas da realização humana pelo trabalho, o que ajuda na manutenção e elevação da autoestima, na valorização de sua diferença e importância no contexto social de produção (Codo, 2006).

Como a mulher internalizou valores de uma cultura maternocentrada, pode passar a enfrentar conflitos de identidade por compartilhar de um imaginário social de que a boa mulher é a boa mãe, a boa dona de casa, a boa cozinheira: referenciais aprendidos e propagados pelas ideias compartilhadas de qual deve ser o papel da mulher. Fabbro e Heloani (2010, p.178), sobre isso, citam o questionamento de Scavone (2004): "como explicar a ansiedade e a culpa que, frequentemente, acompanham o ser mãe em nossa sociedade?". Necessariamente que uma das respostas estaria na representação social do que é ser mãe para a cultura capitalista que, mesmo diante de todo o avanço da mulher, ainda resguarda diferenças de gênero, impondo à mulher uma subjugação social.

Sinto-me tão exaurida... Além de tudo, o medo fica me rondando. O medo de alguém contrair o COVID, não só os meus, mas qualquer um. Rezo por todos, os próximos, os distantes, os que nem conheço. O medo se junta à sobrecarga de atribuições e, não tendo com quem compartilhar minhas angústias, me pego, às vezes, chorando pelos cantos, como que exigindo de mim um autocontrole diante de tudo isso, principalmente por ser psicóloga, profissional de saúde mental. Não é fácil estar longe da família, dos amigos, sem ter com quem conversar para amenizar minha situação. Não quero me sentir egoísta. E termina que eu explodo, grito, saio dos eixos. E vem mais culpa, mais descontrole, nessa roda viva com medo da morte. Morte da minha saúde mental, morte pelo COVID...

Bittencourt (2020) escreve que, na situação pandêmica, o controle da vida humana não é mais sobre a subjetividade, mas sobre a superfície do corpo, já que os fatores de risco envolvidos ameaçam a ordem pública. Isso exige de cada pessoa uma parcela de sacrifício de sua liberdade em prol do bem comum. O esforço passa a ser coletivo, pois a sobrevivência não é mais uma questão pessoal, mas uma rede de cooperação.

As instituições de saúde estão dando suporte aos profissionais de saúde da linha de frente, o governo solicitou cadastramento dos profissionais de saúde, dentre eles, o psicólogo. Como posso atuar nessa situação, se a minha vida está de ponta cabeça? Isso, necessariamente, impacta no meu autorreconhecimento como uma profissional que jurou promover saúde mental e qualidade de vida para as pessoas. Sinto-me péssima diante disso.

Estudos têm sugerido que o medo de ser infectado afeta o bem-estar psicológico de muitas pessoas, favorecendo sintomas de depressão, ansiedade, estresse, confusão e raiva. Alguns desses estudos, inclusive, referem-se especificamente aos profissionais da saúde. Há, portanto, a emergência diante não só da saúde física, mas do sofrimento psicológico que pode ser experienciado pelas pessoas, com destaque para os profissionais de saúde envolvidos, o que leva a discutir potencialidades e desafios para a prática dos psicólogos no contexto brasileiro durante a pandemia (Schmidt et al, 2020).

Para completar, agora os meninos têm aulas virtuais. A rotina de aulas iniciou, com o agravante de ser em casa, o que exige de mim mais papeis: o de ser mãe professora, censora, analista de informática, administradora de redes. Não está fácil. Nada disso vai constar ou cabe no lattes (por que ser mãe não consta no lattes). Ninguém saberá o quanto tudo isso exigiu de mim dedicação, produção, investimento e tempo.

Schmidt et al (2020) também enfatizam que "para mães, pais e demais cuidadores, o fato de estarem trabalhando remotamente ou mesmo impossibilitados de trabalhar, sem previsão sobre o tempo de duração dessa situação, tende a gerar estresse e medo" (p.9). Enquanto Daltro e Barreto Segundo (2020) salientam que em uma sociedade de pessoas muito autoexigentes, tudo se potencializa em termos de sofrimento e adoecimento mental diante do distanciamento social, já que não há mecanismos concretos de resistência. Lembram que a pandemia colocou em cheque se o nosso modo de vida era bom ou correto, já que o imperativo mandatório do desempenho nessa atual situação que enfrentamos é deslocado para o espaço virtual, onde apenas alguns têm acesso e aptidão, pondo em evidência a impossibilidade de realização de projetos antes determinados.

Eu estava tão feliz por ter um filho próximo a realizar o ENEM. Filho prodígio, com tudo para entrar numa universidade. Mas, com a pandemia, cadê as aulas que ele ainda precisa assistir para continuar se preparando para o ENEM? O Ministério da Educação teima em manter a data do ENEM. As escolas permanecem fechadas e as aulas virtuais deixam a desejar. Está um tumulto a educação no Brasil! Como transformar ensino presencial em EAD do dia para a noite? Os professores são desafiados, os estudantes ficam perdidos, a família sobrecarregada. Se há um projeto de vida altamente significativo para mim como mãe, é a educação dos meus filhos. Invisto muito nisso: melhores escolas, melhores cursos. Todos os meus sentidos de vida abalados. É tudo tão incerto. Precisei encontrar formas de ressignificar esse sofrimento e não pirar...

Daltro e Barreto Segundo (2020), ao analisarem o contexto social brasileiro atual e diante da pandemia, lembram Freud e suas ideias de que a civilização se organiza a partir da renúncia à satisfação pulsional e do permanente exercício para repressão das pulsões. Nesse contexto, o sujeito reivindica sua felicidade tentando evitar as fontes de sofrimento. Acrescenta que, para o pai da psicanálise, a vida civilizada promove um mal estar por se contrapor aos anseios das pessoas, gerando desconforto em uma permanente tensão entre a busca da felicidade e as imposições sociais. No entanto, no Brasil de hoje, os sujeitos enfrentam um sistema necropolítico, que os coloca frente a um necropoder que deteriora dia e noite uma existência coletiva que dê espaço a realizações, a sonhos e satisfação.

Mesmo que eu não seja psicanalista, devo reconhecer que antes da pandemia o sofrimento diante da situação social no Brasil, em todos os aspectos, principalmente aqueles relacionados à saúde e à educação, já me afetava sobremaneira. Como docente da área de saúde, eu já vinha me ocupando de reflexões sobre como os modos de vida na nossa sociedade estavam passando por drásticas mudanças e como isso impactava na saúde, na qualidade de vida e na educação de adultos jovens.

Certamente que a mulher docente de IES, envolvida que está com as políticas públicas que definem parâmetros de educação, terá ônus e bônus em relação ao seu trabalho. Deve-se sempre lembrar, tal como refletia Merleau-Ponty (1945/2006), que ser no mundo é estar sempre em situação, circundado por uma teia de relações com outros e que nada nos acontece sem percalços. Dessa feita, é no espaço da intersubjetividade que o sofrimento se instala e é nele que o sujeito perceberá possibilidades de transcendência. Portanto, considerando que eu já vinha, pelo meu trabalho, buscando formas de enfrentamento para garantir saúde e qualidade de vida às pessoas que comigo trabalhavam, é por ele que tenho tentado transcender. O primeiro passo foi assumir-me como ser sofrente, e não doente. Sofrer faz parte da vida. Então eu estou viva porque estou sofrendo e tenho clareza do que causa meu sofrimento.

Como enfatizou Merleau-Ponty (2013), é a partir da retomada do sujeito daquilo que o transcende, que é possível ao sujeito mudar e ressignificar o mundo.

O segundo passo foi me abrir a possibilidades de tarefas que eu poderia realizar como mãe. Eu não gosto de cozinhar, mas sei fazer algumas coisas. No período do Mestrado, morando em república, eu ensaiava certas receitas. Desengavetei as receitas e me vi feliz ao fazer algumas iguarias. Os filhos aprovaram, o marido elogiou.

De acordo com Bittencourt (2020), habilidades culinárias são despertadas nesses tempos de falta de recursos e crise de abastecimento ocasionada pela pandemia.

Foi em pequenos exercícios da culinária, em um movimento livre de optar por fazer, que eu consegui enfrentar a angústia e o sentimento de prisão. Descobri que o que eu não gosto é de lavar prato. O marido lava, eu cozinho. Ele cozinha, eu lavo. Terminou que nós fomos renegociando os papéis, de uma forma muito natural, embora vez por outra enfrentemos alguns conflitos (eu sou rápida demais, ele lerdo demais; eu quero perfeição, ele é zen).

Aqui, a culinária apareceu como possibilidade de dar sentido a esse estranhamento: o outro provou o produto, reconheceu o trabalho e o sentido foi, aos poucos, sendo internalizado. Nesse processo, é preciso que a mulher compreenda a diferença em estar em situação de dependência para com os outros e ser colocada propositadamente numa atitude de má fé, em condições precárias (Marques, 2019). Os recortes de narrativa acima parecem indicar que a mulher não se colocou de má fé e se submeteu à cozinha, mas escolheu, em um ato de liberdade, negociando com o parceiro, o que os dois fariam, como fariam, embora possa ser compreendido o quanto ela ainda depende do reconhecimento para se sentir realizada no seu fazer como mãe.

O terceiro passo foi expressar minhas dores e angústias. Inicialmente, eu esbravejava, gritava: 'não aguento mais!'. Não adiantava de nada. Eles não mudavam. Passei a fazer as coisas sem reclamar. Mas também passei a solicitar que os filhos fizessem, pois eles sempre viram as colaboradoras fazendo. Exigi, literalmente, por que eu não iria fazer, que eles fizessem comidas rápidas quando quisessem, que forrassem suas camas, que colocassem o lixo na lixeira, que lavassem seus copos (como pode uma família de quatro membros sujar tantos copos?!). Além disso, conversei separadamente com todos, e em conjunto, como eu estava sofrendo, como estava sendo difícil não me achar uma boa mãe porque eu não era como a avó deles (que faz tudo sorrindo e de bem com a vida), como era difícil para mim eu não estar indo para o local de trabalho, e como eu estava me sentindo sobrecarregada.

Como bem escreveu Moraes (2020), compartilhar experiências em situações de crise e de sofrimento psíquico promove sensações de alívio, favorecendo a manutenção da saúde quando se investe em redes de apoio.

O quarto passo foi me organizar no tempo. Definir meus horários de assistir filmes, ler, produzir artigos / realizar atividades solicitadas pelos meus parceiros de trabalho, dormir e não fazer nada. Estabeleci as prioridades que eu me defini. Isso tem me ajudado a acalmar os ares. Agora mesmo estou aqui, adaptando esse texto às normas APA e a pia está cheia de pratos para lavar. Não estou angustiada. Nem visita vai aparecer mesmo... Na verdade, está sendo um alívio poder publicar essa narrativa. Sinto-me viva, lembrando algo bem significativo que li em Butler (2015, p.13) nas últimas horas:

Uma vida específica não pode ser considerada lesada ou perdida se não for, primeiro, considerada viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo, não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no sentido pleno dessas palavras.

 

 

Referências

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Nota sobre a autora:

Shirley Macêdo: Doutora em Psicologia Clínica, Docente do Colegiado de Psicologia e da Residência Multiprofissional em Saúde Mental da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF). Professora e Orientadora de Estágios na área de Psicologia Organizacional e do Trabalho com ênfase em Clínica do Trabalho e Diagnóstico Institucional. Coordenadora do Núcleo de Cuidado ao Estudante Universitário do Semiárido (NuCEU); pesquisadora do Laboratório de Estudos Transdisciplinares em Saúde e Educação (LETRANS) e do Laboratório de Carreiras e Desenvolvimento de Competências (LCDC), todos da UNIVASF. Membro da Associação Brasileira de Psicologia Fenomenológica (ABRAPFE). Email: shirley.macedo@univasf.edu.br; mvm.shirley@gmail.com

 

Recebido em: 04/06/2020
Aprovado em: 23/06/2020

 

 

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