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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo72 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo72

 

Coordenação de uma modalidade grupal de promoção de saúde mental: reflexões fenomenológicas

 

Group handling within a mental health promotion program: phenomenological considerations

 

Coordinación de una modalidad grupal de promoción de salud mental: reflexiones fenomenológicas

 

 

Ana Paula Craveiro Prado; Carmen Lucia Cardoso

Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM), desenvolvido desde 1997, propõe um cuidado à pessoa por via do compartilhamento de experiências cotidianas, trata-se de um programa inovador no campo da saúde mental e das práticas grupais. Este estudo qualitativo, de abordagem fenomenológica clássica, tem como objetivo compreender as intervenções do coordenador nesta modalidade, a partir de concepções da fenomenologia. Foram analisadas seis sessões grupais deste programa, de forma a individuar características essenciais da coordenação, que foram, posteriormente, compreendidas em interlocução com a perspectiva fenomenológica. No GCSM, o coordenador encaminha o trabalho grupal para o terreno da experiência vivida, além de acolher os relatos e favorecer um percurso partilhado de significação destes, sustentado pela vivência empática. Foi possível identificar aproximações entre o modo de fazer do coordenador e alguns gestos teórico-metodológicos da fenomenologia, como as reduções fenomenológicas, contribuindo com a fundamentação teórico-filosófica da coordenação deste e de outros grupos no campo.

Palavras-chave: Saúde Mental; Grupos; Fenomenologia.


ABSTRACT

The Community Mental Health Group (CMHG), developed since 1997, proposes an attention to the human person through the sharing of daily experiences, being an innovative program within the mental health and group practices field. This qualitative study, based on the classical phenomenological approach, aims to comprehend the coordinator's interventions in this group, considering concepts from the phenomenological perspective. Six group sessions were analysed, aiming to identify this group handling essential characteristics, which were further understood in dialogue with the phenomenological perspective. Within the CMHG, the coordinator undertakes the group work to the lived experience ground, besides receiving the reports of the daily experiences and contributing to its elaboration, sustained by the empathic lived experience. It was possible to identify the approximations between the coordination practice within this group and some phenomenological theoretic-methodological gestures, as the phenomenological reductions, contributing to the theoretic-philosophical foundation of this and other group's handling.

Keywords: Mental Health; Groups; Phenomenology.


RESUMEN

El Grupo Comunitario de Salud Mental (GCSM), desarrollado desde 1997,y que propone un cuidado con la persona a través del intercambio de experiencias diarias, es un programa innovador en el campo de la salud mental y las prácticas grupales. Este estudio cualitativo, con un enfoque fenomenológico clásico, tiene como objetivo comprender las intervenciones del coordinador en esta modalidad, basadas en concepciones de la fenomenología. Se analizaron seis sesiones grupales de este programa, para identificar las características esenciales de la coordinación, que luego se entendieron en diálogo con la perspectiva fenomenológica. En el GCSM, el coordinador dirige el trabajo grupal al campo de la experiencia vivida, además de recibir los relatos y favorecer un camino compartido de elaboración, apoyado por la experiencia empática. Fue posible identificar aproximaciones entre la forma de manejar del coordinador y algunos gestos teórico-metodológicos de la fenomenología, como las reducciones fenomenológicas, contribuyendo a la base teórico-filosófica de la coordinación de este y otros grupos en el campo.

Palabras clave: Salud Mental; Grupos; Fenomenología


 

INTRODUÇÃO

A perspectiva da Fenomenologia Clássica foi inaugurada por Edmund Husserl, a partir da investigação essencial sobre a possibilidade humana de conhecimento. Movido, primeiramente, por questões gnosiológicas e epistemológicas, o filósofo lança as bases de um percurso sistemático de pesquisa filosófico-fenomenológica que se mostra fértil também para o desenvolvimento de investigações de outras naturezas, sejam elas filosóficas ou empíricas, abrangendo a possibilidade de abertura para a interdisciplinariedade no fazer fenomenológico (Barreira, 2017; Bello, 2016; Marandola Junior, 2020).

O método fenomenológico lança luz sobre o sentido dos fenômenos investigados, parentetizando descrições fatuais, acessórias e estranhas àquilo que se mostra à consciência; ao fazê-lo, explicita, simultaneamente, as vivências intencionais e constitutivas da consciência que permitem apreendê-lo e conhecê-lo. Trata-se de uma forma de proceder que não abandona nenhum dos polos – objetivo e subjetivo – do fenômeno investigado. Ao debruçar-se sobre o conhecer, a pesquisa fenomenológica opera a individuação e a explicitação de vivências intencionais da consciência e de seus correlatos, adentrando o terreno da subjetividade humana. Desta forma, a pesquisa fenomenológica passa por uma dilatação de suas possibilidades, a partir do terreno gnosiológico, e, gradativamente, abrange em seu escopo compreensivo, horizontes ontológicos e antropológicos (Husserl, 1913/2012; Stein,1917-1922/2001).

O conjunto de descrições e de compreensões viabilizadas pelo método e pelas análises fenomenológicas tem se mostrado fecundo para outras áreas do conhecimento, como o campo da saúde mental, com suas diversas estratificações teóricas, metodológicas, práticas, entre outras (Bello, 2016; Ishara & Cardoso, 2013). Costa e Moraes (2020), por exemplo, discutem como a compreensão antropológica que deriva da fenomenologia clássica pode favorecer a sustentação de uma clínica psicológica não-reducionista, que preserve a complexidade do sujeito. É possível expandir estas considerações à clínica compreendida de forma ampla, que abrange o trabalho com grupos.

Entretanto, Orengo, Holanda e Goto (2020), a partir de estudo com 98 psicólogos, explicitam as vicissitudes e os desafios implicados na interlocução entre a prática clínica psicológica e a fenomenologia, que passam pela compreensão e apropriação que o profissional faz da fenomenologia em sua prática. Com o estudo, os autores mapeiam um cenário que demanda esforços para ampliar o conhecimento acerca do fazer clínico-psicológico inspirado fenomenologicamente. Assim, a interlocução entre a filosofia fenomenológica e cada uma das estratificações que compõem o campo da saúde mental, inclusive as práticas clínicas ampliadas, demanda investimentos reflexivos e compreensivos, afim de que se mantenha o rigor característico desta escola, bem como as particularidades do domínio teórico-filosófico e daquele prático.

Foi no contexto de interlocução entre perspectiva fenomenológica e práticas clínicas ampliadas em saúde mental, que se desenvolveu um programa grupal de promoção de saúde mental, aberto à população, que visa o cuidado com as experiências cotidianas, como fonte de desenvolvimento pessoal e comunitário. O Grupo Comunitário de Saúde Mental (GCSM) propõe um exercício de atenção, de reconhecimento e de compartilhamento de experiências do dia-a-dia consideradas significativas pelos participantes, favorecendo um movimento de olhar para si, para o outro e para a realidade por meio destas (Ishara & Cardoso, 2013; Pinheiro & Cardoso, 2019; Rocha & Cardoso, 2017). Este programa desenvolve-se, já há 23 anos, a partir da interlocução profícua entre inspirações teóricas – dentre estas, a fenomenologia – prática clínica, observação e discussão sistemáticas sobre as sessões grupais e investigação científica. Atualmente, ocorre em diversos contextos – de saúde, universitários, entre outros – em diferentes estados e municípios, e conta com cursos de formação de novos coordenadores (Prado & Cardoso, no prelo).

Cada sessão grupal é única – isto é, tem um início e um encerramento – e independente da sessão anterior ou seguinte, sendo que as sessões são abertas a todas as pessoas interessadas. Desta forma, trata-se de um grupo heterogêneo, cujo número de participantes varia de sessão a sessão. Todas as sessões mantêm a mesma proposta e estrutura, organizando-se em três momentos distintos: Sarau, Relato de Experiências e Elaboração do Trabalho Grupal (Ishara & Cardoso, 2013; Pinheiro & Cardoso, 2019; Prado & Cardoso, no prelo; Rocha & Cardoso, 2017;).

No primeiro destes momentos, os participantes são convidados a compartilharem experiências cotidianas significativas com elementos da cultura, como músicas, filmes, textos, etc, buscando colher a repercussão pessoal daquele elemento em si; no segundo momento do grupo, por sua vez, os participantes se engajam no relato de experiências vividas no cotidiano, que são, de alguma forma, consideradas relevantes para o trabalho de amadurecimento e de desenvolvimento pessoal e comunitário; já no terceiro momento, os participantes buscam colher repercussões daquela sessão grupal em si, realizando, dentro do espaço da sessão, o exercício motivador da atividade: um olhar atento às experiências vividas que mobilizam e que podem ter um sentido que diz de si, do outro e da realidade (Ishara & Cardoso, 2013; Pinheiro & Cardoso, 2019; Prado & Cardoso, no prelo; Rocha & Cardoso, 2017;). As sessões grupais são mediadas por um coordenador, cuja função vem sendo investigada e sistematizada, em direção à individuação de elementos que lhe são próprios e essenciais (Ishara & Cardoso, 2013; Prado & Cardoso, no prelo; Rocha & Cardoso, 2017).

Atualmente, o campo de práticas grupais é marcado por uma multiplicidade de modelos conceituais e de atuação, compondo um cenário teórico-prático complexo e polifônico (Borek & Abraham, 2018; Shay, 2017). Este cenário indica a relevância de pesquisas sobre estas modalidades de grupo que compreendam, em seu escopo, descrições epistemológicas e filosóficas que embasam cada uma destas, ampliando a clareza teórico-metodológica que se tem sobre determinada prática e sobre sua singularidade, bem como sobre o próprio campo grupal (Rocha & Cardoso, 2017).

De acordo com Borek e Abraham (2018), desde as origens das investigações científicas conduzidas sobre processos grupais, o campo acumula esforços compreensivos buscando identificar elementos e propriedades que possam promover e fomentar mudanças e desenvolvimento psicológico em seus participantes. Dentre tais elementos e propriedades, encontram-se o enquadre da atividade, o estabelecimento e a manutenção de normas, os objetivos e os valores compartilhados ou não pelos membros, as interações entre os membros, a identificação do participante com o grupo, bem como a atuação do coordenador de grupo.

A partir de ampla revisão conceitual da literatura, estes autores identificaram duas funções centrais do coordenador de grupos para o desenvolvimento grupal e de seus participantes: favorecer que o grupo atinja seus objetivos, com base na tarefa grupal, e ajudar o grupo a lidar com a própria dinâmica e com as relações que se estabelecem no contexto do grupo, contribuindo com a construção do processo grupal (Borek & Abraham, 2018). Rasera, Oliveira e Jesus (2014), por sua vez, realizaram uma análise de diretrizes éticas internacionais específicas para a atuação do coordenador de grupos, e identificaram a predominância de uma compreensão sobre a função do coordenador pautada, sobretudo, pelos moldes da psicoterapia grupal, a despeito das diversas práticas grupais que se desenvolvem no cotidiano de serviços de cuidado.

Tendo em vista a relevância do papel do coordenador em práticas de grupo, bem como a necessidade de compreendê-las em suas bases filosóficas, teóricas e metodológicas, este estudo tem como foco a coordenação de uma modalidade grupal de promoção de saúde mental, que conforme apresentado anteriormente, vem sendo objeto de diversas investigações científicas. Busca-se, aqui, avançar a compreensão da mesma, com especial ênfase na fundamentação teórico-filosófica da coordenação desta modalidade. Dessa forma, além de ampliar a discussão sobre esta modalidade, que vem ganhando projeção como um programa efetivo de cuidado e de promoção de saúde mental, será possível contribuir com a literatura sobre práticas grupais e coordenação de grupos no campo da saúde mental. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo compreender as intervenções do coordenador no Grupo Comunitário de Saúde Mental, a partir de concepções da fenomenologia clássica, que inspira e fundamenta a prática de coordenação do mesmo.

 

MÉTODO

Trata-se de um estudo qualitativo, em que se adota o referencial teórico e metodológico da Fenomenologia Clássica, em diálogo com Edmund Husserl e Edith Stein (Husserl, 1913/2012, 1952/2002, 1973/2019; Stein, 1933/2000, 1917-1922/2001, 1917/1998).

 

CUIDADOS ÉTICOS

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, conforme parecer nº 38571214.0.0000.5407. Todos os cuidados éticos foram adotados, dentre estes, a identidade dos participantes foi resguardada pela adoção de nomes fictícios.

 

CONTEXTO DO ESTUDO

As sessões analisadas ocorreram no Hospital-Dia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, serviço em que o programa GCSM teve origem. Trata-se de um serviço-escola de saúde mental que atende 16 usuários adultos em semi-internação, além de cerca de 30 pacientes em ambulatório de pós-alta, contando com equipe multiprofissional composta por profissionais fixos e profissionais em estágios de residência e aprimoramento. O cuidado ofertado se pauta pelo modelo psicossocial de atenção em saúde mental (Brasil, 2001), com a valorização do protagonismo e da autonomia dos usuários, da inclusão dos familiares e da comunidade. São realizados atendimentos individuais, práticas grupais, atividades culturais, entre outros (Lorenzi et al, 2012).

 

CONSTRUÇÃO DO CORPUS

O Corpus desta investigação foi constituído por seis sessões grupais do GCSM, rotineiramente gravadas e arquivadas em acervo histórico do programa. Todas as sessões foram selecionadas aleatoriamente, e de forma que tenham sido, necessariamente: (a) realizadas entre os anos de 2014 e 2015, de forma que o corpus fosse compostos por três sessões realizadas em 2014 e três em 2015; (b) realizadas no serviço em que o programa teve origem e, (c) coordenadas exclusivamente pelo idealizador da modalidade e coordenador desde seu início. Não se tratam de sessões consecutivas, já que cada sessão é única, e iniciada e finalizada pelo coordenador, não havendo uma continuidade necessária entre elas. Assim, o Corpus foi composto por 9 horas de audiogravação e 106 páginas de transcrição das sessões.

 

ANÁLISE DO CORPUS

O percurso de análise do estudo teve como inspiração o caminho analítico proposto por Barreira (2017) e as operações desenvolvidas em estudo anterior para se trabalhar com material de sessões grupais (Prado, 2017). Este percurso será descrito, a seguir. Inicialmente, as seis sessões grupais foram analisadas individualmente, buscando apreender o sentido geral de cada uma delas. Este primeiro passo permitiu abarcar, na análise de cada sessão, o desenvolvimento cronológico e o processo grupal estabelecido em cada uma delas, evitando abstrair as intervenções do coordenador do contexto que as geraram, compreendendo-as em relação a tal contexto. Para isso, em termos operacionais, foram compostos textos descritivos e analíticos para cada uma das sessões analisadas, incluindo todos os trechos das sessões que continham alguma intervenção do coordenador. Desse modo, as intervenções foram analisadas em relação ao processo e ao desenvolvimento da sessão grupal em que ocorreram. Em um segundo momento, estas sessões foram tomadas como um conjunto, assim como as intervenções do coordenador. A partir desde conjunto, buscou-se identificar e compreender características comuns que permeavam, essencialmente, as múltiplas intervenções daquele nas diversas sessões. Posteriormente, estas características foram compreendidas em interlocução com os recursos teórico-filosóficos oferecidos pela fenomenológica clássica, favorecendo uma fundamentação teórica das intervenções.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Durante as sessões do GCSM, o coordenador realiza intervenções e participações de diferentes naturezas, já discutidas em investigação anterior (Prado & Cardoso, no prelo). Nas sessões grupais desta modalidade, o coordenador é responsável por criar e assegurar o enquadre da atividade, isto é, os contornos espaço-temporais que delineiam o seu contexto de desenvolvimento; por exemplo, o coordenador inicia e finaliza a atividade, demarca os momentos característicos da mesma, entre outros. Durante a sessão, o coordenador realiza, também, intervenções que circunscrevem a tarefa do grupo, dispondo-se ativamente para que os participantes a compreendam e possam se envolver de forma profícua com a atividade (Prado & Cardoso, no prelo). Além disso, o coordenador parece ir sustentando uma determinada disponibilidade nos participantes em relação às próprias experiências cotidianas, à escuta das experiências dos outros e ao próprio trabalho grupal:

Coordenador: Quando a gente fala que vem aqui trocar experiências...trocar experiências é diferente de contar coisas. A gente não vem aqui para contar coisas, como um grupo de fofocas [...] a gente vem aqui para buscar fazer experiência, a partir das coisas que estão acontecendo, é muito diferente! [...]

Coordenador: A atitude que nos interessa é essa atitude de andar devagar, não ter pressa [...] pra viver bem, qualquer situação na qual a gente se meta... mesmo que seja uma enrascada [...] Porque o que nos interessa não é se a gente tá numa situação boa ou se a gente tá numa situação enrascada. O que nos interessa é se a gente tá vivendo bem aquela situação boa e se a gente tá vivendo bem a enrascada [...] Então, a gente pode estar na maior enrascada, e contar orgulhosamente aqui... não a enrascada, mas a forma como nós estamos vivos dentro da enrascada.

Os trechos anteriores ilustram como o coordenador pode ir favorecendo que os participantes adotem uma postura específica em relação à tarefa e às contribuições próprias e alheias. Do ponto de vista do favorecimento do processo grupal estas intervenções contribuem para que o grupo cumpra a tarefa proposta pela atividade, ampliando a possibilidade de ajuda aos seus participantes (Borek & Abraham, 2018). De forma mais específica, o coordenador apresenta um convite à desnaturalização dos relatos, que implica ir para além da dimensão fática dos acontecimentos – do "contar coisas" ou do "contar a enrascada" – para que se possa, a partir e por meio desta, atingir o registro da experiência vivida. Esta desnaturalização abrange um gesto inspirado fenomenologicamente de suspensão da predicação precipitada dos fatos, que os classifica como uma situação "boa" ou uma "enrascada", entre tantas outras possibilidades qualitativas que acabam por distanciar-se da experiência vivida.

A partir da análise, compreende-se que é no terreno da experiência vivida, e das vivências, que se desvela o lugar do participante, e em termos gerais, do sujeito, como envolvido na relação de apreensão e significação daquilo que se vive, retomando-se o posicionamento daquele como centro dativo do mundo (Husserl, 1913/2012). Segundo Husserl (1952/2002):

[...] o mundo circunstante não é o mundo 'em si', mas um mundo 'para mim', é, de fato, mundo circunstante do seu sujeito egológico, experimentado por este, e, contudo, presente à sua consciência, um mundo posto com um particular estatuto de sentido, através das vivências intencionais do sujeito mesmo (p.190)

Neste trecho, Husserl (1952/2002) chama a atenção para o sujeito, que por via de seus atos intencionais, encontra-se referido e implicado na relação com o mundo circunstante, dotado de sentido e de valor para este determinado sujeito. Em sentido clínico-fenomenológico, no GCSM, voltar a atenção para tal referimento, que se desvela no terreno da experiência vivida – ou nas palavras do coordenador, o olhar não para a "enrascada" "em si", mas para como se está "vivo dentro da enrascada" – pode favorecer um percurso de aprofundamento do conhecimento de si na relação com o mundo, com a realidade e com os outros. Assim, mostra-se como fundamental para o trabalho grupal que as intervenções do coordenador, em diálogo com os participantes e com o grupo como um todo, busquem encaminhar o trabalho do grupo para o campo da experiência vivida.

Em concordância com a perspectiva teórico-metodológica que inspira a modalidade, as intervenções do coordenador diante das comunicações dos participantes não são pautadas pela interpretação das mesmas, no sentido clínico-tradicional do termo, tampouco pela realização de ações pautadas pelo aconselhamento, pela orientação, pela informação, pela solução de problemas, entre outros. A disponibilidade de escuta do coordenador para com os relatos dos participantes encontra aproximações com a máxima fenomenológica de "voltar-se às coisas mesmas" (Husserl,1913/2012), de forma a buscar que a experiência vivida pelo participante, tal qual foi vivida – anteriormente a processos precoces de avaliação, julgamento, predicação, conforme já explicitado – venha à datidade subjetiva e intersubjetiva, isto é, se mostre ao coordenador e ao grupo como um todo. Nesse sentido, suspender os tipos de intervenção supracitados parece sustentar e resguardar a possibilidade de emergência do relato no campo da experiência vivida, sem que a participação do coordenador seja, ela mesma, um convite para a assunção prematura, por parte dos participantes, de orientações que o afastam da experiência vivida.

Em seu desdobramento prático-clínico, esta disposição de escuta do coordenador encontra paralelos com o que, no campo da pesquisa empírico-fenomenológica, se denominou "escuta suspensiva", que consiste na apropriação rigorosa da "epoché" fenomenológica efetivada em relação intersubjetiva, que, levando-se em consideração o fenômeno empático, permite acessar o campo da experiência vivida pelo outro (Barreira, 2017). Caso o participante venha a assumir orientações alheias àquela da experiência vivida, o papel do coordenador consiste em ajudá-lo, a partir de uma atitude de acolhimento das contribuições, a posicionar-se no campo da experiência própria, vivida em primeira pessoa. Além de favorecer a desobstrução de vias para que os relatos se deem no campo da experiência vivida, as intervenções do coordenador parecem sustentar e estimular uma abertura à vivacidade e à empiria própria do vivido:

Augusto: A minha família tem uma tradição, que toda a páscoa, a minha mãe faz um arroz com coco, um bacalhau...só que eu percebi que a cada ano que passa, que esse arroz com coco significa muito mais que um arroz com coco, significa o sentimento de todo mundo querer estar junto, vem pessoas de São Paulo...e então, tem uma significação muito grande, todo mundo vem, só pra tá reunido...eu achei isso muito importante e resolvi trazer![...]

Coordenador: Augusto... Obrigado, Augusto, porque...eu acho que [...] a maneira como você contou, eu penso que ela quase que nos permite né...sentir o sabor desse arroz com coco [...] porque tem duas possibilidades: ou a gente escuta isso como uma história do Augusto, ou a gente escuta isso, quase que sentindo parte dessa mesa. Quase como se a gente estivesse, graças ao Augusto, de alguma forma, participando desse almoço [...] eu acho que é a coisa que nos interessa né? Ir podendo ficar perto da experiência de cada um [...]

Diante da contribuição de Augusto, o coordenador apreende e explicita a empiria e a vivacidade da experiência e do relato deste participante, por meio da expressão metafórica de como aquele relato ressoa em si, e como uma possibilidade para o grupo, uma vez que se coloca como parte do mesmo por meio do uso da primeira pessoa no plural: "a maneira como você contou [...] quase que nos permite né... sentir o sabor desse arroz com coco". A linguagem na intervenção do coordenador convida a memória, a fantasia e a imaginação de dados sensíveis implicados na possibilidade de "sentir o sabor" do arroz com coco, que remonta à corporeidade e à psique, em sua ancoragem na dimensão hilética. Assim, a intervenção do coordenador usa de experiências relacionadas à sensibilidade para ressoar a empiria do relato de Augusto, para reverberar um elemento importante de seu relato, o arroz com coco.

Este participante explicita um desdobramento de sentidos a partir do "arroz com coco", que passa pela relação com a mãe, com a família e com o desejo de "estar junto" – assim, este prato ganha "uma significação muito grande", que o transcende e o amplia enquanto objeto fático. Desta forma, o "arroz com coco" passa a expressar mais do que aquilo que é dado aos sentidos – como o sabor, a textura, o perfume, a temperatura – e assim, sintetiza aspectos sensíveis, relativos à dimensão hilética, e aspectos noéticos, que por sua vez, permitem o reconhecimento do arroz com coco enquanto tal, mas também de sentidos que este objeto ganha a partir das relações intersubjetivas vividas pelo participante.

Nota-se que, ao retomar este elemento, o coordenador ressoa os aspectos sensíveis do arroz com coco, como o sabor, mas intuindo-os já com as camadas de sentido reconhecidas pelo participante – como a relação com a mãe e com a família – sem precisar, necessariamente, explicitá-los. Assim, também na comunicação do coordenador, o arroz com coco ganha traços estéticos e metafóricos: é o arroz, é o seu sabor, mas é também a relação com a família e o "sentimento de estar junto". Nas sessões analisadas, as intervenções do coordenador são marcadas por este tipo de "linguagem sensível", exemplificada anteriormente, que sintetiza aspectos da sensibilidade e dos atos de significação, compondo uma forma de se expressar que é metafórica e estética. A análise genético-fenomenológica da experiência vivida até as suas origens evidencia seu fundamento pré-reflexivo na dimensão hilética e seu transcorrer por múltiplas operações noéticas, isto é, de sentido (Barreira, 2017; Husserl, 1973/2019). Nessa direção, compreende-se que esta forma do coordenador de compor as intervenções, que opera em ambos terrenos, sensível e significativo, favorece a sustentação do trabalho do GCSM no campo da experiência vivida.

Além disso, a possibilidade de "quase sentir o sabor do arroz com coco", apontada pelo coordenador, explicita, também, o sentido de proximidade, que é mais explorado na sequência da intervenção. Mais uma vez metaforicamente, o coordenador traz, como possibilidade, uma escuta da experiência de Augusto que coloque os participantes "quase que sentindo parte dessa mesa", "participando desse almoço", ou ainda, "perto" da experiência de Augusto. Observa-se como, ainda aqui e no trecho abaixo, a linguagem do coordenador remete à corporeidade, à proximidade física, como metáfora para certa "proximidade intersubjetiva" que pode acontecer no grupo, vivida como intimidade, ainda que seja um grupo grande e aberto, em que nem todos os participantes se conheçam previamente:

Luiza: [...] E fui só me surpreendendo [...] Quando a gente chegou lá, nossa! Acho que eu não me lembrava de uma experiência tão bonita! O lugar é lindo! Eu imaginei uma cachoeira pequena e ela tem 84 metros. E era um dia frio, não tinha sol. Mas foi tão bonito que é um paredão que meio que te fecha, e tem um laguinho, eu fiquei maravilhada. Nossa! Estava gelado, não estava uma coisa gostosinha... eu estava tremendo! [...] E na hora que a gente estava lá, eu juro que eu pensei assim "gente, eu queria que vocês estivessem lá, eu queria todo mundo, o José [participante do grupo], que eu sei que gosta dessas coisas, eu queria que estivesse aqui". Porque, pra mim, o que foi fascinante, também, é que é difícil chegar, e quando você está lá, não é que é só gostoso, sabe? "Ah é só uma água fresquinha" Não! A água é super gelada! E é bom! E as pedras...super difícil de subir! Então, você tem que subir muito sentindo a subida, tem que tomar muito cuidado e, pra mim, isso, o tempo todo eu fiquei consciente, pensando que eu queria que todo mundo que eu gosto estivesse lá. Pensando que a vida é assim, sabe? Não é só o gostoso: "ai a água está perfeita, um dia de sol... é tudo junto, né? [...] e eu queria muito que vocês estivessem lá! Já falei... vou levar todos os meus amigos lá.

Coordenador: Já começamos a estar, já começamos a estar. Essa é a sorte de a gente poder estar aqui, porque através da generosidade de vocês que vão contando essas experiências, vocês nos colocam nesses lugares. E então, a gente, através do olhar de vocês, a gente enxerga a cachoeira [...] Através do olhar de vocês.... Vocês emprestam o olhar pra gente enxergar aquilo que vocês enxergaram primeiro.

Luiza faz um relato que presentifica, por meio da memória, a experiência de visita a uma cachoeira e as suas nuances. Trata-se de um relato que parece atualizar a empiria e a vivacidade daquilo que foi vivido, com destaque para os dados sensíveis, captados pela percepção e trazidos à luz pela memória, como, por exemplo, "estava gelado", "estava tremendo", "é um paredão que meio que te fecha", entre outros. Além disso, o relato é investido de sentidos: "[eu fiquei] pensando que a vida é assim, sabe? Não é só o gostoso [...] é tudo junto", "e eu queria muito que vocês estivessem lá!". Nota-se, dessa forma, que, também os participantes, quando contam de suas experiências vividas, resgatam aspectos hiléticos e noéticos, de forma articulada, para descrevê-las ao grupo – em que a cachoeira ganha traços estéticos e metafóricos para a "vida mesma".

O coordenador, por sua vez, parece responder ao desejo da participante de "levar os amigos lá", explicitando a possibilidade de, metaforicamente, "já estarem lá", de "enxergarem a cachoeira através do olhar da participante". Assim como na intervenção diante da comunicação de Augusto, o coordenador vale-se de formas de expressão que remontam à sensibilidade e à corporeidade para dizer de uma proximidade intersubjetiva entre os participantes, cultivada a partir do compartilhamento de suas experiências vividas, como por exemplo, em: "vocês nos colocam nesses lugares", "vocês emprestam o olhar pra gente enxergar aquilo que vocês enxergaram primeiro" – nota-se como a corporeidade, e portanto, a espacialidade, entram em campo pelo expressar-se metafórico. Entende-se que estas intervenções ilustram a maneira pela qual, no GCSM, o coordenador vai favorecendo a configuração de vínculos entre os participantes, a constituição de determinada maneira de dispor-se ao outro e às suas experiências, contribuindo com a criação e articulação do processo grupal (Borek & Abraham, 2018), em uma direção comunitária, conforme será discutido adiante.

As possibilidades apontadas pelo coordenador, como a de "emprestar o olhar" para que o grupo "veja" o que determinado participante viu antes, são sustentadas, substancialmente, pela vivência empática, individuada e explorada por Husserl (1973/2019) e Stein (1917/1998). Isto é, a constituição da inteligibilidade, da comunicabilidade e da publicidade das experiências compartilhadas, bem como da possibilidade de ser tocado pela experiência alheia, ainda que esta não seja originária em si, se dá por via de atos empáticos. São estes que permitem o envolvimento dos participantes pelos sentidos e objetos da experiência alheia, preservando a separação constitutiva entre "eu" e "outro". No caso do presente estudo, são os atos empáticos que permitem, na linguagem metafórica do coordenador, "ver" a cachoeira através do olhar de Luiza, ou sentir-se parte da mesa, participando do almoço relatado por Augusto. A estrutura vivencial humana consente, ainda, que o sujeito possa se dar conta da vivência empática, esta, por sua vez, originária em si mesmo (Stein, 1917/1998). O coordenador parece apreender, reconhecer e descrever esta vivência nas intervenções discutidas, e conforme apontado, valer-se de linguagem metafórica e estética para expressá-la.

No GCSM, a partir dos atos empáticos, vai tomando forma, com a ajuda das intervenções do coordenador, uma maneira comunitária de dispor-se ao grupo, que envolve sentidos de proximidade, de intimidade e de contribuição, a partir do relato da própria experiência, que vão favorecendo o desenvolvimento da atividade. Assim, o coordenador parece favorecer a constituição de uma atividade propriamente comunitária, em que os participantes possam dispor-se ao outro e aos sentidos da experiência do outro ativamente, conforme será discutido, dentre outros elementos, a partir do excerto a seguir:

Silvia: É muito interessante como ele fica buscando conhecer as coisas. Parece que ele está reaprendendo a viver... é muito interessante isso [...] Agora ele resolveu comprar um patinete motorizado [...] e aí que começou a agregar um monte de meninos na porta de casa [...] e ele acabou fazendo amizades [...]. O amigo dele, o João, como ele trabalha na bicicletaria, ele entende de reparo, de ajuste, de não sei o que... e como o patinete é velho, toda hora ele fura o pneu [...] e o João senta lá e passa a tarde de sábado tentando ajudar a consertar [...] e ele [o filho] está encantado com essa coisa da disponibilidade desse menino, e isso me deixou muito feliz. Ele tá começando a ver que essa troca é uma coisa muito importante para aproximar as pessoas, porque ele estava fechado, desde que ele começou o tratamento dele, ele se fechou [...]

Coordenador: Brigado, Silvia... Eu queria só chamar a atenção para um pequeno aspecto dentro disso que a Silvia estava falando né [...] Porque... Ah! Essa capacidade de ir acompanhando a experiência do outro... quer dizer né... ela está contando dentre outras coisas como ela está podendo acompanhar a experiência do crescimento do filho [...] Aprender a identificar como uma experiência de valor, não só quando eu cresço [...] também podemos ficar entusiasmados quando a gente percebe que alguém que a gente cuida também está crescendo [...]

Silvia relata sua experiência de observação do filho e da abertura deste para novos relacionamentos "de troca". A intervenção do coordenador destaca a "capacidade" da participante de "ir acompanhando a experiência do outro", favorecendo um reconhecimento do gesto singular de Silvia diante de sua realidade e de sua relação com o filho. Dessa forma, o coordenador parece fomentar e ampliar a possibilidade de viver e dar-se conta de si no vivido, capacidade ontológica e constitutiva do humano, cuja consciência "ilumina" o fluxo de vivências do sujeito (Stein,1917-1922/2001, p. 152). Para Stein (1933/2000), "não só sou, não só vivo, mas sei de meu ser e de meu viver. E tudo isso em um único ato" (p. 109), este "saber" é originário e pré-reflexivo, isto é, é imediato e não decorre de um processo de reflexão, e caracteriza a dimensão espiritual ou propriamente humana. O olhar do coordenador, nesse sentido, pode ajudar com que Silvia se dê conta de seu próprio gesto na relação com o filho, possibilidade constitutiva e estruturalmente dada a todos, mas que ganha destaque com a intervenção do coordenador, podendo adquirir traços terapêuticos no GCSM, à medida que permite maior conhecimento de si e da realidade, de forma recíproca. Desta forma, não só o filho é acompanhado pelo olhar de Silvia, mas Silvia pode ser acompanhada, em seus gestos e vivências, pelo olhar do grupo – considerando-se, aqui, o valor do olhar do outro para a percepção e para o conhecimento de si mesmo (Stein, 1917-1922/2001).

O compartilhamento de experiências, em interlocução com as intervenções do coordenador, não se limita à descrição da realidade (nesse caso, o filho fazendo amizades, por exemplo), do mundo "em si", nas palavras de Husserl (1952/2002, p.190), mas abarcam o lugar de Silvia como implicado, constituído e constitutivo, nesta relação com a realidade, a partir do qual ela pode se posicionar, o que é próprio à dimensão intelectiva e volitiva, e, em termos mais amplos, espiritual e propriamente humana, que permite a elaboração de novos sentidos para os acontecimentos. Compreende-se que, para tal, o coordenador opera uma suspensão da naturalidade e obviedade do relato, que permite lançar luz sobre a relação intencional e constitutiva entre sujeito e realidade, possibilidade que funda a própria fenomenologia e parece sustentar os percursos interventivos do coordenador. Desvela-se, nesta perspectiva, uma possibilidade de maior integração da pessoa a partir da possibilidade de posicionar-se, que, para Stein (1933/2000), remete ao domínio da liberdade: "[no ser humano], não se realiza somente uma transformação da impressão em expressão ou em reação, é ele mesmo que está no centro, como pessoa livre" (p. 110).

Correlativamente à suspensão da naturalidade e obviedade do relato, o coordenador, ao ressaltar a vivência da participante, o "acompanhar a experiência do outro", reconhece sua singularidade e o horizonte existencial particular no qual esta se deu – na relação específica, espaço-temporalmente situada com o filho – mas abre a possibilidade de um despregar-se desta experiência em relação a seu horizonte existencial originário, tornando-a possibilidade para todos os participantes. Assim como a capacidade de dar-se conta de si mesmo naquilo que se vivencia é considerada por Stein (1933/2000) própria da dimensão espiritual, ou seja, especificamente humana, também a possibilidade de "saber" originariamente do outro é considerada pela autora como uma capacidade ontológica, e, assim, potencialmente dada a todos. A autora denomina este saber originário – de si, do outro, das coisas, do mundo – como "abertura": "o saber de si é abertura em direção ao interno, o saber do outro é abertura em direção ao externo (p.109). O gesto de acompanhar a experiência do outro parece ser estimulado pelo coordenador, que conforme já acenado, busca favorecer, ao longo do grupo, a constituição do caráter comunitário do trabalho grupal. Ao fazê-lo, estimula uma abertura à experiência do outro que não é formal ou instrumental, mas que, além de ser uma capacidade ontológica, pode repercutir originariamente em si como "entusiasmo", como uma experiência de valor, ainda que a experiência seja do outro, apenas intuída empaticamente pelo sujeito e não vivida originariamente em si, disposições que caracterizam os agrupamentos comunitários, em sentido fenomenológico (Stein, 1933/2000).

As operações efetivadas pelo coordenador e discutidas neste trabalho, embora atualizadas em âmbito clínico, e até certo ponto, atreladas ao horizonte existencial dos participantes e da própria sessão, encontram afinidades com as reduções fenomenológicas – eidética e transcendental – propostas originalmente por Husserl no campo da filosofia, que encaminham a análise desta escola para a individuação e a descrição das vivências puras (Husserl, 1913/2012). As operações de suspensão da naturalidade, da obviedade e, até certa medida, do atrelamento a um horizonte existencial situado, aqui descritas, vão, necessariamente, acompanhadas da vivência empática do coordenador, já discutida anteriormente. São os atos empáticos que viabilizam, além da presentificação da experiência do outro, o reconhecimento de uma estrutura vivencial partilhada em termos essenciais, completando uma apreensão eidética desta estrutura (Costa & Moraes, 2020; Savian Filho, 2014; Stein, 1917/1998). Assim, a possibilidade de explicitação de vivências possíveis a todos os participantes, a partir do reconhecimento das mesmas em experiências singulares e existencialmente situadas, sustenta-se na vivência empática do coordenador e dos participantes.

O trabalho com as experiências vividas, no GCSM, com a participação ativa do coordenador, tende a se desenvolver em um terreno marcado por certa "duplicidade" – e não "dualismo" – que também caracteriza a fenomenologia: assim, ressalta-se a singularidade, a historicidade e o horizonte existencial dos participantes e de seus relatos, e nesse sentido, sua empiria, ao mesmo tempo em que evidencia-se uma estrutura vivencial essencial humana, isto é, transcendental, expressa em conjuntos de vivências individuáveis, "formas" que são estruturalmente partilhadas, preenchidas por "conteúdos" absolutamente singulares. Estas duas faces não são dois fenômenos distintos, mas marcam a duplicidade de um único fenômeno, rigorosamente explicitada pelos fenomenólogos clássicos (Husserl, 1952/2002, 1973/2019; Stein, 1917-1922/2001).

 

CONCLUSÃO

O objetivo deste trabalho foi compreender as intervenções do coordenador em uma modalidade grupal de promoção de saúde mental, o Grupo Comunitário de Saúde Mental, a partir de concepções da fenomenologia clássica. No GCSM, o coordenador busca encaminhar o trabalho psicológico e de cuidado para o terreno da experiência vivida, assim, favorece que os participantes adotem certa disponibilidade para reconhecê-las e relatá-las, em orientações que preservem sua empiria, sua pessoalidade e sua vivacidade, cuidando intersubjetivamente para que tais qualidades não sejam precocemente tolhidas pela adoção de abordagens alheias à experiência mesma.

Conforme se desenvolve, o trabalho com as experiências vividas solicita do coordenador posicionamentos que as acolham e favoreçam um caminho de acompanhamento e de significação partilhada das mesmas. Para tal, o coordenador, juntamente com os participantes, sustenta uma disponibilidade diante das experiências vividas e dos relatos que transcende a dimensão fática para adentrar o campo das experiências vividas. Os relatos de experiências e as intervenções do coordenador sustentam e valorizam a empiria e a vivacidade próprias daquelas, em suas estratificações hiléticas e noéticas, expressas, no grupo, por uma linguagem permeada por metáforas e descrições estéticas.

O trabalho com as experiências vividas no GCSM, facilitado pelo coordenador, vale-se da capacidade constitutiva do ser humano de vivenciar e dar-se conta do vivido, configurando-se como um percurso terapêutico que pode ampliar o conhecimento que se tem sobre si, sobre o outro e sobre a realidade, em que ganha relevância a dimensão intelectivo-volitiva, espiritual, ou, especificamente humana. A intersubjetividade também ocupou um lugar central para a efetivação desta modalidade e da coordenação, possibilitando o reconhecimento de, por um lado, a singularidade e a unicidade de cada experiência e participante, e por outro, de uma estrutura vivencial comum, capaz de justificar a intersubjetividade mesma, vivida e viabilizada pelos atos empáticos.

À medida que as características das intervenções do coordenador foram descritas e compreendidas, foi possível situar uma série de aproximações entre o modo de fazer do coordenador e os gestos fenomenológicos efetivados por Husserl e Stein em suas pesquisas – bem como com alguns resultados atingidos por eles – buscando preservar, contudo, as especificidades de cada domínio: um clínico, efetivado empiricamente como prática de cuidado, e outro, filosófico-transcendental. Estas aproximações guardam relação com a historicidade deste programa, que nasce a partir da prática clínica da modalidade, acompanhado pela observação e discussão sistemáticas daquilo que se mostrava, e inspirado desde seu início, dentre outras abordagens, pela fenomenologia clássica. Não se trata, contudo, de uma aplicação prática de determinada teoria, mas da apropriação, primeiramente tácita e intuitiva, de alguns gestos que se apresentavam férteis e alinhados a esta prática grupal.

Conforme apontado, este estudo explicita e sistematiza estas aproximações e apropriações, contribuindo com a fundamentação teórico-filosófica da atuação do coordenador nesta modalidade. As contribuições deste trabalho, contudo, não se circunscrevem unicamente ao GCSM, mas ampliam as possibilidades compreensivas sobre grupos e coordenação de grupos em saúde mental. O estudo contribui, ainda, com o campo de discussões sobre a interlocução entre um fazer clínico, tomado neste estudo em sentido ampliado, e a fenomenologia, consistindo em uma investigação empírica qualitativa de uma prática grupal, na saúde mental, que tem como inspiração a fenomenologia clássica. Desta forma, complementa e favorece aprofundamento da produção de conhecimento na área. Além disso, o estudo pode inspirar a composição de novas práticas, bem como leituras teórico-filosóficas daquelas existentes no campo da saúde mental.

Ressalta-se, ainda, como limites do estudo, que se trata de um estudo delimitado a seis sessões grupais, ocorridas em dois anos distintos, de um programa que já se desenvolve há 23 anos, e coordenadas unicamente pelo coordenador da modalidade. Estes critérios responderam a exigências metodológicas, mas deixam um amplo horizonte para possíveis investigações, como a análise de sessões coordenadas por outros coordenadores e a análise de entrevistas com os mesmos para conhecer a experiência vivida, em primeira pessoa, da coordenação da modalidade.

 

 

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Nota de Agradecimento À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que financiou esta pesquisa (Processo nº. informação suprimida para preservar anonimato das autoras, a ser completado).

 

 

Notas sobre as autoras:

Ana Paula Craveiro Prado: Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Email: ana.paula.prado@usp.br ORCID ID: (https://orcid.org/0000-0002-5328-9245)

Profa. Dra. Carmen Lucia Cardoso: Professora Associada no Departamento de Psicologia, da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Email: armen@ffclrp.usp.br ORCID ID: (https://orcid.org/0000-0002-8422-8453)

 

Recebido em: 22/02/2019
Aprovado em: 20/02/2020

 

 

 

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