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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo76 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo76

 

Testemunhas de um suicídio: um estudo com comerciantes nas imediações da ponte Newton Navarro em Natal

 

Witnesses of a suicide: a study with merchants in the surroundings of the Newton Navarro bridge in Natal

 

Testigos de un suicidio: un estudio con comerciantes en las inmediaciones del Puente Newton Navarro en Natal

 

 

Ana Karina Silva Azevedo; Amanda Melo Queiroz da Costa; Olga Maria Hawes Fernandes de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

 

 


RESUMO

Pesquisa fenomenológica de inspiração heideggeriana que objetiva compreender a experiência de comerciantes testemunhas de suicídios ocorridos na Ponte Newton Navarro, localizada em Natal/RN. Utilizaram-se quatro narrativas de comerciantes e, após leitura, foram destacados núcleos significativos compostos por partes dos depoimentos e significados tecidos na entrevista. As noções heideggerianas de ser-aí, angústia, afinação, impessoalidade e ser-para-a-morte nortearam as reflexões. Obtiveram-se cinco núcleos de significado: a afinação acerca do som do suicídio; o ser testemunha de um suicídio: sobre ver e olhar a cena; compreensões sobre o suicídio; a espetacularização da morte e do suicídio na ponte e; significados sobre o suicídio na ponte Newton Navarro. Concluímos que a ocorrência de suicídios mudou a relação dos comerciantes com a ponte, a qual passa a evocar a morte como possibilidade existencial para eles. O estudo evocou ainda a necessidade de pesquisas com outras populações também afetadas por tal realidade, como pescadores e mergulhadores.

Palavras-chave: Testemunha; Suicídio; Ponte; Fenomenologia-hermenêutica; Heidegger.


ABSTRACT

Heideggerian-inspired phenomenological research that aims to understand the experience of merchants witnessing suicides that occurred at the Newton Navarro Bridge, located in Natal / RN. Four traders' narratives were used and, after reading, significant nuclei composed of parts of the testimonies and meanings highlighted in the interview were highlighted. Heidegger's notions of being-there, anguish, tuning, impersonality and being-for-death guided the reflections. Five cores of meaning were obtained: the tuning about the sound of suicide; the witness of a suicide: about seeing and looking at the scene; understandings about suicide; the spectacularization of death and suicide on the bridge and; meanings of suicide on the Newton Navarro bridge. We conclude that the occurrence of suicides changed the relationship between traders and the bridge, which starts to evoke death as an existential possibility for them. The study also evoked the need for research with other populations also affected by this reality, such as fishermen and divers.

Keywords: Witness; Suicide; Bridge; Phenomenological- hermeneutic; Heidegger.


RESUMEN

Investigación fenomenológica de inspiración heideggeriana que tiene como objetivo comprender la experiencia de comerciantes que presenciaron suicidios ocurridos en el Puente Newton Navarro, ubicado en Natal / RN. Se utilizaron cuatro narrativas de comerciantes y, tras la lectura, se destacaron núcleos significativos compuestos por partes de los testimonios y significados destacados en la entrevista. Las nociones de Heidegger de estar-ahí, angustia, sintonía, impersonalidad y ser-para-la-muerte guiaron las reflexiones. Se obtuvieron cinco núcleos de significado: la sintonía sobre el sonido del suicidio; el testigo de un suicidio: sobre ver y mirar la escena; entendimientos sobre el suicidio; la espectacularización de la muerte y el suicidio en el puente y; significados del suicidio en el puente Newton Navarro. Concluimos que la ocurrencia de suicidios cambió la relación entre los comerciantes y el puente, que comienza a evocar la muerte como una posibilidad existencial para ellos. El estudio también evocó la necesidad de investigar con otras poblaciones también afectadas por esta realidad, como los pescadores y buceadores.

Palabras clave: Testigo; Suicidio; Puente; Fenomenología – Hermenéutica; Heidegger


 

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva apresentar os resultados provenientes do projeto de pesquisa intitulado de "Testemunhas de um suicídio: um estudo com comerciantes nas imediações da Ponte Newton Navarro". Foram ouvidos quatro comerciantes do Mercado da Redinha, geograficamente situado embaixo da Ponte Newton Navarro, a qual, desde a sua inauguração, registra suicídios e tentativas.

A autodestruição humana é um fenômeno mundial. A Organização Pan-Americana da Saúde - OPAS e a Organização Mundial de Saúde – OMS/WHO (2014) reconheceram o suicídio e as tentativas de suicídio como uma prioridade na agenda global de saúde e incentivaram os países a desenvolver e reforçar estratégias de prevenção. Segundo a OMS (2014), mais de 800 mil pessoas se suicidam todos os anos e esse número deve chegar a 1,6 milhão de mortes em 2020, sendo a segunda principal causa de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. Segundo Ferreira-Junior (2015), a própria OMS acredita que esse número esteja subestimado em 20 vezes por conta da subnotificação ou inexistência dos registros, principalmente em países da África e Oriente Médio, bem como pelo próprio tabu no qual o tema está envolto. Estes dados implicam que o suicídio responderá por 1,5% do total de óbitos no mundo em 2015, ocorrendo ao menos uma morte a cada 40 segundos, e que a cada morte por suicídio ocorram ao menos 20 tentativas.

Segundo Waiselfisz (2014), em seu Mapa de violência, no Brasil entre os anos 2000 e 2012 o crescimento da taxa de suicídio foi de 10.4%. Este mesmo levantamento aponta que de 1980 a 2012, o total de suicídios no período de um ano saltou de 3.896 casos para 10.321, um aumento de 62,5%. O Brasil ocupa a 8ª posição no ranking de países com maior incidência de suicídios, ultrapassando o número de 12 mil casos por ano. O Nordeste também preocupa tendo um crescimento de 51,7% no período, em especial na Paraíba e na Bahia. No Brasil, a maior prevalência de casos notificados de lesão autoprovocada, como de tentativas de suicídio, se encontram na faixa etária entre os 20 e 49 anos (Brasil, 2017).

No Rio Grande do Norte, o Instituto Técnico-Científico de Perícia do Rio Grande do Norte, ITEP/RN, num esforço próprio, realizou um levantamento acerca das mortes por suicídio no Estado, no período entre agosto de 2017 e maio de 2018 e contabilizou 146 suicídios, sendo 34 ocorridos na cidade de Natal e seis destes na Ponte Newton Navarro. Entretanto, Assunção (2019), em reportagem produzida pelo periódico online ÉPOCA, apurou que, em 2019, 413 pessoas se suicidaram ao se jogar do vão central da ponte que é tema deste estudo.

Em todo o mundo, pontes de expressiva relevância, servem de cenário para comportamentos autodestrutivos, tal qual acontece na Golden Gate, na Califórnia, e na Terceira Ponte no Espírito Santo. No Rio Grande do Norte, em específico Natal, até a construção da Ponte Newton Navarro, em 2007, não havia registros de suicídio por precipitação em pontes, face a não existirem obras desta natureza na cidade.

A ponte Newton Navarro tem 55 m de altura de seu solo e cerca de 1.800 metros de extensão, com uma importante função socioeconômica de tornar fluido o tráfego à Zona Norte da cidade, valorizar e incrementar o comércio e os imóveis nesta ampla região. Desde a sua inauguração, ela tem sido escolhida por muitos como lugar para dar fim a sua própria vida. Destacamos ainda uma peculiaridade da Ponte Newton Navarro: certamente, uma das poucas pontes no mundo que detém comércio tradicional da cidade em suas margens, exatamente abaixo da ponte.

Relatos dão conta de que, quase diariamente, comerciantes locais dos arredores da Newton Navarro, no lado Norte, expressam experiências de ver tentativas e suicídios, até mesmo localizando corpos na Foz do Rio Potengi. Muitas vezes, comerciantes instalados desde muitos anos atrás, passaram a ter que conviver com a dura realidade que o suicídio convoca: a quem pertence a vida? O que pode fazer alguém questionar a validade do seu viver?

Para estes o suicídio deixa de ser uma realidade distante e passa a ser rotina, testemunhando um sofrimento silenciado com uma queda nas águas turvas do Potengi. Entretanto, nos cabe questionar como é, para estes que testemunham o movimento final da existência, presenciar, cotidianamente, tal ato. Destacamos que esta pesquisa objetivou compreender a experiência de ser parte deste cenário, testemunhando a escolha de morrer por alguém. O trabalho sedimentou sua intenção em dar visibilidade ao relato de comerciantes que tenham sua labuta diária no lado Norte da Ponte Newton Navarro.

Desenvolver este estudo funda sua relevância em ampliar compreensões sobre o suicídio com uma população que indiretamente é afetada por ele. Desta forma, pensamos ser importante conhecer o impacto que esse testemunho gerou aos colaboradores desta pesquisa, dando visibilidade a estes anônimos invisibilizados e afetados pela realidade que concerne o suicídio.

 

MÉTODO

O presente estudo se configura como uma pesquisa qualitativa de inspiração fenomenológica, a qual parte da compreensão do vivido e dos significados relativos à realidade experienciada, ou seja, "... para expressões claras sobre as percepções que o sujeito tem daquilo que está sendo pesquisado, as quais se expressam pelo próprio sujeito que as percebe'' (Coltro, 2000, p. 39).

Desta forma, utilizamos como instrumento uma entrevista semiestruturada com uma pergunta disparadora a qual versou sobre "como é para você conviver com os suicídios acontecidos na Ponte Newton Navarro?". Nossa intenção ao construir a interrogativa foi convocar a experiência do sujeito entrevistado, de modo a evitar limitações ou direcionamentos no seu narrar, no intuito de nos aproximarmos fielmente àquilo que os afeta e é mundo de sentido para cada testemunha. Apesar da entrevista ter sido concebida com apenas uma pergunta inicial, ao longo das narrações foram sendo pontuadas questões consideradas pertinentes de serem aprofundadas sobre a experiência.

Com esse intuito, entrevistamos quatro comerciantes do Mercado da Redinha, situado abaixo da Ponte Newton Navarro. A opção pelo lado Norte da Ponte se dá por lá estarem concentrados comércios tradicionais da cidade. A participação no presente estudo se deu de maneira espontânea, sendo respeitados os critérios de saturação da amostra pelo pesquisador. Pensamos, inspirados em autores como Rhiry-Cherques (2009), que uma coleta de dados é considerada saturada quando nenhum novo elemento é encontrado e o acréscimo de novas informações passa a não ser necessário, por não alterar a compreensão do fenômeno estudado. O local de realização das entrevistas foi o próprio mercado.

As entrevistas foram gravadas e transcritas. Destacamos que os preceitos éticos foram respeitados, em concordância com as orientações do Comitê de ética em Pesquisa. Os participantes assinaram termo de consentimento livre e esclarecido e termo de gravação de voz, além de termo de confidencialidade, em consonância à Resolução 246/97 do CONEP e com CAAE 55021116.3.0000.5568.

O procedimento de análise das entrevistas se deu, inicialmente, pela leitura das transcrições nos familiarizando com as experiências dos comerciantes para nos aproximar da vivência daquelas pessoas. Tal momento permite o destaque dos significados das falas do narrador, dando evidência ao fenômeno estudado e aos aspectos correlacionais.

As marcações foram identificadas como núcleos norteadores do momento da análise e discussão dos dados. Obtivemos, assim, núcleos significativos, compostos por parte dos depoimentos e significados tecidos em toda a entrevista e também com a relação pesquisador e narrador (Bicudo & Martins 1994; Azevedo, 2012).

Por último, procedemos à interpretação dos dados, à medida que os núcleos foram destacados, já se iniciando aqui a interpretação por permitir o desvelamento da experiência vivida. Para dar suporte à interpretação e à narração foram convidados a compor a construção do texto interpretativo trechos dos depoimentos (Szymanski, 2002). Tais trechos serão analisados à luz de teóricos estudiosos da temática do suicídio e da ontologia heideggeriana.

Destacamos que tal modo de compreender as entrevistas possui consonância com a pesquisa fenomenológica, uma vez que assim como o pensa Morais e Dutra (2017), a experiência é o cerne da investigação deste modo de fazer pesquisa, o qual privilegia como o homem percebe o fenômeno, tal qual se mostra, e o desvelamento de suas experiências em coexistência no mundo.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Júlia, Pedro, Diego e Lucas1 são as nossas testemunhas, aqueles que protagonizam o nosso estudo. Júlia está há 43 anos no Mercado da Redinha, e viu a Ponte Newton Navarro ser construída. Pedro, apesar de jovem, relata desde a infância trabalhar no Mercado, já Diego trabalha no local há quatro anos, enquanto Lucas, assim como Pedro, ajuda a tia, desde a infância, nos serviços da barraca.

A partir das entrevistas nos foi possível destacar cinco núcleos de significado:

● A afinação acerca do som do suicídio; ● O ser testemunha de um suicídio: sobre ver e olhar a cena; ● Compreensões sobre o suicídio; ● A espetacularização da morte e do suicídio na ponte; ● Significados sobre o suicídio na ponte Newton Navarro.

A seguir, caminharemos junto às narrativas de nossas testemunhas permitindo o desvelamento de suas compreensões sobre o suicídio e de como o contato com esse fenômeno, a partir das ocorrências na Ponte Newton Navarro, impactou o seu viver.

 

A AFINAÇÃO ACERCA DO SOM DO SUICÍDIO

Ao realizarmos as entrevistas nos chama a atenção o som o qual o suicídio produz às testemunhas. Som este, seja do grito da pessoa em sofrimento ao longo da queda ou o som do corpo ao fazer contato com a água, que reverbera nas histórias trazidas por todos.

Intitulamos este tópico fundado na compreensão heideggeriana da condição do homem como um Dasein, compreendido como um ser-aí, ou seja, um ser lançado no mundo no qual estabelece uma existência inseparável dele (Sá, 2005). Esta vinculação do homem ao mundo se dá por uma condição de abertura a ele, sempre numa afetação, num humor, assim, produz uma afinação afetiva com o mundo. Sobre a afinação, Heidegger (1927, 2006), nos explica "a afinação do humor não realiza uma abertura no sentido de observar o estar-lançado, e sim de enviar-se e desviar-se." (p.195)

Retornando ao som do suicídio para os nossos participantes, percebemos que passa a ter um significado àqueles que ali convivem com essa realidade, passa a compor seu horizonte histórico, passa a ser nomeado como o "som do suicídio", o som da morte, afinados à disposição com que são no mundo, com que existem na relação com a ponte, com o dar fim à vida acompanhado por uma sonoridade. "Quando pula, ninguém vê, quando viramos as costas escutamos a zoada: 'PLÀ'! […] quando bate na água, a água abre e faz 'PLÀ', uma zoada muito alto" (Diego)

Diego reforça que tal som, "PLÁ", já o é familiar "só escuto a pancada, e quando escuto aquela zoada, a gente já sabe", desvelando que o suicídio convoca a todos mesmo quando tentam promover um desvio de não ver.

Sobre isso, Pedro também menciona o som que o suicídio na ponte tem "escuta uma zoada, já olha pra ponte". Ele ainda complementa ao relatar uma experiência em que viu uma pessoa pular em direção à própria morte. Neste suicídio, ocorrido no último dia do ano, Pedro estava no calçadão, quando olhou e viu uma pessoa em queda "eu olhei e já vinha aquela pessoa gritando, bateu na água e...sumiu."

Essa experiência convoca Pedro e cada um dos demais colaboradores a ser testemunha de um suicídio. É nesse som que deixam de ser meros observadores desconexos de uma realidade alheia, e passam a ser parte de um momento da vida de alguém: sua morte. E é também neste som que se rompe o silêncio acerca deste sofrimento.

Esse mesmo silêncio, representado por um não se falar sobre a morte - e principalmente sobre a morte como escolha - que desvela a dificuldade em se aproximar da existência do outro e da possibilidade de exercer algum cuidado, gesto este tão comum na atualidade. E assim, nesse distanciamento afetivo uns dos outros, seus sofrimentos também são encobertos pelo silêncio. Sobre isso, Pedro destaca sua percepção sobre algumas pessoas que se suicidam: "Aparentemente, tão bem, quando dá fé comete suicídio.", algo corroborado por Lucas ao dizer: "Que a gente não espera, ninguém sabe". Assim, o suicídio aparece como um verdadeiro monólogo partilhado na individualidade de cada um, que só se torna coletivo quando o mesmo som é escutado por todos.

Os sons que os suicídios passam a ter para nossos participantes desvelam a disposição e a abertura com que se vinculam ao mundo, numa afinação que passa a nomear a sonoridade que tal gesto pode ter. Ao reconhecer e tornar visível este som, o qual passa a ser remetido à dor, ao fim da vida, ao romper das águas que anuncia a morte. O suicídio, para eles, passa a fazer barulho e anunciar um som que diz: "acabou", sendo assim, convocados a tornar-se parte daquele momento, quando são levados a constatar o que seus sentidos já significaram: alguém acaba de pôr fim ao próprio viver.

 

O SER TESTEMUNHA DE UM SUICÍDIO

Critelli (2007) nos atenta para que testemunhar não significa apenas um olhar e ouvir, mas abrir e fechar espaço na existência para as coisas, as pessoas, para os modos de se viver. A autora nos lembra que "basta a qualquer coisa adentrar à vida de um grupo de pessoas, permanecer e durar por um espaço de tempo no seu cotidiano, para que, ali, ela se faça presença objetiva e constituinte dessa mesma comunidade" (p. 90).

Assim, sendo o suicídio algo que, de forma recorrente, se apresenta ao cotidiano dos comerciantes da Redinha, se torna parte desta comunidade, como visto na fala de Pedro; "a gente fica muito apreensivo com isso, se angustia muito da gente tá olhando e a qualquer momento pode cair uma pessoa".

Ser testemunha de um suicídio revela-se como um marco na vida desses indivíduos, sendo por muitos rememorado a partir do impacto do primeiro contato com essa experiência. Pedro narra suas afetações com o primeiro suicídio por ele testemunhado: "Eu só vi mesmo uma pessoa pular, aí eu não esqueço nunca, dia 31 de dezembro de 2008. Último dia do ano". Júlia também conta num tom vívido a experiência de testemunhar esse fenômeno, de forma que conseguimos até mesmo reconstruir imaginariamente tal cena: "Agora esse aí a gente viu e foi um grito só que todo mundo deu quando foi essa pessoa...O policial pegando na mão... Aí soltou, soltou. A coisa mais horrível. Aí todo mundo gritou, sentiu aquilo".

Sobre o impacto dos suicídios na vida daqueles que o testemunharam na Ponte Newton Navarro, Júlia ainda destaca: "A gente sente, acha isso doloroso, mas não podemos fazer nada, né? Continua nosso trabalho, pedindo a deus que não aconteça com ninguém." E ela complementa: "a gente ver um negócio desse é pra Deus me livre, mais nunca! É uma coisa horrível. A gente daqui já viu, foi a única vez que a gente viu".

Os entrevistados lembram as datas e descrevem o ocorrido com detalhes, quase que em um movimento de reconstrução, por vezes poética e por vezes concreta, dos últimos momentos de vida daquele que a pôs um fim, nos fazendo refletir que esta experiência está incorporada ao mundo deles.

O suicídio mobiliza todos aqueles ao seu redor, ao relembrar a nossa condição humana marcada pela finitude. O ser testemunha desse gesto extremo desperta a tematização da morte como possibilidade para si, sendo esse deparar-se revelador da vida que se vive. A angústia suscitada pelo testemunho aponta para a condição mais existencial de todos nós: o ser-para-a-morte. Diante da compreensão da nossa indeterminação enquanto ser, Heidegger (1927, 2006) aponta a morte como aquilo que representa a possibilidade mais concreta com a qual o homem pode contar.

Cada personagem dessa trama assume uma postura diferente em relação ao fenômeno que se concretiza, seja pela visualização do pulo, ou pelo barulho do grito e da queda. "É, na vida de outras pessoas a gente sente, porque nós somos humanos, tudo que acontece de ruim com os outros a gente sente do mesmo jeito" (Júlia).

A fala de nossa colaboradora desvela a angústia suscitada por essa vivência, por esse testemunho. O deparar-se com a morte e sua concretude é angustiante, tal afeto mobiliza em alguns a fuga para o modo impessoal, como forma de suportar a realidade, e em outros a possibilidade de tematização do vivido, a partir do contato com essa angústia. Esse modo de ser marcado pela imersão no cotidiano é trazido por Heidegger (1927, 2006) como decadência ou impessoalidade. Nesse modo de existir há um "encobrimento" limitante ao desvelamento do sentido, de modo próprio e pessoal, a partir da experiência (Sá, 2005).

Testemunhar a morte de alguém que é familiar, confere uma outra implicação com o contato com o suicídio, não é só o suicídio de alguém, mas sim de alguém que é parte do seu mundo, como exemplifica Pedro, o participante que parece se aproximar de forma mais pessoal e própria do fenômeno. Ele nos narra o suicídio de uma pessoa a ele próxima: "Aí, acho que com uns 2 anos depois a irmã dele faleceu...pulou da ponte. É, pra gente aqui foi um choque dela pular, porque a gente conhecia ela aqui tudinho".

Quando o suicídio envolve um outro que é significativo para a testemunha, ele evoca outras afetações e um poder-ver a morte daquele de outra maneira. Se por vezes o contato com a morte mobiliza uma angústia e por conseguinte uma fuga na cotidianidade, expressa em um voltar-se ao trabalho, num recolher-se em sua barraca, o suicídio de um conhecido é algo que não pode não ser visto.

Diante da inexistência de um espaço para a tematização do fenômeno por eles vivenciado, e da necessidade de seguir, a fuga para a cotidianidade aparece como principal estratégia para lidar com esse sofrimento. Para que seja possível trabalhar e conviver nas imediações da ponte, os comerciantes entrevistados passam a lidar de forma impessoal com o suicídio. Conforme Araújo (2007), o Dasein encontra-se inserido num mundo onde o discurso é sempre articulado e determinado anteriormente; antes de se apropriar de suas escolhas, vivências - dos outros e dele mesmo - já há um entendimento de mundo e seus horizontes, sendo eles da propriedade ou impropriedade. Segundo Heidegger (1927, 2006), o impessoal pertence aos outros, outros quais todos fazemos parte, essencialmente. A fuga se dá, fundamentalmente, pela angústia evocada no contato com o suicídio: ao deparar-se com uma temática tão mobilizadora, volta-se ao conforto do que já é familiar, do que se está acostumado a ver e vivenciar. "É, a gente se recolhe e sai…porque é difícil, né? ver um negócio desse" (Júlia).

De acordo com Werle (2003), a totalidade do Dasein é limitada pelo não-ser, sendo a morte um fenômeno da existência: ela só tem sentido para quem existe; comenta ainda que a morte só é possível de ser experimentada indiretamente, na morte do outro. Como vemos na fala de Júlia, há o medo pela possibilidade de contato com um ato que escancara a sua própria finitude, como o é o suicídio:

A gente faz, como diz a história, é o jeito né, que a gente vive disso aqui e a gente tem que se acostumar com essas coisas, porque nós vivemos aqui, vivemos disso. Aí tem que lidar, é o jeito. (Júlia).

Se torna normal. Quando você convive com aquilo se torna normal. No começo era pior, mas depois - "pulou uma pessoa da ponte"; a pessoa nem liga mais. (Pedro)

Percebemos, assim como o pensa Critelli (2007), que o suicídio enquanto fenômeno presente neste cenário adentrou a vida deste grupo, e, muito embora mobilizados pela angústia da finitude, tendam a não querer ver nem ouvir notícias, ainda assim o suicídio os evoca, tornando-os testemunhas de um lugar que carrega a possibilidade de morrer.

 

COMPREENSÕES SOBRE O SUICÍDIO

Ao longo das narrativas, é possível perceber que cada testemunha dá um significado ao suicídio, demonstrando sua compreensão sobre o fenômeno e sua forma de se relacionar com ele. Como já trazido anteriormente, o testemunho de um suicídio mobiliza e convoca o pensar sobre essa possibilidade. Dutra (2011) aponta que a angústia, suscitada por esse deparar-se com o ato de pôr fim à vida, faz surgir a necessidade de nomear e fazer compreensível esse fenômeno, a fim de aliviar o desespero de não saber.

Assim, vemos que ao longo das diferentes épocas, foram sendo dados significados e sentidos ao suicídio, no intuito de torná-lo compreensível e passível de controle e prevenção. A fenomenologia hermenêutica de Heidegger toma o conceito de horizonte histórico no debate sobre as compreensões possíveis a um fenômeno que se apresenta. O horizonte pode ser definido como as "pressuposições e interpretações a partir do modo com as coisas se apresentam em uma época historicamente construída" (Feijoo, 2018, p. 72). Assim, os discursos apresentados pelos entrevistados se fundam em um determinado horizonte que, ao mesmo tempo que reitera compreensões do passado, revela compreensões da contemporaneidade.

A moralidade, especialmente ligada ao discurso religioso, é ainda fortemente presente nas compreensões atuais sobre o suicídio. Esse discurso é bem presente nas falas de Julia ao proferir que "É uma coisa que só Deus não tando na vida dessa pessoa". É percebido em sua narrativa que a comerciante teme o suicídio e insiste muitas vezes em evitá-lo no seu cotidiano, como algo que a convoca de uma forma em que a angústia se torna insuportável. A entrevistada ainda acrescenta que:

Ninguém sabe o que se passa na cabeça de uma pessoa dessa. Só Deus sabe, e ele porque passou por uma coisa que ele não se pegou com Deus eu acho, pra tirar disso. Mas eu acho que é uma coisa que quem faz uma coisa dessa não tem amor a Deus, e outra, foi uma grande coisa pra pessoa poder virar o juízo sabe? eu acho que vira porque, Jesus, é muito triste! (Julia)

Feijoo (2018) ainda traz que, na contemporaneidade, há uma reiteração do discurso do sofrimento, de uma forma por ela definida como o grande legado socrático: a extirpação do sofrimento como projeto da ciência. Assim, assistimos à crescente patologização de expressões de sofrimentos do cotidiano, mais concretamente, pelos manuais que listam as diversas patologias, categorizando-as. Nesse cenário, o suicídio vem sendo, frequentemente, associado à depressão, sendo rapidamente popularizado e midiaticamente disseminado como explicação para o ato de pôr fim à vida. Tal compreensão também pôde ser vista nas narrativas dos entrevistados. Ao serem questionados sobre o que pensavam como motivos para que alguém desse fim à vida, Pedro respondeu "deve ser essa depressão, né? É só no que o povo fala é em depressão, depressão, depressão...somente nessa doença". Diego ainda traz: Eu acho que por preocupação, assim, depressão, né? A mulher que pulou da última vez, ela trabalhava em coisa de escola, e assim, a filha dela, a família dela veio pra cá quando ela pulou, disse que foi preocupação com a escola, não tava essas coisas e ela tava entrando em depressão (Diego).

Ao assumirmos nesse estudo uma perspectiva fenomenológica, compreendemos o sofrimento como inerente à existência. A fenomenologia dá destaque ao mundo da experiência, do vivido, como aquele capaz de dar significado e sentido a um fenômeno. O caso de Pedro nos permite enxergar essa significação através da experiência, uma vez que é ele o entrevistado que conta ter tido pessoas próximas de si que deram fim à própria vida. Por essa razão, suas compreensões quanto ao tema parecem diferenciar-se dos demais. Ele traz em sua fala o suicídio como uma escolha do outro, que faz da ponte seu meio de pôr fim a vida. Quando perguntado sobre o que pode influenciar a ocorrência de suicídios na ponte, diz:

Vindo pra cá se torna mais fácil. Mas também, eu acho que se não tivesse a ponte morria de qualquer jeito. Quando a pessoa bota na cabeça, qualquer forma vai morrer. Não pode acusar também só a ponte, porque quando a pessoa quer e não for pular da ponte, (cita outros meios de autodestruição). Se quiser, morre (Pedro).

Os entrevistados, ao serem interrogados sobre possíveis ações para prevenir o suicídio na Ponte, apontaram em sua maioria fiscalização e construção de estruturas impeditivas. Já Pedro, sinaliza estratégias de cuidado com aqueles que pensam em pôr fim à vida, para além da ponte. Dessa forma, as testemunhas significam o suicídio a partir do que é horizonte de sentido para elas. Por isso, as compreensões sobre este fenômeno nos dizem do que é mundo pra cada um dos colaboradores, convocando suas experiências.

 

A ESPETACULARIZAÇÃO DA MORTE E DO SUICÍDIO NA PONTE

Não é incomum que vejamos vídeos e fotos de tentativas de suicídio circularem nas redes sociais. Nesses vídeos, quase nunca é a angústia do outro que é evidenciada, mas seu rosto é colocado como ator de uma peça de tragédia, a ser assistida pelos telespectadores das imagens. Somos uma "sociedade do espetáculo", como refletia Debord (1997), nela: as imagens que se destacaram de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação (p. 13).

Muitas vezes, o suicídio também é registrado em imagens em que nos posicionamos apenas como meros espectadores, contempladores de um espetáculo que retrata a dor e o sofrimento de alguém que coloca a vida em seu limite mais extremo: a escolha por não mais viver. Sobre isso, Dutra (2012) reflete:

Já não é suficiente rompermos um relacionamento; agora, o importante é a sua publicização, de preferência, nas redes sociais. Portanto, é necessário publicar no Facebook, MSN e Orkut, se possível com fotos, a nossa dor e solidão, deixando que o nosso ethos, a nossa morada, perca os limites do seu território, confundindo-se e misturando-se com os outros, tornando-se, assim, impessoal e desenraizado da sua história. Como diz Heidegger (1981), somos "todos nós... ninguém" (p. 933)

Bauman (1999) denomina tal modo de ser como característico de uma Modernidade Líquida, onde cada um é convocado a assumir-se como platéia dos acontecimentos do mundo da vida, em uma transição do ser testemunha para o ser espectador. Como coloca Júlia ao dizer que: "[...]hoje ainda botam no face, porque tem celular, todo mundo tem celular. Passa direto. Filma, bota no face. Mas antigamente nem isso tinha[...]".

É nesse contraponto à questão do silêncio, como num jogo de extremos, que o discurso dos entrevistados evidencia essa espetacularização em torno da possibilidade de morte. Pedro, ao relatar as experiências de quando acontece um episódio, narra: "os clientes já tão aqui e começam a querer filmar, e uns se aperreiam, outros gritam 'pula'. Tem gente que grita 'pula!'". Tal movimento também é visto em outros entrevistados, como em Diego, ao reinterpretar o que já escutou das pessoas ao redor nesses episódios: "Pula, corno" e complementa: "Quer pular não, que se quisesse pular tinha pulado já".

Portanto, nesse discurso da carência da empatia, do tempo para lidar com a dor do outro diante de uma realidade onde as coisas acontecem cada vez mais rápidas, mais técnicas, - imperando o imediatismo, a eficiência e o consumo - que é impossível acompanhar "o ritmo da experiência de existir", como evidencia Dutra (2012, p.933).

A impropriedade, característica deste modo de ser espectador da cena, nos coloca à espera apreensiva do "grand finale". Nesse modo de existir impessoal, o suicídio convoca a ser visto, em especial, quando da possibilidade da consumação do seu ato, como em um espetáculo. No entanto, evoca-se também a angústia mobilizada pela finitude, afastando-os do sentir, como vemos na fala: "O povo corre logo pra olhar e depois volta pros seus lugares. Cada um volta pro seu canto, se tiver bebendo, se tiver comendo. Eles se aglomeram pra olhar se vai e volta" (Júlia).

Assim, nos distanciamos de nós mesmos e do mundo, e é nesse sentido que o suicídio pode aparecer como uma ferramenta de comunicação última: uma busca de convocar o olhar alheio através do que é tratado como "espetáculo", um último monólogo em uma peça que não foi assistida, em ambos sentidos da palavra.

 

SIGNIFICADOS SOBRE O SUICÍDIO NA PONTE NEWTON NAVARRO

Pontes em todo mundo são construídas para ligar pessoas, cidades, lugares, no entanto, para alguns, a ponte é o caminho para desligar-se da vida.

Os colaboradores da pesquisa habitam a Redinha, de forma a serem participantes ativos da história da Ponte Newton Navarro. Também conhecida como "ponte de todos", esta surge com a promessa de unir a cidade, sendo caminho para todos aqueles que precisam cruzar Natal. Os entrevistados relatam as expectativas e alegrias associadas à chegada da ponte, especialmente para aqueles que próximo à ela trabalhavam. "A gente ficou muito animado, porque a ponte foi uma coisa muito boa pra gente. Pra quem vem, pra quem sai daqui pra ir pro médico, fazer uma compra, já é ligeirinho" (Júlia).

A ponte trouxe muitas coisas boas para os comerciantes de suas redondezas, porém, trouxe também uma nova realidade não esperada por eles: o testemunho de suicídios. Ao ser questionado sobre ter conhecimento quanto ao suicídio antes desse deparar-se, Lucas nos conta "Não, porque antigamente não tinha ponte. (...) Aí depois construíram a ponte e nós se ligamos do suicídio". Dessa forma, aquele novo caminho, presente para a Redinha ao aproximar pessoas e lugares, torna-se também caminho que desvela a morte como possibilidade.

Assim, como os participantes da pesquisa viviam seu cotidiano sem pensar na possibilidade de suicídios, vivemos na facticidade em um encobrimento da condição existencial do Dasein: o ser-para-a-morte (Sá, 2005). A ponte passa a ser para aqueles que ali habitam um cenário de evocação da morte enquanto possibilidade, passando a tematizá-la como possibilidade para todos nós:

É porque, eu acho assim, muitas vezes a pessoa fica até com medo de passar na ponte. Porque eu mesmo, vou lhe dizer, o povo ainda sai caminhando. Deus me livre! Eu não gosto nem de olhar. Passo todo dia por cima e não olho nem pra esses caminhos, com medo! (Júlia)

O que para uns é caminho para o trabalho, para outros é caminho para a realização existencial da finitude. Diante desse cenário, cada testemunha dessa trama encontra seus próprios caminhos para lidar com essa realidade e com a angústia por ela mobilizada. Enquanto alguns conseguem com mais facilidade encobrir-se dessa possibilidade, precisando para isso mergulhar no cotidiano impessoal; outros, como Julia e Diego, seguem nessa tentativa de se acostumar com esse contexto, ainda suscitados pela evocação do poder-morrer que aqueles caminhos representam. "Mas pior que lá em cima tem um negócio ruim, a pessoa fica se arrepiando. Um negócio ruim que a pessoa pula mesmo. Já andei e é horrível!" (Diego).

Heidegger (1927/2006) nos lembra que a vivência da nossa finitude no impessoal faz com que nós rememoremos tal condição existencial a partir da morte do outro. Assim, podemos refletir que o caráter de nosso ser-para-a-morte nos é evocado pela morte do outro. No caso da Ponte, evocado pelos suicídios ali cometidos. Este lugar, então, adquire o significado do próprio poder-morrer, como visto nas falas de Diego e Júlia que presentificam no próprio lugar a representação da morte, descritas ali como "força", "medo", "um negócio ruim".

 

CONCLUSÃO

O mercado da Redinha, local de nossa pesquisa, é parada tradicional da cidade, pedaço de história do litoral, detentor de iguaria culinária identitária do povo potiguar e, desde a construção da Ponte Newton Navarro, se tornou também espaço de testemunho dos suicídios e tentativas de suicídio ocorridos nesta localidade. Encontramos barraqueiros há mais de 40 anos na localidade, personagens vivos que, tal qual parte presente da história, acompanharam o crescimento da região, as mudanças urbanas, a construção da ponte, celebrada como aquela que uniria a cidade, que traria a tão sonhada proximidade geográfica e a liberdade de ir e vir com mais agilidade aos moradores da Redinha. No entanto, tal cenário trouxe outro componente: suicídios. Este fenômeno entranhado na existência humana, de números alarmantes, tal qual o salto, se apresenta para eles de maneira vertiginosa. Eles descobriram que o suicídio faz barulho, e é impossível de não ser notado, até mesmo quando não é por eles visto. Tão difícil que os impele a encontrar um modo de viver ali, seja pelo medo que aquele que está a postos na ponte de realizar o que mais temem, seja pela banalização dos corpos que caem, os levando a adotar um certo "costume", um modo de lidar com algo que se tornou parte da cotidianidade. O suicídio se tornou parte daquele cenário, os corpos achados no mar são parte do dia a dia. Corpos cujo sofrimento foi silenciado, numa queda livre e cujo impacto mudou o cenário de um lugar.

Aos que supostamente testemunham tais cenas, o desejo é de não ser alguém que testemunha tal visão. Estratégias rotineiras tornaram possível isso: entram em seus comércios, envolvem-se em suas atividades, porque o suicídio faz barulho e testemunhar tal ato é também ser parte dele, e isso é mobilizador de sofrimento, angústia e os desvia do contato com tal realidade, os fazendo empreender fuga na cotidianidade. Afinal, como manejar algo que em nosso horizonte histórico sempre foi revestido de forte tabu e interdição?

O suicídio na ponte nunca passa em vão, muito embora seus números sejam invisíveis. Para os comerciantes, participantes desta pesquisa, o suicídio convoca a dor, a própria fé, a força de viver, o sentido da vida. Assim, tal qual maré que quando cheia, leva os corpos, todos lançam ao mar suas lembranças sobre o assunto, num silêncio partilhado por todos, mergulhados na impessoalidade do viver, impulsionados pela possibilidade de morrer que a ponte passou a abrigar.

Tal pesquisa evoca a necessidade de desenvolver outros estudos, com outras categorias que também estão nos arredores da Ponte e lidam diretamente com os suicídios: os pescadores e mergulhadores. Para além disso, destaca-se a necessidade de falar sobre o tema, de perceber que o suicídio afeta muito além dos familiares e amigos daquele que morre, mas também aqueles que se relacionam com o ato, direta ou indiretamente.

 

Referências

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Notas sobre as autoras:

Ana Karina Silva Azevedo - Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal-RN. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5609-5975Email: anakarinaazevedo@hotmail.com

Amanda Melo Queiroz da Costa - Discente de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal-RN. E-mail: amanda.melo98@hotmail.com

Olga O Maria Hawes Fernandes de Oliveira - Discente de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, Natal-RN. E-mail: olga_hawes@hotmail.com

 

Recebido em: 13/04/2020
Aprovado em: 29/08/2020

 

 

1 Os nomes utilizados foram trocados por nomes fictícios preservando o sigilo da identidade dos participantes. Os nomes escolhidos foram sinalizados pelos colaboradores da pesquisa.

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