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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo77 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo77

 

Mulheres em situações de violência doméstica acompanhadas em um Centro de Atenção Psicossocial

 

Women in Situations of Violence Accompanied to a Psychosocial Care Center

 

Mujeres en Situaciones de Violencia Acompañadas en un Centro de Atención Psicosocial

 

Ioneide de Oliveira Campos; Yasmim Bezerra Magalhães; Antonia Angulo-Tuesta

Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

Descrever as características socioeconômicas e da exposição à violência de mulheres acompanhadas em um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS), e analisar a compreensão dos profissionais acerca dessa realidade. Estudo quali-quantitativo que contemplou o inventário sociodemográfico e o histórico da violência de 33 mulheres, e a análise das narrativas de seis profissionais de saúde. A violência doméstica contra a mulher atravessa mais de uma etapa de vida das entrevistadas. As principais formas são a violência sexual e física, principalmente por (ex) parceiros íntimos. As profissionais de saúde compreendem a violência em aspectos individuais e sociais permeadas pelas relações de gênero e poder. Não há consenso sobre algumas ações, como a intersetorialidade com as áreas jurídicas e de proteção a mulher, questão da notificação da violência e o fluxo de atendimento das mulheres. A violência doméstica é um fenômeno expressivo e os CAPS apresentam forte potencial para o empoderamento feminino.

Palavras-chave: Saúde Mental; Violência Contra a Mulher; Violência Doméstica; Violência de Gênero


ABSTRACT

Describe the socioeconomic characteristics and the exposure to violence of women monitored in a Psychosocial Care Center II (CAPS), and analyze the professionals' understanding of this reality. Quali-quantitative study that included the sociodemographic inventory and the history of violence of 33 women, and the analysis of the narratives of six health professionals. Domestic violence against women goes through more than one stage of the interviewees' lives. The main forms are sexual and physical violence, mainly by (ex) intimate partners. Health professionals understand violence in individual and social aspects permeated by gender and power relations. There is no consensus on some actions, such as intersectorality with the legal and women's protection areas, the issue of notification of violence and the flow of care for women. Domestic violence is an expressive phenomenon and CAPS have a strong potential for female empowermentment

Keywords: Mental Health; Violence Against Women; Domestic Violence; Gender Violence


RESUMEN

Describir las características socioeconómicas y la exposición a la violencia de las mujeres monitoreadas en un Centro de Atención Psicosocial II (CAPS), y analizar la comprensión de los profesionales sobre esta realidad. Estudio cuali-cuantitativo que incluyó el inventario sociodemográfico y la historia de violencia de 33 mujeres, y el análisis de las narrativas de seis profesionales de la salud. La violencia doméstica contra las mujeres atraviesa más de una etapa de la vida de las entrevistadas. Las principales formas son la violencia sexual y física, principalmente por parte de (ex) parejas íntimas. Los profesionales de la salud entienden la violencia en aspectos individuales y sociales permeados por las relaciones de género y poder. No existe consenso en algunas acciones, como la intersectorialidad con las áreas legal y de protección de la mujer, el tema de la notificación de violencia y el flujo de atención a la mujer. La violencia doméstica es un fenómeno expresivo y los CAPS tienen un gran potencial para el empoderamiento femenino.

Palabras clave: Salud Mental; La Violencia Contra las Mujeres; Violencia Doméstica; Violencia de Género


 

 

INTRODUÇÃO

A violência contra a mulher constitui-se em violação dos direitos humanos das mulheres e trata-se de fenômeno amplamente difundido nas sociedades perpassando todas as classes sociais, econômicas, culturais, grupos étnicos e raciais. A violência contra a mulher resulta da complexa relação entre fatores individuais, relacionais, comunitários e sociais; com raízes profundas nas relações desiguais de poder e de distribuição de recursos entre homens e mulheres, na sexualidade, na identidade e nas instituições sociais que se expressam em leis, políticas e normas sociais que privilegiam os direitos dos homens (Tausch, 2019; Semanhegn, Torpey, Assefa, Tesfay & Ankomah., 2019; Sanz-Barbero, Barón, Vives-Cases, 2019; García-Moreno, Zimmerman, Morris-Gering, Heise, Amin, Abrahams, Montoya, Bhate-Deosthali, Kilonzo & Watts., 2015).

Estudos revelam que a combinação de fatores políticos, econômicos e sociais em nível macro com variáveis em nível individual e comunitário predispõe a probabilidade de um indivíduo ser vítima ou perpetrar abuso. Heise e Kotsadam (2015) demonstram, em análise ecológica a partir de 88 inquéritos sobre a violência doméstica, variações na prevalência de violência física e sexual entre parceiros, fortemente correlacionadas com as normas associadas à autoridade masculina sobre o comportamento feminino, os preceitos que justificam a violência conjugal e a extensão das desvantagens práticas e legais das mulheres, quando comparadas com o acesso à terra, propriedade e outros recursos produtivos para os homens.

Heise e Kotsadam (2015) observam também a forte associação negativa entre a violência do parceiro atual e o produto interno bruto (PIB) por pessoa, que não é significativa na presença de medidas relacionadas com normas, o que sugere que o PIB é um marcador de transformações sociais que acompanham o crescimento econômico mas é pouco provável que se relacione com os níveis de violência do parceiro. Assim mesmo, estudos identificaram a forte associação entre a educação de uma menina e a redução do risco de violência entre parceiros em países onde o abuso de mulheres é uma norma e onde não é; e é menos prevalente em países com uma alta proporção de mulheres na força de trabalho formal (Kerman & Betrus, 2020; Sanz-Barbero, Barón & Vives-Cases, 2019; Abate, Wossen & Degfie, 2016).

A violência doméstica e a violência sexual são as formas mais comuns de violência contra a mulher. Estima-se que a violência sexual afeta a 35% de mulheres no mundo por parceiro íntimo ou não e 39% dos homicídios de mulheres foram por (ex) parceiros íntimos (WHO, 2013). A violência sexual por não parceiros também é frequente, 7% de mulheres no mundo referiram essa forma de violência (WHO, 2013).

As mulheres e meninas em situação de violência apresentam sérias consequências à sua saúde física, mental e reprodutiva, o que se amplia aos filhos dessas mulheres. A violação e a violência doméstica (VD) são causas significativas de incapacidade e morte entre mulheres em idade reprodutiva nos países industrializados e em desenvolvimento (Bettio & Ticci, 2017; EIGE, 2017; WHO, 2013; OPS, 2013). Cerca de uma em cada três mulheres no mundo se vê afetada pela violência do parceiro íntimo (VPI) ao longo de sua vida. Entretanto, essa violência distribui-se desigualmente. Nos países de alta renda a prevalência é de menos de 4% no último ano, enquanto nos países de baixa renda chega a pelo menos 40% (Wemrell, Lila, Gracia & Ivert, 2020; Semanhegn et al., 2019; Bettio & Ticci, 2017; Heise & Kotsadam, 2015). O relatório da OMS aponta uma elevada prevalência da VPI nas Américas, 36% das mulheres referiram ter sofrido alguma forma de VPI (WHO, 2013).

No Brasil, Rodrigues, O'Dwyer, Andrade, Monteiro e Lino (2017) demonstraram aumento significativo da violência doméstica contra as mulheres, entre 2009 e 2014. As taxas médias gerais de notificações quase triplicaram de 2009-2010 para 2013-2014, incrementando-se de 6.40/100.00 a 18,19/100.000. A Organização Mundial da Saúde (2014) assinalou aumento do número de mortes violentas de mulheres em 230% nas três últimas décadas. O Mapa da Violência também mostrou que, dos 4.762 casos de feminicídio cometidos em 2013, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que, dentro desse percentual, 33,2% foi realizada por parceiros ou ex-parceiros (Waiselfisz, 2015). A violência contra a mulher continuou a crescer, como demonstra o estudo Atlas da Violência de 2018, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) (2018) 4.645 homicídios em 2016, o que representa uma taxa de 4,5 homicídios para cada 100 mil brasileiras. Roraima, Pará e Goiás foram os estados com taxas de homicídios mais elevados (10; 7,2; 7,1, respectivamente), enquanto os estados com as menores taxas foram São Paulo, Piauí (3,0) e Santa Catarina (3,1). Assim mesmo mostra que, quando o perpetrador era conhecido da vítima, 54,9% dos casos a violência sexual eram recorrentes e 78,5% dos casos aconteceram na própria residência (IPEA & FBSP, 2018).

Em relação ao acesso aos serviços de saúde pelas mulheres em situação de violência elas buscam frequentemente os serviços de atenção primária, secundária e terciária por problemas de saúde direta e indiretamente relacionados com a violência e o abuso. De modo geral, estudos apontam que as mulheres falam da violência quando sentem que esses serviços podem garantir condições em que respeitam a confidencialidade dos seus relatos, validam as suas experiências, reconhecem os seus sentimentos e respeitam a sua autonomia (Ellsberg, Arango, Morton, Gennani, Kiplesund, Contreras & Watts, 2015; Michau, Horn, Bank, Dutt & Zimmerman, 2015).

De forma específica, a saúde mental das mulheres em situação de violência encontra-se seriamente afetada e aprofunda-se pelas desigualdades estruturais e de gênero. Estudos demonstram a associação causal bidirecional entre agravos mentais e abuso e violência doméstica; por um lado, observa-se tanto a associação entre depressão e consequentemente VD como também que a VD aumenta a probabilidade de depressão entre mulheres sem história prévia de depressão (Oram, Khalifeh & Howard, 2017).

Assim, torna-se necessário que os profissionais de saúde mental tenham consciência do impacto da violência contra as mulheres na saúde mental e sejam capacitados de forma adequada para a identificação dessa situação, a prevenção de novas violências e a construção de respostas eficazes para tratar as consequências na saúde mental. A questão fundamental diz respeito à compreensão dos profissionais sobre as dinâmicas e complexidades do abuso e violência doméstica a fim de evitar culpabilizar as vítimas já desfavorecidas pelos determinantes sociais da violência contra as mulheres e os transtornos mentais, como a pobreza e a desigualdade de gênero (Oram et al., 2017; Meinhard & Maia, 2015).

Esse artigo descreve as características socioeconômicas e da violência nas mulheres acompanhadas em um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS II), e analisa de que forma os profissionais de saúde compreendem a violência contra a mulher, quais são as ações, as dificuldades e os desafios para a identificação e atuação junto às mulheres em situação de violência.

 

MÉTODO TIPO DO ESTUDO

Trata-se de estudo quali-quantitativo, descritivo e exploratório. A escolha pela abordagem quali-quantitativo implicou em um posicionamento de complementaridade das duas abordagens, de combinação e inter-relação dos elementos e de técnicas de produção dos dados (Creswell & Clark, 2013), com o propósito de aprofundar o entendimento sobre as mulheres em situação de violência acompanhadas em um serviço de saúde mental.

 

CENÁRIO DO ESTUDO

O cenário deste estudo foi o Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), considerado um dispositivo territorial do Sistema Único de Saúde, que atende adultos com transtornos mentais graves e persistentes. É constituído por equipe multidisciplinar, composta por psicólogo, enfermeiro, médico psiquiatra, técnico de enfermagem, terapeuta ocupacional e assistente social. A atenção em saúde mental ofertada pelo CAPS envolve acolhimento, grupos terapêuticos, grupos de trabalho e geração de renda, acompanhamento aos familiares, acompanhamento psiquiátrico, psicológico e social. Tem por objetivo a promoção da cidadania, autonomia e inclusão social, por meio da reabilitação psicossocial.

 

PROCEDIMENTOS

Após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ceilândia (FCE) da Universidade de Brasília, por meio do Protocolo nº 3.004.602 /2018., foi acordado com a gerência do Centro de Atenção Psicossocial - CAPS II da região de Taguatinga, Brasília, Distrito Federal, a coleta dos dados.

O estudo teve duas etapas: a primeira, descreve a situação socioeconômica de mulheres em situação de violência, entre os anos de 2015 a 2016, por meio de um levantamento sociodemográfico realizado em prontuários, entre os meses de maio a julho de 2017, especificamente em fichas de acolhimento e anamnese psiquiátrica, considerando as seguintes variáveis: naturalidade, região administrativa de moradia, escolaridade, renda, benefício social, ocupação, estado civil, número de filhos e encaminhamento ao CAPS. Entre as 113 mulheres identificadas das regiões administrativas de Ceilândia e Taguatinga selecionou-se 33 que tiveram algum episódio de violência ao longo de suas trajetórias de vida. Ainda, foram coletados os dados referentes aos tipos e associação entre as violências (sexual, física, doméstica, psicológica e moral) e autoria das agressões. Para a análise descritiva foram utilizadas as variáveis em suas categorias originais, enquanto que para a análise de associação consideramos apenas as variáveis escolaridade, ocupação e renda. Os dados das fichas das mulheres selecionadas foram digitados em um banco de dados Microsoft Excel para posterior análise.

A segunda etapa, realizada entre os meses de julho e agosto de 2019, deu-se através de nova consulta aos prontuários das mulheres selecionadas, com objetivo de identificar a atuação dos profissionais frente às situações de violência relatadas pelas mulheres. Essas informações foram coletadas a partir dos registros dos atendimentos psiquiátricos, psicológicos e do serviço social. Ainda, a pesquisadora responsável pelo estudo fez contato com os profissionais, a fim de convidá-los para uma entrevista. Após o aceite dos participantes foi agendado dia e horário por eles sugeridos, favorecendo a rotina dos acompanhamentos no CAPS, como condição facilitadora para a coleta do material. Seis profissionais de saúde participaram do estudo (dois de enfermagem, dois de psicologia, um de terapia ocupacional e um de serviço social), cinco dos quais eram mulheres, com idades entre 29 e 48 anos, três casadas, duas solteiras e um divorciado. O tempo de formação variou entre 8 e 25 anos e de atuação no CAPS entre 2 e 11 anos. Utilizou-se um roteiro baseado nas seguintes questões: formação profissional, percepção da violência doméstica e atuação profissional diante da violência doméstica. O tempo de duração das entrevistas foi de 20 a 30 minutos, as quais foram gravadas e transcritas. Todos os participantes dessa etapa, foram informados dos termos da pesquisa e assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

 

ANÁLISE DOS DADOS

Utilizou-se a análise estatística para o levantamento sociodemográfico e para a análise das narrativas das entrevistas expôs-se a análise de conteúdo temática (Bardin, 2009), partir das falas dos profissionais sobre a compreensão dos determinantes da violência contra a mulher no âmbito doméstico, a identificação e atuação diante da violência, as dificuldades, os avanços e os desafios para o atendimento integral às mulheres. A referência ao conjunto de profissionais realizou-se da mesma forma que as entrevistadas, considerando-se que a maioria é mulher, tendo as falas identificadas pela formação profissional.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO CARACTERÍSTICAS SOCIODEMOGRÁFICAS DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

Os resultados centram-se nas 33 mulheres (29,5%) em situação de violência, considerando-se em cada variável o total de registros encontrados. A maioria das mulheres (53%) atendidas no CAPS procedia da região Centro-Oeste do país, seguida da região Nordeste (33,3%); 36% residem na Ceilândia e 27% em Taguatinga, que são as regiões mais populosas do DF. Sobre a escolaridade, os dados demonstraram que 46,4% concluíram o ensino médio, mas 32% tinham apenas o ensino fundamental. A renda familiar indicou que 70,6% recebiam entre um a três salários mínimos. No que se refere à ocupação, 67,9% exerciam algum trabalho que não exigia nenhuma escolaridade e 21,4% exigia escolaridade. Quanto à situação conjugal a maioria das mulheres relatou ser solteira (64,5%) no momento do atendimento e 51,8% tinham entre dois e três filhos. Em relação aos benefícios sociais 44% não recebiam e 22% das mulheres eram beneficiárias do programa Bolsa família, 11% recebia o Benefício de prestação continuada, 5,6% auxílio doença e 5,6% tinha pensão.

Pesquisas brasileiras sobre caracterização sociodemográfica de usuários de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS II) demonstraram que o baixo nível de escolaridade, baixa renda e a vulnerabilidade social são variáveis relevantes para a análise das condições de vida das pessoas que procuram os serviços de saúde mental. Estes estudos ainda evidenciam uma prevalência de mulheres em atendimento nesses serviços (Campos, Ramalho & Zanello, 2017; Costa, Coelho, Neto, Marques & Lotif, 2015; Barbosa, Meire, Neri & Gondin, 2020).

Ao realizar a análise de associação entre a ocorrência da violência e as condições de trabalho da mulher (escolaridade, ocupação e renda) observou-se que as associações analisadas não foram significativas neste grupo de estudo. Esse resultado explica-se por se tratar de uma amostra pequena que afeta diretamente na precisão das estimativas.

Porém, a associação entre nível de escolaridade, baixa renda e ocupação menos qualificada aumenta as possibilidades de vivenciar situações de violência nas meninas e mulheres como demonstram estudos internacionais e nacionais (Semanhegn et al., 2019; Tausch, 2019; Bettio & Ticci, 2017; Heise & Kotsadam, 2015; García-Moreno et al., 2015; IPEA & FBSP, 2018). Em revisão sistemática de estudos sobre fatores relacionados com a violência doméstica contra a mulher, Semahegn et al. (2019) observaram que mulheres sem ou pouca escolaridade têm quase o dobro da taxa de prevalência de sofrer qualquer forma de violência por parceiro íntimo em relação àquelas que frequentaram o ensino médio ou superior. Assim mesmo, mulheres com ensino superior a diferença dos seus maridos tinham menos possibilidades de vivenciar violência daquelas mulheres com igual ou menos escolaridade que seus maridos. A escolaridade mostrou-se significativamente protetora contra a violência por parceiro íntimo, tanto para mulheres como vítima quanto para homens como agressores.

Nas análises de Semahegn et al. (2019) e Tausch (2019) verificaram que mulheres em trabalhos pouco qualificados e que dependiam economicamente dos seus parceiros tinham mais probabilidades de serem vítimas de violência. Enquanto mulheres com seus próprios negócios ou envolvidas em diferentes tipos de trabalho tinham 50% menos probabilidade de vivenciar violência pelo parceiro se comparadas com mulheres desempregadas ou que não tinham seus próprios negócios. As melhores condições econômicas das mulheres as protegem diante da violência como demonstra o estudo de Bettio & Ticci (2017) em relação às mulheres dos países da União Europeia.

Entre os registros encontrados (18), 55,6% das mulheres foram encaminhadas ao CAPS após atendimento hospitalar, 27,8% das quais foram atendidas na urgência hospitalar. Esse encaminhamento pressupõe que os profissionais de saúde buscam a articulação entre os diferentes pontos da rede de atenção em saúde, entre a atenção secundária e primária, a fim de garantir a continuidade do cuidado para as mulheres em situação de violência nos CAPS.

Na totalidade dos prontuários, com exceção de dois, verificou-se na ficha de acolhimento os seguintes relatos da violência: abuso sexual; agressão física pelo ex marido; estupro na infância e adolescência por parentes próximos; maus tratos pelo esposo, humilhações; agressões verbais e físicas por parte dos filhos; assédio na adolescência; ex marido tentou matá-la diversas vezes; agressão verbal no trabalho; estupro no casamento, marido alcoólatra, agredia a mulher e filhos; cárcere privado; abusada pelo tio por 5 anos; sequestro da filha com tentativa de homicídio pelo ex marido e abuso sexual da filha de 10 anos; ansiedade e depressão após ter sofrido violência física por parte do ex companheiro.

Entretanto, as formas de violência não se explicitaram nos seguintes atendimentos, o projeto terapêutico com as abordagens e as alternativas que podiam ser construídas entre as mulheres e os profissionais de saúde dos serviços de saúde mental.

Destaca-se que, as violências têm uma repercussão importante na saúde, sendo estas repercussões abordadas no interior dos serviços que, ao mesmo tempo que acolhem os efeitos, tornam sua causa invisível, especialmente aqueles que fazem os diagnósticos, pois terminam por esgotar sua intervenção nesse plano, em que a violência é mascarada por sinais e sintomas (Schaiber, D'Oliveira, Falcão & Figueiredo, 2005). Campos & Zanello (2016), analisaram os diagnósticos, sintomas e violências sofridas por mulheres atendidas em um CAPS, a partir de uma perspectiva de gênero e saúde mental. As autoras concluíram que os sintomas por elas apresentados são compreendidos de um modo que não estabelece possível relação entre o transtorno, a estrutura socioeconômica, as relações de gênero e o histórico da violência e, portanto, são apenas diagnosticados e medicalizados, visando à sua remissão. Outro estudo também observou a invisibilidade da violência nesses serviços, ou seja, além de não ser notificada, não é entendida como fator configurador dos próprios transtornos diagnosticados nas mulheres (Zanello, 2014).

Vários estudos no país apontam as limitações das práticas das equipes de saúde mental e de saúde da família diante da violência contra a mulher (Silva, Padoin & Vianna, 2015; García-Moreno et al. 2015b, Michau, Horn, Bank, Dutt & Zimmerman, 2015). Silva, Padoin e Vianna (2015) assinalam a falta de articulação da rede de atenção, a não utilização do protocolo e fluxo de organização entre níveis de atenção à saúde e a ineficiência dos setores de justiça, assistência social e segurança que na opinião dos profissionais obstaculiza a denúncia da violência pelas mulheres o que gera descrença no serviço jurídico e o despreparo dos profissionais. As melhores respostas e intervenções diante da violência apontam o fortalecimento das redes de enfrentamento (prevenção, responsabilização, assistência e garantia de direitos) e das redes de assistência que articulam os setores de saúde, justiça e assistência social (WHO, 2013; OPS, 2013).

 

FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A violência sexual e a violência física foram as principais formas de violência registradas nos prontuários das mulheres atendidas no CAPS II, as quais relacionam-se ao espaço doméstico (Tabela 1). Na maioria dos registros verificou-se que as mulheres relataram ter sido vítimas, fundamentalmente, de um tipo de violência (78,8%). Em alguns prontuários os profissionais de saúde registraram sérias ameaças à saúde e à vida delas e de suas filhas, como tentativa de morte e cárcere privado, sequestro e abuso sexual das filhas e os efeitos diretos na saúde mental destas mulheres como ansiedade e depressão.

 

 

A COMPREENSÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO PELOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE DO CAPS

Os profissionais de saúde entrevistados percebem a violência contra a mulher como um problema bastante frequente e "alarmante" que se expressa de forma persistente na sociedade, responsável por influências prejudiciais em meninas e mulheres ao longo de suas vidas. Os entrevistados percebem que a maioria das mulheres atendidas no acolhimento do CAPS relata algum tipo de violência. Essa percepção revela-se nas seguintes falas:

As mulheres, elas já vêm com uma carga maior, né? De histórico de violência, desde a infância às vezes, com os pais, de ter sofrido algum tipo de abuso, relacionamento com os próprios maridos, com cônjuges né? Violência doméstica violência sexual, violência física, violência psicológica principalmente (enfermagem 2)

No caso da mulher é mais evidente, é uma violência mais predominante (...) De violência doméstica porque, muitas vezes, é feita pelo próprio marido ou pelo pai, pelo padrasto, tio.. (psicologia 1)

É impressionante! O número é alarmante de mulheres que eu atendi que tinham alguma história relacionada à violência doméstica, com marido, com pai, com tio, com irmão e por aí vai, uma coisa assustadora (psicologia 2)

Em confluência com a observação dos servidores, no que tange à violência contra às mulheres advinda de um histórico germinado no seio familiar, a pesquisa de Barbosa, Souza e Freitas (2015) aponta que o desamparo dessas vítimas é resultado de relações familiares adoecidas, provocadoras de permissividade, cegueira e surdez em meio às denúncias de sofrimento das mulheres. Para os autores esse "silenciar" do ambiente revela um contexto social adverso da família, agravados quando se trata de mulheres com transtornos mentais, as quais restritas em sua autonomia encontram maiores dificuldades de enfrentamento da violência.

Estruturas políticas, sociais e de gênero que legitimam normas no que diz respeito à autoridade masculina sobre a vida das mulheres, que justificam relações desiguais de poder e de distribuição de oportunidades e recursos entre meninas e mulheres e meninos e homens, que regulam a sexualidade e a identidade explicam a complexidade da violência contra a mulher no âmbito doméstico (Tausch, 2019; Semanhegn et al., 2019; Wemrell, Lila, Garcia & Ivert. 2020, Bettio & Ticcim 2017).

Para os profissionais as repercussões na saúde das meninas e mulheres, em especial, na saúde mental é incontestável, de modo que estas situações são disparadores para bloqueios emocionais, o que muitas vezes as impede de reconhecer a situação de violência, além de limitar a busca de alternativas para superá-la; na construção de suas trajetórias laborais; na expressão dos seus afetos e sentimentos e na participação ativa na comunidade.

Eu acho que o fato de a gente trabalhar em um CAPS, lugar onde tem pessoas com transtorno mental, nos faz perceber que o transtorno tem a ver com a violência. Não é uma violência que ela está sofrendo agora, mas que desde pequena... Quando você vai ver o histórico, lá atrás tem um histórico de abuso, de uma relação abusiva, de conflitos familiares intensos, que ao longo da vida a pessoa conseguiu se sustentar, aí casou e teve filhos, viveu outras coisas, mas quando ela revive outras violências e conflitos entra numa crise psicológica, psiquiátrica (...) a associação entre violência e transtorno mental é muito forte (psicologia 1)

Algumas delas não tem noção de que o mínimo que elas sofrem em casa é uma violência, 'eu sou restrita de cortar o meu cabelo,' 'eu sou restrita de usar um batom,' 'eu sou restrita de trabalhar'. Coisas que são muito pequenas e elas não conseguem perceber porque acham que isso é um cuidado, um zelo que esse companheiro tem e não percebem que isso agride de alguma forma (assistente social)

Era uma coisa tão banal na história delas, tirando os casos de estupro claro né, porque aí é outra coisa. Mas a violência psicológica, a humilhação de estar sempre sendo colocada pra baixo, sempre desvalorizada, isso se torna uma coisa natural (...) Elas repetem esse discurso nos atendimentos, que é assim mesmo, o homem é assim, a sociedade é desse jeito, elas não falam com essas palavras (psicologia 2)

O estudo de Santos e Moré (2011) apontou a presença de emoções ambivalentes das mulheres em torno de seus agressores. Essa condição se revela pois o parceiro pode apresentar algum vínculo afetivo e de cuidado, ou seja, a busca por afetos masculinos pode trazer por parte das vítimas dificuldade em reconhecê-los em sua agressividade e violação de direitos. As diversas formas das mulheres silenciarem-se incluem ainda o medo da solidão, a intenção de manter o cônjuge na função paterna para os filhos, condições financeiras precárias, ou, ainda, por se sentirem culpadas pela conduta de seus parceiros.

violência contra a mulher foi mencionada pelos técnicos a partir de seu reconhecimento na representação familiar brasileira enquanto prática, predominantemente, permeada pelas relações de gênero e poder, atribuídas à forte influência do patriarcado, da cultura sexista e machista. Esse cenário resultou no papel de subordinação das mulheres na sociedade em resposta à uma violência histórica a qual, ainda hoje, constrói disparidades nos papéis sociais e formas de contato relacional entre homens e mulheres.

Existem várias explicações, mas eu acho que assim, a sociedade brasileira ela é extremamente patriarcal, machista, né? Isso está tão arraigado que a gente não consegue ter consciência mínima disso, a gente fala, mas nossos afetos não são alcançados por isso, nossos afetos são muito truncados, a relação do amor e sofrimento com o abuso pra gente é uma coisa natural, a mulher tem que sofrer (psicologia 2)

Para além da integridade física das mulheres e da marca social das opressões sofridas há cicatrizes deste processo que são impressas na identidade, fragilizando emoções e construindo muros em seus afetos, de modo a provocar a perda de sentido em suas intenções criativas à serviço de uma sociedade que depende das contribuições do feminino para seu equilíbrio e avanço civilizatório. Muito embora a condição de vítima seja revelada no cenário das desigualdades de gênero, a mulher está investida de capacidades que a impulsionam à condição de libertária-emancipada, se assim assumi-la (Vigário & Paulino-Pereira, 2014).

Fazem-se necessários investimentos em mecanismos de proteção para as mulheres, como elementos empoderadores, capazes de proporcionar espaços de garantias de direitos e multiplicadores de ideais progressistas. Para duas das entrevistadas a organização patriarcal exerce influência negativa sobre os (novos) papéis do homem e da mulher nas relações afetivas, compreendidas a partir da ex participação das mulheres no mercado de trabalho, dado que a cultura constrói estereótipos de comportamento sensível-frágil para o feminino e agressivo-forte para o masculino.

Os homens já crescem aprendendo que o feminino é o mais fraco. Então ele não pode chorar porque isso está ligado ao feminino, ele não pode sair abraçando as pessoas, cuidando das pessoas, porque isso está ligado ao feminino. Então ele cresce aprendendo a ser naturalmente violento. Nas brincadeiras das crianças os meninos são mais violentos (Enfermagem 1)

Por se tratar de um processo social complexo de forte influência na formação identitária de uma cultura, os subgrupos familiares precisam ser observados ainda em sua particularidade de adoecimento, se observadas à perpetuação de relações incestuosas e de desamparo. Esse contexto resulta nas dificuldades compartilhadas pelos pacientes acolhidos pela equipe participante deste estudo e aponta na direção de uma investigação ampliada de fatores multifatoriais de sustentação para as violências representadas no discurso de usuárias dos serviços de saúde mental. O que significa a ruptura de seus silêncios agora para os profissionais? O que elas deixam de calar? .

A ATUAÇÃO PROFISSIONAL DIANTE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO DOMÉSTICO

As entrevistadas relataram suspeitas e identificação de situações de violência entre as pacientes. Essa comprovação acontece de diversas formas: quando as mulheres falam diretamente sobre a violência, quando elas são encaminhadas ao CAPS por problemas de saúde mental notificados através de situações de violência, quando as profissionais abordam direta e explicitamente a questão da violência. Os momentos para o reconhecimento da violência acontecem no acolhimento, nos grupos terapêuticos, bem como durante os atendimentos que contam com a percepção das emoções e atitudes das mulheres em resposta ao vínculo que estabelecem com os profissionais.

A gente atende o tempo todo aqui. (...) Muitas pacientes já chegaram para mim com hematomas, né? Eu não tenho medo de perguntar, porque eu acho que as vezes é a oportunidade que ela tem de contar o que ela está passando (...) eu levo para um ambiente mais reservado, pergunto claramente quem que está cometendo a violência. Também explico sobre o sigilo, que ninguém vai saber das informações que ela está me dando, que ela pode confiar nesse serviço (Enfermagem 1)

A narrativa das entrevistadas destaca a importância do olhar atento dos profissionais e da organização de um espaço que inspire segurança para partilhar uma situação geradora de afetos negativos como angústia, medo, vergonha e dor. Além disso, é necessária uma abordagem esclarecedora e sensível, se consideradas as invisibilidades em torno das questões de violência, ou seja, inicialmente os sinais podem estar relativizados e ignorados pelas mulheres o que demandará dos profissionais habilidade para que esse reconhecimento se dê de maneira gradativa, concomitante à organização de estratégias de enfrentamento alinhadas a cada situação apresentada.

Então, eu procuro estar muito atenta sempre a isso, né? Mesmo que o grupo não tenha essa temática, por exemplo, na oficina de geração de renda, que majoritariamente são mulheres (...) Muitas das vezes elas não sabem que estão sofrendo violência, né? (...) Porque as mulheres também crescem achando que elas têm que ser subjugadas, que elas são propriedade de alguém, que elas devem fazer algo pelo marido para provar algo (...) A maioria delas não tem essa percepção de que "Ah, ele me xinga... ele fala que eu sou feia, ele fala que eu sou burra" que isso é uma violência, né? (Enfermagem 1)

Na verdade, eu vejo que elas só entendem que é violência, quando é algum tipo de abuso ou quando violência física de fato. (...) Elas não enxergam a violência psicológica como um tipo de violência (Enfermagem 2) Às vezes elas mesmas falam durante o grupo. Podem estar elaborando aquilo que estão sentindo, até porque tem que ser trabalhado! A gente faz os combinados (...) elas vão falando ao longo do tempo um pouco mais. "Aconteceu isso comigo". Tem umas até que surpreende, porque aparentemente não parece, né? (Terapeuta Ocupacional)

Quanto ao acompanhamento das mulheres em situação de violência, as entrevistadas referem diversas ações e estratégias para a promoção do cuidado e do desenvolvimento do projeto terapêutico que as ajude a enfrentar tal condição. Considerando que são mulheres atendidas no CAPS em que a violência é uma experiência duradoura na maioria da vida delas, essas estratégias buscam alinhar abordagens de saúde mental e da violência que incluem: acolhimento, atendimento individual, elaboração do projeto terapêutico singular, medicação, orientações de enfermagem quando necessário, visita domiciliar, matriciamento, grupos de psicoterapia, oficinas terapêuticas (dança e arte) e encaminhamentos (Programa de Atendimento à Violência (PAV), delegacia da mulher).

Até o fato de a gente ter aberto grupos específicos para o gênero feminino mudou um pouco o perfil do usuário que entra procurando esse tipo de abordagem, nos acolhimentos a gente consegue perceber esses casos e já consegue avaliar, que a gente pode fazer alguma coisa por elas, isso não acontecia há 7 anos atrás, por exemplo, era só em caso de violência a gente prontamente encaminhava para espaços da assistência que cuidasse da violência ou da justiça que cuidasse da violência (assistente social)

entrevistadas também relataram questionamentos e dificuldades quanto à realização de ações de acompanhamento, dentre elas, o trabalho de cooperação interprofissional no CAPS e o intersetorial com as áreas jurídicas e de proteção à mulher, que necessita de articulação com as delegacias e casas de acolhimento para mulheres. Há imprecisão nas falas se devem ou não fazer a notificação da violência (conforme estabelece

o Protocolo de Atendimento às Mulheres em Situação de Violência) e falta de clareza no fluxo desse tipo de atendimento.

Percebo que muitos dos colegas não têm muito manejo e que preferem passar a demanda justamente, pro serviço social, por exemplo. E que a intenção, até na notificação que é compulsória, há uma inabilidade de construir juntos um instrumento ou falta de informação se aquilo ali vai ser efetivo para encaminhamento, se vai ser apenas uma nota, qual é o fundamento daquela notificação, isso vai deixando os profissionais um pouco mais afastados da demanda (assistente social) O certo é fazer a ficha de notificação de violência todas as vezes, mas eu vou confessar que não faço todas as vezes. Nessa ficha tem todos os dados, quem bateu, quando foi, que horas, qual local, quais os tipos de violência sofrida e qual o encaminhamento será dado (...) Se a violência foi recente, às vezes a mulher está mais frágil a gente já procura fazer um plano terapêutico intensivo para ela ser inserida no serviço imediatamente e fazer esse acompanhamento de perto. Se vai precisar encaminhar para o PAV, se vai ficar no PAV e no CAPS ao mesmo tempo (enfermagem 2)

Como percebe-se no relato seguinte a orientação sobre realizar denúncia nas delegacias especializadas de atendimento à mulher não é consenso entre os profissionais.

Ela resolveu falar pra gente e não em uma delegacia, ela não está dizendo que quer tomar providência não, ela só quer dividir nesse momento, então a gente tem que ser muito maduro para esperar o que ela vai fazer diante disso, então tem profissionais que querem tomar providências pela pessoa, "Ah, tem que ir agora na delegacia, resolver isso, resolver aquilo" e isso é imaturidade mesmo e muitas vezes a gente perde o vínculo com ela porque está querendo apenas dividir aquela dor, e não sabe o que fazer para tomar uma providência, as vezes porque depende financeiramente daquele sujeito, porque realmente gosta daquela pessoa, tem a dependência psicológica, tem a questão da religião que não permite, tem toda uma motivação e tem muitos colegas que não conseguem perceber essas sensibilidades (assistente social)

Entretanto, reconhecem o papel central dos profissionais no enfrentamento à violência doméstica como multiplicadores, de forma que o patriarcado perca seu papel e as mulheres passem a viver em segurança, sem medo, "sem precisar de ficar se precavendo porque seu companheiro pode violentá-la a qualquer momento" (Enfermagem 1).

Depreende-se que, por tratar-se de um fenômeno que faz interface com instituições de saúde, assistência social e justiça, a forma de interpretação das demandas apresentadas é conflituosa e confunde o direcionamento das intervenções. Para maior alinhamento destas práticas cabe considerar que é indispensável o estreitamento entre os atores sociais envolvidos na proposta terapêutica, além de extrapolar as discussões para diversos setores do poder público, sem perder o foco que a garantia dos direitos das mulheres necessita compreendê-las em suas subjetividades.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados da pesquisa mostram a cronicidade da violência doméstica, principalmente por parceiros íntimos, a história de violência em algumas delas na adolescência e a permanência dessas influências sob a saúde mental das mulheres. O acompanhamento destas em um serviço especializado coloca uma oportunidade para que os profissionais de saúde estruturem projetos terapêuticos para superar a violência. No entanto, essa perspectiva viabilizar-se-á na medida em que os profissionais aperfeiçoem suas práticas na direcionalidade de tornar visível o oculto destas várias formas de violência, a partir de espaços promotores de falas que encontrem eco nas ações de proteção e empoderamento feminino.

Por tratar-se de um tema que está arraigado na cultura é ainda mais sensível a necessidade de organização das práticas de cuidado com fluxos de acolhimento interinstitucionais capazes de promover a ampla garantia de direitos das mulheres vítimas de violência e articular com esses pontos da rede de atenção, substancialmente, fora do sistema de saúde, como a segurança, o jurídico, assistência social e geração de emprego, possibilidades de (re)significação das experiências de desamparo e violação de direitos das mulheres que transbordam como formas de sofrimento e adoecimento social.

 

 

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Nota: agradecimentos a Fundação de Apoio a Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) pelo financiamento desse estudo.

 

Notas sobre as autoras:

Ioneide de Oliveira Campos - Doutora em Psicologia Clínica e Cultura. Professora adjunta da Universidade de Brasília, Brasil, Faculdade de Ceilândia, Curso de Graduação em Terapia Ocupacional. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6803-2725 E-mail:ioncampos2016@gmail.com

Yasmim Bezerra Magalhães - Psicóloga. Mestranda em Saúde Coletiva pela Universidade de Brasília, Brasil. E-mail: yasmimbma@gmail.com

Antonia Angulo-Tuesta - Pós-doutorado no Global Health and Tropical Medicine do Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade Nova de Lisboa. Professora adjunta da Universidade de Brasília, Brasil, Faculdade de Ceilândia, Curso de Graduação em Saúde Coletiva. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3231-5918 E-mail: antonia.unb@gmail.com

 

 

Recebido em: 01/04/2020
Aprovado em: 29/08/2020

 

 

 

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