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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020

http://dx.doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo81 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo81

 

O itinerário terapêutico da pessoa com transtorno mental: pontos de inflexão

 

The therapeutic itinerary of the person with mental disorder: points of inflection

 

El itinerario terapéutico de la persona con trastorno mental: puntos de inflexión

 

 

Camila Muhl

FAE Centro Universitário

 

 


RESUMO

O itinerário terapêutico é o caminho que uma pessoa desenvolve em busca de auxílio para uma doença, o que inclui diferentes opções de cuidado, muitas delas simultâneas, bem como engajamentos e abandonos de tratamento. A maneira como cada pessoa percorre essa trajetória em busca de saúde é singular, ancorada em suas vivências prévias e na forma como experiencia a doença. Tendo em vista essa multiplicidade de caminhos possíveis, esse estudo de caráter fenomenológico, buscou investigar quais são os pontos de inflexão do itinerário terapêutico de pessoas com transtorno mental. A pesquisa foi realizada com 20 pessoas com diagnóstico de transtorno mental sendo atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial na região metropolitana de Curitiba (Paraná/Brasil). Entre as situações que alteraram o itinerário terapêutico encontramos: encaminhamentos entre os serviços de saúde, o custo do tratamento, as interações sociais e situações adversas. Não há um caminho único e correto em relação ao IT, assim, ao conhecer as especificidades desses percursos compreende-se melhor as tomadas de decisão em saúde e como as pessoas circulam pelas redes de cuidado.

Palavras-chave: Itinerário Terapêutico; Transtorno Mental; Saúde Mental; Fenomenologia; Sociologia da Saúde.


ABSTRACT

The therapeutic itinerary is the path that a person develops in search of help for a disease, which includes different care options, many of them simultaneous, as well as engagements and treatment abandonments. The way that each person follows this trajectory in search of health is unique, anchored in their previous experiences and in the way they experience this disease. In view of this multiplicity of possible paths, this phenomenological study sought to investigate what are the turning points of the therapeutic itinerary of people with mental disorders. The research was carried out with 20 people diagnosed with mental disorders being seen at a Psychosocial Care Center in the metropolitan region of Curitiba (Paraná / Brazil). Among the situations that changed the therapeutic itinerary, we found: referrals between health services, the cost of treatment, social interactions and adverse situations. There is no single and correct path in relation to TI, so, knowing the specifics of these paths, health decision making is better understood and how people move through the care networks

Keywords: Therapeutic Itinerary; Mental Disorder; Mental health; Phenomenology; Sociology of Health


RESUMEN

El itinerario terapéutico es el camino que una persona desarrolla en la búsqueda de ayuda para una enfermedad, que incluye diferentes opciones de atención, muchas de ellas simultáneas, así como compromisos y abandonos del tratamiento. La forma en que cada persona sigue esta trayectoria al buscar salud es única, anclada en sus experiencias previas y en la forma en que experimentan esta enfermedad. En vista de esta multiplicidad de caminos posibles, este estudio fenomenológico buscó investigar cuáles son los puntos de inflexión en el itinerario terapéutico de las personas con trastornos mentales. La investigación se realizó con 20 personas diagnosticadas con trastornos mentales en un Centro de Atención Psicosocial en la región metropolitana de Curitiba (Paraná / Brasil). Entre las situaciones que cambiaron el itinerario terapéutico, encontramos: referencias entre los servicios de salud, el costo del tratamiento, las interacciones sociales y las situaciones adversas. No existe un camino único y correcto en relación con las TI, por lo que, conociendo los detalles de estos caminos, se comprende mejor la toma de decisiones de salud y cómo se mueven las personas a través de las redes de atención.

Palabras clave: Itinerario terapéutico; Trastorno mental; Salud mental; Fenomenología; Sociología de la salud.


 

 

INTRODUÇÃO

Helena tem 20 anos. Fabiana tem 20 anos1 . Ambas são atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para transtornos mentais da região metropolitana de Curitiba há poucas semanas. Ambas têm diagnóstico psiquiátrico de esquizofrenia e fazem uso de medicação para amenizar os sintomas. Todavia, as coincidências de caminho entre as duas terminam aqui, já que a experiência vivida por Helena e por Fabiana são completamente distintas. Fabiana teve seus primeiros sintomas psicóticos na adolescência em um episódio no qual agrediu a irmã mais nova. A família decidiu por internação de longa permanência em instituição psiquiátrica numa cidade distante daquela em que Fabiana vivia. Sua mãe considera que ela é uma pessoa má e não doente, mas ainda assim faz um esforço para manter a filha em atendimento médico; já a jovem acredita que quando completar 25 anos um exame de imagem no cérebro irá demonstrar que ela não tem doença alguma. Depois da internação, Fabiana passou pelo CAPSi (para crianças e adolescentes) e atualmente está vinculada ao CAPS no qual a pesquisa foi desenvolvida. Helena tem sintomas psicóticos desde a infância, mas estes sempre foram interpretados por sua família como sendo de ordem espiritual. Muito embora tenha sido acompanhada por psicólogos e curandeiros desde esses primeiros episódios, Helena só foi atendida por um psiquiatra na adolescência depois de um ataque de pânico, e então os seus sintomas começaram a ser enquadrados em classificações biomédicas. Apesar dos muitos diagnósticos diferentes, Helena acredita ser esquizofrênica e faz um controle constante sobre seu quadro e sua medicação.

Esses dois pequenos relatos apresentados falam do Itinerário Terapêutico (IT) de Fabiana e Helena. O Itinerário Terapêutico pode ser compreendido como "um conjunto de planos, estratégias e projetos voltados para um objeto preconcebido: o tratamento da aflição" (Alves & Souza, 1999, p. 133). Tendo isso em vista, no âmbito deste estudo, consideramos o IT como o curso de ação que a pessoa com transtorno mental desenvolve em busca de cuidados para a sua enfermidade.

Como vimos nos casos de Fabiana e Helena, os caminhos traçados podem ser bem diferentes mesmo com a presença de um diagnóstico em comum. Assim, algumas perguntas se colocam: por que as pessoas desenvolvem caminhos distintos em busca de cuidados para o transtorno mental? Bem como, quais são os fatores que contribuem para as alterações nesse trajeto de cuidado, fazendo com que a pessoa abandone uma forma de tratamento e se engaje em outra, ou conjugue várias formas de cuidado? Para responder a estas questões, o presente artigo investigou os pontos de inflexão dos itinerários terapêuticos de 20 pessoas com diagnóstico de transtorno mental atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da região metropolitana de Curitiba (Paraná-Brasil). O objetivo foi descobrir os fatores que levaram os participantes da pesquisa a se engajar ou abandonar uma opção terapêutica.

A pesquisa foi construída a partir de um tripé teórico e metodológico que une a psicologia, fenomenologia e sociologia da saúde, ao dedicar-se a experiência de doença dos participantes. Como contribuição deste estudo, entende-se que identificar, descrever e analisar as trajetórias particulares do adoecimento pode auxiliar na compreensão das diferentes concepções e formas de cuidar do transtorno mental, dos processos de adesão ao tratamento e das estratégias de enfrentamento desenvolvidas.

 

ITINERÁRIO TERAPÊUTICO DESDE UM OLHAR FENOMENOLÓGICO

Para Rabelo, Alves e Souza (1999), o itinerário terapêutico designa um conjunto de ações, planos e estratégias voltados para o tratamento de uma doença. Para que esse roteiro de cuidado se desenrole são mobilizados aspectos subjetivos (volição, afeto, comportamento, etc.) bem como fatores sociais, históricos e culturais do enfermo e de suas interações com o lugar onde vive e com as pessoas com quem convive. As escolhas terapêuticas e os caminhos trilhados dizem, portanto, da experiência vivida pela pessoa e da forma como ela se relaciona com a doença.

Chamamos de opções de cuidado cada um dos pontos do itinerário terapêutico onde a pessoa procura ajuda, sendo que essas opções podem ser bastante diversificadas tanto em relação a prática, quanto a concepção de doença. Entre as terapêuticas possíveis, existem aquelas conectadas aos saberes tradicionais, como chás e simpatias; outras podem ter um cunho sagrado, como rituais de benzimento e cura, ou podem ser exercícios profissionais biomédicos, como medicina, psiquiatria ou psicoterapia (Kleinman, 1978)2 .

Todavia, o itinerário terapêutico não é um plano de ação definido de antemão pela pessoa enferma, ele vai sendo desenvolvido, modificado e até mesmo abandonado durante o curso da doença. Da mesma forma, o IT também não obedece a esquemas e fluxos pré-determinados pela sociedade, tais como, protocolos de atendimento dos serviços de saúde.

Se as escolhas terapêuticas podem mobilizar diferentes recursos, como cuidados caseiros, práticas religiosas e dispositivos biomédicos cada pessoa irá escolher de acordo com o conhecimento que possui sobre a enfermidade, o lugar do mundo em que vive e a experiência prévia de situações de adoecimento. No caso do transtorno mental, é possível ilustrar algumas dessas situações de escolha, por exemplo, uma pessoa que acredita que seu sintoma é uma possessão espiritual não vai procurar um serviço de saúde, mas sim, uma igreja ou líder religioso, ou então, ainda que os Centros de Atenção Psicossocial sejam os serviços especializados em saúde mental, o público não poderá procurá-lo se não souber que ele existe ou se não há esse serviço na sua cidade

Para perseguir um itinerário terapêutico vários marcos teóricos-metodológicos podem ser empregados (Cabral, Martinez-Hemáez, Andrade & Cherchiglia, 2011; Gerhardt, Burille & Muller, 2016), mas dado nosso interesse de pesquisa na singularidade e nas alterações deste, optamos por acionar a fenomenologia. Esse aporte nos propiciou o termo chave para compreender o nosso objeto de estudo: o conceito de experiência e a partir dele abrimos para a trajetória e o itinerário terapêutico dos participantes da pesquisa.

Husserl (1929/1992) demonstra como são fenômenos da experiência o mundo e os objetos experimentados, percepcionados, recordados, pensados, julgados e valorados. Todavia, a experiência só existe porque há um ser que entra em contato:

 

Experimento em mim mesmo, no âmbito da minha vida consciente transcendental, tudo e cada um, e experimento o mundo não como simplesmente o meu mundo privado, mas como um mundo intersubjectivo, dado a cada um e acessível nos seus objectos, e nele experimento os outros enquanto outros e, ao mesmo tempo, enquanto uns para os outros, para cada um (Husserl, 1929/1992, p. 34).

 

Para Zahavi (2015), a possibilidade de experienciar passa pela consciência e pela intencionalidade que capta aquilo que se mostra, de modo que consciência e objeto estão em íntima relação: "se investigamos objetos que aparecem, também descobrimos a nós mesmos" (p. 75). No momento em que aparece a uma consciência, o objeto passa a ter significado, sendo significar "o ato concreto do processo subjetivo de visar algo ou de ter intencionalmente algo" (p. 39). Dessa maneira, "um objeto não é nunca meramente consciente, mas ele é sempre consciente de uma maneira determinada" (p. 37). Ao aplicar esse raciocínio ao transtorno mental, percebe-se que as diferentes pessoas que recebem esse diagnóstico podem atribuir diferentes significados a essa vivência.

Esse processo é chamado de experiência de enfermidade: a doença aparece enquanto um objeto intencional para o sujeito que passa a vivenciá-la, o que inclui sentir-se mal, os atos de interpretação correspondentes, dar nome a aflição, e a atribuição de sentido a essa experiência. Em tempo, Alves (1993, p. 269) afirma que "a sensação de sentir-se mal encontra-se intrinsecamente acompanhada de uma compreensão do seu significado", portanto, "enfermidade não é um fato, é significação".

 

MÉTODO

Para investigar o itinerário terapêutico de pessoas com transtorno mental foi realizada entrevista em profundidade com 20 pessoas diagnosticadas que estavam sendo atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial na região metropolitana de Curitiba3 . Entre os participantes estão 14 mulheres e 6 homens, com idades entre 19 e 59 anos e tempo de atendimento no CAPS entre 1 semana e 10 anos. As entrevistas, que tiveram duração entre 15 e 76 minutos, abordaram a trajetória dos participantes com a doença, e foram gravadas em áudio para posteriormente serem transcritas e analisadas desde o aporte fenomenológico desta pesquisa.

O conteúdo encontrado nas entrevistas foi descrito pormenorizadamente e seus núcleos de sentido foram identificados, permitindo que se desvelassem quatro fatores principais que desencadearam a alteração no rumo do itinerário terapêutico, sendo eles: a) Encaminhamentos, que ocorrem principalmente na biomedicina, onde o itinerário é alterado a pedido dos profissionais de saúde que indicam um novo caminho a seguir; b) Custo da doença, também está diretamente relacionada com a biomedicina e normalmente ocorre quando um tratamento particular é abandonado e procura-se o Sistema Único de Saúde para atendimento; c) Interações Sociais, onde destaca-se a ação dos familiares no momento

Todos os preceitos éticos foram seguidos no decorrer da investigação e os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido concordando com a participação no estudo. A pesquisa é um recorte da tese de doutorado da autora, e que teve o projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Paraná (CAAE: 67177417.1.0000.0102; Número do Parecer: 2.044.014).

 

AS POSSIBILIDADES DO ITINERÁRIO TERAPÊUTICO

Ao estudarmos o itinerário terapêutico das pessoas em busca de cuidados para o transtorno mental percebemos que esse não é um caminho linear, pelo contrário, as várias opções seguidas não são articuladas, há momentos em que mais de uma forma de cuidado é acionada ao mesmo tempo e em outros momentos a pessoa não está engajada em nenhum tratamento ou cuidado. Desse modo, investigamos o que altera um itinerário terapêutico, conectando essas modificações com as experiências vividas de cada pessoa, para apreender o que faz cada IT ser singular.

Tavares (2017) afirma que o itinerário terapêutico é sempre processual, por isso comporta hesitações, indefinições e mudanças de escolha terapêuticas durante o curso de uma experiência de enfermidade e tratamento. Essas mudanças ocorrem porque ocorrem inúmeras mediações nos processos de saúde e doença, que se desenrolam em temporalidade específica, fazendo com que a pessoa abandone uma opção de cuidado feita no passado quando novas informações vêm à tona, o que pode levá-la a se engajar em uma nova agência terapêutica.

Desse modo, é importante abandonar a ilusão de linearidade ou teleologia no itinerário terapêutico. Os arranjos do itinerário terapêutico são temporários, e sempre chegará uma nova crise, um novo conselho, uma nova indicação de profissional ou uma nova medicação que irá transformar a trajetória que até então estava sendo desenvolvida.

A crise aparece como a grande perturbação à norma e à trajetória da pessoa com transtorno mental, assim, esse episódio muitas vezes altera o itinerário terapêutico que vinha sendo desenvolvido. Entendemos crise como uma situação aguda de sintomas, sendo que é justamente a primeira alteração desse tipo que costuma disparar o IT. A maioria das pessoas com transtorno mental podem ter crises periódicas e o tempo de duração da estabilidade alcançada pelo tratamento varia de acordo com fatores como idade, dificuldades da vida diária, tipo de transtorno, uso de medicamentos e outros. Uma nova crise pode levar ao abandono de determinada prática terapêutica e/ou o engajamento em outra. Nesse momento de agravamento dos sintomas, a pessoa e seus familiares buscam alternativas para superar a crise e restabelecer níveis, mesmo que mínimos, de bem-estar ou estabilização.

Não é incomum estando em um Centro de Atenção Psicossocial ouvir a equipe relatando situações em que os usuários que estão em acompanhamento nesse local, acabam sendo atendidos em outros serviços de saúde em momentos de crise e tem seus arranjos terapêuticos alterados, como a troca de medicamentos ou indicação para internação psiquiátrica sem que haja comunicação ao serviço de referência.

Todavia, não é possível saber se a mudança terapêutica foi uma ação da pessoa e de sua família, nem mesmo se havia um objetivo a priori a ser alcançado ou, se ela apenas foi levada pelas circunstâncias, arrastada de um cuidado para outro. Ao reconstituir o itinerário terapêutico, a pessoa o faz como narrativa dos lugares e serviços por onde passou e já atribui a ele significado e linearidade, fazendo uma avaliação do percurso à luz do presente, onde as perdas e ganhos do tratamento são vistas desde o momento atual e não da situação que disparou aquela forma terapêutica (Alves, 2015). Infelizmente, esse é um obstáculo que todo pesquisador que trabalha com IT já transcorrido precisa enfrentar. Por isso, a necessidade de reafirmar o caráter processual da trajetória em busca de cuidados ao apresentar os pontos de inflexão encontrados na pesquisa

 

ENCAMINHAMENTOS

Os encaminhamentos aparecem o tempo todo na fala dos entrevistados e demonstram o grande número de locais e serviços de saúde por onde eles passaram em busca de cuidados e de como esse procedimento se tornou usual dentro da sua rotina.

"Eu passei pelo pronto-socorro [...] e dali me deram encaminhamento para o [hospital psiquiátrico] de novo. Fiquei mais 40 dias." (Pilar, 54 anos, serviços gerais).

"Então eu fui no médico com a minha mãe né, minha mãe falou para o médico lá da unidade de saúde o que eu estava fazendo. Tipo ele encaminhou, ele fez uma ficha de acompanhamento, encaminhamento para o CAPS. Aí eles avaliaram a situação e disseram que a situação era de CAPS" (Cícero, 19 anos, desempregado).

"Eu senti que eu não estava bem, daí passei pelo clínico e o clínico recomendou que eu fosse procurar um psiquiatra" (Pilar, 54 anos, serviços gerais).

"Eu fui no Pronto-atendimento, porque me deu uma crise muito forte de choro e uma confusão mental sabe? e daí eles, daí o doutor lá achou melhor me encaminhar para cá [CAPS]" (Tereza, 48 anos, do lar).

Podemos notar que não há uma direção única acerca dos encaminhamentos: ele pode ocorrer de um generalista para um especialista (clínico geral-psiquiatra), da atenção básica para os serviços especializados (UBS-CAPS), da alta complexidade para a média (Hospital-CAPS) ou dos serviços de emergência para o serviço especializado (UPA-CAPS). Mesmo diante dessas encruzilhadas, de uma maneira geral, os encaminhamentos parecem direcionar os doentes para os serviços especializados (CAPS e psiquiatra)

No caso dos entrevistados, os encaminhamentos acontecem frequentemente dentro da própria Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Nesse tipo de procedimento, Delifini e Reis (2012) explanam que o encaminhamento pode acontecer de duas formas: como forma de compartilhar ou como forma de passar a responsabilidade. O encaminhamento como uma forma de compartilhamento de responsabilidade ocorre quando um serviço aciona outro pedindo ajuda para um caso específico. Nesse caso, informações e saberes são compartilhados e decisões são tomadas conjuntamente, sendo que a atuação dos serviços impede que o usuário se perca na rede (Delifini & Reis, 2012).

Adélia é um exemplo desse tipo de encaminhamento. Ela recebe um primeiro atendimento em uma Unidade Básica de Saúde e diante da necessidade de um especialista, a própria UBS marca a consulta com o neurologista e toma providências para que ela possa comparecer:

 

"Eu estava no posto de saúde [...] eu estava em pânico lá, em pânico, pânico bastante... daí eles me deram medicação... na mesma semana eles ligaram, não sei como que o posto fez, até hoje não sei, me encaminharam para [...] um neurologista]. Eu achei tão rápido" (Adélia, 53 anos, cozinheira).

 

O outro tipo de encaminhamento – passar a responsabilidade – é aquele em que a pessoa procura ajuda em um serviço de saúde que não é adequado para tratar aquele caso em específico, então o serviço indica qual é o local correto que a pessoa deve procurar atendimento. Esse encaminhamento pode ocorrer sem nenhum tipo de contato entre os serviços, cabendo ao usuário fazer o próprio caminho, batendo na porta do próximo serviço com uma "cartinha" em mãos que diz que ali é o seu lugar.

"Aí foi onde eu fui no postinho, conversei com a médica, ela me deu encaminhamento, do postinho para o CAPS AD. O CAPS AD falou o teu problema não é droga, como você está limpo da droga, o teu problema é mental, então eu vou te passar para o CAPS mental. Foi onde o coordenador do CAPS AD me passou para cá, aí daqui foi onde eu comecei o tratamento e estou até hoje" (Daniel, 33 anos, diarista).

 

Aqui cabe perguntar se encaminhar as pessoas de um serviço para outro, tantas vezes, serve a busca do melhor atendimento possível ou é uma demonstração de que a rede de atenção está desarticulada? A maior parte da população é leiga ao que diz respeito aos serviços de saúde e ao funcionamento do SUS, portanto, é esperado que uma pessoa que procura ajuda diante de uma doença desconhecida não saiba exatamente qual é o local adequado para fazer isso. Passar a pessoa adiante, sem uma escuta qualificada do problema ou sem uma orientação, pode provocar o encerramento ou abandono de um itinerário terapêutico ao invés de levar a pessoa ao lugar correto.

O município de Colombo, local da pesquisa, possui uma publicação intitulada Protocolo de Saúde Mental (Prefeitura de Colombo, 2011), que tem como objetivo orientar o atendimento à pessoa com transtorno mental e pessoas dependentes de álcool e outras drogas. O documento estabelece o fluxograma que disciplina o atendimento visando melhorar "a capacidade de solução e propicia uma otimização da utilização dos recursos existentes, quer sejam públicos ou da comunidade, proporcionando maior integralidade e resolutividade" (p. 8). A pessoa entra no fluxo para ser atendida no Centro de Atenção Psicossocial para Transtorno Mental, segundo o protocolo, pela Unidade Básica de Saúde, pelo Ambulatório de Saúde Mental, pelo Hospital Psiquiátrico, pelo CAPS Álcool e Drogas ou pelas notificações de tentativa de suicídio, onde o serviço faz busca ativa. Todos esses locais têm possibilidade de encaminhar pacientes para o CAPS, que avalia se estes têm "perfil CAPS", ou seja, se atendem ao critério de ter um transtorno mental grave. Se a resposta for afirmativa, a pessoa é incluída nos atendimentos do CAPS; se a resposta for negativa, ela pode ser encaminhada para outro serviço, como o ambulatório.

Se continuarmos seguindo o caminho da pessoa que foi aceita para tratamento no CAPS, ela tem três portas para sair do serviço: a) alta por abandono; b) alta a pedido do usuário e c) alta por melhora. Nas duas primeiras formas a pessoa é desligada da Rede e o prontuário vai para o "arquivo morto". Na alta por melhora, a pessoa é encaminhada para outro serviço, como o ambulatório de saúde mental ou as Unidades Básicas de Saúde para acompanhamento

Não sabemos se os profissionais têm esse protocolo como norteador no momento dos seus encaminhamentos. Todavia, vimos esses mesmos procedimentos se repetirem várias e várias vezes, entre os entrevistados, nas observações de campo e nos fazeres burocráticos dentro do serviço. Nesse sentido, o caminho em busca de cuidados terapêuticos que deveria ser singular para cada sujeito, conforme a legislação vigente que estabelece um Projeto Terapêutico Singular, acaba por seguir flu

Nos perguntamos então por que uma pessoa atende à demanda de um profissional para se mover de um serviço para outro? A confiança no encaminhamento feito por um profissional da saúde vem não da fé nesse profissional especificamente, mas sim no sistema perito que ela representa. Por sistemas peritos Giddens (1991, p. 30) compreende

[...] sistemas de excelência técnica ou competência profissional que organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje. A maioria das pessoas leigas consulta "profissionais" — advogados, arquitetos, médicos etc., — apenas de modo periódico ou irregular. Mas os sistemas nos quais está integrado o conhecimento dos peritos influencia muitos aspectos do que fazemos de uma maneira contínua.

 

Giddens (1991) aponta que no tipo de sociedade que vivemos atualmente é impossível optar por sair completamente dos sistemas peritos, já que o conhecimento perito acaba por criar ou reproduzir o universo dos eventos onde ele está inserido. Assim, se antigamente um doente poderia ignorar os conselhos de uma curandeira ou um padre e continuar levando a sua vida, com o desenvolvimento de uma hegemonia em torno da cultura cientifica e da biomedicina é quase impossível, na sociedade contemporânea, que uma pessoa vivenciando uma doença, não acabe passando por algum profissional médico em busca de ajuda e acate todas (ou boa parte) das suas recomendações.

 

CUSTO DA DOENÇA

Durante as entrevistas, destacou-se a maneira como os participantes traziam a questão financeira à tona e a relacionavam com o atendimento para o transtorno mental, mostrando que era uma questão que os preocupava. O uso de dinheiro é um fenômeno típico das sociedades modernas como a nossa, e faz a mediação entre a pessoa e algo que ela deseja. Assim, o dinheiro "interpõe, entre o homem e os seus desejos, uma instância de mediação, um mecanismo facilitador. E porque, quando ele é alcançado, inúmeras outras coisas tomam-se alcançáveis, cresce a ilusão de que todo o resto seria mais fácil de alcançar" (Simmel, 1998, p. 12)

Todavia, se de um lado o dinheiro torna possível a conexão entre a posse e o proprietário, de outro lado, como bem nos lembra Simmel (1998), o dinheiro também pode separá-los. Na saúde, se considerarmos a rede particular, por exemplo, os atendimentos para o transtorno mental podem ter um valor muito alto e as pessoas podem desistir do tratamento diante da dificuldade de arcar com o custo financeiro:

"Fiquei internada 30 dias fechada e fiquei mais 30 dias no semiaberto4 , para ir para casa para dormir e voltava durante o dia para fazer o tratamento. Daí eles acharam melhor me mandar pelo SUS né, porque eu estava pagando uma diária muito cara para ficar no Hospital-dia. Aí eles me encaminharam, me deram documento me encaminhando para o CAPS" (Betânia, 36 anos, química)

"Ela [a psicóloga] começou a me atender, só que depois, eu lembro que ela cobrava e aí meu pai, na época, ele achou que não precisava, que era desperdício e aí parou" (Helena, 20 anos, estudante).

Em pesquisa com usuários de CAPS, realizada por Cardoso, Oliveira e Piani (2016), os resultados evidenciaram um quadro muito parecido com esse que os entrevistados retrataram. Naquele estudo, usuários relataram terem recorrido aos serviços particulares de saúde em um primeiro episódio do transtorno mental, especialmente às consultas com médico psiquiatra, mas depois acabaram por procurar os serviços de saúde da rede pública para dar continuidade ao tratamento.

Ainda sobre os trechos acima, o processo descrito por Helena pode ser considerado uma não adesão ao tratamento. São muitos os fatores que levam uma pessoa a aderir ou não a uma terapêutica proposta, entre eles estão: aspectos relacionados ao paciente, ao tratamento e a própria doença, fatores socioeconômicos, o funcionamento dos serviços e locais que prestam cuidados (Gusmão & Mion, 2006). No caso de Helena, foram os fatores socioeconômicos da família que contribuíram para a não adesão ao tratamento, diante da impossibilidade de arcar com os custos.

Não são apenas os aspectos socioeconômicos que interferem na adesão ao tratamento, mas, esse fator parece se destacar em alguns quadros diagnósticos específicos. Pesquisas sobre o tema mostram que o alto custo do tratamento fez 89% dos hipertensos relatarem baixa adesão ao tratamento e pessoas com tuberculose abandonaram o atendimento médico em função de desemprego e custo das passagens e alimentação para ir até o hospital (Gusmão & Mion, 2006; Mendes & Fensterseifer, 2004).

Nesses casos podemos observar que existe falta de engajamento em cumprir as prescrições médicas, de modo que o tratamento é abandonado frente a obstáculos que talvez fossem contornados se a doença enfrentada fosse outra. Nos perguntamos então: o que une os transtornos mentais, a tuberculose e a hipertensão? A resposta parece ser o estigma. A loucura e a tuberculose sempre foram vistas pela sociedade como doenças de grupos periféricos específicos, tidos como de natureza mais fraca e menos valorosos; já a hipertensão pode também ser encarada desde a perspectiva do estigma uma vez que a pessoa que possui esse diagnóstico pode ser responsabilizada pela sua condição, porque não tem os cuidados necessários com a sua saúde, tornando-se uma culpa individual, tal qual a loucura.

Se a doença diagnosticada já coloca a pessoa numa situação de estigma, desvalorização social e discriminação, por que essa pessoa ainda vai gastar seu tempo e dinheiro para reforçar esse diagnóstico? Não frequentar um serviço de saúde ou profissional biomédico e não tomar medicação, podem ser medidas adotadas pela pessoa para manter sua doença em segredo, para não dar visibilidade ao transtorno, mantendo assim a sua identidade social perante o seu grupo e comunidade.

Muitas vezes, o diagnóstico de transtorno mental pode trazer consequências para a vida da pessoa não só no que diz respeito ao seu bem-estar, mas também consequências sociais e financeiras, como o afastamento do trabalho ou mesmo a demissão. Esses desdobramentos podem também atingir o grupo social, onde um membro da família pode precisar trocar ou abandonar o trabalho para providenciar o cuidado do doente ou passar a arcar com todas as despesas domésticas, como podemos ver no relato de Lorena: "Daí depois que eu fiquei desempregada, procurei a unidade de saúde e eles me encaminharam para o CAPS". E também de Vilma: "nessa época o meu marido já tinha saído do emprego onde eles tinham dado o plano de saúde, então foi no pronto socorro".

Segundo Giddens (1991, p.) "o dinheiro permite a troca de qualquer coisa por qualquer coisa, a despeito dos bens envolvidos partilharem quaisquer qualidades substantivas em comum", assim, o dinheiro que entra para uma família num mês precisa ser dividido nos gastos com alimentação, habitação, educação, deslocamento e quando sobra, uma parte dele é destinada a saúde, com pagamentos de planos de atendimento privado. Existe então uma trinca que funciona bem na percepção dos entrevistados: emprego-plano de saúde-atendimento, mas assim que o primeiro item é retirado da lista, os outros dois acabam caindo por terra.

Todavia, ainda que o alto custo de um tratamento em saúde mental possa fazer com que certas opções de cuidado precisem ser abandonadas, a falta de dinheiro não foi um impedimento para que as pessoas conseguissem atendimento para a sua doença, como vimos nos relatos de Lorena e Vilma. Ao não conseguirem dar continuidade ao tratamento nos serviços particulares de saúde, os participantes acionaram o SUS, muitas vezes com indicação dos próprios profissionais que faziam o atendimento pago.

Ainda assim, destaca-se o fato de que as opções terapêuticas para o transtorno mental que eram pagas foram abandonadas, ainda que nenhuma solução gratuita tivesse sido arquitetada no momento do desligamento. Cria-se então um hiato de abandono e desamparo no itinerário terapêutico da pessoa com diagnóstico de transtorno mental em função do dinheiro, mas que quando acionamos histórias sobre outras doenças, essa situação parece não se repetir. São notórias as histórias de pessoas que venderam casas para pagar cirurgias, rifaram carro para bancar tratamento de câncer, que têm parcelas para saldar até o final da vida para quitar tratamentos médicos, importaram drogas experimentais ainda não aprovadas no Brasil a altos custos ou até mesmo, a existência de um mercado ilegal de comércio de órgãos para transplante, que mostram como cuidar da saúde é um motivo mais que plausível para se gastar dinheiro.

Por que esse quadro não se repete em relação ao transtorno mental? Podemos elencar duas respostas provisórias: 1) a loucura não causa uma ameaça iminente à vida (mesmo nos casos de suicídio, numa avaliação feita pela família, pode parecer que existem menos chances de a pessoa se matar do que morrer por um tumor que não é enfrentado), e assim, abandonar o tratamento para o transtorno mental não é se colocar em perigo; e 2) o transtorno mental ainda não tem um status consolidado de doença para o senso comum, dessa maneira, se a pessoa nem tem certeza de que o que está enfrentado é realmente um problema de saúde, não parece ser maléfico interromper um tratamento, ainda mais se este for oneroso para a família e fonte de vergonha para a pessoa. Portanto, se Simmel (1998) afirma que o dinheiro é a medida para todas as coisas, quando se trata de doenças, nem todas as enfermidades valem o mesmo.

Dentro do contexto do transtorno mental, abandonar o tratamento é um risco aceitável. É possível chegar a essa conclusão, partindo das premissas de Giddens (1991), diante do entrelaçamento entre risco e segurança: a experiência de segurança surge de uma situação na qual um conjunto específico de perigos está neutralizado ou diminuído. Assim, através da reflexividade, a pessoa com transtorno mental avalia a sua situação e não se entende em perigo imediato, e suas ações futuras são desenvolvidas a partir dessa avaliação.

Para Giddens (1991, p. 39) "a reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter". Sendo esse um fenômeno que é realizado em todos os aspectos da vida, assim também o é na doença, no uso de medicamentos, na adesão a uma terapêutica ou no abandono do tratamento. Nosso argumento então é de que a pessoa que abandona o tratamento para o transtorno mental em função do custo deste ou troca os profissionais pagos por um atendimento gratuito no sistema público, não o faz por não se preocupar com a saúde, mas sim que essa decisão é informada e tomada após um período de reflexão. Todavia, se ainda choca os profissionais de saúde o desleixo que eles veem num abandono de tratamento, para o doente o significado é outro, já que muitos aspectos da vida são pesados nas decisões, para além dos aspectos biomédicos.

 

INTERAÇÕES SOCIAIS

Rabelo, Alves e Souza (1999) demonstram a importância que familiares, vizinhos, parentes e amigos têm na forma como uma enfermidade é percebida e definida pela pessoa e seu grupo social. É comum que as pessoas que interagem com o doente sejam as primeiras a identificar algo de errado, avisando aos familiares que se trata de uma situação merecedora de maior atenção, bem como, costumam atuar nas situações de emergência e na administração da doença no cotidiano.

Edson fala sobre a intervenção dos amigos: "Os amigos faziam tratamento e foram mais legais para mim, para amparar eu, que já faziam tratamento e me convidaram para fazer o tratamento e eu me senti bem". Nos trechos abaixo podemos ver mais alguns relatos sobre como as interações sociais desempenharam um papel em relação ao itinerário terapêutico da pessoa com diagnóstico de transtorno mental:

O meu sobrinho saiu e foi comigo. Ele também achou estranho porque, ele achou estranho tudo que eu estava falando, não tinha nada a ver com a realidade assim... depois ele até comentou com meu irmão que não tinha nada a ver com a realidade o que eu estava falando, que talvez eu estava com algum problema. Daí o meu irmão também achou isso, que eu não estava falando coisa com coisa [...] aí ele percebeu.. (Kevin, 26 anos, auxiliar de produção).

O meu marido que me deu um estalo assim: 'vai procurar um médico porque você está parecendo uma zumbi'. Eu andava com o olho todo roxo porque eu não dormia. Aí ele disse: 'vai procurar um médico, vai procurar ajuda, porque você está precisando de ajuda (Olga, 53 anos, confeiteira).

Os depoimentos acima têm em comum o fato de que os sintomas do problema de saúde foram primeiramente percebidos por outras pessoas que não o doente. O sobrinho de Kevin percebeu o comportamento bizarro do tio que ouvia vozes e alertou os familiares para que o encaminhassem para tratamento; no caso de Olga, foi o marido que ajudou a identificar que a insônia que estava tendo não era algo "normal"; com Edson, foram os amigos que já haviam passado por tratamento em saúde mental que o alertaram que ele poderia estar precisando de ajuda.

Se as interações sociais podem disparar o início do itinerário terapêutico, elas também podem agir para modificá-lo, conforme o relato de Marcos: "Eu fui internado forçado [...] Foram meus familiares, não sei se foi meu pai ou meu irmão, acho que foi meu irmão que geralmente era ele que via essas situações". Noemi também relata a interferência dos familiares:

Ele [o médico] ia me mandar para o [hospital psiquiátrico] [...] meu filho falou para ele: 'não, eu não vou levar ela, ela fazia CAPS'. Daí o médico disse: 'então você leva ela no CAPS'. Foi que ele me trouxe aqui para o CAPS e eu voltei a fazer CAPS novamente (Noemi, 59 anos, salgadeira).

 

Quando um transtorno mental se manifesta, é comum que pais, cônjuges, irmãos, parentes e mesmo vizinhos mobilizem-se em tomo do evento, procurando soluções (Rabelo, Alves & Souza, 1999). Assim aconteceu com os familiares de Marcos e Noemi, que tomaram decisões em relação ao cuidado que estes receberiam. O irmão de Marcos optou pela internação psiquiátrica, enquanto o filho de Noemi não concordou com essa opção e propôs um atendimento no CAPS no lugar da hospitalização.

Nas interações face a face, os participantes tomam decisões e atitudes sucessivas em relações aos outros, fazendo com que esse seja um processo fluído durante o seu desenvolvimento. Nessa interação, as pessoas também desempenham papeis ou ocupam um status, e as atitudes e decisões são tomadas a partir destes (Strauss, 1999).

Em nossa investigação, um dos status atribuídos pelos familiares à pessoa com transtorno mental é o de louco, tal seja, alguém incapaz de decidir por si. Neste caso, os familiares escolhem o que fazer, qual o melhor caminho a tomar. Levando em conta o caráter processual dessas relações, a decisão tomada também pode mudar de acordo com os novos acontecimentos. Assim, uma família que em algum momento decidiu internar seu membro com transtorno mental, em outra situação pode escolher um tratamento em liberdade. Outras vezes, ainda que família e a pessoa com transtorno mental tenham acordado anteriormente por um atendimento no CAPS, diante de uma crise, a família pode optar pela internação psiquiátrica, mesmo contra a vontade do doente. Destaca-se então como a interação entre familiares, doente e doença é sempre dinâmica e vai se transformando no decorrer do desenvolvimento da enfermidade e a forma como a família tem sempre papel determinante nas decisões de tratamento.

Além dos familiares e amigos, nossa pesquisa também mostrou que os colegas de trabalho podem alterar a trajetória do itinerário terapêutico da pessoa com diagnóstico de transtorno mental:

Eles me internaram, [...] foi um responsável da [empresa]. Porque eles falaram assim que eu estava ficando louca... daí eles perguntaram mais para alguém... e eu fiquei na ambulância esperando. Quando eu fui ver eles estavam me levando lá para o Hospital (Vilma, 39 anos, auxiliar de produção).

Trabalhava numa escola, lá eu cuidava das crianças [...] quando eles ficaram sabendo... eu tentei várias vezes... eu peguei a faca e tentei me matar lá no colégio, aí eles vieram e já me levaram para o psiquiatra, já chamaram a minha família, todos... fizeram toda aquela comoção para me ajudar (Juliana, 30 anos, serviços gerais).

 

No caso de Vilma e Juliana, os colegas de trabalho (em especial, os empregadores) acharam necessário intervir e acionar um serviço de saúde, já que elas tiveram crises no ambiente em que trabalhavam. Vilma começou a ouvir vozes vindas do equipamento que estava limpando e a interagir com ele, isto foi percebido pelos colegas e pelo supervisor, que chamaram uma ambulância para atendê-la. No caso de Juliana, a tentativa de suicídio na escola em que trabalhava, levou seus patrões a incentivá-la a começar um tratamento para a saúde mental.

Podemos compreender o processo pelo qual as interações sociais afetam o itinerário terapêutico a partir do pensamento de Schutz (2012). Para o autor, as pessoas não estão na mesma situação no mundo, assim, se eu estou "aqui" e uma outra pessoa está "lá", nós não vemos o fenômeno de uma mesma posição, bem como, experienciamos aspectos diferentes dele, por isso é possível que um familiar ou colega de trabalho consiga ver os sintomas do transtorno mental se manifestando, enquanto a própria pessoa não interpreta a situação dessa forma.

Outro fator importante é que a situação biograficamente determinada de uma pessoa e a do seu semelhante diferem pelo menos em alguma extensão, haja vista as diferentes experiências por que passaram e que estão alocadas em seu estoque de conhecimento (Schutz, 2012). Isso posto, é possível compreender, por exemplo, quando os amigos direcionam Edson a fazer tratamento para depressão, pois eles já haviam passado por serviços de saúde e esta era uma opção presente no seu campo de possibilidade, e que até então não era uma possibilidade cogitada por Edson, que não havia passado por essa experiência.

 

OCASIONALIDADES

Durante nossas entrevistas percebemos que vários incidentes com o doente ou com alguém de sua família, fez com que ele se engajasse em um novo atendimento ou abandonasse um tratamento em curso. O acaso é, portanto, o último fator que tratamos aqui.

Adélia está caminhando pela rua quando acontece um assalto próximo de onde ela está, alguém é baleado, ela passa mal diante do ocorrido e desmaia. Um desconhecido que estava passando pelo local leva Adélia até a Unidade Básica de Saúde para que ela receba atendimento em função do desmaio, mas os profissionais veem mais que isso, enxergam também os primeiros sintomas de um transtorno mental e esse pequeno episódio dá início a carreira moral de Adélia como doente: "Porque o rapaz morreu na minha frente... o piá morreu na minha frente... eu desmaiada no meio da rua, uma pessoa estranha pegar eu e levar eu lá... podia ser outro bandido... me levar lá no posto".

No caso de Daniel, ele estava passando por uma internação de longa permanência em uma comunidade terapêutica em função do uso de drogas, quando a irmã engravida e a família precisa se reorganizar para auxiliar na gravidez e no cuidado com a criança que vai nascer. Essa novidade na dinâmica familiar leva Daniel a abandonar o tratamento que estava fazendo:

 

Eu tive que sair para a clínica porque a minha irmã engravidou, aí a minha mãe falou assim: 'eu não sei como eu vou fazer para vir te ver porque a situação está crítica lá em casa', e eu falei: 'eu vou embora para ajudar você a cuidar dela (Daniel, 33 anos, diarista).

 

Glória havia sido encaminhada para uma internação de longa duração em um hospital psiquiátrico em função de uma crise que ela preferiu não detalhar, mas teve que abandonar o tratamento porque sua filha quebrou a perna e necessitava de cuidados.

 

Eu não pude fazer meu tratamento completo naquela época porque é assim: era de 6 meses a 1 ano, eu fiquei apenas 20 dias, porque minha filha quebrou a perna e precisava de alguém para cuidar dela, daí eu tive alta concedida... consentida (Glória, 46 anos, do lar).

 

Nosso último caso a ser analisado nesse item é o de Marcos. O rapaz entra em crise e é levado para um pronto-socorro pela família. Relutante em receber atendimento, Marcos entra em uma discussão com a recepcionista do serviço, essa discussão vira um confronto físico e depois uma briga generalizada com a participação de dois guardas municipais que estavam no local e com os reforços chamados por eles posteriormente. Na briga, Marcos se machuca e ao invés de receber atendimento para o transtorno mental, acaba sendo encaminhado para um hospital geral para ter o joelho operado.

Até no surto eu fui parar no 24 horas [...] de lá eu me envolvi em uma discussão com a recepcionista. Da recepcionista eu saí e briguei com dois guardas, desmaiei dois guardas municipais que tinham lá... veio mais 10, quebraram o meu joelho e foi quando eu fui internado né. Eu fui para o [hospital geral] e tudo. Passou uns dias depois, me deu mais uma crise e eu fui internado [no hospital psiquiátrico] (Marcos, 41 anos, auxiliar de radiologia5) .

 

Mas nesse caso, a história continua, pois como não recebeu atendimento para a crise no hospital onde estava internado para cuidar do joelho, os sintomas foram piorando. Quando recebe alta do hospital geral, Marcos entra em crise novamente e dessa vez é encaminhado para uma internação em um hospital psiquiátrico.

 

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao investigar as razões que fizeram o itinerário terapêutico de uma pessoa com diagnóstico de transtorno mental se modificar, seja acrescentando ou abandonando uma opção de cuidado, percebeu-se que os encaminhamentos entre os serviços de saúde, o custo do tratamento, as interações sociais e situações adversas provocaram esse efeito. Todos os episódios aqui destacados são o que Schutz (2012) chama de situação, tal seja, um momento singular de tomada de decisões. Essa noção é importante porque toda ação humana afeta os objetos, as pessoas e os eventos do mundo externo e, em contrapartida, a pessoa também é afetada pelas condições do mundo em que ela habita, criando-se assim um laço sujeito-mundo inexorável.

Ao entrar numa situação, a pessoa aporta todos os seus desejos, seus significados, suas intenções, seu conhecimento, suas expectativas e suas experiências prévias. Nesse momento presente, o que já foi vivido e o plano do que se espera viver também se destacam; passado e futuro entram em cena. É isso que faz com que um episódio qualquer no curso da vida, se transforme em uma situação biograficamente determinada.

Num olhar que não se demora, decidir engajar-se em um tratamento ou abandoná-lo, pode parecer uma simples decisão pragmática, mas nunca é, pois cada ação humana está impregnada de significados. Dizer não a uma internação psiquiátrica, por exemplo, pode falar das experiências passadas de internamento que levam a pessoa a avaliar que este não é o momento para repeti-lo, pode falar do sistema de relevância da pessoa onde existem outras situações que são mais urgentes para lidar agora, ou mesmo pode falar dos planos para o futuro, que um período no hospital psiquiátrico poderia atrasar, mas pode também falar de tudo isso ao mesmo tempo. Só será possível descobrir os significados imbricados na ação de uma pessoa ao escrutinar essa ação, assim, desenvolvemos essa pesquisa no intuito de investigar as experiências de cuidado para o transtorno mental para apreender as conexões de sentido que as pessoas desenvolvem no seu itinerário terapêutico. A generalização desse tipo de dado é sempre problemática, mas ainda assim, representa um conteúdo importante para os serviços de saúde reconhecerem nos seus planos de adesão ao tratamento por parte dos seus usuários.

 

Referências

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Apoio: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior do Brasil (CAPES).

 

Nota sobre a autora:

Camila Muhl - Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná. Especialista em Sociologia Política pela Universidade Federal do Paraná. Psicóloga pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Professora do curso de Psicologia da FAE Centro Universitário. Curitiba/PR – Brasil. Email: came.muhl@gmail.com

 

Recebido em: 01/03/2020
Aprovado em: 21/08/2020

 

1 Helena e Fabiana são nomes fictícios atribuídos a participantes da pesquisa, bem como os outros nomes que serão apresentados também são fictícios, para preservar o sigilo sobre a identidade dos entrevistados.

2 Arthur Kleinman entende que existem diferentes sistemas de cuidado que são orientados por uma matriz cultural e social que extrapola a lógica da exclusividade das racionalidades biomédicas. O autor classifica esses sistemas como profissional, folk e popular.

3 A pesquisa foi realizada em um CAPS II, especializado em transtornos mentais, instalado em uma cidade com cerca de 200 mil habitantes. Esse serviço oferta atendimento diuturno e conta com equipe multiprofissional. A mesma cidade também possuía um CAPS II especializado em Álcool e Drogas e um Ambulatório de Saúde Mental que compunham a sua Rede de Atenção Psicossocial do Sistema Único de Saúde

4 Apesar de a entrevistada usar palavras próximas daquelas usadas para se referir ao sistema prisional, ela está falando da sua passagem por um Hospital-dia, de modo que é possível recuperar o argumento de Goffman (1961) de que instituições carcerárias e psiquiátricas se assemelham em suas práticas e são aquilo que o autor chama de Instituições Totais.

5 Segundo Szasz (1980) o argumento da ameaça é usado para justificar a necessidade de internação do louco, ainda que contra a sua vontade, sendo que esse perigo pode ocorrer em duas direções: o louco pode ser uma ameaça para os outros ou uma ameaça para si mesmo.

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