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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.1 Belém jan./abr. 2021

 

BIBLIOGRAPHIC RESEARCH: REVIEWS

 

Suicídio indígena no Brasil: uma revisão sistemática

 

Indigenous suicide in Brazil: a sistematic review

 

Suicidio indígena en Brasil: una revisión sistemática

 

 

Leandro Passarinho Reis Júnior1; Carmen Hannud Carballeda Adsuara2

Universidade Federal do Pará (UFPA)

 

 


RESUMO

O objetivo do presente trabalho é analisar a produção sobre suicídio entre povos indígenas no campo da saúde "mental" indígena no Brasil, buscando discutir as relações de poder na ciência, a ética do cuidado na saúde coletiva a partir da produção científica brasileira. Foi utilizada a metodologia de revisão sistemática, selecionando artigos na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e SciELO nos últimos cinco anos. Os dados apontam que embora a temática suicídio tenha crescido no país, ao focalizarmos as realidades indígenas a produção acadêmica tem se mostrado tímida, necessitando de maiores investimentos para que seja dada a visibilidade necessária para esta população, principalmente pelo olhar da Psicologia.

Palavraschave: Suicídio Indígena; Revisão Sistemática; Psicologia.


ABSTRACT

The objective of the present work is to analyze the production on suicide among indigenous peoples in the field of indigenous "mental" health in Brazil, seeking to discuss the power relations in science, the ethics of collective health care based on Brazilian scientific production. The systematic review methodology was used, selecting articles from the Virtual Health Library (VHL) and SciELO database in the last five years. The data show that although the theme of suicide has grown in the country, when we focus on indigenous realities, academic production has shown itself to be timid, requiring greater investments in order to give the necessary visibility to this population, mainly through the view of Psychology.

Keywords: Indigenous Suicide; Systematic review; Psychology.


RESUMEN

El objetivo del presente trabajo es analizar la producción sobre suicidio entre los pueblos indígenas en el campo de la salud "mental" indígena en Brasil, buscando discutir las relaciones de poder en la ciencia, la ética de la atención médica colectiva basada en la producción científica brasileña. Se utilizó la metodología de revisión sistemática, seleccionando artículos de la Biblioteca Virtual en Salud (BVS) y la base de datos SciELO en los últimos cinco años. Los datos muestran que, aunque el tema del suicidio ha crecido en el país, cuando nos enfocamos en las realidades indígenas, la producción académica ha demostrado ser tímida, lo que requiere mayores inversiones para dar la visibilidad necesaria a esta población, principalmente a través de la visión de la psicología.

Palabras clave: Suicidio indígena; Revisión sistemática; Psicología.


 

 

O suicídio, de forma geral, é um objeto de estudo que mobiliza diferentes experiências afetivas e cognitivas. Na sociedade ocidental judaico-cristã é um grande tabu falar sobre este problema psicossocial, o qual é observado e mesmo vivenciado sob o atravessamento moral. Em uma cultura em que a vida ganha status de mercadoria, em que uns valem mais que outros de acordo com as normas da ordem e do progresso (normativas binárias, racistas, patriarcais falocêntricas e elitistas), a valorização da existência individual acontece em detrimento das lógicas mais coletivas e comunitárias sobre estar vivo. Para Berenchtein Netto (2013), não basta valorizar a vida, mas, sim, problematizar e saber qual vida se quer viver.

Para esses autores, quando alguém se suicida, já estava morto subjetivamente. Quer dizer, a "semântica" da vida, associada à intencionalidade com que se vive, estaria então muito mais associada às relações sociais que estabelecemos com a realidade. Mas em uma sociedade de classes, marcada por desigualdades sociais profundas, equacionadas a partir da intolerância às diferenças culturais, étnicas e de gênero, apenas quem dita a norma pode humanizar-se e desenvolver suas potencialidades para a realização de seus desejos e necessidades.

Do outro lado do jogo, quem está à margem, tem sua experiência vital constrangida na e pela negação de si. Nesta perspectiva, Bader Sawaia (1999) alerta que para a Psicologia Social, há um tipo particular de sofrimento decorrente dos processos de desumanização: o sofrimento ético-político, o qual seria aquele relativo ao sentimento de não pertencimento (à humanidade) e, mais propriamente, ao sentimento de ser lixo ao invés de pessoa.

No entanto, nos sistemas culturais dos povos indígenas, o sentimento de ser pessoa vai além do ser humano, limitado à espécie do homo sapiens. Assim, a concepção de humanidade encontra-se indissociada de concepção de animalidade, pautada em uma organização social ecológica e em uma divisão do trabalho baseada em complementaridades - e não em camadas sobrepostas hierarquicamente, tanto do ponto de vista da relação humano-humano quanto da relação humano-animal não-humano.

Nesse caso, o ideal de viver bem - de boa vida ou vida plena - e como a felicidade ou o sofrimento são produzidos na afirmação ou na negação disso baseia-se em outro paradigma de existência, em que não há a separação entre humano e não-humano, mas a integração das formas de vidas diversas que compõem o cosmos, numa relação de co-existência e co-dependência. Tal paradigma desafia e denuncia os padrões predatórios de produção e consumo do capitalismo, para o qual tudo se transforma em mercadoria, inclusive a chamada sustentabilidade, como propaganda comprometida de preservação da natureza, ocultando a real intencionalidade de preservar o modelo de exploração, produção e consumo da sociedade capitalista.

Para as feministas comunitárias de Abya Ayala - América Latina para o povo Aymara - J. Paredes & A. Guzmán (2008), a vida plena só é possível pelo caminho da descolonização, trazendo para a centralidade da organização da vida a natureza, a espiritualidade ancestral, os conhecimentos tradicionais, e relações complementares entre homens, mulheres em suas diferentes expressões de sexualidade e gênero.

De fato, há algo que nos une na América Latina, e mais precisamente no Brasil: segundo Gonçalves (2019), esse aspecto é justamente o fato de que fomos e somos colonizados. Isso significa, conforme este autor explica, que há "espelhos enterrados" na história contada pelos invasores, espelhos estes que guardam aquilo que diz respeito a nós, a nossa identidade. Em muitas das nossas leituras e pesquisas incessantes, mesmo na própria Psicologia, por vezes não encontramos algo sobre nós.

A impressão é que a ciência diz algo para nós, tentando nos convencer sobre uma maneira de saber e fazer, que no fim das contas deixa lacunas significativas, mas sobre as quais não sabemos esmiuçar ou explicar. Há algo em nós invisível para essa ciência, por sua vez detentora de uma pretensiosa verdade e de um perigoso poder. A partir do mariateguismo - materialismo histórico dialético latino-americano -, o autor propõe um olhar da Psicologia para a subjetividade popular a partir da categoria da dupla consciência, mediada pela dialética entre o mithos e o logos - o tradicional e o científico (Gonçalves, 2019). Junto com o racismo, o sexismo e o preconceito de classe, a intolerância religiosa e o epistemicídio operam articuladamente no projeto de genocídio contra os povos indígenas em sua diversidade e multiplicidade sociocultural.

Não há conhecimento científico que seja neutro, que esteja separado de relações de poder, a partir das estruturas da sociedade capitalista, como destaca Roberto Machado (2012, p. 28), ao introduzir a Microfísica do poder, de Michel Foucault: "[...] não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e, reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder... todo saber assegura o exercício de um poder". Desse modo, há caráter cíclico entre produção do saber e exercício do poder na sociedade capitalista.

Foucault (2012, p. 268) explicita em que consiste o seu projeto genealógico ou genealogia de saberes: "Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los, em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns". Neste sentido, a instância do conhecimento científico consiste numa instância de legitimação de saberes, hierarquizando como único e verdadeiro e, por conseguinte, válido, o saber da ciência, da academia, desconsiderando outras modalidades de saberes. É nesta perspectiva que o autor indaga sobre os saberes que são desqualificados, ao se afirmar que tal saber é científico e outros não:

[...] que tipo de saber vocês querem desqualificar no momento em que dizem "é uma ciência"? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem "menorizar" quando dizem: "Eu que formulo esse discurso, enuncio um discurso científico e sou um cientista"? Qual a vanguarda teórico-política vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas, circulantes e descontínuas formas de saber? (Foucault, 2012, p. 268).

A partir desta indagação, problematiza-se quais discursos são desqualificados pela ciência, enquanto discurso oficial e legitimado de saber, que se hierarquiza no topo dos saberes, excluindo e deslegitimando outras modalidades de saberes. A Psiquiatria, por exemplo, desqualifica não somente os saberes populares, os saberes dos povos indígenas, como por exemplo os saberes sobre as plantas medicinais, como também desqualifica os saberes dos profissionais da Psicologia, que optam por caminhos teórico-metodológicos que não sejam aqueles que estão no script da indústria farmacêutica, para a qual a saúde e doença do ser humano são tornadas mercadorias, a serviço da lógica do mercado que se sobrepõe às necessidades humanas e à promoção e valorização da vida na sua integralidade.

Nessa direção, Grosfoguel (2016) observa as relações genocidas a partir da ciência cartesiana: "Penso logo existo" seria a própria tese que condensa o ideal epistemicida na manutenção do status quo nas universidades, visto que tal pensamento seria aquele da história única, contada pelos invasores. Quer dizer: "Penso" porque produzo conhecimento validado pela ciência nas universidades e, assim, garanto meu lugar entre os humanos - na visão antropocêntrica -, e a minha própria existência como tal - sentimento de pertença à humanidade. "Conquisto, logo existo", conforme Dussel (2005).

Ora, de que modo poderia então "a margem" subverter ou transformar essa condição subalterna na produção científica? E qual o impacto dessa tensão histórica nas realidades dos povos latino-americanos e, mais precisamente, dos povos indígenas brasileiros? Em 28 de maio de 2020 foi publicada no Instagram a Apresentação da "Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos(as) - ABIPSI: Por uma Psicologia Pintada de Jenipapo e Urucum". Na referida rede social deste movimento social, consta o seguinte:

Nesse sentido, a Psicologia historicamente tem sido construída enquanto ciência e profissão de acordo com um modelo da sociedade ocidental.

[...] Chegou como uma ciência branca, colonizadora, etnocêntrica e por vezes, racista. Trazendo um discurso de explicar para os indígenas o que é saúde mental e pensando políticas públicas, por vezes, sem considerar os códigos culturais indígenas - negligenciando o próprio sistema de cuidado e cosmologia que os indígenas dispõem para enfrentar as fragilidades psicossociais que enfrentam desde a invasão do Brasil [...].

Como a história é dinâmica, e por isso nada está pronto ou totalmente acabado.... Um certo dia, um grupo de indígenas psicólogos e psicólogas resolveram romper com o silêncio da dominação e ocupar o seu lugar de fala (legítimo) na construção de políticas públicas para os seus. Vislumbrando construir uma Psicologia Indígena, ou seja, almejando uma ciência plural capaz de acolher as diversidades e singularidades dos povos indígenas [...].

O lançamento "oficial" da ABIPSI com esta apresentação, que é uma síntese de seu Manifesto, significa um marco na história da ciência e profissão psicológica; afinal, com um grupo coeso e organizado, produzindo narrativas e disputando o campo do saber, a referida Articulação está justamente marcando politicamente sua resistência diante de uma história epistemicida e genocida de universidade e de atuação profissional junto aos povos indígenas. Neste sentido, há uma tensão inegável a ser rompida; aquela que constrange, como um trator sobre as árvores, os princípios de vida dos povos indígenas, cuja existência só pode ser compreendida a partir do comum - vida, trabalho, relações, criações -, do coletivo, da memória oral, da ancestralidade. E quando a ABIPSI alerta sobre a colonização nas políticas públicas, indica, portanto, que na esfera de saúde coletiva há uma falha ética, que tem produzido relações morais e não éticas no cuidado, perpetuando relações centradas numa prática individualista e patologizante imposta pelo colonizador em detrimento do que já está posto pela pluralidade cosmogênica indígena, concebido no sistema filosófico-cultural do Bem Viver.

No caso da compreensão do suicídio não é diferente, demanda esta que foi apontada por algumas lideranças para o Sistema Conselhos de Psicologia, em 2004; de acordo com dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), de 2010 a 2017 foram registrados 725 óbitos, sendo 67,9% relativo ao suicídio de homens indígenas. As lideranças trouxeram a informação de que "para doença de branco, o indígena não tem a solução sozinho". Em outros termos, segundo Bucchilet (1995), há uma imbricação epistemológica no processo saúde-doença, de modo que não se trata de uma doença puramente de branco, tampouco puramente indígena, mas resultado de um contato violento entre a sociedade capitalista e as sociedades originárias. Isso vale, então, para outros processos de vicissitudes e produção de vida, cuidado, Bem Viver.

Quer dizer; para pensar Abya Ayala, e para pensar Brasil, é preciso considerar o genocídio enquanto estrutura. Isto é, um modo ocidental de ampliar o poder; em culturas orientais e indígenas, o poder também é ampliado, mas em uma estratégia antropofágica - uma verdadeira "teia de aranha", segundo a descrição do antropólogo T. Ingold (2000). Dessa forma, vale ressaltar as circunstâncias desse conflito como disparadoras de adoecimento a partir dos constrangimentos ao Bem Viver, sob a determinação do genocídio. Para Adsuara, Araújo e Oliveira (2019), há uma relação direta entre aspectos geopolíticos e a produção do suicídio entre os povos indígenas. Para os autores:

O questionamento acerca do que se passa nas regiões de fronteira, fortemente influenciadas pelo avanço das disputas pelo projeto de sociedade na atualidade, pode trazer, então, muitas pistas acerca da produção objetiva do sofrimento psicossocial. Os projetos de desenvolvimento regional e nacional se imbricam na formulação estratégica do agronegócio, passando por cima de muitos povos e comunidades, em um desenfreado processo de prejuízo aos biomas, ameaçando o bem viver. O índice de suicídios, nesse cenário, também acaba por assumir uma forma geopoliticamente coesa, como expressão de uma forma de avançar que se sobrepõe a vida de quem está na base da pirâmide social e econômica (p. 332).

Diante do avanço do agronegócio, muitos povos estão sendo expulsos dos territórios ou sendo gradualmente espoliados, restando-lhes a beira das estradas ou escassos "pedaços de terra". Com isso, tem sido cada vez mais comum encontrar a mão de obra indígena em fazendas nos entornos das terras indígenas, ou, ainda, indígenas bóias-frias, viajando entre fronteiras em busca da sua sobrevivência e de sua família. Mesmo durante a pandemia do novo coronavírus, muitos indígenas trabalhadores têm atuado nas colheitas, em meio aos agrotóxicos produzidos pelas transnacionais imperialistas, em busca da garantia de algumas diárias. Isso tem acontecido muito entre os Terena, habitantes nos estados São Paulo e no Mato Grosso do Sul. A proletarização da vida indígena também é notável no contexto urbano e, ainda, entre estudantes indígenas que cursam o ensino superior sem qualquer assistência estudantil diferenciada. Indígenas que são catadores de material reciclável, que trabalham nos supermercados como caixas; e ainda mulheres indígenas que tentam a sobrevivência como empregadas domésticas nas grandes cidades.

Como chama atenção em seu livro, Gonçalves (2019) menciona a liderança Sassá Tupinambá que diz que toda a periferia é indígena e negra. E é a partir dessa identificação das margens do capital, que propomos aqui pensar uma relação entre a geopolítica do conhecimento - do ponto de vista da estrutura genocida e epistemicida das universidades - e o suicídio entre povos indígenas. Com base em uma revisão sistemática na BVS e na plataforma Scielo, consideramos ser possível elencar indícios sobre tal relação mórbida entre a maneira como o conhecimento tem sido produzido e para que e para quem ele tem sido produzido, e entre a manutenção do status quo da medicina no rol das ciências nesse processo epistemicida e genocida.

A ciência, enquanto instituição, não apenas possui um papel importante na história da sociedade capitalista como também é parte decisiva na implantação de políticas públicas para o atendimento das necessidades de toda a população. Nessa direção, cabe saber se o conhecimento que está sendo validado cientificamente, segundo o rigor científico, estabelecido pela ordem vigente, tem atendido de maneira diferenciada às demandas de políticas públicas, como também se no caso das publicações sobre "suicídio" e "saúde mental em grupos étnicos" - segundo os descritores validados utilizados para esta pesquisa -, o conteúdo trazido está alinhado ou desalinhado às cosmogenias e aos próprios interesses e necessidades dos povos indígenas no Brasil. Se é revelada uma ética do cuidado ou uma moral curativa, a pluralidade ou o dogmatismo e, por fim, se está sendo assim postulada uma política para a gestão da vida ou da morte a partir da produção da ciência.

 

MÉTODO

A revisão sistemática é uma metodologia de levantar - ou produzir - dados a partir das bases virtuais, buscando mapear o estado da arte das produções em torno de determinada temática e, ainda, cotejar as continuidades e rupturas a partir da análise do conteúdo das publicações identificadas e selecionadas (Gomes & Caminha, 2014). É recomendável que isso seja condensado em tabelas, indicativas das instituições e suas localidades, abordagem teórica e metodológica utilizada pelos autores, ano de publicação, dentre outras categorias de análise que forem consideradas pertinentes pelos pesquisadores, a partir da relação e da leitura dos textos estudados.

Nesta revisão foram utilizadas a base de dados Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) e SciELO. Utilizou-se como descritores: "saúde mental em grupos étnicos" e "suicídio". Também foram utilizados os seguintes filtros: "Assistência integral à saúde indígena", "suicídio", "tentativa de suicídio" e "grupos étnicos", conforme validação dos Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), tendo cormo critério de inclusão os artigos voltados para o suicídio indígena ou de grupos étnicos publicados no período de 2014 a 2019.

Foram excluídos artigos que compreendiam o suicídio em grupos etários não étnicos e publicados há mais de cinco anos. Trata-se, portanto de uma restrição em relação ao tema: o interesse dos autores é a investigação do tema suicídio indígena e não o suicídio em geral. A não observância desses trabalhos justifica-se pelo critério de exclusão de todos e quaisquer artigos que não se referissem ao suicídio indígena ou de grupos étnicos.

De posse dos dados, criaram-se as variáveis quantitativas e qualitativas de análise: (1) ano de publicação; (2) método utilizado na pesquisa; (3) região brasileira de origem do estudo e (4) área da saúde responsável pela publicação.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da metodologia de revisão sistemática, foram encontrados trabalhos apenas na base da BVS, enquanto que na base de dados SciELO não foram encontrados nenhum artigo conforme os critérios de inclusão já mencionados. Destes 6.564 sobre saúde mental em grupos étnicos; 61.501 publicações exclusivamente sobre suicídio, sem o critério de data (em anos); e 42.717 interseccionando-se ambos os descritores com a ferramenta de "busca avançada". Com a adição de todos os filtros indicados - "assistência integral à saúde indígena"; "suicídio"; "tentativa de suicídio"; "grupos étnicos" - chegou-se a 01 (um) trabalho sobre saúde mental em grupos étnicos, 10 sobre suicídio, e os mesmos 10 para a busca avançada, sobre saúde mental em grupos étnicos e suicídio. Desses, apenas um trabalho preencheu o critério de ser exclusivamente voltado para o contexto dos povos indígenas no Brasil e de corresponder a produção científica dos últimos cinco anos, sendo datado de 2018.

O estudo que encontramos na BVS sob essas características, foi publicado em 2018 por pesquisadores de instituições nacionais e internacionais, quais sejam, Universidade de Yale, Universidade de Standford, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul e Fundação Oswaldo Cruz. O estudo possui referencial epidemiológico e utilizou a metodologia de coorte, concentrando as preocupações em torno dos povos na região de Dourados-MS, em especial os Guarani-Kaiowá. Intitulado "Suicide in Brazilian indigenous communities: clustering of cases in children and adolescents by household", é de autoria de Lazzarini, T.; Gonçalves, C.; Benites, W.; Silva, L.; Tsuha, D.; Ko, A.; Rohrbaugh, R.; Andrews, J.; Croda, J, e foi publicado na Rev. Saúde Pública, sendo indexado na MEDLINE. Na BVS consta apenas a versão em inglês. Como apenas um artigo preencheu os critérios de seleção para nosso levantamento, optamos por não sistematizar as informações da referência em uma tabela.

Vale dizer que a priori chamou atenção não apenas a escassez de trabalhos sobre a temática - o que já era previsto considerando-se tanto o suicídio como tabu na sociedade e na ciência ocidentais judaico-cristãs capitalistas, quanto a própria estrutura epistemicida e, portanto, genocida, nesses contextos - apesar de constituir-se em uma demanda concreta da realidade da saúde indígena no país, mas também a presença de poucos trabalhos da Psicologia em um assunto evidentemente vinculado ao nosso campo do saber.

Isso é um problema, principalmente porque é possível que indique uma espécie de "lapso" do sistema por detrás do rigor científico no que tange à própria manutenção da hegemonia biomédica no campo da saúde mental e saúde "mental" indígena. Ademais, não há filtro para a temática indígena nos campos de busca da BVS e essa especificidade seria fundamental, ao nosso ver, para a visibilidade dos trabalhos relativos às realidades dos diferentes povos no território nacional.

No que se refere ao método utilizado, embora saibamos da ampla utilização de estudos de coorte nas pesquisas em saúde e suas vantagens, há que se refletir também sobre sua objetividade e como todo método, suas limitações que abrem portas para novas pesquisas que avancem mais para os critérios da subjetividade. Em outras palavras, embora o tratamento quantitativo seja muito bem delineado, cumprindo com a proposta metodológica de estudo de coorte e com os objetivos anunciados, entretanto também apontam para maiores investimentos para as possíveis causas do suicídio indígena no país, o que poderia ser alcançado por investigações qualitativas.

No que tange a região de origem do estudo, o mesmo foi realizado na região Centro-oeste, mais especificamente centrado nos Guarani-Kaiowá na região do Estado do Mato Grosso do Sul, por sua vez muito conhecido pela guerra civil entre indígenas e latifúndiários e transnacionais, segundo dados de 2015 do Conselho Indigenista Missionário (CIMI): "Na reserva de Dourados […] eles estão submetidos a circunstâncias desumanas e indignas, que se revertem em doenças, em suicídios [...] Em um período de 15 anos, entre 2000 e 2014, pelo menos 707 indígenas se suicidaram no Mato Grosso do Sul". Além de constar como um dos arcos de suicídio indígena/ASI) entre a mesorregião Sudoeste do Mato Grosso do Sul, na fronteira com a Bolívia e o Paraguai (Mota, 2014).

De acordo com Mota, há uma concentração de casos de suicídio indígena em áreas, que, para ele, encontram-se correlacionados com a forma de realização do desenvolvimento regional, no bojo de um projeto de país pela via da expansão desorientada com relação às diferentes formas de viver que se (des)encontram nas regiões de fronteira, que desconsidera os diferentes tipos de relação sociedade-natureza (Adsuara, Araújo, Oliveira, 2019, p. 330).

Segundo Berenchtein Netto (2012), os suicídios entre povos indígenas surgiram - ou intensificaram-se - a partir da invasão de seus territórios no início da colonização; tese semelhante a de Pechincha (2015) acerca de que todos os suicídios indígenas estariam ligados à trama social. Concordando com isso, e ainda, entendendo que de fato há um encontro epistêmico e uma tensão entre mithos e logos na produção das subjetividades e, tão logo, da saúde-doença e da vida-morte, entendemos que o epistemicídio não é um fenômeno do plano das ideias, mas da base de realidade que tem produzido as disputas de interesse na América-Latina e no Brasil. O epistemicídio é, portanto, aqui associado diretamente ao avanço do cenário de genocídios e suicídios entre povos indígenas - estes, por sua vez, uma expressão das existências enquanto resistências.

Neste sentido, vale seguir na análise de conteúdo e problematizar o teor qualitativo do trabalho levantado a partir de 1- evidenciam as concepções próprias dos povos estudados? 2- trazem à tona uma crítica aos impactos da colonização e ou da expansão do capitalismo na vida indígena e no seu processo do Bem Viver? 3- abordam relações de gênero que marcam politicamente os suicídios entre povos indígenas? Esses três pontos trazem elementos-chave para o entendimento do suicídio a partir de uma perspectiva ética do cuidado em saúde coletiva, pois concordamos com Adsuara, Araújo & Oliveira (2019) que isso significa defender essas outras formas de viver e existir; enfrentar o sistema econômico que reproduz a existência ocidental em sobreposição àqueles e àquelas que se encontram na base da pirâmide socioeconômica; e, por fim, buscar um novo projeto de sociedade, que não tenha como base o genocídio, o etnocídio, o ecocídio, a dominação e a exploração.

Os trabalhos de Lazzarini; Gonçalves; Benites; Silva; Tsuha; Ko; Rohrbaugh; Andrews & Croda (2018) objetivou estimar as taxas de suicídio por idade e sexo, comparando as comunidades indígenas de Dourados, e quantificando a frequência de agrupamentos intrafamiliares de suicídio. Com base em um estudo de coorte com 14.666 indivíduos indígenas de 2003 a 2013, usando o censo nacional e local, foi encontrada uma taxa geral de suicídios correspondente a 73,4 por 100.000 pessoas-ano, sendo as mais altas taxas entre crianças e adolescentes, particularmente em comunidades pobres, e quase metade dos suicídios infantis foram identificados em grupos de famílias, apesar dos autores alertarem para o fato de que o agrupamento suicida nessa população pode ser muito maior se grupos sociais e famílias extensas forem considerados. Por fim, são recomendadas amplas intervenções em saúde pública e intervenções focadas em saúde mental em domicílios após um suicídio. Trazem ainda em suas conclusões alguns indícios para respondermos às questões para a análise, indicando a falta de acesso à educação e ao emprego como fatores associados ao abuso de substâncias, à desesperança e ao suicídio.

Ora, é possível observar uma atenção no trabalho para questões sociais, mas que parecem insuficientes no que toca à totalidade heterogênea, plural, das realidades estudadas. Conforme o trabalho de Mota (2014), a questão territorial parece central para a análise do suicídio entre povos indígenas, visto que a saúde desses povos está imbricada ao Bem Viver. Dessa forma, também o uso de álcool e outras drogas precisa ser compreendido a partir de um contexto bem mais amplo, trazendo à tona as ressignificações e os diferentes usos a partir da própria história de contato com a sociedade não indígena (Adsuara, 2016). As concepções de pobreza e de família também parecem conter lacunas quanto às concepções próprias dos povos indígenas, de acordo com sua própria organização social e de parentesco. As noções de desenvolvimento humano e ciclo vital, por sua vez, também precisam ser compreendidas a partir da lógica do território.

Assim, a ideia de intervenção parece subalternizar as tecnologias e metodologias próprias dos povos indígenas e suas comunidades para seu protagonismo nas relações de cuidado. Quer dizer, epistemologicamente, o próprio lugar dos profissionais da saúde "mental" precisa ser repensado a partir da tensão entre mithos e logos no próprio ethos de cada povo. E, nesse caso, por vezes outros especialistas, como xamãs, pajés, e raizeiras(os), poderão ser acionados de maneira central pelas comunidades, quando o suicídio, enquanto um problema do ponto de vista do próprio povo, for concebido em sua natureza espiritual - e não "mental".

Por fim, com relação às relações de gênero, a sistematização quantitativa dos suicídios abarca apenas a divisão binária sexista entre homens e mulheres, estando subnotificada quanto à diversidade sexual e de gênero. Como os dados foram retirados do Sistema Especial de Informação Indígena/SIASI e do Censo Nacional/IBGE, essa lacuna precisaria ser revista no âmbito das política públicas. A subnotificação sobre o suicídio de indígenas lésbicas, a propósito disso, foi apontado anteriormente por Perez; Soares & Dias (2018) no Dossiê de Lesbocídio, configurando uma demanda de pesquisa importante.

 

CONSIDERAÇÕES

Esse trabalho partiu de uma preocupação acerca do panorama das produções sobre o suicídio entre os povos indígenas, no campo das pesquisas em saúde pública; e a partir do levantamento de revisão sistemática pode concluir que, como já previsto, o rol de publicações validadas por meio dos descritores científicos na BVS é bastante escasso, sendo que para os últimos cinco anos apenas um artigo exclusivamente sobre a temática foi encontrado. Neste sentido, aponta-se a necessidade de pesquisas aprofundadas a partir dos referenciais dos próprios povos indígenas, considerando-se ainda que por vezes as lideranças espirituais terão um papel central nos trabalhos de prevenção do suicídio e da promoção de saúde, o que também significa, com efeito, uma gama de conhecimentos que, por óbvio, não é passível de acesso pela ciência, configurando-se em um segredo da comunidade, berço das resistências.

Vale lembrar de Martín-Baró (1997) sobre o papel e a identidade da Psicologia ser um campo em aberto, de acordo com a análise de conjuntura e com o pressuposto da luta pela autonomia dos povos latino-americanos. Com efeito, o estudo do suicídio entre povos indígenas pode não apenas revelar os caminhos para seu enfrentamento no campo da práxis junto aos conhecimentos tradicionais, como também "desenterrar espelhos" que a hegemonia médica e a própria Psicologia dominante têm "matado"; uma grande potência para a reinvenção da Psicologia em uma perspectiva enraizada o máximo possível nas mais originais influências sobre o "ser gente", o (con)viver e o morrer no território nacional.

Consideramos, assim, que nossos achados trazem pistas importantes sobre o epistemicídio e também sobre a relação de poder da (bio)medicina sobre a Psicologia; e tal como está posto o "rigor científico" no fazer e no saber científico, a universidade de fato vem caminhando disciplinadamente - ou obedientemente - nas diretrizes impostas pelo sistema capitalista. Desse modo, enquanto não houver implicação ético-política regendo o compromisso social da produção de conhecimento, principalmente, nesse caso, com relação aos estudos de suicídio indígena, cenários como de Dourados irão continuar seguindo com o respaldo acadêmico necessário ao genocídio dos povos indígenas.

Por fim, a partir dessa análise acerca da relação entre o panorama quantitativo e qualitativo dos estudos científicos sobre suicídio entre povos indígenas no campo da saúde "mental" indígena e o genocídio dos povos indígenas, defendemos o cuidado na perspectiva da ética e esta, por sua vez, no compromisso político com o Bem Viver dos povos latino-americanos. Apoiamos, nessa direção, organizações indígenas como a ABIPSI, pois apenas com a disputa de narrativas na produção científica e profissional na Psicologia e na Saúde Coletiva de modo protagonizado pelos próprios povos indígenas, será possível também disputar as consciências dos estudantes, pesquisadores e profissionais não-indígenas, no tocante à ética do cuidado, às epistemologias plurais e à construção de uma outra Psicologia - mais afetada e comprometida ao que nos faz sentirmos gentes nesse Brasil plural.

 

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Recebido em: 30/06/2020
Aprovado em: 08/01/2021

 

 

1 Leandro Passarinho Reis Júnior: Universidade Federal do Pará – UFPA. Psicólogo. Professor Adjunto IV do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Pará - UFPA.
2 Carmen Hannud Carballeda Adsuara: Universidade Federal do Pará – UFPA. Psicóloga. Doutoranda em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP) da Universidade Federal do Pará - UFPA.

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