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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.1 Belém jan./abr. 2021

 

THEORETICAL TEST

 

O encontro da Logoterapia com a Psicometria: considerações ontoepistemológicas

 

The Logotherapy meeting with Psychometrics: onto-epistemological considerations

 

El encuentro de Logoterapia con Psicometría: consideraciones ontoepistemológicas

 

 

Raul Bruno Tibaldi Nascimento1

Universidade Federal de Mato Grosso

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teórico aborda as implicações ontoepistemológicas inerentes à combinação entre a Logoterapia e a Psicometria, considerando o contexto da construção, adaptação e validação de testes psicológicos de base logoterapêutica. São analisados os desafios epistemológicos relativos à mensuração de construtos psicológicos, as bases epistemológicas da Logoterapia e as contribuições da ontologia dimensional de Viktor Frankl para uma perspectiva psicométrica no âmbito da psicologia fenomenológico-existencial. O estudo encaminha uma discussão sobre a ótica fenomenológica acerca dos testes psicológicos, referindo-se à natureza reducionista das conclusões de cunho quantitativista sobre os fenômenos humanos, bem como à materialização, disciplinamento e ordenação da subjetividade humana.

Palavraschave: Logoterapia; Psicometria; Fenomenologia Existencial


ABSTRACT

This theoretical study addresses the ontoepistemological implications inherent in the combination of Logotherapy and Psychometrics, considering the context of the construction, adaptation and validation of logotherapeutic psychological tests. The epistemological challenges related to the measurement of psychological constructs, the epistemological bases of Logotherapy and the contributions of Viktor Frankl's dimensional ontology to a psychometric perspective within the scope of phenomenological-existential psychology are analyzed. The study addresses a discussion on the phenomenological perspective on psychological tests, referring to the reductionist nature of the quantitative conclusions about human phenomena, as well as to the materialization, disciplining and ordering of human subjectivity.

Keywords: Logotherapy; Psychometrics; Existential Phenomenology


RESUMEN

Este estudio teórico aborda las implicaciones ontoepistemológicas inherentes a la combinación de Logoterapia y Psicometría, considerando el contexto de la construcción, adaptación y validación de pruebas psicológicas basadas en la logoterapia. Se analizan los desafíos epistemológicos relacionados con la medición de constructos psicológicos, las bases epistemológicas de la logoterapia y los aportes de la ontología dimensional de Viktor Frankl a una perspectiva psicométrica en el ámbito de la psicología fenomenológico-existencial. El estudio aborda una discusión sobre la perspectiva fenomenológica de los tests psicológicos, refiriéndose al carácter reduccionista de las conclusiones cuantitativas sobre los fenómenos humanos, así como a la materialización, disciplinamiento y ordenamiento de la subjetividad humana.

Palabras clave: Logoterapia; Psicometría; Fenomenología Existencial


 

 

Este estudo teórico foi desenvolvido no âmbito da execução de uma pesquisa de mestrado em Psicologia na qual se objetiva realizar estudos de adaptação e validação de uma escala de mensuração de interesses profissionais centrados no sentido de vida.

A partir da circunscrição desse objetivo de pesquisa, a presente análise crítica estará fundamentada em torno da controvérsia inicial resultante do encontro entre a ciência psicométrica e um campo do saber fenomenológico-existencial, tal qual a Logoterapia. Para Esping (2018), trata-se de um inerente contraponto a uma teoria que prioriza o sentido potencial de cada sujeito e que considera a unicidade de suas experiências subjetivas como componente indispensável da verdade, de modo que generalizações científicas são consequentemente minimizadas.

Um dos obstáculos da pesquisa empírica em Logoterapia se refere à objetivação do subjetivo e à mensuração de aspectos inobserváveis da existência humana, especificamente a percepção de sentido de vida. Apesar das dificuldades, considera-se que essas tentativas não devem ser negligenciadas, pelo contrário, precisam ser incentivadas em vista do potencial das medidas psicológicas para contextos clínicos, por exemplo (Schulenberg, 2003). De fato, reportam-se diversas investigações psicométricas e desenvolvimento de instrumentos para mensuração de construtos logoterapêuticos nas últimas décadas, mas essa é uma área que ainda precisa ser expandida em diferentes aspectos e contextos (Schulenberg, Hutzell, Nassif, & Rogina, 2008).

Considerando esse contexto, este estudo teórico discute implicações ontoepistemológicas subjacentes às tentativas de produção de um conhecimento científico caracterizado pela aplicação de técnicas psicométricas ao arcabouço teórico-conceitual da Logoterapia. Inicialmente, discorre-se sobre os desafios epistemológicos em Psicometria e são apresentadas as bases epistemológicas da Logoterapia; em seguida, são delineadas considerações decorrentes do encontro entre esses campos do saber psicológico.

 

DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS EM PSICOMETRIA

A Psicometria é apontada por Golino (2017) como a forma pela qual suposições e postulados acerca de construtos psicológicos podem ser testados e verificados por meio de dados empíricos, o que contribui para o avanço do conhecimento sobre fenômenos psicológicos.

Com esse propósito, a Psicometria representa uma interface entre Psicologia e Estatística, propondo-se a estudar os fenômenos psicológicos por meio de sua mensuração. Ou seja, consiste numa ciência caracterizada pela aplicação da teoria e técnica de medir objetos psicológicos, representando e descrevendo-os por meio dos números (Cohen, Swerdlik, & Sturman, 2014; Pasquali, 2003, 2009).

Trata-se, portanto, de uma área da Psicologia de orientação epistemológica do tipo quantitativista, cujos fundamentos estão inseridos na chamada Teoria da Medida, a qual, por sua vez, decorre de uma interseção entre matemática e ciência. Em que pesem as distinções e irreversibilidades epistemológicas entre ambas, a Teoria da Medida tem seu objeto de estudo delineado justamente a partir do uso do símbolo matemático (o número) para representar e estudar, cientificamente, fenômenos naturais (Pasquali, 2003).

Contudo, explica Pasquali (2003), o desafio que se apresenta para a Psicologia, assim como para as ciências psicossociais em geral, é o da viabilidade de mensuração dos seus objetos de estudo, visto que estes correspondem a atributos irredutíveis às mesmas formas de medida como os das ciências físicas, por exemplo, cujas características permitem o estabelecimento de representações por meio de unidades-base naturais específicas ou medidas extensivas2.

No intuito de contornar esse problema, a Psicologia se vale, então, de teorias científicas que estabelecem hipóteses sobre as relações entre atributos e fenômenos, por meio das quais seria possível a medida indireta desses atributos. Nesse sentido, a Teoria Psicométrica, ou Teoria dos Testes Psicológicos, aparece como um desses mais importantes enfoques teóricos utilizados para a mensuração psicológica (Pasquali, 2003).

Entretanto, devido a divergências metodológicas e à inexistência de consenso sobre a melhor maneira de proceder à medida dos fenômenos psicológicos, a Psicometria se desdobra em três grandes modelos de mensuração, a saber, a Teoria Clássica dos Testes, os Modelos de Variáveis Latentes e a Teoria Representacional da Medida (Borsboom, 2005; Hauck & Zanon, 2015).

A Teoria Clássica dos Testes é centralizada na ideia de que o escore verdadeiro (V) de um indivíduo pode ser conhecido por meio dos respectivos escores observados (T) e da devida estimação e minimização dos erros aleatórios (E) neles contidos e que influenciam tais observações. Modelos de Variáveis Latentes, por sua vez, estão centrados no conceito de atributos inobserváveis que determinariam as respostas dos indivíduos; isto é, defende-se a ideia de que esses atributos, denominados variáveis latentes (X), estabelecem uma relação causal para com os escores obtidos (y) nos testes, os quais também seriam influenciados por fontes de erros aleatórios (ε). As ideias centrais subjacentes à Teoria Clássica dos Testes e aos Modelos de Variáveis Latentes estão ilustradas, respectivamente, nas Figuras 1 e 2. Por fim, a teoria representacional da medida é concebida conceitualmente a partir das escalas, definidas como representações numéricas das relações de similaridade ou dissimilaridade empiricamente observadas entre indivíduos (Borsboom, 2005; Hauck & Zanon, 2015).

 

 

 

Diante dessas diferenças, um questionamento previsível diz respeito à escolha do melhor ou do modelo correto de mensuração, com base nas respectivas vantagens e desvantagens. Todavia, ressaltam Borsboom (2005) e Hauck e Zanon (2015), a pertinência desse tipo de comparação e avaliação entre os modelos só se justifica em termos de suas inerentes consequências filosóficas, inclusive pelo fato de eles corresponderem apenas à conexão entre teoria e observação pela qual as teorias psicológicas, essas sim, são testadas, desenvolvidas e/ou refinadas.

Assim, e tendo por base a perspectiva apresentada por Borsboom (2005), os modelos de mensuração podem ser analisados a partir dos respectivos posicionamentos frente à natureza da existência dos atributos psicológicos a que se propõem estudar, e, consequentemente, dividem-se em dois campos. O primeiro campo é o daqueles nos quais os construtos psicológicos são considerados entidades cuja existência independe de um observador e que, portanto, implementam uma ontoepistemologia realista. De acordo com o autor, os modelos de variáveis latentes são uma implementação desse raciocínio. O segundo campo engloba os que, pelo contrário, negam o estatuto de existência independente do que se pensa e fala sobre eles (neste caso, independente das tentativas de sua mensuração). O autor inclui a teoria representacional da medida neste campo e o denomina, genericamente, de construtivista.

Essa divisão básica é ratificada e detalhada por Hauck (2014) numa revisão crítica das duas bases conceituais da Psicometria: a Teoria Representacional da Medida (TRM) e a Perspectiva Realista da Medida (PRM). Similarmente, o estudo aponta que o principal ponto de contraste entre as premissas básicas dessas correntes teóricas é que a PRM endossa pressupostos filosóficos realistas, admitindo que os atributos psicológicos existam independentemente de observação, enquanto que, para a TRM, esses atributos não passam de criações dos próprios procedimentos de medida que se dão por meio de abstrações matemáticas de relações observáveis entre objetos. Disso decorre que, "enquanto os autores realistas endossam a ideia de que investigar a mensurabilidade é uma condição prévia à medida, os representacionistas buscam responder a essa questão pela via da construção de escalas" (Hauck, 2014, p. 402).

Consoante a apreciação de Hauck (2014), as perspectivas representacionista e realista divergem, fundamentalmente, em suas posturas quanto ao problema da mensurabilidade e, por isso mesmo, encerram dificuldades teóricas e práticas virtualmente incontornáveis pela ciência contemporânea. Por um lado, pesa desfavoravelmente contra a TRM a sustentação em raciocínios indutivos dependentes qualitativamente da observação de elementos empíricos, o que interfere radicalmente no alcance dos teoremas da representação e da unicidade3; por outro lado, apesar de ir ao encontro de parte significativa da ciência psicológica com uma visão realista dos atributos psicológicos, a PRM não dispõe de formas de garantir que esses atributos sejam necessariamente quantitativos e, portanto, passíveis de mensuração.

Posto isso, verifica-se o quanto a pesquisa científica em Psicometria está, fundamentalmente, perpassada por controvérsias importantes para as quais não se vislumbram consensos hegemônicos. Contudo, na visão de Maul (2013), em se tratando de avaliação psicológica, pressupõe-se que o desenvolvimento de investigações psicométricas coerentes seja precedida pela compreensão do que elas realmente são – e, portanto, das questões fundamentais e não resolvidas a que se propõem. Ademais, embora se apresentem como discussões desafiadoras e que talvez, a princípio, desestimulem o empreendimento de estudos de validação de instrumentos psicológicos, "os problemas conceituais aqui debatidos devem ser utilizados como uma inspiração para novas investigações científicas, e não como um empecilho a elas" (Hauck, 2014, p. 406).

Nesse sentido, convém expor brevemente algumas perspectivas que procuram "apaziguar", minimamente, os debates anteriormente apresentados, ratificando a pertinência e a própria viabilidade da pesquisa que motivou o presente estudo teórico.

Com relação à ontologia dos atributos psicológicos, e de suas implicações epistemológicas e metodológicas em Psicometria, Guyon, Kop, Juhel e Falissard (2018) argumentam que a avaliação quantitativa em Psicologia certamente atingirá uma espécie de "beco sem saída" ao lançar mão do mesmo tipo de objetividade ontológica adequada aos objetos das ciências físicas, cuja existência independe de observação, intencionalidade ou de relações sociais. Para esses autores, a operacionalidade da Psicometria depende da adoção de um "novo paradigma de realidade", de caráter pragmático-realista, na medida em que os atributos psicológicos sejam considerados em sua materialidade tanto objetiva (enquanto manifestações radicados num sistema complexo, holístico e irredutível de processos físico-químicos cerebrais), como intersubjetiva (enquanto dependente e determinada por conceituações e relações sociais). Isto é, "atributos psicológicos não existem enquanto entidades independentes das percepções e interações humanas, mas eles correspondem sim a algum tipo de realidade" (Guyon et al., 2018, p. 6).

Esse posicionamento epistemológico se caracteriza, portanto, pela oposição ao realismo empírico, para o qual os objetos psicológicos existem em independência de seus observadores, bem como pelo contraste ao construtivismo radical, que os considera meramente construções sociais ou "invólucros intelectuais" desconectados de qualquer tipo de realidade. Numa abordagem pragmática-realista, o termo "construto" denota justamente o elo entre uma realidade física indiscernível (emergente de uma determinada organização funcional do cérebro) e a realidade social (definições construídas com base em interações intersubjetivas) dos atributos psicológicos (Guyon et al., 2018).

Isso implica em que, da mesma forma que "um atributo psicológico é um objeto social, assim também as respectivas teoria e mensuração são práxis sociais" (Guyon et al., 2018, p. 16), cuja validação, portanto, sempre dependerá da evolução das teorias psicológicas, ou seja, da renegociação das representações sociais desses atributos e da rede de significados compartilhados entre pesquisadores. Por conseguinte, ao invés da "verdade" acerca de um construto, uma abordagem pragmática-realista da medida psicológica prezará por coerência e utilidade, mediante o questionamento sobre a possibilidade de ele ser ou não consistentemente representado por uma medida de acordo com sua teoria (Guyon et al., 2018).

Em termos práticos, existem modelos de mensuração considerados adequados ao atendimento de parâmetros de representação numérica, ao mesmo tempo em que partem de uma perspectiva realista de variáveis latentes, tais como o modelo de Rasch, ainda que este não aborde satisfatoriamente a estimação de variabilidade dos traços latentes num nível intraindivíduo, muito menos garanta a verificação empírica da natureza quantitativa de um atributo psicológico (Hauck, 2014; Hauck & Zanon, 2015). O modelo de Rasch foi um dos principais trabalhos estatísticos responsáveis pela consolidação da Teoria de Resposta ao Item (TRI), a qual é um dos modelos matemáticos para variáveis latentes (Araujo, Andrade, & Bortolotti, 2009).

Inevitavelmente, retoma-se a discussão relativa à existência dos três grandes modelos de mensuração em Psicometria – e de uma eventual escolha por um em detrimento dos outros. Entretanto, uma tomada de decisão nesse sentido se torna melhor fundamentada, menos aleatória, depois de analisados os pressupostos filosóficos subjacentes a cada um desses modelos.

De acordo com a análise de Borsboom (2005), essa escolha envolve tanto um compromisso ontológico, como um posicionamento acerca da medida em psicologia, o que impacta, consequentemente, a definição da validade dos procedimentos psicométricos. Segundo o autor, a pesquisa em Psicometria requer coerência entre a ontologia dos construtos psicológicos e os modelos utilizados para testar as hipóteses acerca deles. Em outras palavras, a forma como um investigador define seu objeto de estudo deve, invariavelmente, determinar o respectivo método de investigação, o que confere ainda maior sentido à afirmação de que "a investigação da mensurabilidade de um atributo psicológico depende não apenas de recursos metodológicos adequados, mas de uma teoria psicológica 'forte' sobre esse atributo" (Hauck, 2014, p. 405).

A mensuração psicológica assume, pois, a existência de um atributo com determinada estrutura (qualitativa ou quantitativa, de acordo com certa dimensionalidade) para a qual deve haver um instrumento psicológico "sensível", isto é, capaz de demonstrar quaisquer variações no atributo mensurado por meio de variações nos resultados (respostas) observados pela mensuração (Borsboom, 2005, p. 146).

Em conclusão, se se verifica uma cadeia causal que relaciona variações no atributo a variações nos resultados observados pela mensuração, então esses resultados podem ser utilizados para inferir a posição de um objeto ou de uma pessoa na estrutura do atributo. Isso só pode acontecer se o atributo existe e tem determinada estrutura; do contrário, ele não pode adentrar uma relação causal (Borsboom, 2005, p. 148, tradução nossa).

E é precisamente essa constatação que direciona a discussão para o tema da validade dos testes psicológicos, posto que "quando se afirma que um teste é válido, assume-se o posicionamento ontológico de que o atributo mensurado existe e afeta o resultado de um procedimento de mensuração" (Borsboom, Mellenbergh, & Heerden, 2004, p. 1063).

De acordo com Borsboom et al. (2004), apesar de serem termos usados, por vezes, indistintamente, validade está ligada a ontologia e se refere a uma propriedade dos instrumentos, enquanto validação corresponde à epistemologia e compreende um conjunto de atividades empregadas para verificar se um teste possui a propriedade de validade. O perigo que isso apresenta para a Psicometria, segundo os autores, é incorrer no uso de procedimentos epistemológicos para tentar comprovar algo que deveria ser considerado a priori, como uma condição necessária e distinta dos processos de mensuração. Sobre a mesma questão, Pasquali (2007, p. 106) complementa com a afirmação de que "validade diz respeito ao instrumento e não ao uso que se faz dos seus escores".

Em última instância, o que se pretende consolidar é que o conceito de validade de um instrumento psicológico deve ser assentado não apenas em procedimentos puramente metodológicos, mas, primariamente, em hipóteses explicativas dos processos relativos às variações entre atributos e as respectivas variações nos escores do instrumento. O que está sendo medido não deve ser um resultado dos dados empíricos em si, mas de uma teoria explanatória sobre o elo entre atributo e escores no teste (Borsboom et al., 2004).

Corrobora-se, mais uma vez, a relevância de modelos de variáveis latentes, tais como a Teoria de Resposta ao Item (TRI), fundamentados, necessariamente, por uma concepção dualista do ser humano e que operacionalizam em ambos os níveis psíquico (teta) e físico (tau), conforme ilustrado na Figura 3.

O construto (traço latente, teta) se posiciona como o objeto que o teste quer medir, isto é, ele é o aquilo que o teste pretende medir. Então, ele é o referente, em função do qual a qualidade do teste deve ser avaliada. Consequentemente, as respostas ao teste (o escore no teste, o observável, o tau) não criam o construto, antes, pelo contrário, é o escore no teste que depende do construto (Pasquali, 2007, p. 106).

 

 

Considerando todo o exposto, o principal desafio epistemológico para a Psicometria é se ocupar, fundamentalmente, de análises estatísticas e parâmetros considerados mínimos para a validação da correspondência entre um atributo latente e a respectiva operacionalização em comportamentos (itens) (Pasquali, 2003).

 

BASES EPISTEMOLÓGICAS DA LOGOTERAPIA

A teoria psicológica norteadora deste estudo foi estabelecida pelo psiquiatra e neurologista austríaco Viktor Emil Frankl (1905-1997) no bojo do surgimento das psicologias de caráter humanista-existencial no século XX. A abordagem desenvolvida por Frankl representa, portanto, uma das variadas respostas àquele contexto histórico em particular e as origens de sua sistematização científico-filosófica remontam às contribuições de pensadores existencialistas e fenomenólogos, tais como Husserl, Max Scheler, Nicolai Hartmann, Heidegger, Jaspers e Gabriel Marcel, entre outros (Martínez Robles & Martínez Ortiz, 2013; Xausa, 2011).

Essa teoria é amplamente conhecida como Logoterapia, a qual é, na visão de Xausa (2011, p. 124), "a versão original de Frankl sobre a moderna análise existencial". Trata-se de uma afirmação certamente inspirada pela descrição do próprio Frankl (2012, p. 55) de que "a logoterapia e a análise existencial são, respectivamente, aspectos de uma e mesma teoria", e por sua referência à logoterapia como a configuração terapêutica da análise existencial, que, por sua vez, pode ser compreendida, duplamente, como corrente antropológica de pesquisa e tentativa de uma antropologia psicoterapêutica anterior à psicoterapia. O autor explica que, em verdade, logoterapia e análise existencial partem de uma prática clínica implicitamente já influenciada e determinada por uma visão ou teoria de ser humano, para a qual é inevitável que ambas confluam, fechando, portanto, o círculo.

Cumpre ressaltar que, no contexto do termo "Logoterapia", logos denota e deve ser entendido não apenas como "sentido", mas também "espírito4", referindo-se, pois, respectivamente, ao sentido e à humanidade do ser humano (Frankl, 2011, 2019). Peter (1999, pp. 29-30) acrescenta que "'logos' está para 'espiritual' assim como para significado, na medida em que o homem é a única criatura que busca o significado da própria existência". A dualidade etimológica empregada por Frankl parece condensar seu esforço na definição da logoterapia como a terapia que parte "do" espiritual, e da análise existencial como a análise voltada "para" o espiritual, pressupondo e apontando para o mundo objetivo do sentido e dos valores (Frankl, 2019, p. 253).

O que se pretende demarcar é que, diferentemente do que o nome pode sugerir, não se trata apenas de um mero método psicoterapêutico, mas de um complexo e indissociável sistema fenomenológico-analítico-terapêutico que integra método, teoria e técnica (Peter, 1999). Xausa (2011) reafirma se tratar de um sistema completo de psicologia, incluindo teoria psicológica fundamentada numa antropologia da pessoa, bem como método e aplicação psicoterapêuticos em torno do centro espiritual do homem em busca do logos, ou de sentido de vida. A partir da descrição de Lukas (1989), a Logoterapia pode ser classificada como sistema completo na medida em que se consideram suas três "colunas" disciplinares: (1) liberdade da vontade, fundamento antropológico do ser humano; (2) vontade de sentido, princípio motivacional e psicoterapêutico; e (3) sentido de vida, categoria basilar da imagem de mundo e da filosofia da teoria. Em suma, é possível se referir à Logoterapia como teoria que vai além da psicoterapia e se caracteriza como uma antropologia filosófica aplicada à vida (Martínez Ortiz, 2013b), o que possibilita sua aplicação em diferentes contextos humanos, tais como o da educação e da saúde.

Destarte, considerando a forma como é difundida no contexto acadêmico e o escopo deste estudo, optou-se, assim como proposto por Peter (1999), pelo uso do termo "Logoterapia", com inicial maiúscula, o qual sempre estará sendo remetido não apenas a um tratamento clínico específico, mas ao sistema inteiro, isto é, à perspectiva de pensamento dirigido à descoberta de sentido na vida.

Frankl (2019) explica que a indagação acerca do sentido da vida equivale à questão sobre a verdadeira imagem de ser humano, na medida em que a resposta à primeira exige deste um autoentendimento pré-reflexivo que lhe é inerente, um tornar-se consciente de algo previamente conhecido. Por isso, segundo o autor, essa conscientização redundará numa combinação de análise fenomenológica e antropologia explícita, enquanto método e sistemática, respectivamente. Assim, não surpreende o fato de a Logoterapia ter ganhado consistência a partir da Fenomenologia, na medida em que "conservar o humano dos fenômenos humanos é precisamente o que o enfoque fenomenológico, tal como proposto por Husserl e Scheler, tentou fazer" (Frankl, 2001, p. 83).

Por um lado, Frankl (2001) defende que qualquer teoria que se proponha a investigar os fenômenos psíquicos segundo um enquadre fenomenológico deve partir, primordialmente, do reconhecimento da objetividade tanto dos objetos no mundo como do próprio mundo implicada nos atos cognitivos do sujeito lançado nesse mundo. Esse posicionamento em favor do realismo epistemológico é evidenciado em diversos momentos de sua obra, como nas chamadas Lições Metaclínicas, em que argumenta, por exemplo, que "ao lado da representação 'de' cumpre existir alguma coisa que é representada 'por'" (Frankl, 2019, p. 130).

Por outro lado, a epistemologia logoterapêutica advém da sustentação de que uma genuína análise fenomenológica revelará a noção de que cognição e conhecimento se tornam possíveis apenas no campo de tensão fundamental estabelecida entre sujeito e objeto, a qual equivale a tensões igualmente insuperáveis e inerentes à existência humana: entre o "ser" e o "dever-ser", entre o real e o ideal, entre o ser e o sentido (Frankl, 2001, 2011). Em outras palavras, a base do conhecimento humano se constitui na tensão entre o ser humano e o mundo, na polaridade entre subjetividade e objetividade, numa dinâmica que Frankl (2011) denomina "'noodinâmica', em contraposição a qualquer psicodinâmica" (p. 139).

Mais especificamente, o polo subjetivo do conhecimento corresponde à seleção realizada pelo ser humano na captação, no recorte de mundo que, apesar disso, preserva seu caráter de objeto e não se torna parte do sujeito em si mesmo (Frankl, 2001). Isso, inclusive, permite que a Logoterapia também seja situada enquanto um tipo de construtivismo crítico, visto que ela "propõe a existência de um mundo objetivo ainda que não completamente acessível, fazendo referência a uma aproximação ontológica seletiva, isto é, a uma parte da realidade objetiva que é tomada subjetivamente" (Martínez Ortiz; Schulenberg; Pacciola, 2013, p. 32). Metaforicamente, diz-se que

a cognição humana não é de natureza caleidoscópica. Se você olha através de um caleidoscópio, você verá apenas o que já está dentro do próprio caleidoscópio. Por outro lado, se você olhar através de um telescópio, você verá algo que estará fora, para além do telescópio em si. E, se você olha o mundo, ou algo no mundo, você também vê algo mais do que, digamos, a perspectiva. Não importa o quão subjetivas nossas perspectivas possam ser: o que é visto através da perspectiva é o mundo objetivo (Frankl, 2011, p. 78, grifo do autor).

O endosso de preceitos fenomenológicos resulta, por sua vez, em algumas consequências relevantes à questão do conhecimento, especialmente ao conhecimento psicológico. Em primeiro lugar, atesta a impossibilidade da pretensão de pureza epistemo-metodológica da ciência, dada a natureza indissociável da unidade conhecedor-método-conhecimento, na essência da qual tudo que é visto e investigado já o é mediado pela condição do modo ontológico humano de ser. Logo, qualquer empreendimento ou conhecimento que reclame o status de cientificidade deverá se ater a essas condições, sob pena de incorrer em arbitrariedades e artificialidades (Roehe, 2006). No âmbito da Logoterapia, "[...] só então é que não se abrirá o abismo entre o ente espiritual que é sujeito do conhecimento e o ente espiritual que é objeto do conhecimento" (Frankl, 2019, p. 137).

Em segundo lugar, abster-se dessa distinção sujeito-objeto, que fundamenta o conhecimento moderno ocidental às expensas do rompimento da unidade ontológica característica do ser humano, corrige o curso da busca pela possibilidade científica do saber psicológico. Partindo desses princípios, a ciência psicológica deixaria de tratar o ser-psicológico do ser humano seja enquanto uma coisa diante de outra coisa, seja enquanto grandeza espácio-temporal tal quais os objetos das ciências naturais. Para a psicologia de orientação fenomenológica-existencial importa, prioritariamente, reconhecer e se referir ao estatuto ontológico do ser humano enquanto ponto de partida da manifestação dos fenômenos ôntico-psicológicos (Roehe, 2006).

Agora: só naquela posição reflexiva que se presta à psicologia é que se rompe este simples "ser-aí" e se divide em sujeito e objeto. Essa atitude reflexiva não é, como tal, ontológica; pelo contrário, é ôntica – precisamente, psicológica. Da "relação gnoseológica" resulta uma psicológica; o "ser em", um modus ontológico é ontizado, psicologizado, é psicologicamente interpretado ao inverso num fato ôntico; é coisificado, transformado numa relação entre coisas. Então, o ente espiritual tornou-se também uma coisa entre as coisas; e seu "ser em", uma relação do mundo interior. O que é, afinal, este "ser em" do ente espiritual? Não é outra coisa senão a intencionalidade desse ente espiritual (Frankl, 2019, p. 139).

Dessa maneira, assinaladas as bases epistemológicas da Logoterapia na qualidade de uma psicologia de perspectiva fenomenológico-existencial, é possível dizer que uma pesquisa conduzida por esse marco teórico-conceitual se ocupará de investigações dos fenômenos psicológicos "não como substâncias que sustentam as determinações em si mesmas, nem como determinações de uma interioridade psíquica, mas como atos que se constituem na cooriginariedade homem-mundo" (Feijoo & Mattar, 2014, p. 442).

Para Frankl (2011), a existência humana é fundamentalmente caracterizada pela intencionalidade e pela autotranscendência, de modo que "ser humano é ser direcionado a algo que não a si mesmo" (p. 67). Na perspectiva frankliana, conhecimento verdadeiro implica na autotranscendência dos seres humanos, "na direção de sentidos que constituem algo diferente deles mesmos, que são bem mais do que meras expressões deles mesmos, mais do que meras projeções de si. Sentidos são descobertos; não podem ser inventados" (Frankl, 2011, p. 79).

 

INTERLOCUÇÕES ENTRE PSICOMETRIA E LOGOTERAPIA À LUZ DA ONTOLOGIA DIMENSIONAL FRANKLIANA

Em face do articulado até este ponto, entende-se como indispensável abordar a problemática que, certamente, se apresenta quando um estudo científico visa testar proposições cunhadas no campo de pensamento da Logoterapia, especialmente utilizando o aparato metodológico psicométrico. "O desafio é como obter, como manter e como reintegrar um conceito unificado de homem, mediante dados, fatos e achados dispersos por uma ciência compartimentalizada do homem" (Frankl, 2011, p. 31).

A Logoterapia representa uma visão de mundo forjada pelo esforço da retomada do que é considerado o caráter específico e exclusivamente humano do ser humano: as capacidades existenciais de se autodistanciar frente a condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais, e de autotranscender a si mesmo em busca de um sentido a ser preenchido (Frankl, 2011). Decorre disso ser possível dizer que ela se distancia de teorias psicológicas centradas na autoatualização ou autoexpressão humanas e das "epistemologias caleidoscópicas" que descrevem o mundo como mero reflexo de condições e estruturas subjetivas do ser humano (Frankl, 2001, 2011).

Para Frankl (2011), a questão crucial do conhecimento científico é evitar que explicações biológicas, psicológicas ou sociológicas sejam tomadas como suficientes para alcançar a unidade e a totalidade do ser humano, de modo que a ciência deve reconhecer sua incapacidade de abranger a multidimensionalidade da realidade por mais legítimo que seja o saber por ela produzido. Para o autor, a abertura existencial do ser humano ao mundo desaparece, necessariamente, quando projetada em suas dimensões biológica e psicológica.

Ora, e do que se trata o modelo psicométrico de variáveis latentes senão de um tipo de explicação reducionista de cunho dualista, por meio da qual o ser humano é visto como uma composição de corpo e mente cujos comportamentos, estimulados pelos testes psicológicos, são descritos, estritamente, como produtos de seus respectivos referentes psíquicos, numa relação de causa e efeito (Pasquali, 2007)?

No entanto, e com base no que foi exposto anteriormente, a Psicometria "é o que é" na medida do que se propõe com sua utilização em favor da ciência: a operacionalização estatística de hipóteses explicativas propostas por teorias psicológicas. Isso significa dizer que os métodos psicométricos é que devem estar "a serviço" da Psicologia, e não o contrário. Por conseguinte, pode-se dizer que cabe à Logoterapia sustentar, teoricamente, as explicações das quais os procedimentos psicométricos se encarregarão de testar empiricamente, sem que isso implique em negligenciar a visão de ser humano por ela tutelada.

Assim sendo, conclui-se que trabalhos científicos com instrumentos de mensuração psicológica desenvolvidos com base no marco teórico-conceitual logoterapêutico precisam, antes de mais nada, ter bem delineada uma concepção ontológica de ser humano que seja, congruentemente, pressuposto psicométrico e "objeto de discurso" da Logoterapia, de forma a garantir coerência entre as observações e interpretações da realidade do fenômeno a ser investigado.

Há, pois, que se retomar a antropologia frankliana, denominada ontologia dimensional, que "faz uso da concepção geométrica de dimensão, como uma analogia relativa às diferenças qualitativas que não anulam a unidade mesma de uma estrutura" (Frankl, 2011, p. 34). Sob essa perspectiva, o ser humano é representado a partir de três dimensões, corpórea (ou somática), psíquica e espiritual (ou noológica/noética), que lhe constituem e conferem caráter de unidade e, ao mesmo tempo, totalidade, do que decorre dizer que ele não pode ser dividido, nem fundido. Trata-se de um modo de considerar o ser humano uno e total, no qual as dimensões fisiológica, psicológica e noológica são fundamentalmente distintas entre si, mas, ainda como tal, inseparáveis umas das outras (Frankl, 2012). De acordo com Frankl (2019), "a característica da existência humana é a coexistência entre a unidade antropológica e as diferenças ontológicas, [...] Em síntese, a existência humana é unitas multiplex [...]" (p. 186).

A Figura 4 ilustra a imagem de ser humano segundo a Logoterapia. A dimensão somática diz respeito à corporalidade humana em seu fundamento celular orgânico, estrutura vital fisiológica e processos físico-químicos. A dimensão psíquica abrange os fenômenos cognitivos, instintivos e afetivos, incluindo-se sua relação com meio social e padrões de comportamentos aprendidos (Lukas, 1989; Marshall & Marshall, 2017). Por fim, a dimensão noética compreende "as decisões pessoais da vontade, intencionalidade, interesse prático e artístico, pensamento criativo, religiosidade, senso ético ('consciência moral') e compreensão do valor" (Lukas, 1989, pp. 28-29).

 

 

Na caracterização dessa concepção antropológica, Frankl também se vale de uma visão de concentricidade em que o espiritual é o núcleo central em torno do qual se situam as demais dimensões (Xausa, 2011). "O homem aparece 'centrado', integrado em torno de uma realidade pessoal, fonte de todas as atividades especificamente humanas. A dimensão espiritual, entendida como realidade pessoal, reagrupa o psíquico e o corporal enquanto estratos periféricos" (Peter, 1999, p. 39). Desse modo, a homogeneidade e totalidade do ser humano é criada, fundamentada e garantida pela pessoa espiritual (Frankl, 2019).

O espiritual é a dimensão dos fenômenos especificamente humanos que constitui o caráter do que é facultativo no ser humano; é a realidade ontológica que, conjuntamente com a facticidade ôntica da dimensão psicofísica do ser humano, constitui sua unidade e totalidade. Em sendo ontológico, o espiritual não é acessível por meio das ciências ônticas, tais como a própria psicologia, mas se manifesta em sua instrumentalização do organismo psicofísico, de maneira que este se apresenta como campo no qual e o qual será conduzido pela expressão da tarefa espiritual (Etchebehere, 2011). Para Frankl (2019), trata-se do que "se verifica com as relações ontológicas entre as camadas ônticas: o corporal torna possível a realização psíquica de uma exigência espiritual" (p. 168).

A espiritualidade é compreendida, então, na qualidade de potência pura a se manifestar dinâmica, facultativa e fenomenologicamente por meio do organismo psicofísico, configurando algo estático que será chamado de personalidade (Martínez Ortiz, 2013a). A partir das considerações de Etchebehere (2011), entende-se que uma personalidade é resultado da configuração da facticidade do ser humano mediada pela pessoa espiritual. Isto é,

se a hereditariedade e o meio ambiente formam o indivíduo, este, por sua vez, atua sobre si mesmo, sobre o caráter, formando o "homem", a pessoa. [...] poderíamos dizer: o homem "tem" um caráter, mas "é" uma pessoa e "chega a ser" uma personalidade. Ao entrar em diálogo com o caráter que o homem tem, a pessoa que o homem é acaba por configurá-lo, chegando assim a ser uma personalidade (Frankl, 2019, p. 297, grifo do autor).

 

 

Assim, segundo Frankl (2017), tem-se, de um lado, o espaço da existência espiritual e pessoal, especificamente no qual o ser humano é plenamente livre para se contrapor à facticidade psicofísica-organísmica; do outro lado, há os fatos diante dos quais o ser humano se posiciona, os condicionamentos da existência humana em seu plano ôntico, seus determinantes biológicos, psicológicos e sociológicos, acessíveis ao projeto das ciências psicológicas. Em suma, "[...] significa que a pessoa 'tem' um psicofísico, enquanto que ela 'é' espiritual" (Frankl, 2017, p. 23).

Consequentemente, em termos logoterapêuticos, a ciência psicométrica estuda aquilo que o sujeito "tem", seu caráter/temperamento, não o que ele "é", um ser de abertura para o mundo. O caráter psicodinâmico da mensuração psicológica pressupõe uma forma de reificação ou despersonalização do sujeito convertido em objeto, alcançando apenas aquilo que já foi sedimentado pelo poder do espiritual e escamoteando aquilo que, existencialmente, ainda pode vir a ser. Isto é, "a pessoa humana, quando é tratada meramente em termos de um mecanismo psíquico controlado pela lei de causa e efeito, perde seu caráter intrínseco como sujeito que finalmente se autodetermina" (Frankl, 2001, p. 75).

Frankl (2001) adverte ser preciso considerar que investigações exclusivamente psicodinâmicas devem ser tomadas conscientemente como um caminho metodológico específico que comporta o risco de deixar de fora certos fenômenos humanos e de gerar projeções distorcidas sobre o que é genuinamente humano. Nesse sentido, a ontologia dimensional frankliana representa o pressuposto antropológico-filosófico de totalidade na unidade para uma visão científica do fenômeno humano (Xausa, 2011).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que este estudo teórico remonta ao debate entre fenomenologistas e empiricistas acerca da abordagem mais apropriada do real subjetivo, isto é, dos fenômenos humanos não naturais que interessam tanto à Psicologia. Tangencia-se, inevitavelmente, um contexto no qual se levanta a própria questão da possibilidade de investigar fielmente esses fenômenos, partindo da consolidada e moderna perspectiva científica de produção de conhecimento, ainda que isso implique em concepções reducionistas sobre os fenômenos humanos (A. Giorgi, 2014).

Em nome de um ideal de objetividade científica, é possível dizer que a pesquisa psicométrica recorre à objetificação em forma de quantificação, a fim de obter manifestações públicas e acessíveis dos eventos psicológicos, sob o preço, porém, da fidelidade dos fenômenos tais como são experienciados pelos seres humanos no mundo-da-vida. A criação de construtos psicológicos e definições operacionais permite isolar e examinar, bem como encontrar padrões e relações entre as variáveis psicológicas, mas de uma maneira fenomenologicamente distanciada da experiência vivida dos sujeitos (B. Giorgi, 2006).

Sob a ótica fenomenológica, os testes psicológicos podem ser compreendidos como "metáforas vivas" de comportamentos que materializam o processo dialético pelo qual a pessoa espiritual se configura e é configurada pelo mundo da facticidade (Fischer, 1979). De acordo com Rose (1996), "a mensuração psicológica materializa, por meio de procedimentos padronizados, o complexo conjunto de processos pelos quais os indivíduos se fazem inscritos no mundo" (pp. 111-112). Para o autor, as ciências psicológicas possibilitam o disciplinamento da subjetividade humana; a transformação de condutas individuais intangíveis e mutáveis em traços bidimensionais manipuláveis, codificados e matematizáveis; a organização da individualidade e variabilidade humanas em representações padronizadas e não suscetíveis às vicissitudes do espaço e do tempo.

Nisso, fica claro que as conclusões tiradas de um sujeito reduzido necessariamente terão que ser também conclusões reduzidas [...] justamente pela interferência contínua de valores e significados, que constituem o mundo em que nós vivemos. Normalmente, as conclusões tiradas de contextos limitados serão limitadas, e o psicólogo nunca deverá se esquecer disso (Martin Sala, 2018, pp. 17-18).

Com efeito, Frankl não se opunha ao desenvolvimento de abordagens psicométricas e reconhecia as vantagens da sustentação empírica de seus postulados. Entretanto, fez questão de assinalar, e assim espera-se demonstrado no decorrer deste estudo, as limitações do campo das ciências na compreensão integral e mais autêntica possível do ser humano.

 

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Endereço para correspondência
Raul Bruno Tibaldi Nascimento
E-mail: psico.raultibaldi@gmail.com

Recebido em: 16/09/2020
Aprovado em: 21/02/2021

 

 

1 Raul Bruno Tibaldi Nascimento: Psicólogo e mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso.
2 A representação extensiva envolve "dimensões (atributos mensuráveis) que permitem a concatenação, isto é, dois objetos podem ser associados, concatenados, formando um terceiro objeto de mesma natureza. Tal situação ocorre com os atributos de massa, comprimento e duração temporal" (Pasquali, 2003, p. 37).
3 "Enquanto o teorema da representação aborda a qualidade da representação numérica dos elementos empíricos, o teorema da unicidade postula quais modificações são possíveis de realizar sem perder as propriedades escalares." (Hauck, 2014, p. 401).
4 Conforme o próprio Frankl (2011), os termos "espírito" e "espiritual" não devem ser apreendidos com nenhuma conotação religiosa e se referem à dimensão noológica/noética do ser humano no âmbito da concepção antropológica logoterapêutica, a qual será detalhada posteriormente.

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