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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.2 Belém maio/ago. 2021

 

RELATO DE PESQUISA

 

Análise fenômeno-estrutural de desenhos na psicoterapia on-line em situação de crise

 

Phenomenon-Structural Analysis of Drawings in Online Psychotherapy in Situation of Crisis

 

Análisis Fenómeno-Estructural de Dibujos en Psicoterapia Online en Situación de Crisis

 

 

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez1; Nara Helena Lopes Pereira da Silva2; Erika Rodrigues Colombo3; Pedro Monteiro dos Santos Neto4

Universidade de São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do método fenômeno-estrutural, realizou-se uma análise de desenhos confeccionados em psicoterapia on-line durante a pandemia COVID-19 com um estudante universitário que referiu ideação suicida no acolhimento inicial. Os desenhos mostram a evolução do processo, com temáticas que trazem a intensificação do sofrimento psíquico durante a pandemia. O jovem mostra talento estilístico ao se expressar em imagens, o sentimento de perda e a angústia da solidão. Seus desenhos são considerados um autorretrato, apresenta elementos sensoriais e de rupturas, mas os primeiros prevalecem. Observa-se que o envolvimento subjetivo se desvela nas imagens, como indicativo da potência do encontro terapêutico mediado pelas tecnologias digitais. A análise fenômeno-estrutural se mostrou significativa, ao permitir a livre manifestação da subjetividade e uma compreensão profunda do sofrimento do aluno.

Palavras-chave: Desenho; Psicoterapia Online; Psicopatologia fenômeno-estrutural; Universidade; COVID-19.


ABSTRACT

Based on the phenomenon-structural method, an analysis of drawings made in online psychotherapy during the COVID-19 pandemic was carried out with a college student who mentions suicidal ideation at the initial attendece. The drawings show the evolution of the process, with themes that shows the intensification of psychological suffering during the pandemic. The student shows stylistic talent by expressing himself trough images, the feeling of loss and the anguish of loneliness. His drawings are considered self-portraits, with sensory elements and also ruptures, but the sensority prevails. It is observed that the subjective involvement reveals it self trough the images, as an indication of the potenciality of the therapeutic encounter mediated by digital technologies. The phenomenon-structural analysis proved to be significant, as it allowed the free expression of subjectivity and a deep understanding of the student's suffering.

Keywords: Drawings; On-line Psychotherapy; Phenomenon-structural psychopathology; University; COVID-19.


RESUMEN

A partir del método fenómeno-estructural, se realizó un análisis de dibujos realizados en psicoterapia online durante la pandemia Covid-19 con un estudiante universitario que refirió ideación suicida en la recepción inicial. Los dibujos muestran la evolución del proceso, con temas que traen la intensificación de la angustia psicológica durante la pandemia. El joven muestra talento estilístico al expresarse en imágenes, el sentimiento de pérdida y la angustia de la soledad. Sus dibujos son considerados un autorretrato, presentan elementos sensoriales y rupturas, pero prevalecen los primeros. Se observa que la implicación subjetiva se revela en las imágenes, como indicación del poder del encuentro terapéutico mediado por las tecnologías digitales. El análisis del fenómeno-estructural resultó significativo, ya que permitió la libre expresión de la subjetividad y una profunda comprensión del sufrimiento del alumno.

Palabras clave: Dibujo; Psicoterapia en línea; Psicopatología fenómeno-estructural; Universidad; COVID-19.


 

 

1. Introdução

São poucos os estudos dedicados aos campos de intersecção entre psicologia clínica, fenomenologia, produções gráficas, psicoterapia on-line e atendimentos psicológicos mediados pelas Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) a pessoas com ideação suicida (Silva, & Antúnez, 2018; Antúnez e col., 2012; Franco, 2012; Luxton, 2012; Santoantonio e Antúnez, 2010; Ternoy, 1997).

No Brasil, a psicoterapia on-line foi regulamentada em 2018 (CFP, 2018) com restrições para atendimentos em situações de crise, emergências e desastres. Em 2020, devido à pandemia COVID-19, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) emitiu nova resolução permitindo em situação pandêmica o uso das TICs também para atendimentos em situações de risco ou de emergência (CFP, 2020). Com a pandemia COVID-19 e as medidas de distanciamento social, houve a migração da maior parte dos atendimentos psicológicos para o ambiente digital (Souza, Silva, & Monteiro, 2020). Tal realidade tornou urgente o desenvolvimento de estudos sobre as consultas on-line de saúde mental em seus diferentes contextos (Antúnez & Silva, 2021).

Apesar das regulamentações, a oferta de serviços psicológicos on-line para populações específicas – como pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, de transtornos dissociativos e de outros transtornos mentais graves, dependentes químicos e/ou alcoolistas que estejam em abstinência por uso de substância e pessoas que apresentem ideação suicida – deve ser realizada com cautela (Egede et al., 2009).

No que se refere ao suicídio, trata-se de um ato cuja intenção é acabar com a própria vida. Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), demonstram que em torno de 800 mil pessoas são vítimas do suicídio por ano, sendo este, uma das dez principais causas de morte em todo o mundo, considerado a segunda principal causa entre indivíduos de 15 a 29 anos de idade (OPAS, 2020).

Há uma prevalência de problemas de saúde mental entre jovens e sua combinação com fatores de riscos psicossociais, que é alta nesta fase da vida, aumentam a vulnerabilidade ao suicídio. Tais fatores podem estar relacionados ao estresse acadêmico, às relações negativas com os pares e pais, a eventos de vida individuais e familiares negativos – como separação dos genitores, abuso de substâncias psicoativas, isolamento social – além de transtornos mentais, abusos infantis, baixa autoestima, baixo nível socioeconômico e educação restrita (Fernandes et al., 2016).

Rooks et al. (2020) afirmam que longos períodos de isolamento social (período de mais de dez dias) podem estar associados ao aumento de transtornos psicológicos, como ansiedade e depressão. As restrições durante a pandemia e o isolamento social, que tanto ajudam a conter o avanço da Covid-19, podem também prejudicar a saúde mental. Segundo o estudo de Ding et al. (2021), o Brasil é o país que mais tem casos de ansiedade (63%) e depressão (59%).

Dada a associação entre suicídio e transtornos psicológicos, entende-se que existe uma grande possibilidade de aumento de casos de ideação suicida e suicídio, principalmente na população jovem, que está mais vulnerável a transtornos psicológicos e onde há presença de riscos psicossociais. Conforme o estudo de Ding et. al. (2021), os resultados sugerem que jovens e pessoas com algum histórico de desordem mental são os que mais apresentam sintomas de ansiedade e depressão durante o confinamento.

Dentro do contexto da prevenção e do atendimento em saúde mental, foi criado, em meados de 2018, um programa de acolhimento estudantil psicológico para estudantes de graduação e pós-graduação em uma universidade pública (Cruz, 2018). As ações do serviço visam a prevenção de sofrimentos, a orientação e o acolhimento psicológico dos estudantes, levando em consideração as dimensões mental, emocional e social de cada indivíduo. Dentre os temas prioritariamente abordados, está a questão do suicídio – suas possíveis causas e sua prevenção, a partir de ações que visam alcançar estudantes que apresentem ideações ou tentativas de suicídio.

Desde a suspensão das atividades presenciais na universidade e dos atendimentos face a face, em março de 2020, os alunos têm recebido acolhimento on-line, mantendo a característica básica do programa. Dentre os serviços oferecidos, estão: ações de acolhimento psicológico on-line, rodas de conversa on-line, pesquisas em avaliação psicológica, ateliê de desenho livre-expressão on-line, psicoterapia on-line com uso de desenho. Esta última sendo o tema deste artigo que apresentará a evolução de um estudo de caso analisado a partir do método fenômeno-estrutural desenvolvido por Eugène Minkowski.

Escolheu-se a análise fenômeno-estrutural, pois esta coloca o encontro como princípio base do estabelecimento da interrelação entre o terapeuta e o paciente, e os fenômenos da estrutura da personalidade, observáveis na visão em imagens (Helman, 1998). No contexto da psicologia clínica orientada a partir do modo de compreensão do método fenômeno-estrutural, surgiram experiências que integram: a psicopatologia fenômeno-estrutural e o método de Rorschach (Minkowska, 1956; Helman, 1998), a adolescência e seus problemas com suicídio (Reulet, 1998) e com drogas (Wawrzyniak, 1998); a elaboração gráfico-expressiva (Minkowska, 1949, 2007; Ternoy, 1998), a pintura (Yazigi, 1998; Santoantonio & Ribeiro, 2018), a música (Muller, 1998), a neurologia (Viala, 1998), questões de desenvolvimento de crianças em acolhimento institucional (Colombo, 2018; Colombo, & Antúnez, 2018), transtorno de Pânico (Villemor, Amaral, Campos & Farah, 2008) entre outros.

O ponto de partida para o desenvolvimento do método de análise fenômeno-estrutural foi a análise aprofundada dos aspectos psicológicos e fenômeno-estruturais da linguagem e comportamento de um paciente com melancolia esquizofrênica, apresentado por Minkowski, em 1923, na 63ª Reunião da Sociedade Suíça de Psiquiátrica (Minkowski, 2019). Porém, foi sua esposa Minkowska quem analisou desenhos a partir dessa perspectiva, ampliando o alcance da análise fenômeno-estrutural para o trabalho com crianças, com pacientes psiquiátricos e também a partir de uma comparação entre as pinturas de Seurat e Van Gogh (Minkowska, 1949).

Minkowska (1949) se impressionava com a espontaneidade, autenticidade e força de expressão através dos desenhos das crianças normais, daquelas com questões de caráter e das traumatizadas. Comentava que os desenhos coloridos atraem e encantam. Para ela, os desenhos eram a expressão direta do mundo formal de quem os produzia – o mesmo mundo formal que inspirou Hermann Rorschach em sua técnica psicodiagnóstica e que permitiu à Minkowska (1949) relacionar as obras de Van Gogh e Seurat aos desenhos das crianças.

Para Minkowska (1949, p.93), os desenhos eram "metáforas vividas" das crianças que apresentavam sua sensorialidade e expressavam o mundo das formas por meio de grafismos. A análise de crianças com epilepsia evidenciou os mecanismos da visão transcritos nas imagens produzidas, ressaltando a importância do tocar, das formas em movimento e da própria cor.

A análise do Rorschach de pacientes com esquizofrenia e epilepsia permitiu a Minkowska (1949) revelar o continuum da personalidade que transita entre os polos sensorial (predominante nos epiléticos) e o racional (predominante nos pacientes esquizofrênicos). O primeiro é caracterizado pela adesividade à vida, pela viscosidade e pela predominância dos mecanismos de ligação (lien), cores e movimento. Já o segundo é caracterizado por uma rigidez da visão, expressa por imagens mais abstratas, imóveis, sem cores e geométricas e mecanismo de corte (coupure). Essas observações foram integradas à análise dos desenhos.

Em oposição à personalidade racional, formal, abstrata, a personalidade sensorial vive no concreto, no hiperconcreto: adere ao concreto e não consegue se separar; sente muito mais do que pensa e se deixa guiar na vida por essa faculdade de sentir muito perto os seus e as coisas; vê o mundo em movimento, que não se reduz a uma simples mudança de objetos no espaço, mas que, em seu dinamismo elementar tem procedência do objeto e é assim muitas vezes impostas em detrimento da forma; finalmente, vê o mundo em imagens, sempre vivas e longe de qualquer abstração (Minkowski, 2007, p.26).

Já do ponto de vista da psicoterapia, nessa perspectiva, o terapeuta atua como um intermediário, um mediador que compõe o movimento de transformação da pessoa em sofrimento, acompanhando-a. A perspectiva de evolução da pessoa permite um encaminhamento significativo do olhar do terapeuta sobre o outro e sobre si mesmo, que propicia uma evolução sentida e compartilhada em conjunto. Assim:

[...] o clínico é somente um intermediário, um mediador dessa incitação frente ao paciente que o leva em direção a uma vontade de conquista do mundo. Sua ação visa restituir à pessoa não somente seu "poder ser" segundo a fórmula de Binswanger, mas, sobretudo, teríamos vontade de dizer, seu "poder fazer" e, se não for pleonasmo, seu "poder fazer livremente". Isso não se reduziria a uma impressão ou a um sentimento, mas a uma capacidade e, sobretudo a uma vontade de realização, isto é, de se apropriar um real não somente de receptividade ou de interiorização, mas também de empreendimento, de criação, de cumprimento de si em ato, então em sentido e em historicidade singulares sempre comunitários. Nesse sentido, a psicoterapia aparece com um comportamento exigente tendo como objetivo procurar com o apoio do outro as vias de sua realização pessoal (Barthélémy, 2015, p.143-148).

O método de análise fenômeno-estrutural de Minkowski volta-se para a subjetividade como núcleo essencial (Barthélémy, 2015). Os desenhos, por sua vez, surgem como recursos que favorecem o acesso a elementos essenciais da subjetividade (Ternoy, 1997). É útil diferenciar a perspectiva psicanalítica da interpretação de desenhos, que prioriza o sentido simbólico nos conteúdos, da perspectiva fenômeno-estrutural, que coloca em evidência a metáfora da imagem. De acordo com Villemor-Amaral e Yazigi (2010):

Para a psicopatologia fenômeno-estrutural, a metáfora é a expressão indireta de objetos ou sentimentos em seus componentes mais concretos e sensoriais, ao passo que o símbolo está ligado às abstrações intelectuais. Isso nos permite classificar a metáfora como algo ligado à sensorialidade e o símbolo como algo associado à racionalidade (Villemor-Amaral e Yazigi, 2010, p.18).

Dentro da perspectiva fenômeno-estrutural, a possibilidade de acompanhar, por meio de desenhos, como se desvela a subjetividade da pessoa atendida em ambiente on-line, pode trazer novos dados para compreender as implicações do uso das TICs em atendimentos psicológicos on-line em situação de crise. O objetivo do presente trabalho foi analisar, a partir do método fenômeno-estrutural, três desenhos livres confeccionados antes e após sessões de psicoterapia on-line, realizadas durante a pandemia COVID-19 com um estudante universitário que referiu ideação e tentativa suicida, mostrando as possibilidades de acompanhar a evolução da psicoterapia por meio de desenhos livres.

 

2. Metodologia

O caso analisado faz parte de intervenções psicológicas oferecidas no formato on-line, por um programa de atendimento psicológico para estudantes de uma universidade pública, no contexto de isolamento social imposto para amenizar o contágio pelo coronavírus, desde 17 de março de 2020.

Após a aprovação pelo Comitê de Ética do projeto de pesquisa integrado, que abarca diversas modalidades de atendimento oferecidas pelo programa – incluindo a psicoterapia on-line com uso de desenhos – foram disponibilizadas 30 vagas para psicoterapia on-line, para estudantes que já houvessem passado pelo acolhimento inicial.

Trata-se de um projeto de pesquisa com aprovação pelo Comitê de Ética sob o parecer nº 051165/2020 e CAAE: 32288820.6.0000.5561, cujo objetivo é compreender as potencialidades e dificuldades da presença da virtualidade no acolhimento a estudantes universitários durante e após a pandemia COVID-19.

As consultas on-line durante a pandemia COVID-19 ocorrem genuinamente em um contexto de crise (Antúnez, & Silva, 2021). Dessa forma, a equipe de colaboradores do programa de acolhimento foi orientada sobre os cuidados necessários em atendimentos psicológicos mediados por TICs em situações de crise, como, por exemplo: a necessidade de manter atualizados em cada sessão os dados para contato emergencial, contato de pessoas fisicamente próximas, endereço de localização e conhecimento sobre a rede de apoio e de saúde local. Além disso, há uma equipe de suporte com condições de intervir diante de imprevistos ou riscos (Antúnez, & Silva, 2021; Souza, Silva, & Manteiro, 2020; Luxton 2012).

Além disso, a equipe foi orientada sobre as condições de segurança dos aplicativos, sobre a importância de esclarecer ao aluno quanto as recomendações de sigilo, da privacidade e dos cuidados com dispositivos, visando garantir a segurança e a confidencialidade dos encontros. A escolha pela continuidade dos acolhimentos via intervenções on-line busca manter o contato, o vínculo e cuidado terapêutico com os estudantes durante o período de confinamento e distanciamento social.

Os atendimentos on-line seguem diretrizes com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e na Resolução CFP 11/2018 e Resolução CFP 04/2020 que regulamentam a prática psicológica mediada por TICs. Foi escolhida a modalidade de atendimento on-line síncrona por vídeo chamada com uso de aplicativo criptografado de ponta a ponta, visando manter a segurança dos dados, o sigilo e a privacidade digital, recomendados para intervenções mediadas pela internet (APA, 2020; CFP, 2018).

Como critério para a escolha do caso a ser analisado, foi realizado um filtro dos dados quantitativos obtidos pela análise dos formulários preenchidos pelos alunos que procuraram acolhimento entre março e dezembro de 2020, selecionando-se simultaneamente os alunos que: (1) referiram necessitar de atendimento emergencial e (2) referiram ter ideação ou tentativa prévia de suicídio. Além desse filtro, foi critério de inclusão que o aluno aceitasse continuar em processo de psicoterapia on-line em contexto de pesquisa.

Dentre os 221 estudantes que foram acolhidos durante a pandemia no ano de 2020, 55 se encaixaram em ambos os critérios de inclusão analisados via formulário. Dos 30 alunos acompanhados em processo de psicoterapia on-line dentro do serviço, 10 haviam preenchido os critérios de inclusão via formulário. Desses, um foi escolhido aleatoriamente para o presente estudo e análise dos três primeiros desenhos elaborados por um universitário durante os quatro meses iniciais de psicoterapia on-line.

Por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, os participantes da pesquisa em psicoterapia on-line são instruídos a elaborar um desenho livre, antes de começar o acompanhamento em psicoterapia e, uma vez iniciado o processo, a cada quatro sessões. Após cada desenho, solicitou-se que o participante responda por escrito duas perguntas: O que sentiu enquanto desenhava? O que pensou enquanto desenhava? Em folha separada ao desenho. A reprodução literal do escrito do aluno não foi reproduzida, mas um resumo da mesma.

Os materiais utilizados para os desenhos foram de livre escolha do aluno, de acordo com o que ele dispuser no momento da criação. As produções devem ser fotografadas ou digitalizadas e enviadas ao psicólogo por meio do e-mail institucional. Todas as imagens recolhidas foram armazenadas em ambiente seguro, privativo e respeitando o sigilo do material. O acesso às imagens é restrito ao psicólogo que realiza os atendimentos e ao coordenador da pesquisa – sendo utilizados apenas para análise e difusão científica.

Para a análise dos desenhos foi utilizado o método fenômeno-estrutural de Minkowski, que, propõe uma compreensão das produções realizadas, da linguagem e comportamento. Minkowski (1999) sublinha o encontro como base para o estabelecimento do contato com o paciente, de forma a permitir uma análise sob a perspectiva de evolução da pessoa – o que pode facilitar a emergência de uma compreensão significante sobre o outro, de forma a propiciar uma evolução passível de ser sentida e compartilhada em conjunto (Barthélémy, 2015). A utilização do método para a análise dos fenômenos da existência humana pode ser resumida da seguinte forma:

O modo pelo qual os acontecimentos se manifestam e se encadeiam numa vida individual, sem deixar de preservar seus direitos como objeto de nossas investigações, deixa um lugar livre para o exame, neles mesmos, em sua essência, dos fenômenos fundamentais sobre os quais repousa qualquer existência. Tratar-se-á de penetrar profundamente, até o fundo desses fenômenos, colocando assim em evidência seus caracteres essenciais, assim como as correlações fundamentais que, nessa ótica, ligam-se uns aos outros, antes mesmo que eles se realizem em vidas individuais (Minkowski, 2019, p.208).

Os desenhos aqui expostos foram analisados a partir de impressões do estudante de seu próprio desenho e as análises fenomenológicas dos pesquisadores, articulados às impressões gerais da psicoterapeuta que o acompanha sem considerar detalhes dos conteúdos abordados nas sessões de psicoterapia. O psicoterapeuta, que segue a linha fenomenológica, não participou da produção deste artigo, nem de análise dos desenhos.

Cada pesquisador elaborou uma descrição da sua própria experiência de apreensão das imagens digitalizadas dos desenhos. Em seguida, realizou-se uma conversa e discussão em grupo para trocas de impressões e identificação dos elementos essenciais emergentes das imagens, bem como uma síntese conjunta, em diálogo com a análise fenômeno-estrutural.

Torna-se relevante fazer uma avaliação detalhada sobre a adequação de cada caso para atendimento on-line, antes de se iniciar as intervenções, tendo em vista: o contexto, as condições tecnológicas, as necessidades e preferências da pessoa e as normativas e legislações locais. Além disso, o terapeuta deve esclarecer ao paciente/cliente sobre os riscos e vantagens da prática, bem como oferecer informações sobre segurança, registro e manipulação dos dados. É preciso conversar, também, sobre quais modalidades on-line serão disponibilizadas (síncronas ou assíncronas), assegurar as condições tecnológicas de ambos e cuidar das condições dos ambientes escolhidos para o atendimento (American Psychological Association, 2013; Antúnez, & Silva, 2021).

 

3. Resultados e Discussão

Os desenhos foram realizados por um universitário de um curso da área biológica, que iniciou a psicoterapia on-line na metade do 2º semestre de 2020. No formulário inicial, referiu precisar de atendimento emergencial e descreveu ideação e uma tentativa prévia de suicídio. Também relatou não ter passado por tratamento psiquiátrico ou psicológico anteriormente, considerando o atendimento psicológico on-line relevante no contexto da pandemia e sinalizou interesse médio no uso da tecnologia em psicoterapia (médio, refere-se às pessoas que prefeririam o atendimento presencial). Na descrição dos motivos que o levaram a procurar atendimento, comentou sobre sua desmotivação com a vida, o uso contínuo de redes sociais, ansiedade e prática de autolesões.

 

 

O desenho, criado com a cor cinza de um lápis ou lapiseira em traços bem cuidados, mostra uma pessoa sentada com os braços cruzados e apoiados nos joelhos. A imagem da pessoa está isolada no centro da folha, separada por um espaço circular em branco rodeado por linhas espirais que criam uma borda no desenho. Há uma perspectiva na visão desta imagem, o espectador tem a impressão de ver a pessoa de frente, como se estivesse abaixado diante dela. As pernas, os pés, os braços e a cabeça (cabelos) aparecem, mas o tronco e o rosto não, o corpo está esfumaçado e o rosto não se revela.

Uma névoa sombreada insinua o formato do tronco, mas não há linhas que o definem. O mesmo acontece com a face, escondida pela posição cabisbaixa, com os cabelos também desenhados em espiral. Em volta dessa pessoa, os rabiscos circulares passam a sensação de que a figura está isolada no meio da folha. Há predominância da figura humana e sombreado. Os punhos estão cerrados e há munhequeiras. Esteticamente é um desenho bem elaborado.

O relato do estudante sobre o próprio desenho indica claramente que se trata de um autorretrato. Ele conta que sentiu tristeza, raiva, solidão, confusão, vontade de chorar e sentiu-se muito perdido. Conta que é assim que tem se sentido ultimamente, nessa posição, sentado na cama ou chorando no banho. Escreve que o desenho é ele sentado no chão de seu quarto, pensando sobre o caos que invade sua cabeça e lhe tira a paz e sobre as pessoas que já não fazem parte de sua vida.

 

 

A imagem mostra uma pessoa sentada segurando um coração com suas veias e artérias, com em um abraço. O rosto está vazio, sem olhos, boca, nariz ou orelhas, o cabelo foi esfumaçado. O coração e o rosto se encostam, evidenciando o mecanismo de ligação (lien) na figura. O coração é grande, quase do tamanho da pessoa que o abraça. Das veias saem seis flores (fechadas e abertas), uma delas está caída e caem dela algo que parecem gotas que formam uma poça no chão, que mostram a ocorrência de um movimento passivo formado pela queda das mesmas. A pessoa veste um short e o que parecem meias. Não há cores, mas o sombreado, criando um degradê em cinza.

O relato do estudante sobre o próprio desenho sugere, novamente, tratar-se de um autorretrato. Escreve sobre sua produção, dizendo que sentiu alívio, felicidade, orgulho e esperança, e que pensou que estar lidando melhor com suas inseguranças e medos. Sente que muita coisa quer conquistar e fica feliz e orgulhoso dele mesmo. Sabe que momentos difíceis podem aparecer diante dele, mas está voltando a florescer, "enquanto as últimas lágrimas dessa fase terminam de cair, então não me sinto mais com tanto medo de enfrentá-los. Eu tenho a mim" (indicações dos participantes).

 

 

O terceiro desenho focaliza e insinua um rosto preenchido com rabiscos, dessa vez aparecem as orelhas e o lugar onde seria a testa está cortado ou recortado, evidenciando o mecanismo de corte (coupure). Do centro da cabeça há um emaranhado com formato triangular e pontas arredondadas, que lembra uma explosão, e ao redor há pedaços pequenos, soltos, não integrados – provavelmente da cabeça que se abriu com a explosão. Os traços da face, na parte central e inferior, são diagonais, sem olhos, boca e nariz. Já na parte superior, o traçado é em espiral, diferenciando as duas partes. O desenho é feito em grafite, com traços que sugerem uma tentativa de sombreado. O que identifica o desenho como um rosto são os ouvidos, colocados em cada lateral, simétricos, e as formas de um rosto partido, recortado, na altura da testa.

O relato do estudante sobre o próprio desenho sugere, mais uma vez, se tratar de uma autoimagem. Escreve que sentiu alívio, angústia, desespero, falta de ar, dor de cabeça e exaustão. Conta que sua cabeça parece não parar nem um minuto sequer, a ponto de explodir de tanto pensar, que sua ansiedade o priva de sensações boas e no quão exaustivo é tentar ser perfeito a todo momento.

Na primeira imagem (Figura 1), a figura humana aparece retraída, isolada e contida no centro do desenho. O corpo retraído sugere que o estudante estava em um momento de fechamento psíquico e de contenção. Ele se mostra distante, não aberto para fora, para as relações, mas mergulhado em si mesmo. O aluno revela em palavras seus sentimentos negativos, solidão e confusão.

O segundo desenho (Figura 2) retrata o corpo completo, abraçando (mecanismo de ligação) um grande coração com flores saindo dele – uma delas, murcha. Neste desenho a face se revela, mas aparece vazia. Aparece um elemento que se desfaz, a flor murcha e goteja lágrimas, conforme descrito por ele mesmo.

O tronco encoberto pelo sombreado no primeiro desenho aparece no segundo desenho (Figura 2) novamente encoberto por um enorme coração, em sua forma anatômica e não simbólica, que tem destaque na imagem. Em contraste ao primeiro desenho, este é elaborado com detalhes e nitidez, é possível ver até mesmo os vasos capilares da anatomia do coração, que de seus vasos florescem plantas. Um abraço sustenta o grande coração, transmitindo o toque (ligação). O rosto sem face, sem identidade, pode ser compreendido como um componente concreto do anseio por ter um rosto pessoal.

Na segunda imagem (Figura 2), o mecanismo de ligação é evidente e não aparece nas demais, salvo de modo sutil no primeiro desenho, onde a figura humana, sentada, toca a cabeça em seus braços e estes em seus joelhos. O tato é a única via de relação, representado pelo contato do coração com a face e com as mãos, dando ênfase no coração que é segurado ou abraçado. A imagem, ainda que em tom grafite, apresenta vivacidade e expressão da potencialidade de vida nas flores – representantes do polo sensorial da personalidade. Este desenho é o único que é acompanhado de um relado positivo, mas que mistura sentimentos como orgulho e felicidade à sensação de que momentos difíceis ainda virão.

Já no terceiro desenho (Figura 3), aparece uma imagem menos detalhada e o corpo quase inteiro dos desenhos anteriores, se reduz à parte humana do rosto no terceiro desenho. A cabeça é isolada do corpo que não aparece. A parte superior é recortada, há pedaços separados (mecanismo de corte). Há a sugestão de movimento, representado por partes separadas da cabeça e dos fragmentos que se afastam.

A terceira imagem (Figura 3) é uma parte humana, nas duas primeiras imagens a figura humana está completa. Os traçados espirais do primeiro desenho, que estão distantes do corpo, aparecem no terceiro desenho saindo de dentro da parte superior cabeça. O desenho mostra concretamente o interior da cabeça desintegrado em detalhes fragmentados e separados. As orelhas expressam a forma de contato com o mundo exterior, bem desenhados e delimitados, mostrando que, apesar da fragmentação, há menos isolamento e solidão do que a imagem inicial, sugerindo que agora há uma abertura para ouvir o que vem de fora. As espirais que antes estavam isolando a figura central (Figura 1), aparecem na Figura 3 na região da cabeça, metáforas do caos (rabiscos emaranhados).

A evolução dos desenhos revela facetas importantes do isolamento do estudante. No primeiro momento, os sentimentos negativos (tristeza, raiva, solidão, confusão) provocam isolamento, em um movimento totalmente voltado para dentro no está contido. Os pensamentos possibilitam refletir sobre a condição do caos que invade sua cabeça e lhe tira a paz. Ele se sente perdido.

O segundo desenho traz uma perspectiva mais otimista, em suas palavras "estou voltando a florescer" (indicações dos participantes) Mas ainda assim, há um cansaço evidenciado pelo sentimento de "quão exaustivo é tentar se perfeito a todo momento" (ndicações dos participantes) No segundo desenho, o aluno escreveu que tê-lo realizado gerou um sentimento de alívio, felicidade, orgulho e esperança. Os pensamentos sinalizam a possibilidade de lidar com medo e com a insegurança. Surge a menção de movimento, na dança, no sol e na chuva. Ele se sente orgulhoso de si mesmo. Aparece o florescer e o sentimento de pertença, diante da possibilidade de acolher as últimas lagrimas.

No terceiro relato há predominância de sentimentos negativos, o movimento da raiva é para fora (em oposição ao movimento de introspecção e fechamento do primeiro desenho) – evidenciado pela explosão, que traz alívio, retratado no desenho. Os pensamentos excessivos explodem sua cabeça.

É um momento de se dar conta da ansiedade e de seus efeitos em sua vida, a privação das sensações e bons momentos. Também aparece a possibilidade de mudança, diante da exaustão do perfeccionismo.

Evolução da Psicoterapia on-line

As queixas iniciais eram de desânimo, ansiedade, angústia, desesperança, baixa autoestima e sobrecarga após seis meses de pandemia. Estava indiferente à vida acadêmica, tendo poucos momentos de lazer e produtividade, não conseguia cuidar da saúde. Apresentava dificuldade de se adaptar às atividades na quarentena. Mora com os pais. Terminou recentemente um relacionamento e sentia tristeza e culpa. Disse sentir que nos últimos meses se perdeu, não sabendo mais quem é. Sentia desamparo e não conseguia "encontrar a luz no fim do túnel" (indicações dos participantes).

Durante o processo, reavaliou seu relacionamento amoroso de maneira mais objetiva, em suas facetas positivas e negativas. Relacionou sua autoestima com o contexto do relacionamento. Começou a usar suas redes sociais para se expressar através de textos, imagens, dança e música, na tentativa de voltar a si mesmo. Disse apreciar muito a atividade de desenhar (como parte da pesquisa em psicoterapia on-line), sendo muito fértil para sua autorreflexão. Passou a procurar mais os amigos, se inseriu em sua vida social novamente – com esforço maior, devido à quarentena.

Com as novas medidas restritivas, desde março de 2021, tem-se mostrado muito angustiado, principalmente porque as dificuldades com o negócio da família se agravaram e a perspectiva para este ano é negativa. Disse considerar o aumento do número de mortes e as reações do governo "revoltantes" (indicações dos participantes) e tem medo de perder as esperanças. Voltou a fazer um uso excessivo do telefone celular e das redes sociais, e disse sentir que foge da realidade.

Para Minkowski (1966/1999, citado por Barthélémy, 2012), "contemplar" é um termo que denota a especificidade do convite fenomenológico para "estar com" o fenômeno, em uma atitude de entrega e apreensão, buscando precisar as características fundamentais do que é intencionado. Ao contemplar as imagens elaboradas pelo estudante, a solidão, o isolamento e a distância emergem de seus traçados, com um corpo humano flexionado ao centro, em sinal de dor profunda.

A palavra suicídio tem origem no latim, criada em 1937 por Desfontaines, significa si mesmo e ação de matar, no sentido da necessidade de se buscar a morte como refúgio para o sofrimento que se torna insuportável, ou seja, não é um ato de coragem e nem de covardia, é um ato de desespero (Penso, & Sena, 2020). Embora o estudante não relate ideações suicidas, seus desenhos transmitem o sentimento de solidão e intenso sofrimento. Além disso, a ausência da face humana parece comunicar a não identificação das expressões, afetos e contatos sensíveis, fechamento para o mundo e para o ser afetado pelo entorno, por outro lado mostra um anseio em ter rosto.

Seus escritos sobre o que sentiu durante a execução da atividade confirmam os sentimentos apreendidos do desenho, quando diz "senti tristeza, raiva, solidão, confusão, muita vontade de chorar e me senti muito perdido" (indicações dos participantes). A descrição da evolução da psicoterapia on-line também traz a sobrecarga sentida durante a pandemia e a indiferença dele diante da vida acadêmica e do autocuidado. Ele expressa o caos que invade sua cabeça e lhe tira a paz e sobre as pessoas que foram embora da sua vida: "Esse sou eu perdido" (indicações dos participantes). O polo racional parece emergir no primeiro desenho, percebido pela observação da disposição espacial que separa a pessoa do contato com os emaranhados externos, na imobilidade da imagem, rigidez e impossibilidade de ser afetado pelo ambiente.

Segundo Minkowski (2007), a personalidade racional sente prazer no abstrato, no imóvel, no sólido e no rígido; o movimento e o intuitivo lhe escapam; ele pensa mais do que sente e sabe de um modo imediato; discerne e separa; como resultado, os objetos com seus contornos nítidos ocupam um lugar privilegiado em sua visão do mundo; chega assim à precisão da forma.

Um movimento de melhora acontece no final do ano, quando faz o segundo desenho no início de dezembro. Essa melhora é possível observar, na medida em que há mecanismos de ligação, ao estar abraçado ao coração, expressão de afetividade, toque e vitalidade do florescer. Embora não tenha cores, a imagem anatômica do coração é nítida.

No segundo desenho, é possível resgatar elementos de potencialidade da sua estrutura subjetiva, aspectos que propiciam o encontro com ele mesmo, "eu tenho a mim", "finalmente estou voltando a florescer", "só de estar aprendendo a dançar, não só no sol como na chuva também, fico muito feliz e orgulhoso de mim mesmo" (indicações dos participantes). A potência aparenta estar na vitalidade do contato, do abraço, do encontro. Semanas após essa sessão, o estar consigo e a vitalidade própria repercutem na abertura para a vida, possibilidade de superar as inseguranças e medos com a disponibilidade de reunir-se e viver o final do ano.

Segundo relatos da evolução da psicoterapia e as incertezas da pandemia que trazem ansiedade, a superação do medo de estar com as pessoas e encontrar os parentes, bem como o descanso do final das aulas, trouxeram sentimentos de renovação, diminuindo o estresse e a angústia. Na segunda imagem (Figura 2), o polo sensorial emerge, com o esboço de movimentos vitais, como as flores, a ligação, com o abraço ao coração e o toque afetivo da face nele, como um mecanismo de compensação fenomenológico para lidar com as dificuldades apresentadas.

As existências individuais não privam a possibilidade de apreender os significados nos relevos que conferem a manifestação do fenômeno durante a história singular do sujeito (Ternoy, 1997). O método fenômeno-estrutural se estende à compreensão da subjetividade não patológica, ao visar compreender em profundidade a singularidade da pessoa, através da alteridade, por meio de um contato relacional. Busca compreender todo o processo interno ou externo das transformações profundas, por meio de um quadro teórico e metodológico que se ocupa de apreciar os efeitos e limites dos diferentes eventos, circunstâncias ou procedimentos sobre a estrutura da personalidade (Barthélémy, 2012).

Ainda que a psicoterapia aconteça na modalidade exclusivamente on-line, em decorrência da pandemia, as movimentações subjetivas aparecem nas elaborações dos desenhos, o que sugere que a potência do encontro terapêutico se faz presente, mesmo através de um acompanhamento mediado por TICs. Na compreensão fenômeno-estrutural, a subjetividade possui núcleo essencial de potência (Barthélémy, 2015) e, dessa forma, a expressão através dos desenhos, podem favorecer o acesso a elementos essenciais da subjetividade (Ternoy, 1997).

As sensações de alívio surgem tanto na elaboração do segundo, quanto do terceiro desenho, ao passo que no segundo, ao alívio seguem-se sentimentos de angústia, desespero e sintoma físico de falta de ar, delineando, na imagem e na escrita, a cabeça sobrecarregada, cheia, explodindo. As imagens trazem o acesso à subjetividade e à oportunidade do dar-se conta das especificidades que o fazem sofrer: "quanto minha ansiedade me priva de sensações e momentos bons. (...) no quão exaustivo é tentar ser perfeito a todo momento" (indicações dos participantes).

Com aproximadamente quatro meses de acompanhamento psicológico on-line, o estudante tem a compreensão do que sente e define seus sentimentos como ansiedade. Mais do que um autodiagnóstico, o reconhecimento dos efeitos da ansiedade, na privação dos bons momentos, sinaliza a potência do autoconhecimento e a apropriação de si. Seus escritos trazem ainda, a autopercepção da exaustão do perfeccionismo. O envolvimento, o vínculo terapêutico e a autoconsciência são elementos presentes, sinalizando para a efetividade da psicoterapia, especialmente, na modalidade on-line e em contexto de crise e sofrimento intenso.

 

4. Considerações Finais

A produção de desenhos no acompanhamento psicoterápico on-line possibilitou refletir sobre a evolução do processo por meio de uma livre-expressão gráfica e do que motivou a mesma nessa produção. Revelou o envolvimento intersubjetivo, a complexidade da subjetividade e da dimensão multifatorial dos intensos sofrimentos que envolvem riscos de suicídio.

Além de apontar para os aspectos peculiares dos conteúdos empiricamente tratados durante o processo de psicoterapia, a compreensão das imagens permitiu apreender facetas essenciais da subjetividade, manifestadas através de traços e rabiscos, das formas e das figuras, entrelaçadas e desveladas da subjetividade que se depreende do encontro on-line entre estudante e terapeuta.

As imagens por si mesmas mostram a evolução terapêutica, o envolvimento e o vínculo de confiança do jovem universitário, seu estilo é cuidadoso e tem traços artísticos. É preciso valorizar a psicoterapia que aconteceu exclusivamente no formato on-line e ser conduzida de modo diferenciado de como seriam sessões face a face.

Especialmente, o tratamento on-line de pessoas com ideação suicida exige atenção redobrada com os aspectos não apenas psíquicos, mas também éticos, legais e de manejo clínico. É necessário que os profissionais da saúde envolvidos assumam responsabilidade pelas pessoas em risco, tendo em vista falhas de tecnologia, de conexão, avaliação de riscos e estabelecimento de planos de suporte e segurança (Tarlow, Johnson, & McCord, 2019), como ter telefones de emergências e contatos caso sejam necessários uma ação emergencial e o desenvolvimento de um plano de suporte corresponsável, constituído a partir da intensidade do sofrimento psicológico.

No contexto da pandemia, a maioria dos atendimentos migraram para o ambiente da internet. Entretanto, estão contextualizados em um momento de crise sanitária e deve-se considerar que as intervenções em situações de crise via web não eram regulamentadas pela Resolução 11/2018, e foram autorizadas em caráter emergencial pela Resolução 04/2020. No contexto brasileiro, a não regulamentação reflete na ausência de formação e capacitação adequados do profissional para condução clínica em tais situações. Em termos éticos, o atendimento on-line em contexto de crise deve ser avaliado individualmente, considerando riscos e/ou benefícios para a escolha da modalidade. O paciente deve ter ciência e ser orientado adequadamente sobre o caráter experimental do serviço a ser oferecido, além de receber informações claras sobre segurança da informação, registro, armazenamento e uso de dados. Além disso, nos aspectos clínicos, a avaliação continuada do ambiente onde a pessoa se encontra fisicamente, o momento sanitário de intensificação das vulnerabilidades e crises psicológicas, os recursos reais de suporte e socorro locais, as condições tecnológicas e suas repercussões na dinâmica emocional do paciente, são alguns dos cuidados específicos que os processos psicológicos on-line demandam para o momento da pandemia.

Especificamente, a intervenção mediada pelas tecnologias aconteceu desde a solicitação de acolhimentos, às sessões iniciais, até o envio dos desenhos e seguirá enquanto se mantiverem as exigências para contenção da pandemia. Ressalta-se que a equipe é capacitada para atuar em tais contextos, possuindo, também, os suportes de supervisão e prontidão em emergência, ainda que os atendimentos psicológicos on-line sejam intervenções experimentais em todo o mundo.

É relevante considerar que todas as etapas do acompanhamento tenham acontecido no entrelaçamento da vida digital, que foram intensificados pelo distanciamento social causado pela pandemia COVID-19, apontando para desafios e potencialidades, limitações e perspectivas deste trabalho.

Ainda que o estudo trate de um recorte de uma análise longitudinal, foi possível observar o envolvimento subjetivo que emergiu no processo on-line nos quatro meses iniciais do processo. Os desenhos retrataram a potência da intervenção psicológica mediada pela internet em situações de crise. Ressaltou-se os cuidados técnicos e éticos adotados, que influenciaram a consolidação do vínculo no ambiente on-line e da relação terapêutica. O uso de desenhos livres convidou a uma compreensão profunda da singularidade do aluno, capaz de transcender a objetividade das telas digitais. A análise fenômeno-estrutural mostrou-se significativa, na medida em que possibilitou o desvelamento do sofrimento do aluno através de suas próprias expressões e compreensões, e da apreciação da produção das imagens e da relação interpessoal tal como elas se apresentaram, portadoras de metáforas da condição real de sofrimento e possibilidades de evolução da personalidade no encontro interpessoal, de modo a preservar a autenticidade relacional e permitir a livre manifestação da subjetividade, através de um acompanhamento psicológico mediado pelas TICs.

 

Agradecimentos

Apoio: FAPESP 18/19520-8; FAPESP 18/11351-2; CNPq 302417/2018-4.

À Aimée Marcella Bielakowicz Giannaccari, psicóloga, graduada pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas e em Comunicação Social pela Fundação Armando Alvares Penteado.

 

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Endereço para correspondência
Andrés Eduardo Aguirre Antúnez
E-mail: antunez@usp.br

Nara Helena Lopes Pereira da Silva
E-mail: nara.helena@usp.br

Erika Rodrigues Colombo
E-mail: erika.colombo@usp.br

Pedro Monteiro dos Santos Neto
E-mail: pedro.monteiro.neto@usp.br

 

Recebido: 10 abril de 2021
Revisado: 25 de abril de 2021
Aceito: 10 de junho de 2021
Publicado: 25 de junho de 2021

 

 

1 Andrés Eduardo Aguirre Antúnez ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5317-4459
2 Nara Helena Lopes Pereira da Silva ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6183-3709
3 Erika Rodrigues Colombo ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9556-0734
4 Pedro Monteiro dos Santos Neto ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0245-4463

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