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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.2 Belém May/Aug. 2021

 

RELATO DE PESQUISA

 

Sofrimento psíquico e uso de psicofármacos entre estudantes de Pós-Graduação

 

Psychic suffering use of psychopharmacs among graduate students

 

Sufrimiento psíquico y uso de psicofármacos entre estudiantes de posgrado

 

 

Ticiana Spyra Drummond dos Reis1; Elaine Cristina Schmitt Ragnini2; Samantha de Toledo Martins Boehs3

Universidade Federal do Paraná, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Atualmente constata-se um número significativo de alunos de pós-graduação que sofrem ou adoecem psiquicamente e procuram ajuda psicológica e psiquiátrica enquanto cursam programas de mestrado e doutorado. Para compreender os elementos presentes nesse processo e auxiliar a construção de intervenções, foi realizado um estudo qualitativo-descritivo e exploratório em uma universidade pública brasileira com o objetivo de investigar o sofrimento psíquico em estudantes de pós graduação strictu sensu considerando as relações das condições e exigências da produção acadêmica com o uso de psicofármacos. Os resultados encontrados foram apresentados em duas perspectivas: relações de trabalho; sofrimento psíquico e uso de medicação. Identifica-se o uso de psicofármacos como uma das estratégias criadas pelos estudantes para lidarem com o sofrimento e adoecimento. Destaca-se a necessidade de ampliação e fortalecimento de políticas e dispositivos de atenção à saúde mental nas universidades voltadas a esse grupo.

Palavras-chave: Saúde Mental; Sofrimento psíquico; Estudantes; Pós-graduação.


ABSTRACT

Currently, there is a significant number of graduate students who suffer or become psychically ill and seek psychological and psychiatric help while taking master's anda doctoral programs. To understand the elements present in this process and assist in the construction of interventions, a qualitative-descriptive and exploratory study was carried out at a Brazilian public university with the objective of investigating the psychological suffering in strictu sensu graduate students considering the relationship of conditions and requirements academic prodution with the use of psychotropic drugs. The results found were presented in two perspectives: work relationships; psychic suffering and use of medication. The use of psychopharmacs is identified as one of the strategies created by students to deal with suffering and illness. The need to expand and strengthen mental health care in universities policies and devices aimed at this group is highlighted.

Keywords: Mental health; Psychic suffering; Students; Graduate studies.


RESUMEN

Actualmente se constata un número significativo de estudiantes de posgrado que sufren o se enferman psíquicamente Y buscan ayuda psicológica y psiquiátrica mientras cursan programas de maestria y doctorado. Para comprender los elementos presentes en ese proceso y auxiliar en la construcción de intervenciones, fue realizado un estudio cualitativo-descriptivo y exploratorio en una universidad pública brasileña con el objetivo de investigar el sufrimiento psicológico em los estudiantes graduados estrictamente sensu considerando la relación de condiciones y requisitos de producción académica com el uso de psicofármacos. Los resultados encontrados son presentados desde dos perspectivas: relaciones de trabajo; sufrimiento psíquico y uso de medicación. Se identifica el uso de psicofármacos como una de las estrategias creadas por los estudiantes para lidiar con el sufrimiento y el proceso de enfermarse. Se destaca la necesidad de ampliación y de fortalecimiento de políticas y dispositivos de atención a la salud mental em las universidades direccionados a este grupo.

Palabras clave: Salud mental; Sufrimiento psíquico; Estudiantes; Posgrado


 

 

1. Introdução

O contexto educacional da pós-graduação brasileira caracteriza-se por vários fatores que podem se relacionar com o sofrimento psíquico e o adoecimento dos que nele estão inseridos. Esses fatores são tanto de ordem pessoal quanto contextual, como as exigências de alto desempenho, a cobrança por produtividade, a sobrecarga de trabalho e dificuldade no manejo do tempo, os impeditivos estruturais e materiais para realização das pesquisas, a alta competitividade entre pares, a relação com o orientador e a falta de sentido no trabalho (Louzada & Silva Filho, 2005; Silva & Bardagi, 2016). Segundo Boehs (2020) tal contexto pode resultar em alto nível de sofrimento psíquico entre os estudantes de pós-graduação, com o desenvolvimento de quadros ansiosos e depressivos, de isolamento social e da utilização de substâncias lícitas e ilícitas como alternativa para o alívio dos sintomas.

O sofrimento psíquico tem sido estudado e compreendido de maneiras distintas ao longo da história da humanidade. Em cada momento histórico com um contexto social e político constrói-se uma psicopatologia específica para ele (Ceccarelli, 2005), o que indica diferentes perspectivas epistemológicas e teórico-metodológicas para abordar o tema.

Na atualidade, em nome de uma ciência afeita ao projeto neoliberal (Darriba, 2018), a nomeação do sofrimento e do mal-estar passou a ser fundada num saber médico e psiquiátrico que classifica o sofrimento psíquico em quadros nosológicos específicos que dizem do sujeito antes mesmo dele poder dizer de si. Segundo Santos, Yasui, & Dionísio (2012), observa-se uma multiplicação de categorias diagnósticas para as doenças psiquiátricas, sendo que quase todos os sujeitos passam a ser enquadrados em alguma patologia.

Essa lógica classificatória possibilita, como aponta Caponi (2009), que a maior parte dos nossos sofrimentos e condutas sejam redefinidos e resumidos em termos médicos. Conforme afirma Silva Júnior (2018) há uma inversão entre ciência e técnica, sendo que se passa a definir de antemão as patologias, organizando-as em função da ação de novos fármacos na supressão de sintomas, ao invés de esperar passivamente que estas patologias se manifestem, sejam descritas e submetidas às terapêuticas.

Entre as tecnologias desenvolvidas pela psiquiatria, para retratar esse novo cenário situam-se os medicamentos psicotrópicos. Assim, os diagnósticos e tratamentos psicanalíticos que eram hegemônicos na área psiquiátrica na primeira metade do século XX, perdem força após a Segunda Guerra Mundial, dando lugar à utilização dos psicotrópicos e à ascensão da psiquiatria biológica (Aguiar & Ortega, 2017).

Fundamentado no conceito do transtorno mental como síndrome e na descrição objetiva de seus sinais e sintomas constituintes, desconsidera-se a dimensão subjetiva e os sentidos atribuídos ao sofrimento mental. Dessa feita, consolida-se a perspectiva classificatória e de medicalização do mal-estar onde o limiar entre o que é considerado normal e o patológico parece cada vez mais ambíguo, móvel e instável (Caponi, 2009). Os diagnósticos se multiplicam e as descrições das categorias nosográficas se ampliam, estendendo-se a tantas dimensões da vida que quase todos os sujeitos poderiam ser enquadrados e diagnosticados em alguma patologia (Santos,Yasui, & Dionísio, 2012).

A terapêutica medicamentosa passou a ser priorizada como principal recurso de tratamento em detrimento de outras estratégias em saúde mental (Zanella, Luz, Benetti, & Roberti Junior., 2016). Segundo Santos (2014), vendeu-se a ideia falaciosa de que os medicamentos, por apresentarem resultados rápidos, seriam mais eficientes que as psicoterapias, muitas vezes sendo o único tratamento proposto. Nessa perspectiva, corre-se o risco de medicalizar o sofrimento psíquico perdendo a possibilidade de promover um tratamento pela palavra.

Para Ehrenberg (2010), mais que um instrumento terapêutico, os medicamentos são meios artificiais que entram em cena quando o natural já não é suficiente. Para o autor houve um deslocamento do uso dos medicamentos destinados a tratar de sujeitos com doenças mentais, para as práticas de conforto, como técnica de ajuste das pessoas à sociedade concorrencial que exige produtividade e adaptação às adversidades da vida (Ehrenberg, 2010). Nesses termos, cabe uma reflexão sobre dois lugares privilegiados para a medicalização do sofrimento: o mundo do trabalho e o mundo da educação. Pesquisas demonstram que o índice de sofrimento e adoecimento no trabalho tem aumentado significativamente nos últimos anos (Glina & Rocha, 2010), o que inclui o adoecimento na área da educação (Ragnini, 2014; Ferrarini, 2017).

No campo da Educação, o movimento de patologização e medicalização das dificuldades vêm sendo debatido majoritariamente no nível do Ensino Básico e se evidencia no aumento significativo de pessoas diagnosticadas com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e transtornos de aprendizagem, tal como dislexia (Chagas & Pedroza, 2016). Porém, conforme indicam Chagas e Pedroza (2016), a discussão não deve ser exclusiva a esse nível de ensino, devendo acontecer também no âmbito do Ensino Superior. Estudiosos têm se debruçado por compreender o sofrimento, adoecimento e medicalização de estudantes universitários (Cerchiari, Caetano, & Faccenda, 2005; Graner & Cerqueira, 2019) e de pós-graduandos (Shigaki & Patrus, 2016; Costa & Nebel, 2018, Pinzón, 2019).

Diversos autores apontam para a pós-graduação como o elemento mais bem sucedido do sistema educacional brasileiro (Balbachevsky, 2005; Moreira, 2009). A pós-graduação, aproximando-se dos moldes que conhecemos hoje, deu-se pela sua regulamentação em 1965, através do Parecer 977/65 do Conselho Federal de Educação. Segundo Martins (2018), sendo que este parecer foi fundamental para a configuração dos cursos de pós-graduação no país. É importante ressaltar que essa regulamentação se deu sob a influência e égide do regime militar (Balbachevsky, 2005), "que buscou vincular o sistema educacional ao desenvolvimento econômico, comandado por uma lógica de internacionalização econômica crescente" (Martins, 2018, p. 15).

De acordo com Costa & Nebel (2018), um marco importante nesse período e considerado um divisor de águas, foi a criação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A institucionalização da CAPES vai ao encontro, segundo Martins (2018), com as aspirações do regime pós-64 de implantar um sistema de fomento, atribuindo papel estratégico do ensino superior no sistema de ciência e tecnologia (C&T) e na formação de recursos humanos altamente qualificados.

De 1965 a 1974, foram criados os primeiros cursos de pós-graduação no Brasil, bem como sua institucionalização e regulamentação (Silva, 2013). Em seguida, no final da década de 70, começou a vigorar o sistema de avaliação por pares "que vinculou a concessão de recursos financeiros à produção acadêmica dos pesquisadores de cada programa" (Costa & Nebel, 2018, p. 210), ocorrendo uma expansão planejada da pesquisa e da pós-graduação brasileira com o estabelecimento de novas normas. Houve ainda a importação dos padrões da pós-graduação norte-americana e a internacionalização das publicações, alvo de críticas como a dependência cultural, não traduzindo os interesses nacionais nas pesquisas (Santos, 2003).

As mudanças apontadas geraram o aumento das exigências por produtividade no contexto da pós-graduação, o que reflete diretamente nas métricas exigidas aos estudantes de mestrado e doutorado. Alguns elementos que compõem essa exigência são os prazos mais reduzidos para finalizar teses e dissertações, bem como a cobrança por publicação de artigos científicos. Esses elementos inclusive tornam-se critérios objetivos para avaliação dos programas, como por exemplo, o menor prazo para titulação e quantidade de publicações em revistas de renome. Nesse sentido, a cultura da produtividade passa a ser regra para a avaliação de todos os programas de pós-graduação do país (Louzada & Silva Filho, 2005).

Estudiosos têm buscado compreender o sofrimento, o adoecimento e a medicalização no contexto universitário em estudantes da graduação (Cerchiari, Caetano & Faccenda, 2005; Graner & Cerqueira, 2019) e da pós-graduação (Costa & Nebel, 2018; Pinzón, 2019).

Em uma revisão integrativa com estudos nacionais e internacionais sobre os fatores de risco associados a transtornos mentais menores (TMM) na população universitária Graner & Cerqueira (2019) identificaram que os aspectos acadêmicos foram os que apresentaram maior frequência de associação com sofrimento psíquico, estando entre eles o ano de curso (primeiros e últimos anos) e a percepção negativa do ambiente, seguidos dos aspectos relacionais. Como fatores protetivos, pode-se destacar o apoio social, ou seja, ter bom relacionamento com os amigos, sentir-se adaptado à vida acadêmica, sentir-se aceito pelos amigos e receber apoio emocional, sendo que os alunos que possuem maior apoio apresentaram melhor percepção do desempenho acadêmico, independente do ano do curso. Em relação aos dados demográficos, ter baixa renda, maior idade e ser mulher apresentaram maior correlação com sofrimento psíquico nessa população.

No contexto da pós-graduação, o sofrimento psíquico, gerado por fatores como incerteza profissional, excesso de pressão, relações difíceis entre colegas e com os orientadores, passam a fazer parte do processo de formação dos pesquisadores, especialmente no que se refere à precarização do trabalho, manifestada na jornada extensa em laboratório e aos aspetos relacionados à condução do projeto de pesquisa de maneira em geral (Louzada & Silva Filho, 2005).

Estudo realizado por Costa & Nebel (2018) sobre o sofrimento psíquico com pós-graduandos brasileiros apontou que o grau de exigência é bastante alto, sendo a pressão por publicação de artigos em periódicos e o engajamento em atividades e tarefas do programa de pós-graduação as mais apontadas pelos estudantes como de alta cobrança. Destacam-se também os medos de perder a bolsa de estudos ou emprego, de não conseguir terminar a tese/dissertação e a preocupação em não defender e qualificar dentro dos prazos estipulados (Costa & Nebel, 2018).

Pesquisa desenvolvida por Pinzón (2019) com 1619 estudantes de pós-graduação brasileiros acerca da sobrecarga de trabalho, sucesso na carreira e saúde mental revelou que além dos estudantes apresentarem escores moderados nos sintomas de depressão, ansiedade e estresse, uma percentagem significativa afirmou ter tentado suicídio depois de entrar na pós-graduação. Aspectos relacionados às dificuldades com o sono e utilização de medicamentos psicotrópicos também são frequentes entre os pós-graduandos. Dos 2.903 estudantes de pós-graduação que participaram da pesquisa realizada por Costa e Nebel (2018), 74% consideravam sofrer com ansiedade, 31% insônia e 25% depressão, sendo que 19% dos estudantes tomavam algum tipo de medicamento para auxiliar o sono e 27% faziam tratamento com medicação psicotrópica.

Em revisão de literatura realizada por Silva & Bardagi (2016) com base em 35 artigos sobre a pós-graduação strictu sensu brasileira entre 1995 e 2015, das quatro categorias analisadas, a categoria satisfação com a formação de pós-graduação aparece como a segunda mais frequente nesta revisão, demonstrando, segundo as autoras, maior preocupação com questões concernentes ao bem-estar psicológico de pós-graduandos, relacionando índices de satisfação e sofrimento à experiência na pós-graduação. Ao realizar revisão sistemática sobre fatores de proteção e risco para a saúde mental de estudantes de pós-graduação e professores, Pinzón (2019) detectou que nos últimos anos existem poucas investigações científicas relacionadas ao tema.

Na atualidade ainda há um predomínio de publicações acerca da pós-graduação em termos das características dos programas e seus aspectos estruturais, tornando-se necessário a realização de estudos que investiguem o bem-estar e o sofrimento psíquico em alunos de pós-graduação. Dessa forma, a presente pesquisa teve como objetivo investigar o sofrimento psíquico em estudantes de pós-graduação strictu sensu considerando as relações das condições e exigências da produção acadêmica com o uso de psicofármacos.

 

2. Método

Foi realizado um estudo qualitativo-descritivo e exploratório com a utilização de entrevistas de caráter semiestruturado, desenvolvidas a partir de um roteiro elaborado com perguntas para caracterização dos estudantes, aspectos relativos ao ambiente acadêmico, adoecimento psíquico e uso de medicação. Os critérios de inclusão na amostra foram (1) interesse em participar da pesquisa, (2) ser estudante de mestrado ou doutorado da instituição e (3) fazer uso de medicamentos psicotrópicos.

As entrevistas foram gravadas, tendo seu conteúdo posteriormente transcrito na íntegra, possibilitando a análise e categorização dos dados. Para a compreensão das entrevistas, utilizou-se o método de análise de conteúdo (Bardin, 2011). Após a análise e categorização dos dados, os resultados foram separados em dois eixos: a) Contexto da pós-graduação e relações de trabalho; e b) Sofrimento mental e uso de medicação. Para fins de ilustração dos resultados, as falas dos participantes da pesquisa são identificadas pela letra E (Entrevistado) e o número da entrevista (1 a 8). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade sob o número de parecer 3.416.065 e todos os participantes preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), contemplando os riscos e benefícios da participação, bem como direitos do participante.

 

3. Resultados e Discussão

Participaram da pesquisa oito estudantes de pós-graduação strictu sensu de uma universidade pública federal brasileira. Dentre os respondentes, dois eram mestrandos e os outros seis doutorandos, todos bolsistas. A amostra contemplou estudantes das seguintes grandes áreas de conhecimento, conforme classificação da CAPES: Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Ciências Agrárias e Ciências Biológicas. A idade média dos estudantes era de 29,4 anos, sendo três do sexo masculino e cinco do sexo feminino.

Com a finalidade de enriquecer a qualidade do trabalho, por se tratar de uma pesquisa qualitativa, optamos por apresentar os resultados e a discussão de maneira interligada. Os resultados foram divididos em duas categorias: Relações de trabalho no contexto da pós-graduação; Sofrimento psíquico e uso de medicação.

Relações de trabalho no contexto da pós-graduação

A forma como se estrutura o contexto de trabalho na pós-graduação e as relações entre seus participantes pode ter repercussões subjetivas, sendo por vezes produtoras de sofrimento psíquico. Dentre os fatores apontados pelos alunos como de maior sofrimento no contexto da pós-graduação estão a incerteza sobre o futuro, a falta de estrutura e recursos, bem como a desvalorização da profissão com cortes de financiamento para pesquisas, e falta de suporte psicológico por parte da universidade. Outros pontos observados como geradores de sofrimento foram a cobrança excessiva por produção e performance, além da percepção do ambiente da pós-graduação como competitivo e opressor.

Os aspectos financeiros e estruturais foram apontados pelos participantes como geradores de estresse e ansiedade, impeditivos ou complicadores para a condução da pesquisa de forma apropriada. Em alguns casos, como afirmou uma das participantes, esse acaba sendo um impeditivo para a o desenvolvimento de algumas pesquisas.

não ter um equipamento adequado que te faça chegar ao resultado, não esperado mas pelo menos próximo daquilo que você esperava é um causador de muito estresse [...] se por exemplo eu que tenho esse quadro de ansiedade, pra mim isso gera um gatilho terrível (E5).

Em abril do ano de 2019, o Ministério da Educação (MEC) realizou o bloqueio de cerca de 30% das verbas das instituições federais para despesas ditas não obrigatórias, que compreendem gastos com água, luz, e equipamentos, imprescindíveis para a condução das pesquisas e atividades universitárias. Além disso, o anúncio de cortes e suspensão de bolsas de pós-graduação, bem como o atraso e a falta de financiamento provocam incerteza e disputa por recursos prejudicando o clima de trabalho entre os docentes e refletindo também no aumento de competição entre os alunos dos programas, especialmente no que se refere ao controle daqueles não conseguem as bolsas em relação aos que foram contemplados.

Esses aspectos afetam não somente a pesquisa, como também a perspectiva futura dos pós-graduandos, já que enxergam nas políticas de cortes e contingenciamento o sucateamento das instituições federais, a desvalorização da carreira acadêmica, de pesquisador e da docência.

a gente vê que o pessoal não tá valorizando o que a gente faz então só por isso você já começa a ficar menos animada de estar fazendo o que você está fazendo, já começa a te desmotivar um pouco (E7).

Os entrevistados relatam também uma sensação de abandono na universidade tendo em vista que os pós-graduandos, como aponta uma das participantes, são algumas vezes negligenciados pelos serviços de atenção à saúde mental, planejada primariamente para atender às demandas dos alunos de graduação. Segundo E5, não há espaço para o sofrimento de mestrandos e doutorandos nesse ambiente:

eu sinto o ambiente acadêmico, assim em relação à pós-graduação, muito desprovido de suporte, sabe, quando você tá muito mal não tem um suporte, alguém que te dê realmente atenção, sabe, você não tem muito a quem procurar. Você vai procurar um psicólogo, você fica numa fila de três anos. (E5).

Segundo Rohm & Lopes (2015), na sociedade gerencial o único caminho para a realização de si consiste na lógica da produtividade. Essa ótica neoliberal e produtivista também vem permeando o ambiente acadêmico (Shigaki & Patrus, 2016). Características do modelo toyotista são fortemente sentidas na produção acadêmica, como a ênfase no cumprimento de metas individuais onde os estudantes passam a ter responsabilidade sobre o sucesso do programa de pós-graduação, na medida em que o não cumprimento dessas metas afeta a avaliação do programa como um todo (Mendes & Iora, 2014).

Nesse tipo de organização do trabalho, o controle, ou a cobrança, é internalizada, sendo o próprio sujeito o gerente de si mesmo. Como afirma Maurente (2019, p.7), "a moral produtivista dispensa o controle externo, na medida em que se constitui como um valor moral e coloca o indivíduo como o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso". Essa moral internalizada, dispensando o controle externo, dá a aparência de autonomia e liberdade aos sujeitos, estando estes supostamente livres para escolher ou "optar por outros cenários" (Maurente, 2019, p.7-8). Nesse sentido, como demonstram os participantes, há a percepção de que eles são os únicos responsáveis por suas escolhas, inclusive por seu adoecimento:

mas a ansiedade ela sempre tá assim, em níveis muito altos, provavelmente em decorrência das escolhas que eu faço, escolhas muito estressantes, escolhas que não te deixam, sabe, relaxar, em momentos necessários, então eu sempre convivo com ela, a ansiedade sempre em níveis altos (E5).

Alguns participantes se questionam o que afinal seria a produtividade e qual seria o sentido dessa produção no meio acadêmico e a quem ela seria endereçada. Esse posicionamento pode ser encarado como uma forma de resistência à moral produtivista, na qual os entrevistados deslocam o conceito de produtividade para experiências significativas, que se dão inclusive em outros ambientes de trabalho que não o da pós-graduação.

[...] talvez produtividade não seja só produzir um artigo, né, talvez seja mudar a vida de uma pessoa. Então talvez isso também seja produtividade, é uma produtividade que você não mede, então aos pouquinhos eu tô tentando colocar isso na minha mente, pra me gerar menos frustração, porque afinal de contas olha o tanto de coisas que eu tô fazendo (E6).

A finalidade e o sentido da produção científica e do próprio processo de escrita e produção de artigos também foram questionados por alguns participantes.

É, porque eu sinto que pra mim perdeu um pouco o sentido, porque eu tô fazendo um negócio que eu não sei se alguém vai ler, eu não sei o quanto isso vai impactar, tipo, na vida, de verdade na vida da sociedade, tipo, eu sinto que é um trabalho muito égoico assim, muito égoico (E2).

Esse sentido, ou a falta dele, é gerador de angústias. Quando a atividade não tem sentido, não se estabelece uma relação consciente entre seu motivo e o fim, provocando um descolamento do sujeito em relação a seu compromisso e a real função social da universidade, bem como o distanciamento da totalidade do produto de seu trabalho, havendo um esvaziamento da atividade (Gradella Júnior, 2010). Dessa forma, identifica-se a impossibilidade de apropriação do trabalho por parte do sujeito. Essa cisão também acontece psiquicamente, provocando o sofrimento psíquico. Assim, a dimensão afetiva é extirpada do trabalho, restando puramente o trabalho intelectual muitas vezes destituído de sentido.

Não somente o processo de escrita, mas também o ambiente acadêmico é percebido pelos estudantes como de vivência solitária e palco de realizações narcísicas. Essa característica é percebida na relação entre docentes e no interior dos grupos de pesquisa. Esses atritos são sinalizados pelos participantes como prejudiciais à ciência como um todo: "ele [o ambiente universitário] é meio, assim meio egocêntrico, meio cheio de brigas, as coisas não avançam como poderiam (E6)".

Além da produtividade, a questão da performatividade também esteve presente no relato dos entrevistados no que se refere ao contexto da pós-graduação. Segundo Ball (2005) podemos compreender como performatividade "uma tecnologia, uma cultura e um modo de regulação que emprega julgamentos, comparações e demonstrações como meios de controle, atrito e mudança" (p.543). A performatividade está intrinsecamente relacionada com a pressão por produtividade, tendo em vista que o desempenho é aferido principalmente mediante a quantidade e a qualidade da produção científica.

A cultura da performatividade no ambiente acadêmico afeta todos os atores desse cenário institucional. Este aspecto se expressa no relato dos participantes na necessidade de destacarem-se, frente ao ambiente homogeneizador da pós-graduação em que estar na média, ou ser mediano, é desprezível:

existe um nível de cobrança elevado, existe um limiar definido ali de exigência que você precisa ultrapassar, e ultrapassar esse limiar é dificil, então é muito fácil você ser uma pessoa média [...] no meio acadêmico existe uma necessidade de você se destacar, e pra você se destacar você precisa produzir muito, porque essa é a única forma de você aparecer nesse meio (E6).

O aspecto performático também de destaca à medida que é necessário cultivar uma imagem, construir uma reputação, que está sempre ameaçada. Como afirma Moreira (2009, p. 25), "o julgamento constante, efetuado de maneiras distintas e por meios diversos, instaura insegurança, assim como a exigência de desempenhos cada vez mais impecáveis". Um dos participantes, ao se referir à exigência de bom desempenho, afirma: "querendo ou não ajuda a fomentar tua própria imagem, sabe, de uma pessoa que talvez é merecedora (E8)".

Outra faceta é a relativização do valor do sujeito em função de seu desempenho. Este desempenho e performance passam a significar, resumir ou representar, "a qualidade e o valor de um indivíduo ou organização num campo de avaliação" (Ball, 2001, p.109). Ainda, conforme Ball (2005, 550), "a performatividade atinge profundamente a percepção do eu e de nosso próprio valor", como podemos observar no relato acima. Muitas vezes a construção e manutenção desse desempenho/imagem, e consequentemente o sucesso e a permanência em um programa de pós-graduação, implica em um silenciamento, por medo de represálias, como aparece no depoimento de E8: "Aqui tudo que a gente fala pode ser jogado contra nós [...] essa é a pressão que a gente fica, tolhido de pegar e falar aquilo que a gente quer falar por conta de uma certa retaliação" (E8).

Este seria um dos aspectos do "sistema de terror", conceito desenvolvido por Lyotard, citado por Ball (2001) ao explicitar o conceito de performatividade se aplicando com mais força ainda aos bolsistas, como pode ser percebido pelos relatos de E2 e E5:

tem uma pressão bizarra da CAPES né, de ter que ter publicação, que tem que ter, então eu vejo que é quantidade em lugar de qualidade [..] é um terrorismo muito desnecessário, eles mandam, ainda mais com bolsista (E2). Né, agora uma coisa que é uma normativa, que realmente ela pode por exemplo 'posso ter a minha bolsa retirada' e não é um blefe né, não é uma forma de pressionar o aluno, realmente é algo que vai ocorrer, porque já ocorreu aqui no programa (E5)

Sofrimento psíquico e uso de medicação

Neste eixo foram agrupadas questões diretamente relacionadas com o processo da saúde-doença, bem como aspectos referentes à experiência de adoecimento psíquico, concepções acerca do uso de medicamentos psicotrópicos e representações do diagnóstico em psiquiatria. Dessa forma, obtiveram-se dois subitens, explorados a seguir, a saber: consciência do sofrimento psíquico (insight); e diagnóstico e uso da medicação.

Consciência do sofrimento psíquico (insight)

O adoecimento psíquico aparece entre os participantes como um ponto de inflexão, ou de ruptura, um estado limite em que os sujeitos se tornaram conscientes da sua condição e de seus determinantes. Este adoecimento manifestou-se tanto na instância psíquica, através da vivência da angústia, ansiedade e outros sintomas, quanto na psicossomática, como por exemplo, no aparecimento de distúrbios de sono, alergias e queda de cabelo. Essa dinâmica, assim como o uso de medicamentos psicotrópicos, despertou em alguns participantes a percepção de interdependência entre corpo e mente: "porque aí eu comecei a entender que a mente é parte do corpo na verdade, então se minha mente não tá saudável, é até clichê né, mas se a mente não tá saudável, o corpo não tá" (E6).

A inscrição do sofrimento no registro corpóreo assinalou para a maior parte dos participantes que 'algo não vai bem', mobilizando os sujeitos a procurar ajuda psicológica e recursos para lidar com o sofrimento conforme pode ser percebido pelo relato de E5: "Então você só percebe quando a coisa já tá demais. Você, o corpo já cobra, né, aquilo que a cabeça já não dá mais conta de resolver. Então foi quando eu comecei a perceber que aquilo tava demais".

Em termos clínicos, pode-se empregar a noção de insight. Segundo Abel (2003) geralmente esse termo é traduzido para o português como "compreensão interna, compreensão súbita, apreensão súbita, visão súbita, discernimento, perspicácia" (p. 22). Previamente ao processo de tomada de consciência ou insight, havia uma tendência à naturalização, tendo os participantes relatado encararem esse sofrimento como inerente ao processo da pós-graduação ou como características próprias de sua personalidade como revela o relato de E4: "Antes eu achava que tipo, eu era muito funcional só [...] muitos anos banalizei minha ansiedade, eu achava que ela era parte de mim, era minha personalidade, não que ela era patológica".

Em contrapartida, após a experiência de adoecimento, com aparecimento de sintomas e procura por tratamento psicológico, psiquiátrico e medicamentoso, e por vezes a obtenção de um diagnóstico, há a compreensão do sofrimento como doença, como observamos no seguinte relato de E4: "a gente demora pra aceitar também que a ansiedade um pouco é uma doença né, que você tem que entendê-la, quando ela é patológica você tem que entendê-la como patológica, ela precisa de tratamento".

Diagnóstico e uso da medicação.

Entre os entrevistados, apenas um não fazia uso prescrito de medicação contínua, utilizando somente esporadicamente o medicamento psicotrópico. Outro participante administrava essa classe de medicamentos para fins não psiquiátricos, apesar de apresentar um quadro de ansiedade. O tempo de uso variou de dois meses a dois anos. As drogas mais prescritas foram os antidepressivos, com preponderância da fluoxetina. Os quadros de ansiedade foram mais comuns, com sintomas tanto físicos quanto psíquicos. A maior parte dos participantes teve dificuldades ou certa relutância antes de iniciar o tratamento ou nos primeiros meses, seja por concepções prévias acerca do tratamento psiquiátrico e medicamentoso ou em decorrência de seus efeitos colaterais.

Ainda que fazer o uso de algum medicamento psicotrópico fosse um dos critérios para participação na pesquisa, é importante ressaltar que foi na pós-graduação que a maior parte dos estudantes entrevistados começaram ou retomaram o uso do medicamento. A experiência do uso de medicação está vinculada à maneira como cada sujeito associa e compreende aquilo que está ligado ao uso, como pontuam Benini e Leal (2016). As autoras citam a interdependência na narrativa dos sujeitos entre diagnóstico e medicação, em seu estudo com sujeitos diagnosticados com esquizofrenia, sendo que a forma como o sujeito vivencia o diagnóstico interfere na experiência do uso de medicação.

Outro ponto a ser destacado é a influência da cultura na determinação das concepções, imaginário e representações sobre os transtornos mentais. Como afirma Benini (2015, p.9-10), "o diagnóstico, o tratamento, os cuidados que estão relacionados com as crenças de saúde, comportamentos e valores, estão todos atravessados pela cultura." No presente estudo, foram associadas ao uso de medicamentos algumas concepções subjetivas, que serão descritas a seguir. Essas concepções, em sua maioria, foram referidas como anteriores ao tratamento ou em seu início. Alguns participantes relataram certa resistência inicial em relação à busca por suporte - um estigma, ou preconceito, associada à ideia de ser incapaz ou não ser forte o suficiente, conforme pode ser percebido nos relatos de E2 e E4, respectivamente: "mas ainda tenho um pouco disso, de sentir que é fraco, que não deu conta né [...] existe muito esse estigma dentro da gente também" (E2).

Tipo sempre fui muito 'ah, eu sou forte, eu consigo, eu não preciso de ajuda, eu não quero pedir ajuda', aí na mania de ser forte eu achava que tomar remédio é uma fraqueza, sabe, acho que também entrava nisso (E4).

Essa experiência de fraqueza/fragilidade relatada pode ser contrastada com a plena funcionalidade, autonomia e gestão de si exigida do sujeito no contexto da pós-graduação. Devido ao adoecimento, alguns dos participantes da pesquisa precisaram se afastar por um tempo de suas atividades acadêmicas e laborais. A presença de sintomas tidos como prejudiciais ao funcionamento social e ocupacional dos sujeitos é inclusive um dos critérios diagnósticos de vários transtornos mentais presentes nos manuais psiquiátricos. O manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSM-V (2014), prevê que os distúrbios psiquiátricos podem gerar "prejuízos no funcionamento pessoal, social, acadêmico ou profissional" (DSM-V, 2014, p.31). Em parte, os medicamentos carregam a promessa de resgatar a funcionalidade do sujeito e promover sua reinserção nas atividades produtivas, como demonstra a fala: "(o medicamento) tá me ajudando muito a querer estar aqui, a enfrentar as coisas (E2)".

Outra concepção diz respeito à noção de anormalidade. Apesar do crescente processo de patologização do normal na contemporaneidade (Maluf, 2009), perdura no imaginário social a associação do campo psiquiátrico como espaço privilegiado da loucura, em oposição à normalidade. De acordo com Cavalcante e Cabral (2017, p.298), "o estigma da 'doença mental' ainda domina as representações construídas pela sociedade, a respeito de usuários de medicamento psicotrópico". Esses rótulos, ou estigmas, permeiam as concepções dos indivíduos em relação ao adoecimento psíquico, seja o que acomete a si próprio ou aos outros conforme pode ser percebido pelos relatos de E2 e E4: "Mas em casa, acontece muito isso, agora não posso mais me irritar ou ficar mal, ficar triste que 'ah, vai tomar seu remédio" (E2).

acho que muito paciente tem (preconceito), assim de tipo 'eu não sou louco, eu não preciso disso, meu deus pra eu ser normal eu dependo de remédio' eu tinha muito preconceito [...] Aí, eu nem queria ir na psiquiatra na real, né, que a gente tem aquele preconceitinho né, tipo 'não quero tomar remédios, eu não sou louca' (E4).

A noção do medicamento psicotrópico como um dispositivo sintético, de ação neuroquímica, externo ao sujeito e que estaria o modificando, foi outro aspecto que suscitou questões para os entrevistados, como se reconhece na fala: "não é legal saber que você precisa de um produto químico, sintético, pra poder adequar alguma coisa no seu corpo (E6)".

Nesse sentido, pode-se dizer que havia a percepção de que essas drogas estariam alterando ou poderiam alterar o funcionamento normal cerebral desses sujeitos, comportamento este considerado por alguns como disfuncional ou inadequado. Mais fortemente, havia a crença e o temor de que esses medicamentos pudessem alterar o funcionamento não somente a nível cerebral, mas também psíquico, modificando aspectos da própria personalidade conforme pode ser percebido pelos relatos de E4 e E6: "Achava que aquilo ia me fazer mal, que não era minha personalidade, que aquilo ia me fazer ser menos eu" (E4).

imaginava que eu não queria tomar um remédio porque eu achava que eu ia ser modificado, minha personalidade ia ser modificada quando eu tomasse esse remédio [..] na minha mente eu ia estar dopado, eu já não ia mais responder da forma como eu deveria responder naturalmente dado quem eu sou, então eu tinha medo de perder talvez minha personalidade na verdade (E6)

Outro temor, entretanto, mais duradouro, é o da dependência. Por ser uma droga, ainda que lícita, a dependência de psicofármacos geralmente é associada com a dependência química, ou seja, a potência de provocar abstinência ou vício. Para os sujeitos da pesquisa, entretanto, esse temor está mais relacionado a uma dependência psicológica dos medicamentos, como demonstra a fala: "Então eu tenho medo de chegar num ponto no qual eu esteja só fugindo das coisas e dependendo única e exclusivamente de medicação. Não queria chegar a isso" (E3).

Uma das entrevistadas se referiu à sensação de aprisionamento, e de se sentir refém do medicamento. Esse aprisionamento à droga prescrita, no estudo de Cavalcante & Cabral (2017) com sujeitos institucionalizados, geralmente foi associado com a obrigatoriedade do uso, provocando certa ambivalência conforme pode ser percebido pelo relatado de E2: "A sensação é essa de poxa, a que ponto eu cheguei, sabe, eu tô precisando tomar um remédio, eu preciso, eu sinto muito isso, de estar meio refém" (E2).

A maioria dos participantes encarou o uso do medicamento como necessário, porém relatam que se sentiriam mais felizes e estariam mais contentes se não precisassem tomar. Isso vai ao encontro com os achados de Mendes (2008) sobre a concepção do medicamento como um mal necessário. Em seu estudo sobre as percepções de indivíduos com histórico de transtornos mentais acerca da medicação Mendes (2008) constatou um "pensamento dualista, subjectivo e paradoxal em torno da medicação" (p.92) que ao mesmo tempo que é visto como importante, oferecendo, por um lado, estabilidade e tranquilidade, por outro "surge como um mal necessário revestido de efeitos secundários mais ou menos difíceis de suportar" (Mendes, 2008, p.92). Esse sentimento de segurança e tranquilidade pode ser observado no relatado de uma das participantes: "Olha, eu vou dizer assim, ter um medicamento em casa me traz paz (E5)".

Verifica-se que o uso de medicamentos é mobilizador de questionamentos e angústias, culminando numa sensação de incapacidade e fragilidade. Essas percepções e concepções se articulam intimamente com as representações e discursos acerca do diagnóstico em psiquiatria e do estigma da doença mental, provocando sentimentos contraditórios e ambivalentes nos sujeitos em relação ao uso de psicofármacos. Apesar das contradições envolvidas no uso de medicamentos, no contexto da pós-graduação a medicalização acaba se tornando, em alguns casos, uma alternativa que auxilia no enfretamento das demandas recebidas.

 

4. Conclusões

Foi constatado, por meio desta pesquisa, que o uso de psicofármacos por estudantes de mestrado e doutorado tem sido uma das estratégias utilizadas para estar presente no meio acadêmico da pós-graduação, representando e fortalecendo uma cultura de produtividade e performatividade. Essa lógica se reproduz nas relações entre os seus participantes e relativiza o valor do sujeito em função de seu desempenho, forjando subjetividades.

Aquele que é acometido por um adoecimento psíquico, muitas vezes engendrado ou potencializado no próprio contexto da pós-graduação, tem sua permanência no programa ameaçada. Para evitar ser excluído do processo, há um desgaste ainda maior, sendo que os alunos recorrem, por vezes, ao uso de medicamentos e tratamento psiquiátrico para enfrentarem o alto grau de exigência, pressão por publicação e sobrecarga de trabalho.

É comum os estudantes dirigirem à instituição demandas de acolhimento e acompanhamento, seja porque exigem de seus orientadores e programas uma atenção individualizada e específica para o caso, seja porque solicitam e buscam por serviços médicos e psicológicos na própria instituição. Como esses pedidos são endereçados à instituição e envolvem a produtividade da pós-graduação, é certo que alguma mobilização institucional ocorre para amparar esses sujeitos. Essas intervenções são individuais (atendimentos clínicos institucionais), em grupo (grupo de acolhida e trabalho) e/ou institucionais (campanhas e novos projetos na área de saúde mental e pós-graduação).

Devem-se destacar os aspectos institucionais e acadêmicos na produção desse sofrimento, considerando a forma como a pós-graduação brasileira e suas relações de trabalho estão organizadas. As políticas dos órgãos de fomento e financiamento, bem como suas métricas (ainda que produzam resultados efetivos e expressivos), respaldam práticas pouco saudáveis entre discentes e docentes e entre colegas, que são muitas vezes reproduzidas e naturalizadas, sem que haja espaço para objeções e reformulações. Nesse sentido, destaca-se a necessidade de ampliação e fortalecimento das políticas de acesso aos serviços/programas voltados a essa população, bem como aos dispositivos de atenção à saúde mental. Espera-se que a sistematização aqui apresentada sobre os elementos em jogo no processo de saúde e doença nos processos de trabalho da pós-graduação e o uso de medicação como principal tratamento possam auxiliar o desenvolvimento de outras pesquisas e intervenções que venham a mobilizar a transformação dessa sociedade.

 

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Endereço para correspondência
Ticiana Spyra Drummond dos Reis
E-mail: ticianasdreis@gmail.com

Elaine Cristina Schmitt Ragnini
E-mail: elaine@ufpr.br

Samantha de Toledo Martins Boehs
E-mail: samantha.boehs@ufpr.br

 

Recebido: 13 de abril de 2021
Revisado: 10 de junho de 2021
Aceito: 30 de julho de 2021
Publicado: 15 de agosto de 2021

 

 

1 Ticiana Spyra Drummond dos Reis ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6297-3308.
Graduada em Psicologia. Universidade Federal do Paraná, Brasil
2 Elaine Cristina Schmitt Ragnini ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6086-238.
Departamento de Psicologia. Universidade Federal do Paraná, Brasil
3 Samantha de Toledo Martins Boehs ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5741-056X. Departamento de Administração Geral e Aplicada da Universidade Federal do Paraná, Brasil

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