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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.2 Belém maio/ago. 2021

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Saúde, home office e trabalho docente: construção compartilhada de estratégias de sobrevivência em tempos de pandemia

 

Health, home office and teaching work: shared construction of survival strategies in times of pandemic

 

Salud, home office y trabajo docente: construcción compartida de estrategias de supervivencia en tiempos de pandemia

 

 

Fernanda Sardelich Nscimento1,I; Renata Almeida2,II; Edna Granja3,II; Diogo H Helal4,III

IUniversidade Federal de Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste
IICentro Universitário UniFBV, Brasil
IIIFundação Joaquim Nabuco, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse artigo busca responder questões acerca do trabalho docente na forma remota, bem como fazer reflexões de como conciliar esse trabalho com a vida pessoal, já tão atribulada e ainda como preservar a saúde biopsicossocial nesse cenário. Todas as reflexões foram feitas a partir da história de quatro professores de um Centro Universitário privado em Pernambuco. Dessa forma, reflete nosso compromisso de produzir uma narrativa sobre o trabalho docente na Pandemia que considerem as vozes dos/das professores. Nesse contexto, tomamos a escrita como uma estratégia de sobrevivência. Distantes dos pressupostos metodológicos do projeto científico moderno, que partem da neutralidade e exigem distanciamento do objeto estudado, decidimos escrever sobre nossas experiências como docentes. Entendemos que os fundamentos epistemológicos da História Oral e da fenomenologia podiam nos apoiar no investimento de contar a história do tempo presente, através da construção compartilhada de narrativas sobre o momento que vivemos.

Palavras-chave: Covid-19; Home Office; Trabalho Docente; História Oral; Saúde.


ABSTRACT

This article seeks to answer questions about the teacher job on a remote format, as well as to reflect on how to reconcile this work with personal life, which is already so troubled and how to preserve biopsychosocial health in this scenario. All reflections were made from the story of four teachers from a private University Center in Pernambuco. In this way, it reflects our commitment to produce a narrative about teaching work during the pandemic that takes into account the voices of teachers. In this context, we took writing as a survival strategy. Distant from the methodological assumptions of the modern scientific project, which start from neutrality and demand distance from the object studied, we decided to write about our experiences as teachers. We understand that the epistemological foundations of Oral History could support us in the investment in telling the story of the present time, through the shared construction of narratives about the moment we live in.

Keywords: Covid-19; Home Office; Teaching Work; Oral History; Health


RESUMEN

Este artículo busca dar responder pregrutas sobre el trabajo docente a distancia, así como reflexiones sobre como conciliar este trabajo con la vida personal, que ya está tan atareada y también como preservar la salud biopsicosocial en este paisaje. Todas las reflexiones se hicieron a partir de la historia de cuatro profesores de un Centro Universitario privado de Pernambuco. De esa forma, refleja nuestro compromiso de producir una narracíon sobre el labor docente en la Pandemia que consideran las vocês de los maestros. En este contexto, tomamos la escritura como una estrategia de supervivencia. Alejados de los supuestos metodológicos del proyecto científico moderno, que parten de la neutralidad y exigen distanciamiento del objeto estudiado, decidimos escribir sobre nuestras experiencias como maestros. Entendemos que los fundamentos epistemológicos de la Historia Oral y la fenomenología podrían apoyarnos en la inversión en contar la historia de la actualidad, a través de la construcción compartida de narrativas sobre el momento que vivimos.

Palabras clave: Covid-19; Oficina en casa; Trabajo Docente; Historia oral; Salud


 

 

1. Introdução

Sabemos que o trabalho é uma categoria central uma vez que, não apenas organiza e produz modos de ser no mundo, constrói identidade e autonomia, organiza nossa sociedade, bem como, promove a inclusão ou exclusão social, pois é pelo trabalho que os vínculos sociais são enfraquecidos ou mantidos (Coutinho & Sato, 2017; Paugam, 2001). Essa centralidade do trabalho em nossa sociedade, com foco na produtividade tem produzido um processo de autoexploração em busca do ideal de consumo pautado no neoliberalismo. Diante desse processo o filósofo Byung-Chul Han (2015) destaca que vivemos hoje numa sociedade pautada pela aceleração, produtividade e cansaço, a qual denominou de "Sociedade do Cansaço".

A partir de um processo de positividade negativa, de alta performance e desempenho, vivemos numa constante liberdade paradoxal, uma vez que teoricamente somos livres para escolher o que quisermos, ao mesmo tempo que somos avaliados, medidos por nossa produção e poder de consumo, levando a um processo muito eficiente de autoexploração. Não por acaso, nossa sociedade é marcada pelo o que ele denomina de "doenças neurais" como Depressão, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), Síndrome de Burnout, entre outras, e pela economia do sobreviver (Han, 2015).

Nesse sentido, entendemos que estudar as relações de trabalho e as trajetórias dos trabalhadores e trabalhadoras é algo fundamental para compreensão do mundo em que vivemos, no qual as desigualdades só se acentuam em momentos como este de Pandemia. Os direitos trabalhistas que já vinham sendo revistos e novas formas de trabalho, na maior parte das vezes mais precárias, emergem em nosso País. Esse novo contexto é chamado, por alguns autores, de "uberização do trabalho". Franco e Ferraz (2019), assim definem o fenômeno: "representa um modo particular de acumulação capitalista ao produzir uma nova forma de mediação da subsunção do trabalhador, o qual assume a responsabilidade pelos principais meios de produção da atividade produtiva" (p.844).

A uberização do trabalho tem atingido o trabalho docente. O Relatório Técnico sobre o trabalho docente em tempos de Pandemia, elaborado pelo CNTE – Conselho Nacional de Trabalhadores em Educação (2020), a partir de pesquisa com professores da educação básica das redes públicas estaduais e municipais no Brasil, aponta que os/as docentes foram convocados a realizar suas atividades em contexto virtual. Destaca ainda que houve a necessidade do desenvolvimento de novas competências e habilidades para lidar com novas metodologias e ferramentas, com vistas a responder ao novo contexto. O Relatório afirma, que tais adaptações exigiram esforços por parte dos/das docentes, que, em sua maioria, não receberam qualquer formação para o desenvolvimento dessas atividades. Por fim, enfatiza que a experiência pode trazer, de um lado, crescimento e amadurecimento profissional, mas, de outro, tem gerado tensões e angústias para essa categoria profissional.

Especificamente sobre o trabalho docente no Ensino Superior no contexto da Pandemia, a Federação de Sindicatos de Professores de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Superior Básico Técnico e Tecnológico – PROIFES (2020, p.4) afirma que "enfrentamos a precarização e terceirização da docência no ensino privado, que toma os feitos da Pandemia como oportunidade para implementar seus ideais de precarização e exploração do trabalho docente, com frouxa ou nenhuma regulação".

Ainda sobre pesquisas a respeito dos desafios da docência durante a pandemia, com foco nas condições do trabalho docente, Oliveira e Pereira Júnior (2020) destacam que no cenário da pandemia o exercício profissional ganha novos contornos, uma vez que perde uma de suas características mais tradicionais, que é a interação presencial professor-aluno, que passa para um novo cenário virtual, o qual exige diferentes condutas e comportamentos.

Os significados que atribuímos ao trabalho, numa perspectiva fenomenológica, é responsabilidade da consciência, entretanto esse significado não se dá no interior dos indivíduos de forma desconectada do mundo, e sim num processo de co-construção com e no mundo. Portanto os sentidos que damos ao trabalho em nossas vidas está intimamente relacionado a consciência de si e a experiência do mundo. Não sendo possível pensar o significado dado ao trabalho como destituído de sua experiência e da forma como socialmente lidamos com ele (Bendassolli & Gondim, 2014).

Nesse contexto, algumas inquietações nos instigaram essa pesquisa (CAAE 32488920.00000.5666.):Como manter o trabalho docente, que passa a acontecer de forma remota e no ambiente doméstico? Como conciliar esse trabalho com a vida pessoal efervescente e também desorganizada pelo contexto adverso? Como preservar a saúde biopsicossocial diante de todo esse contexto de precarização? Esse artigo busca responder a essas questões, a partir da história de quatro professores de um Centro Universitário privado em Pernambuco. Dessa forma, reflete nosso compromisso de produzir uma narrativa sobre o trabalho docente na Pandemia que considerem as vozes dos/das professores. Portanto, a partir desses questionamentos, partimos de nossas narrativas com o objetivo de problematizar os efeitos da Pandemia do Covid 19, e da adequação do Ensino Superior em modelo presencial para o modelo remoto (síncrono e assíncrono), na vida dos professores de uma Instituição de Ensino Particular.

 

Uma pandemia?

No final de 2019, notícias sobre um vírus (coronavírus) que circulava na China começam a surgir nos jornais. Na cidade de Wuhan, pessoas são infectadas por um vírus desconhecido que levava ao desenvolvimento de um tipo de pneumonia de etiologia desconhecida (WHOa, 2020). Rapidamente, esse vírus se alastrou e adquiriu proporções mundiais, e em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a Pandemia por Covid-19, o que levou países a fecharem as fronteiras e instaurarem lockdown (WHO, 2020a; 2020b).

Aqui no Brasil estamos vivendo uma crise não apenas em relação a saúde, mas uma crise política que tem dificultado ações coordenadas entre Governo Federal e Estaduais. Essa crise levou a ações diferentes para estados e municípios, e tem propiciado a alguns estados uma maior rigidez do isolamento, enquanto outros tem adotado uma postura mais flexível. Atualmente, semelhante ao que ocorreu em outros países, estamos vivendo um novo momento de agravamento da Pandemia, que tem gerado um colapso na Saúde. Já temos mais de 13 milhões de casos confirmados da doença, e contabilizamos a triste marca de 331.433 óbitos, com uma incidência de 61.442 casos por um milhão de pessoas, segundo o Painel Coronavírus do Ministério da Saúde – Governo Federal, do dia 05 de abril de 2021.

No Estado de Pernambuco, há indicação de isolamento social desde o início da Pandemia, em meados de março, e a partir de 16/05/2020 a indicação foi de um maior rigor em relação ao isolamento social. Ao longo desse período, de pouco mais de um ano de Pandemia, estamos no estado vivenciando um novo momento de rigor com em relação a necessidade de isolamento social. Atualmente, segundo o Painel Coronavírus disponível no site do Ministério da Saúde, do dia 5 de Abril de 2021, no Estado de Pernambuco temos 355.617 casos confirmados, 12.377 óbitos por COVID-19

Apesar de divergências entre o governo Federal e os Estados e municípios, desde o início da Pandemia, muitos trabalhadores/as tiveram sua rotina de trabalho alterada, iniciando a modalidade de home office. Para Bittencourt (2020), ficar em casa, nesse momento, passou a ser também um ato político.

 

A quarentena e as mudanças nos modos de vida de professores/as universitários/as

Diante dessa necessidade de isolamento social e preocupados em manter o calendário acadêmico, no dia 19 de março de 2020 é publicado pelo Ministério da Educação (MEC), no Diário Oficial a portaria nº 345, que altera a portaria nº 343 de 17 de Março de 2020, e autoriza que seja adotado a modalidade de ensino remoto para os cursos de Ensino Superior. A única ressalva é o impedimento para atividades de laboratório e estágio e para as especificidades dos cursos de Medicina. Em 28 de abril de 2020 o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou, de forma unânime, diretrizes orientadoras para as escolas de educação básica e instituições de ensino superior durante a pandemia do coronavírus. No que concerne as orientações ao Ensino Superior, o que se tem é a sugestão da continuidade das atividades de forma não presencial.

A partir da autorização do MEC, teve início a adoção do ensino remoto, que levou a uma mudança significativa na lógica do ensino, e o desafio de assumir de forma súbita e sem muito tempo de reflexão dos impactos dessa modalidade. De uma hora para a outra, alunos(as) e professores(as) precisaram se adaptar a novas formas de ensino, que a modalidade a distância, ainda que numa perspectiva de "aulas remotas", exige.

Enquanto a modalidade de educação a distância (EaD), dispõe do decreto de nº 9.057 de 25 de maio de 2017, que regulamenta o ensino a distância no país, a mesma precisão não existe em relação ao ensino remoto. A EaD é uma modalidade de ensino que já é pensada antes mesmo do início do curso, uma vez que está no projeto pedagógico autorizado pelo MEC. Além disso, há uma estrutura pensada como material didático, um ambiente virtual de aprendizagem, com flexibilidade de tempo. O/A professor/a da disciplina – além de contar com o suporte de um tutor/a, que também é quem dá o suporte ao aluno no ambiente virtual – não participa, necessariamente, no mesmo tempo que o aluno, do processo educacional.

Já o regime remoto de aulas, conforme destacado por Oliveira (2020), embora também utilize de tecnologias da informação e comunicação, é um regime de excepcionalidade, pensado para esse momento em que há a necessidade de isolamento social, e tem diferenças significativas da modalidade EAD. O primeiro é o fato de não ter um material produzido anteriormente; outra mudança significativa é que ocorre de forma sincrônica, o que significa que professor e alunos estão conectados ao mesmo tempo. As aulas acontecem nos horários habituais, e é imprescindível a presença do aluno durante a aula. Há uma interação direta, em que o professor/a expõe o conteúdo da aula, promove debates, propõe atividades como na modalidade presencial.

Essa migração repentina para a modalidade de aula remota trouxe a necessidade de que os/as professores/as adaptassem conteúdos, formas de ensino, linguagem utilizada, buscassem novos materiais de apoio. Da noite para o dia docentes se viram obrigados a lançar mão de competências e habilidades as quais nem todos estavam adaptados. O que, por si só, já produziu uma sobrecarga de trabalho.

A preocupação com a qualidade do ensino tem produzido uma sobrecarga extra, somados aos afazeres domésticos, a responsabilidade com os filhos. Nesse momento, é importante destacar as diferenças de gênero, uma vez que sabemos que na divisão sexual do trabalho, a mulher tem uma dupla jornada, já que é responsável não apenas pelo trabalho produtivo, mas também o reprodutivo, doméstico e de cuidados com os filhos (Hirata, 2001; Hirata & Kergoat, 2003). Como destacado por Santos (2020) o vírus trouxe uma "cruel pedagogia" que tem gerado suas primeiras lições, entre elas que o impacto do vírus é diferente nos diferentes coletivos sociais, que estão mais vulneráveis e entre eles o autor destaca as mulheres.

Soma-se a isso o fato de que na modalidade remota nossas casas foram abertas; parte da nossa privacidade foi escancarada. Sabemos que os ambientes virtuais propiciam uma porosidade dos limites entre público e privado. Tanto professores, quanto alunos têm sua privacidade aberta, além disso, como destacado por Silva (2016) o ambiente virtual, como um ambiente "desterritorializado (...) parecem favorecer a ocorrência de práticas violentas" (p.70). Professores/as estão vulneráveis a interrupções na aula, ataque de hackers, alunos promovendo intervenções nos slides compartilhados em aula, reclamações e exposição do professor/a, em outros momentos, são cenas compartilhadas por colegas durante esse período. Sem considerar que os professores/as além de sobrecarregados/as ainda também compartilham as angústias propiciadas pelo isolamento social, pelo medo de contaminação, pelo desgaste de inúmeras horas na frente de telas de computador.

Essa é a história de Paulo, Nísia, Raquel e Anália5. Professores/as doutores/as vinculados a um mesmo Centro Universitário. É a história de cada um/a contada a partir de um lugar de fala demarcado por arranjos e atravessamentos sociais singulares. Mas é também a nossa história compartilhada, fruto da feliz escolha de fazermos essa travessia juntos/as. A travessia que faz ou fará de nós sobreviventes de uma Pandemia.

 

O caminho traçado por nós

Quatro docentes, quatro histórias. Uma Pandemia! Alguns pontos de conexão. Tantas singularidades. Companheiros, filhos, mães idosas. Linhas de uma rede querendo ser apoio, amparo. Ao mesmo tempo, fios que tentam ser lastro para continuidade do trabalho docente, comprometido com qualidade, pautado na disponibilidade afetiva para acolher os/as estudantes e, ao mesmo tempo, na convicção de que a construção de conhecimento é um caminho para sobreviver ao cenário adverso anunciado.

Ampliando os sentidos expressos nos dicionários tradicionais da língua portuguesa, que relacionam o sobreviver à manutenção da vida, em sua dimensão material, concreta e, portanto, biológica, convidamos aqui a uma reflexão que complexifica os sentidos do viver. E, por conseguinte, do sobreviver. Na poética dos ressignficados, o ato de sobreviver é marcado por resiliência: "é ir à guerra e voltar (...) é ter alma-água, que se adapta ao co(r)po em que estiver, da melhor forma que puder" (Doerdelein, 2017, p.131).

Resolvemos nos adaptar a esse "co(r)po", compartilhando vivências e construindo estratégias de enfrentamento juntos/as. Assumimos, assim, o compromisso de produzir a história do presente, do tempo vivido, da nossa experiência, em consonância com as preocupações epistemológicas da História Oral. Dessa forma, partimos do reconhecimento dos sujeitos sociais como a principal fonte de dados no processo de construção de conhecimento. Os sujeitos aqui somos nós e os dados são as nossas narrativas sobre sobreviver a uma Pandemia (Ishikawa & Santos, 2006).

 

"A gente combinamos de não morrer"

Pedimos licença a Conceição Evaristo para usar uma das frases mais emblemáticas do seu livro "Olhos d’Água" como título desta secção, onde contamos a história do nosso encontro e evidenciamos os compromissos epistemológicos assumidos. É da autora também o termo escrevivência, utilizado para se referir a uma escrita que nasce do cotidiano e das experiências de vida de um povo. A escrevivência seria assim uma escrita para manter vivo. A autora fala do povo negro e produz visibilidade à raça como dimensão estrutural de desigual social (Evaristo, 2014).

Com nossos corpos atravessados por dimensões estruturais de desigualdades sociais, que colorem as nossas singularidades e marcam o nosso lugar compartilhado de trabalho docente, também tomamos a escrita desse texto como uma estratégia de sobrevivência. Distantes dos pressupostos metodológicos do projeto científico moderno, que partem da neutralidade e exigem distanciamento do objeto estudado, decidimos escrever sobre nossas experiências como docentes. Como território seguro para esse esforço ousado, respaldamo-nos na pesquisa qualitativa numa perspectiva fenomenológica, sobretudo a partir das reflexões sobre a implicação do/da pesquisador/a.

Dessa maneira, o principal objetivo da pesquisa fenomenológica é apreender o sentido da vivência imediata para uma pessoa em uma determinada situação (Forghieri, 2002). Ainda, nessa linha, comenta Amatuzzi (2001), que há uma preocupação com o vivido e a aproximação do que nele está contido como significado potencial frente a uma problemática trazida pelo/a pesquisador/a. É diante dessa indagação que o vivido se manifesta. O vivido, então, é a nossa reação interior imediata àquilo que nos acontece, considerada anteriormente a qualquer reflexão e elaboração posterior por parte do sujeito. Essa definição proposta por Amatuzzi traz consigo a possibilidade de denominar o vivido como experiência imediata ou sentimento primeiro. É esse vivido que se manifesta ao pesquisador/a como resposta a uma pergunta que ele traz.

Ao/à pesquisador/a qualitativo/a cabe a utilização de ferramentas estéticas e materiais, utilizando-se de universo amplo e diverso de estratégias, métodos ou materiais empíricos ao alcance. Se houver necessidade de inventar outras técnicas, assim o fará. Para ilustrar este exercício, Denzin e Lincoln (2006) propõem uma analogia à montagem – método de edição de imagens cinematográficas – onde diversas imagens são sobrepostas com o intuito de se criar um quadro. De forma semelhante, o/a pesquisador/a edita e reúne pedaços da realidade, em "um processo que gera e traz uma unidade psicológica e emocional para experiência interpretativa" (Denzin & Lincoln, 2006, p.19).

Posicionando-nos no campo dos estudos organizacionais, entendemos que os fundamentos epistemológicos da História Oral podiam nos apoiar no investimento de contar a história do tempo presente, através da construção compartilhada de narrativas sobre o momento que vivemos. A narrativa das nossas experiências é assim o grande alicerce. Ao contar as suas experiências, as pessoas selecionam e organizam seus elementos a partir de referenciais do tempo presente, produzindo sentidos e transformando em linguagem aquilo que foi vivenciado (Albertini, 2002).

As entrevistas de história oral consistem em um processo de conversação entre o/a pesquisador/a e o/a narrador/a, no qual o/a último/a é a principal fonte de dados, porém não é o objeto de estudo. "A matéria-prima para o pesquisador é a narrativa do indivíduo entrevistado; é por meio dela que o pesquisador tenta apreender as relações sociais em que um fenômeno relatado e seu narrador estão inseridos" (Ishikawa & Santos, 2006, p. 193).

Entendemos que nossos encontros iniciais compuseram o que Bom Meihy (1996) nomeia como pré-entrevista. Foi nosso tempo de preparação, no qual compartilhamos impressões sobre o início do trabalho docente remoto e, principalmente, identificamos e amadurecemos o desejo de construir conhecimento a partir das nossas vivências. Dialogamos sobre as formas de fazer isso e decidimos partir da História Oral, considerando a entrevista oral como algo que vivenciaríamos juntos/as.

Vivenciamos então mais quatro encontros onde nos alternamos entre os lugares de entrevistador/a e entrevistado/a, contando com apoio de uma bolsista de iniciação científica, que garantiu o registro e a transcrição dos nossos encontros. Os encontros aconteceram entre maio e junho de 2020, durante o pico do Coronavírus na nossa cidade, em plataforma virtual. Elegemos como pergunta disparadora para nossos diálogos "como está sendo para você vivenciar o trabalho docente de forma remota neste contexto de Pandemia?". As conversações giraram em torno da experiência de cada um/a em mais de 30 dias de isolamento social e trabalho remoto.

Após os encontros, na fase nomeada de pós-entrevista (Bom Meihy, 1996), textualizamos as narrativas produzidas, com a transcrição e validação do conteúdo. Com esse material textual, passamos a identificar de forma ainda mais contundente nossos pontos de conexão e, ao mesmo tempo, as peculiaridades que apontavam, na maior parte das vezes, para os lugares sociais distintos, a partir dos quais falamos e nos posicionamos no mundo. Fortalecemos assim a convicção de como nossos marcadores sociais produzem diferentes formas de subjetivação e de ser-no-mundo.

Entre coalizões e distanciamentos, decidimos dividir nossas análises em três grandes momentos: o início do isolamento e do trabalho remoto; o período de acomodação desse fazer; e o final do semestre em que o desgaste com o trabalho remoto marcava nossa saúde. É essa história, produzida por nós, a partir das nossas vivências, que será contada a partir de então.

 

O primeiro momento: o desafio remoto

Era março de 2020, o mundo em pânico diante do anúncio da Pandemia. Primeiros casos na nossa cidade e uma busca desgovernada por frear o avanço no quantitativo de pessoas infectadas. Já assistíamos às notícias em grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo e temíamos profundamente o que viveríamos em breve, diante do nosso frágil e igualmente sobrevivente Sistema de Saúde. Medo. Ainda em sala de aula, nos sentíamos em risco e olhávamos com desconfiança para cada aluno/a que apresentava sintomas de gripe. Iniciávamos um diálogo institucional que compartilhava o medo, que vinha com o sentimento de risco e insegurança e encontrava alimento no cenário de incertezas de muitas ordens.

É nesse contexto de medos, riscos, inseguranças e incertezas, durante a segunda quinzena de março, que recebemos a notícia de que não mais estaríamos na modalidade presencial com os/as alunos/as, devido ao isolamento social que teve início em nosso Estado. O que aconteceria? Continuaríamos o semestre? Como essa continuidade seria possível?

A Instituição na qual trabalhávamos afirmou que o semestre teria continuidade, mas ainda estudava um método para tal. No grande grupo de Whatsapp de professores/as da Instituição, aqueles/as mais atentos às novas tecnologias mantinham contato com alunos/as, enquanto outros/as, principalmente aqueles/as que estavam mais distantes do mundo digital acompanhavam com angústia esses tempos de incertezas.

O Instituto Península desenvolveu, neste mesmo contexto, entre abril e maio de 2020, uma pesquisa com 7.734 mil professores/as. Os resultados mostraram que, após seis semanas de isolamento social, 83% dos/das professores/as ainda se sentiam nada ou pouco preparados/as para o ensino remoto. A pesquisa também apontou que 88% das pessoas entrevistadas nunca tinham dado aula de forma virtual antes da Pandemia e 55% não tiveram qualquer suporte ou capacitação durante o isolamento social (INEP, 2020).

Pesquisa como a desenvolvida por Oliveira e Pereira Júnior (2020) ressaltavam o quanto a migração de um modelo presencial para um modelo remoto de forma súbita não permitiu problematizar os efeitos que causariam na vida dos professores, muito menos se havia disponibilidade para tal. O que não nos causa surpresa, considerando que a lógica social é a da produtividade e aceleração, que no contexto pandêmico ganha novos contornos (Han, 2015). O desafio posto para o corpo docente era enorme. Tínhamos consciência do quanto éramos fundamentais para que a estratégia institucional desse certo. Sabíamos ainda que a continuidade do nosso emprego também estava em jogo, sobretudo porque, desde o início, acompanhávamos o número de trancamento de matrícula por parte de estudantes não disponíveis ou não adaptados/as à nova modalidade de ensino. Recorrentemente nos era colocada a responsabilidade de "manter a qualidade de ensino" ou a frase de que a instituição éramos nós. Assumimos esse lugar e, certamente, carregamos um peso que nunca foi só nosso.

As duas/ três primeiras semanas foi um tempo de muito trabalho, é um tempo de desafio e de me desafiar para saber até que ponto eu consigo fazer com que isso dê certo, né? (Paulo)6.

Então quando eu me deparei com essa mudança de modalidade de ensino, eu entrei em um nível de ansiedade e eu acho que poderia falar desespero, porque eu cheguei a chorar, porque eu achei que eu não daria conta.. Eu achava que eu ia cair num esvaziamento, que eu não ia ter interação com os alunos, que a hora ia passar muito rápido e que, se eu conseguisse passar 30 minutos com os alunos, era muita coisa (Anália).

Ao tomarmos para nós essa responsabilidade caímos na armadilha de invisibilizar lacunas estruturais na formação docente. Entre essas lacunas temos o currículo das formações acadêmicas para a docência, o qual não contempla a preparação dos professores para o uso das novas tecnologias educacionais, como destacado por Honorato e Marcelino (2020).

A repercussão emocional do início do desafio remoto em nós também foi colorida por angústia, ansiedade e um alarme disparado no peito que dizia: "é preciso repensar o lugar da docência". Porém, esse primeiro momento teve outros significados para Paulo, pois, além da posição de professor, também ocupava a posição de gestor na Instituição, o que o colocava em um lugar ambivalente. Em alguns momentos, compartilhava das angústias que os docentes viviam naquele início da modalidade remota, mas por outro lado havia a necessidade de responder institucionalmente as demandas. O resultado dessa sobreposição de funções foi uma sobrecarga maior de trabalho, que repercutiu em ainda mais desgastes para a sua saúde física e emocional. Porém, se o âmbito de trabalho trouxe uma sobrecarga a Paulo, inicialmente, a vida pessoal atravessou a vida das três mulheres autoras dessa narrativa. O protagonismo do cuidado tão característico das mulheres em uma sociedade como a nossa, ainda tão atravessada por desigualdades estruturais de gênero, também nos foi peso.

Em pesquisa sobre as relações de trabalho no cenário de pandemia, Leão, et al (2020) ressaltam que o contexto pandêmico deflagrou as desigualdades presentes na divisão sexual do trabalho. As mulheres foram novamente trazidas para o mundo privado, e tiveram que lidar não apenas com as questões que o isolamento social trouxe para as pessoas, mas com a sobrecarga de trabalho, dos cuidados com a casa, os filhos e familiares próximos. Pois a divisão sexual do trabalho aponta para as desigualdade de gênero e o quanto é exigido da mulher uma dupla presença. As mulheres não lidam apenas com a necessidade de realizar diferentes atividades de forma simultânea, mas é exigido uma atenção plena em todas ao mesmo tempo, o que gera uma exaustão e um esquecimento de si mesma, não existindo espaço para o autocuidado.

Anália precisou trazer sua mãe idosa para casa e voltar a construir uma relação de convivência próxima, permeada por novas responsabilidades. Nísia e Raquel precisaram administrar filhos ainda na primeira infância, com rede de apoio diminuída ou, em alguns momentos, inexistente.

Para mim era animador saber que a gente ia continuar trabalhando. É uma condição de privilégio nesse contexto. Mas eu não contava com um elemento: meu filho! Com a animação, negligenciei o fato de ter um filho e de perder toda a rede de apoio (Nísia).

Nesse contexto, para Fabbro e Heloani (2010, p,179), "a relação trabalho, gênero e maternidade, pode, considerando a classe social, os recursos sociais e a própria motivação da mulher para ser mãe, ser geradora de conflitos pessoais e profissionais". Assim, como investir nessa nova modalidade de ensino remoto e cuidar, sem nenhum suporte, de um filho em sua primeira infância? Como gerenciar esse conflito de exercer, da melhor forma, a docência num contexto de pandemia e de ser mãe de forma integral?

Para Macêdo (2020) talvez esses questionamentos estejam relacionados à desigualdade de gênero, e nesse sentido a divisão sexual do trabalho doméstico, que no momento de pandemia a mulher sente na pele de forma mais contundente por se encontrar em isolamento social. Em vários momentos essa mulher sente-se impedida de exercer da melhor forma suas atividades profissionais, fazendo-a vivenciar as dificuldades do ser mulher e mãe em detrimento daquilo que para ela é muito significativo e realizador: a vivência como trabalhadora. Importante destacar que ao mesmo tempo em que o trabalho remoto gerou sobrecarga e angústia, também é reconhecido pelo grupo o lugar de privilégio, de manutenção do emprego, bem como o espaço das aulas remotas como um lugar organizador de uma rotina que foi subitamente tomada no contexto da Pandemia.

Eu nunca vivi, nós nunca vivemos uma situação de isolamento como essa. Aí, eu senti, e comecei a perceber que, naquele momento de março, trabalhar foi a minha estratégia de lidar com o contexto externo. Eu vou trabalhar mais, para de certo modo, me isolar ou me blindar de tudo isso que está acontecendo (Paulo).

Remoto. Distante no espaço. Distanciado de quê? De quem? É justamente neste momento inicial que decidimos ficar juntos/as e começar a contar e registrar essa história. O desafio remoto era se manter junto. Inclusive porque começávamos a entender que o isolamento não duraria 15 dias e nem um mês. Era preciso construir uma outra forma de existir (e resistir!) naquele contexto.

 

O segundo momento: o isolamento que não tem fim

Passado o primeiro mês de trabalho, fomos percebendo que o isolamento social não terminaria tão rapidamente quanto pensávamos. Se inicialmente o trabalho ocupou um lugar de organização diante de uma rotina, que do dia para a noite se tornou caótica, por outro lado o excesso dele, diante de uma rotina muito mais desgastante, com horas acumuladas na frente de telas de computador, de cadeiras que não eram adaptadas para uma rotina de home office, do excesso de informação, gerou um desgaste maior. Paulo, que tinha situado o trabalho, em um momento inicial, como organizador e a estratégia de trabalhar mais como um dispositivo de proteção diante de um contexto inédito e ameaçador, se reposiciona.

O que aconteceu no segundo tempo foram crises de ansiedade. Muito repetidas porque, no que eu avancei no trabalho, acabei esquecendo ou dando menos atenção à família. Em mim, a sensação é de que eu preciso dar certo. Essas crises de ansiedade foram positivas no sentido de me permitirem me levar a parar. Parar, repensar e ajustar (Paulo).

As crises foram positivas para parar, repensar e reprogramar. Foi necessário colocar mais flexibilidade. Foi preciso que assumíssemos formas de autocuidado "viver a vida de maneira tal que cada instante cuidemos de nós mesmos (...) uma certa relação de si para consigo" (Foucault, 2010, p.403). Nesse contexto, cada um/a de nós foi procurando estratégias de autocuidado, com maior ou menor eficácia. Essas estratégias permearam tanto a forma de realizar o trabalho, quanto de estratégias de um cuidado de si, como busca de psicoterapia, retomada de exercícios físicos, uso de aromoterapia, criação de rituais que pudessem separar a casa e o trabalho que nesse momento ocupavam o mesmo lugar.

É como se eu precisasse monitorar muito minha condição emocional para conseguir estar bem. (...) Aqui em casa, eu e meu marido, todas as noites - às vezes sou eu, às vezes é ele - fazemos um chá, preparamos o quarto, ligamos o difusor, cuidamos desses rituais de dormir. Eu sinto que tive uma parceria forte nesses processos de conter, de cuidar (Nísia).

A fala de Nísia aponta para uma importante questão: a rede de apoio e cuidado como um suporte importante para lidar com esse momento. Assim, essa rede pode ser tanto de apoio, como geradora de mais sobrecarga a depender da realidade vivenciada, o que torna esse momento de trabalho docente remoto tão complexo.

Umas duas semanas, nesse meio processo, eu estabilizei; entrei em um certo ritmo. E aí veio a vida, né, e deu aquela trombada. Meu marido virou pra mim e disse que tinha que seguir um sonho dele. Ia fazer uma viagem. E de repente, eu que tava teoricamente estruturada, me vi num processo de "e agora?". Foi um processo extremamente sofrido, porque daí isso veio junto com o período de primeira avaliação do semestre. (...) E aí eu fiquei pensando em como lidar com isso (...) poder ter uma sanidade mental, porque para mim, é sempre o meu norteador, né?! Bom, passado a primeira semana, eu consegui, junto a minha mãe. Eu falo que por isso que eu sou feminista, que eu acredito no feminismo e nas redes de sociabilidade e na sororidade (Raquel).

Eu trouxe minha mãe pra cá, dispensei a pessoa que me ajudava uma vez por semana e dispensei a secretaria da minha mãe para que ela pudesse se proteger também e ficasse em casa. Eu passei a lidar com absolutamente tudo da casa que anteriormente não precisava... Então eu precisei passar a fazer minha comida, a arrumar minha casa, a cuidar da minha mãe - porque minha mãe, diferente de Raquel, não é uma pessoa que eu consiga contar. Ela é 100% dependente (Anália).

Essa sobrecarga também é narrada em pesquisa realizado por Macêdo (2020, p.197) em que passa a se ver:

(...) como mulher, nesse contexto de distanciamento social, incompetente para dar conta de papéis que sempre exerci, mas nunca, como atualmente, isso me foi tão unicamente exigido e repercutiu de forma tão negativa na minha estima, na minha saúde e na minha qualidade de vida.

Em nós, a constatação de que o isolamento social não teria fim no período inicialmente previsto, junto ao cansaço do início do desafio remoto, produziu um efeito lupa. É como se, inevitavelmente, precisássemos nos encontrar com questões que já estavam sendo vivenciadas, decisões postergadas, reflexões evitadas. Impossível não ver. Difícil não, definitivamente, encarar e, em alguma medida, resolver. Tudo isso vai se tornando emocionalmente exaustivo. Vez por outra, insustentável.

A escolha de fazer essa travessia juntos/as foi se configurando como principal alimento. Nossos encontros, na maior parte das vezes, no sábado à noite, eram válvulas de escape da rotina doméstica e uma oportunidade singular de vivenciar o trabalho docente de forma mais leve, após desabafos e ancorado na nossa rede de solidariedade já tecida e, a cada encontro, mais forte.

Realistas. Atentos/as. E sobrevivendo coletivamente. Assim, seguimos rumo ao fechamento do semestre. Era preciso fechar um ciclo que pareceu, incialmente, tão impossível.

 

O terceiro momento: a finalização do semestre letivo

Nesse momento, é importante destacar que, institucionalmente, também vivíamos uma avalanche. A compra do Centro Universitário em 2019 se consolidou e os processos de transição de gestão se iniciaram e se intensificaram as incertezas e os medos já tão presentes desde o início do isolamento social. O contexto institucional se mostrava complexo, sobretudo se considerarmos como a educação vem sendo tratada no nosso País.

Com essa mudança de gestão, o clima institucional que, em outros momentos já foi avaliado como um dos pontos altos do processo de trabalho, assume um lugar de incerteza e gerador de ansiedade. Um clima de panóptico (Foucault, 1987) foi instaurado e tudo o que fazíamos estava sob certa vigilância. O pedido era que nos transformássemos em corpos dóceis e produtivos (Foucault, 1987) que não questionassem determinadas práticas e nem incertezas. Professores/as começaram a entrar em um processo de adoecimento, que passou também a ser acolhido e compartilhado pela equipe que aqui produz esse texto.

Segundo Bittencourt (2020, p.171) o isolamento social por si só já "é incômodo, e exige paciência de toda pessoa que se encontra nessa situação de contenção humana no perímetro domiciliar. São usuais situações de ansiedade, estresse, angústia". Podemos imaginar que para os docentes que estão vivenciado uma nova modalidade de ensino, que relatam sobrecarga de trabalho diante do atravessamento das atividades do ambiente doméstico e, finalmente, insegurança na estabilidade no contexto de trabalho, esses sentimentos estão potencializados e causando, de fato, um processo de adoecimento psíquico. Em nós, escrever sobre a nossa experiência como docente neste contexto, imprimindo marcas das opressões e sofrimentos vivenciados nas narrativas oficiais se tornou o mesmo que resistir. Sobreviver coletivamente!

No ponto aparentemente final dessa história foi possível perceber também aspectos positivos da vivência do trabalho docente remoto. Nos relatos de nossas vivências aspectos importantes foram apontados como a otimização do tempo, com a diminuição das distâncias, bem como a aproximação do contexto familiar, comumente preterido em função das longas jornadas de trabalho fora de casa, como ganhos da mudança na modalidade de trabalho.

Agora, eu estou perto do meu filho o tempo todo. Ele nunca comeu tão bem e eu nunca acompanhei seu desenvolvimento tão de perto. Eu acho que essa vai ser uma das coisas que, com a volta ao trabalho fora de casa vou sentir muita falta. A gente está tendo a oportunidade de vê-los de um jeito que a gente não tinha (Nísia).

A equação da saúde mental entre os/as docentes na Pandemia parece mesmo ter a ver com a balança de perdas e ganhos. Perceber que também tivemos ganhos parece ajudar-nos a conviver com as perdas inevitáveis desse processo. Por outro lado, quando as perdas são mais contundentes, fica mais difícil respirar.

A vinda da minha mãe para cá me desorganizou completamente. Eu perdi o meu espaço, eu perdi o prazer de estar na minha casa. Cedi o meu quarto que é uma suíte para minha mãe. Vim para o quarto do meu filho, que é todo montado, mesmo com ele morando em Portugal. Os espaços da minha casa, hoje, precisam ser compartilhados. Eu aprendi e amei muito conviver comigo em momentos de silêncio, em atividades sozinhas, isso sempre me energiza e me dava muito prazer. E tem 3 meses que eu não tenho isso (Anália).

Produzir visibilidade aos ganhos desse processo parece-nos um caminho para sobrevivência importante, que produzirá o efeito esperado, principalmente, se for fruto de estratégias de cuidado coletivas. Neste sentido, ressaltamos, no âmbito da gestão, a urgência de se considerar o cuidado e a preservação da saúde mental dos/das professores/as prioridades institucionais. Sobretudo quando é indiscutível o lugar que esses/as profissionais têm como garantidores de processos de mudança significativos na gestão dos processos de ensino-aprendizagem, frente a um contexto adverso como uma Pandemia.

Na nossa experiência, a vivência positiva do cotidiano institucional era resultante de características pessoais de alguns/as gestores, sem necessariamente refletir um posicionamento institucional. Ao nosso ver, dessa forma, não construímos climas organizacionais sustentáveis.

 

Considerações Finais

Difícil falar em final quando já estamos há aproximadamente cinco meses em trabalho docente remoto, sem perspectivas de retorno. Estaríamos próximos do fim? O final seria o tal do "novo normal"? Como estarão nossas dinâmicas de trabalho após a Pandemia?

Terminamos o nosso texto retornando às mesmas incertezas que nos povoam desde o primeiro momento, que aqui nomeamos de "o início do desafio remoto". Porém, seguimos motivados/as pela convicção de que dar visibilidade para os custos do trabalho docente é relevante para produzir diferenças nas narrativas atrativas que apontam a equivalência das aulas remotas às aulas presenciais. Embora seja evidente o esforço do corpo docente em ofertar ensino de qualidade mesmo em condições tão adversas, parece-nos socialmente importante refletir de forma crítica sobre as efetivas condições nas quais os processos de ensino-aprendizagem facilitados pelos docentes envolvidos acontecem. Esse processo não é e nem está fácil!

Entendemos que a nossa história é elucidativa e parte dessa paisagem que precisa ser visibilizada. Os pontos de encontros nas nossas narrativas, que costuram nossas singularidades e transformam quatro histórias em uma contundente experiência não são meras coincidências. Ser docente do Ensino Superior no nosso País é como tentar passar de forma recorrente por uma porta que vai se tornando cada vez mais estreita. Tanto que nos arranhamos para continuar passando por ela e, em alguma medida, ofertar resistência ao estreitamento faz-se necessário. E insistimos porque somos guiados/as pela certeza de que a educação precisa ser uma porta aberta. Larga. Portanto, esse artigo é também parte importante e um convite a essa resistência.

 

Agradecimentos

Agradecemos a Anna Beatriz Torres, bolsista de iniciação científica e estudante de Psicologia, pela disponibilidade para nos apoiar na sistematização do conhecimento construído.

 

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Endereço para correspondência
Fernanda Sardelich Nscimento
E-mail: fernanda.sardelich@ufpe.br

Renata Almeida
E-mail: renatabfa@hotmail.com

Edna Granja
E-mail: ednagranja@gmail.com

Diogo H Helal
E-mail: diogo.helal@fundaj.gov.br

Recebido: 13 de abril de 2021
Revisado: 06 de junho de 2021
Aceito: 20 de julho de 2021
Publicado: 05 de agosto de 2021

 

 

1 Fernanda Sardelich Nscimento ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4032-2202
2 Renata Almeida ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3330-6992
3 Edna Granja ORCID:https://orcid.org/0000-0003-3562-1440
4 Diogo H Helal ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1784-0941l
5 Alteramos nossos nomes por um cuidado ético e como uma forma de tornar nossa escrita mais livre e, portanto, próxima do que vivenciamos.
6 A autoria dos trechos das narrativas foi preservada e apresentada entre parênteses.

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