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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.3 Belém set./dez. 2021

 

RELATO DE PESQUISA

 

A experiência vivida de ser alcoolista: um estudo fenomenológico

 

The living experience of being alcoholist: a phenomenological study

 

La experiencia viva de ser alcoholista: un estudio fenomenológico

 

 

Nohara Nara Lima Holanda1; Lucas Guimarães Bloc2; Liliane Brandão Carvalho3

Universidade de Fortaleza, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O alcoolismo é um fenômeno com causas múltiplas que envolve fatores como hereditariedade, meio familiar e social, e independe de sexo e/ou idade. Os grupos de AA se propõem como espaços de apoio e reinserção, com oferta de um método para superação do alcoolismo. Este artigo teve como objetivo compreender a experiência vivida de ser alcoolista de membros dos Alcoólicos Anônimos (AA). A partir do método fenomenológico crítico, foram entrevistadas cinco pessoas de um grupo do AA na cidade de Fortaleza. A pergunta utilizada foi "a partir da sua experiência, me fale como é ser alcoolista". Na análise de dados, foram elencadas três categorias fenomenológicas: "Alcoolismo: a doença da família"; "O fundo de poço: o sofrimento no alcoolismo"; e "O que eu fui, consigo ser melhor só por hoje". Concluímos que o alcoolismo afeta fortemente o relacionamento interpessoal, provocando um desequilíbrio no convívio familiar e com a sociedade.

Palavras-chave: Alcoolismo; Experiência; Fenomenologia.


ABSTRACT

Alcoholism is a phenomenon with multiple causes involving factors such as heredity, family and social environment, and regardless of gender and / or age. AA groups are proposed as spaces of support and reinsertion, offering a kind of method to overcome alcoholism. This article aims to understand the lived experience of being an alcoholic of members of Alcoholics Anonymous (AA). From the critical phenomenological method, five members of an AA group in the city of Fortaleza were interviewed. The question used was "From your experience, tell me what it's like to be an alcoholic." In the data analysis, three phenomenological categories were listed: "Alcoholism: the family disease"; "The bottom: suffering in alcoholism"; and "What I was, I can be better just for today." We conclude that alcoholism strongly affects the interpersonal relationship, causing an imbalance in family life and with society.

Keywords: Alcoholism; Experience; Phenomenology.


RESUMEN

El alcoholismo es un fenómeno con múltiples causas que involucran factores como la herencia, el entorno familiar y social, e independientemente del género y/o la edad. Los grupos de AA se proponen como espacios de apoyo y reinserción, ofreciendo un tipo de método para superar el alcoholismo. Este artículo tiene como objetivo comprender la experiencia vivida de ser alcohólico de los miembros de Alcohólicos Anónimos (AA). Desde el método fenomenológico crítico, se entrevistó a cinco miembros de un grupo de AA en la ciudad de Fortaleza. La pregunta utilizada fue "Desde su experiencia, dígame cómo es ser alcohólico". En el análisis de datos, se enumeraron tres categorías fenomenológicas: "Alcoholismo: la enfermedad familiar"; "El fondo: sufrimiento en el alcoholismo"; y "Lo que era, puedo ser mejor solo por hoy". Concluimos que el alcoholismo afecta fuertemente la relación interpersonal, causando un desequilibrio en la vida familiar y con la sociedad.

Palabras clave: Alcoholismo; Experiencia; Fenomenologia.


 

 

1. Introdução

Muitas têm sido as tentativas para se compreender o fenômeno do alcoolismo. Suas causas são comumente relacionadas a um conjunto de fatores biopsicossociais (Nascimento & Justo, 2000). Por alcoolismo, compreende-se o consumo de bebidas alcoólicas de forma excessiva que, ao longo do tempo, pode acarretar a dependência do álcool (Carlini, Nappo, Galduróz, & Noto, 2001). O álcool é uma substância psicoativa que causa dependência e tem sido utilizado em muitas civilizações ao longo dos séculos. O uso nocivo tem vasto peso na carga de doenças, além de um compromisso social e econômico para as sociedades (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool [CISA], 2014).

As considerações históricas sobre classificação do alcoolismo como doença passam de moral, com um olhar preconceituoso do problema, para uma compreensão sanitário-organicista, onde o problema é designado unicamente de cuidados médicos. A partir dessas compreensões, os autores começaram a olhar o alcoolismo como abuso e dependência à sombra das perspectivas biológica, psicológica e social (Pulcherio, Bicca, & Silva, 2011). O termo alcoolismo surgiu em 1849 e uma de suas primeiras definições foi dada por Magnus Huss como uma soma de fenômenos patológicos do sistema nervoso, no âmbito psíquico, sensitivo e motor, percebidas nos indivíduos que ingeriam bebidas alcoólicas de forma incessante e exagerada, em tempo prolongado (Heckmann & Silveira, 2009). A World Health Organization (WHO, 2004) define o alcoolista como um bebedor excessivo, cuja dependência em relação ao álcool é acompanhada de perturbações mentais, da saúde física, da relação com os outros e do comportamento social e econômico.

Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10) (Organização Mundial da Saúde, 1993), é classificada a síndrome de dependência como um conjunto de fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, no qual o uso de substância ou classe de substâncias alcança uma prioridade muito maior para um determinado indivíduo que outros comportamentos, antes de maior valor. Para Jorge et al. (2007), o alcoolismo é visto como uma doença de causas múltiplas e tem como fatores primordiais a hereditariedade, os meios familiar e social, estando presente em todos os níveis sociais, independente de sexo e/ou idade.

Vista as consequências negativas que o álcool pode provocar na vida do sujeito alcoolista, uma das formas possíveis de apoio e reinserção são os grupos de Alcoólicos Anônimos (AA). O AA é caracterizado como "uma irmandade de homens e mulheres que compartilham suas experiências, forças e esperanças, a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo" (Campos , 2004, p. 1380). Para o autor, o alcoolismo no AA é representado como uma doença inata, própria ao organismo do alcoólico, independente tanto da vontade, quanto da falta de controle da quantidade de álcool ingerida.

Para compreender a experiência de ser alcoolista e a forma como este fenômeno se expressa na nossa sociedade, podemos recorrer às contribuições de Goffman acerca do estigma. Para o autor, o estigma social é uma característica que atribui ao seu portador uma condição de "deteriorado", logo, inábil para uma plena aceitação social. Desse modo, a estigmatização pode ser compreendida como um processo dinâmico e contextual, elaborado socialmente, formado por influências históricas e sociais, moderado por efeitos imediatos do contexto social sobre a perspectiva do estigmatizador, estigmatizado e da relação entre os dois (Goffman, 1963). Em relação ao consumo de álcool, os impactos estão para além de aspectos fisiológicos, comportamentais e puramente individuais, perpassando questões sociais. A estigmatização do uso pode atuar de forma considerável tanto na repercussão deste como no acesso ao tratamento para essa prática do abuso de álcool (Ronzani & Furtado, 2010).

Em uma pesquisa com enfermeiros de um hospital geral de um município do interior paulista, o álcool é visto como perigoso, sendo nocivo em qualquer quantidade e moralmente errado. Ainda é constatado que no cotidiano do trabalho e suas relações com os usuários de álcool e outras drogas, o estigma e o preconceito constituem o aspecto predominante da sociedade, que muitas vezes leva esses profissionais a tratá-los com estranhamento e de forma preconceituosa (Vargas & Labate, 2006). Ligado ao estigma, o preconceito é uma circunstância que pode surgir, como uma consideração negativa de algum grupo e seus membros individuais, tendo por essência o julgamento negativo preconcebido. Tais considerações que evidenciam o preconceito geralmente são sustentadas por crenças negativas, os estereótipos (Silveira et al., 2011).

Um caminho a ser percorrido por um alcoolista é, muitas vezes, a inserção em um grupo de Alcoólicos Anônimos como tentativa de recuperar os prejuízos causados pelo uso nocivo de álcool. O AA foi fundado por Bill Wilson e Bob Smith em Akron, Estado de Ohio, no ano de 1935, e tem por objetivo auxiliar pessoas que pretendem parar de beber, através de um plano de recuperação que determina passos para o alcoolista ser capaz de manter-se o máximo tempo possível longe do álcool. O AA parte do princípio de evitar o primeiro gole por, pelo menos, 24 horas (Campos, 2004).

Os grupos de AA estão presentes em 175 países e com o número estimado de mais de dois milhões de membros. As reuniões acontecem geralmente em dois ou três dias na semana e o exercício realizado é, essencialmente, o relato das experiências com base a filosofia dos Doze Passos. Esta apoia-se no princípio de agir guiado para o entendimento mútuo que propõe o desenvolvimento da autonomia de seus membros e oportuniza um local de fala (Costa, 2016).

Costa (2016) retrata os Doze Passos do AA da seguinte forma:

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas; 2. Viemos a acreditar que um Poder Superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade; 3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos;4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos; 5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata; 6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter; 7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições; 8. Fizemos uma relação de todas as pessoas a quem tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados; 9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las ou a outrem;10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente; 11. Procuramos, através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que O concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós, e forças para realizar essa vontade; 12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes Passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades (p. 13).

Nesta pesquisa, utilizamos a lente da fenomenologia de Merleau-Ponty, que surge a partir de Edmund Husserl no século XIX, e assinala para o funcionamento da percepção e um estilo de relacionamento com o meio. Merleau-Ponty aponta o corpo como um instrumento de ação no mundo e, com isso, é possível a percepção de nossas relações com as coisas e outros corpos (Gonçalves, Garcia, Dantas, & Ewald, 2008). É nesse sentido que foi abordada neste estudo a experiência do sujeito participante, como vivida no mundo. O interesse se volta para conhecer o significado desta vivência do sujeito alcoolista e, além disso, parte do questionamento acerca do possível estigma e/ou preconceito vivido em função do consumo abusivo de álcool.

A relevância desta pesquisa encontra-se na colaboração de conteúdo sobre o tema e na importância do contato com a experiência vivida do alcoolista, tendo como ponto de partida a própria experiência do sujeito nessa condição e considerando os elementos sociais e culturais que a compõem. Assim, o objetivo deste artigo é compreender o significado da experiência vivida de ser alcoolista de membros do AA.

 

2. Metodologia

De forma a alcançar maior genuinidade possível no processo de percepção da experiência de ser alcoolista entre membros de um grupo de AA, optamos por desenvolver uma pesquisa qualitativa com enfoque no método fenomenológico mundano. A pesquisa qualitativa é uma prática que situa o observador no mundo a partir de perspectivas interpretativas que tornam o mundo perceptível, buscando compreender, ou interpretar, os fenômenos a partir dos significados atribuídos pelas pessoas (Creswell, 2014). Segundo Moreira (2004) há grande utilização do método fenomenológico atualmente no âmbito da pesquisa qualitativa em psicologia e psicopatologia. Esse método permite conhecer com maiores detalhes dados sobre os valores, as crenças, os comportamentos e o modo de "ser" do indivíduo (Moreira, 2009).

Nesta pesquisa, optamos pelo método fenomenológico mundano, inspirado na fenomenologia de Maurice Merleau-Ponty, que tem como foco a compreensão do significado da experiência vivida, entendendo que homem e mundo são mutuamente constituídos. Nessa perspectiva, entende-se a experiência como um fenômeno intersubjetivo que se dá na intersecção do homem com o mundo. A fenomenologia mundana evidencia perspectivas culturais, políticas e ideológicas sem, porém, se restringir a um único foco, estando aberta para a compreensão dos fenômenos emergentes relacionados ao objeto de estudo (Moreira, 2009).

Como instrumento de coleta de dados foi utilizada a entrevista fenomenológica através de uma pergunta norteadora: "a partir da sua experiência, me fale como é ser alcoolista". A entrevista aberta é direcionada por um roteiro previamente elaborado, composto geralmente por questões abertas e no caso desta pesquisa, optamos por utilizar uma única pergunta (Belei, Gimeniz-Paschoal, Nascimento, & Matsumoto, 2008).

Como parte do método, destaca-se a redução fenomenológica como um artifício para o pesquisador alcançar a realidade na medida em que busca colocar entre parênteses seus aprioris e conhecimentos prévios, ainda que não se possa esquecer que a redução fenomenológica nunca é totalmente completa. A fenomenologia de Merleau-Ponty é utilizada nesta pesquisa como ferramenta crítica na pesquisa em psicologia e psicopatologia, considerando o fenômeno de forma mundana, ou seja, com suas vastas proporções e múltiplos contornos (Moreira, 2004).

O público participante da pesquisa foi de cinco membros de um grupo de AA na cidade de Fortaleza, Ceará, selecionados mediante um convite planejado anteriormente com o facilitador do grupo no período de abril e maio de 2019. As entrevistas foram previamente agendadas e realizadas individualmente nos dias de ocorrência das reuniões. Foram gravadas e, posteriormente transcritas, evidenciando as questões relativas à experiência de ser alcoolista. Como critério de inclusão, utilizamos os seguintes parâmetros: serem participantes com idade entre 18 a 70 anos de idade e frequentarem o grupo há pelo menos um ano de forma assídua. Participantes que frequentam o grupo há menos de um ano e sem haver uma sistemática e que, por algum motivo, se recusaram a assinar o termo de consentimento livre e esclarecido, foram excluídos da amostra.

Seguimos os passos de análise proposto por Moreira (2009), adaptando-o para esta pesquisa: 1) transcrição literal das entrevistas; 2) divisão por temas daquilo que surgir no que toca ao fenômeno do alcoolismo; 3) apresentação dos significados sobre a experiência do sujeito alcoolista; 4) análise fenomenológica, no qual as considerações deixadas de lado durante a análise da pesquisa em função da redução fenomenológica são retomadas e consideradas. Nesse último passo, "saímos" dos parênteses e retornamos à fundamentação teórica.

Vista a impossibilidade de identificação documental do responsável pelo grupo de AA em função da exigência do anonimato dos membros do grupo, foi mantido e garantido sigilo em respeito às normas do grupo. Os entrevistados tiveram suas identidades resguardadas por questões éticas, sendo nomeados por nomes fictícios. Todos os procedimentos propostos neste trabalho obedeceram às determinações éticas e normativas contempladas nas Resoluções nº 466/12 e 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que trata da ética em pesquisas envolvendo seres humanos. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em pesquisa da Universidade de Fortaleza e está aprovado sob o parecer nº 3.325.296.

 

3. Resultados e Discussão

Como resultados referentes à análise das entrevistas, enfocando o tema da experiência de ser alcoolista, foram estabelecidas as seguintes categorias fenomenológicas: "Alcoolismo: a doença da família"; "O fundo de poço: o sofrimento no alcoolismo" e "O que eu fui, consigo ser melhor só por hoje".

Alcoolismo: a doença da família

Nesta primeira categoria, os participantes abordaram o alcoolismo não somente como doença pelas questões fisiológicas e psíquicas, mas também em função de uma demanda como condição de "desmoralização", o que faz desses sujeitos alguém sem nenhuma importância, especialmente suas famílias que, muitas vezes, está cansada de lidar com o alcoolista. Pedro experiencia o alcoolismo como doença da família:

Tem muito quem diga que o alcoolismo é a doença da família porque de tantas coisas que o álcool atingiu na minha vida foi a questão da família, porque só não perdi minha família (mulher e 2 filhos) pelo fato de eu ter chegado na irmandade (AA)

A partir de uma lente merleau-pontyana, podemos entender o alcoolismo como uma experiência mundana, ou seja, ela se constitui mutuamente na relação do homem com o mundo. Há um modo de ser alcoolista que se constitui nesse entrelaçamento com o mundo. Não se trata de uma experiência puramente individual, mas que é tecida na relação dessas pessoas com o mundo, com os outros e, neste caso, com a própria família (Moreira, 2009). Durante a entrevista, Joaquim relatou os problemas decorrentes do alcoolismo: "devido essa fase crítica da minha vida eu tive vários problemas, como perda da família, separação, doenças, perda de emprego, desestruturação total, perdi a fé em mim, eu fui ao fundo de poço". É visto que o sujeito alcoolista, enquanto um bebedor excessivo, fica destituído de aspectos tais como valores e fé, como foi colocado pelo participante. Desse modo, esse ser passa a não mais se sensibilizar com questões de convivência, visto que ele vive emoções fragilizadas que irão atuar diretamente nas experiências familiares.

Como apontam Matos e Monteiro (2015), o "ambiente alcoolista" atinge intimamente toda a dinâmica familiar e provoca graves problemas, ocasionando rompimentos afetivos e perda da credibilidade no usuário. O consumo abusivo de álcool por um membro cria um desequilíbrio no convívio familiar com a comunidade e com a sociedade (Prati, Couto, & Koller, 2009). Olívia apresentou um relato dessa relação de conflito em família:

Eu moro numa rua e tinha uma churrascaria eu gostava de beber lá ... só que quando o dinheiro acabava eu ia para esquina me prostituia pra arranjar mais dinheiro pra eu beber novamente[...] no outro dia todo mundo já sabia porque eu ficava mesmo na esquina próximo minha casa, aí certa vez tive uma briga com meu pai, ele me disse que eu era uma praga tão ruim e que tinha vergonha de ser meu pai, foi muito difícil

A prostituição de Olívia repercute nas esferas familiar e social, envolve sua desmoralização e vergonha por parte dos familiares. Na declaração habitual dos membros do AA de que "o alcoolismo, antes de matar, desmoraliza" se expressa a relevância da vergonha experienciada e daquela causada para sua família. A vergonha se apresenta como a incorporação de normas e valores. Assim, o que envergonha é o descumprimento de uma regra que estabelece as condutas de um determinado meio social (Alzuguir, 2014). Tal como revelado pela participante, o ato de prostituir-se é sentido como uma vergonha, uma quebra de regra, um fracasso por ser quem se é.

Classificado como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (1993), esse entendimento sobre o alcoolismo perpassa pela fala dos entrevistados de forma unânime. A questão do reconhecimento como doença é um ponto a se considerar, pois grande parte das pessoas – seja o próprio alcoolista ou seus familiares e pessoas com quem convivem – não reconhecem ou não sabem que o alcoolismo é considerado doença antes de chegar ao AA. Esse dado corrobora com a pesquisa de Lopes, Ganassin, Marcon e Decesaro (2015), que revela haver um extenso período até familiares e usuários se conscientizarem da doença e este é um saber obtido somente ao ingressar ao grupo de AA, como podemos observar na fala de Jorge:

Eu sou alcoólatra, na minha família não tem nenhum alcoólatra e eu não sabia que o alcoolismo era uma doença progressiva, irreversível e de consequências fatais. Vim saber aqui no AA, eu me olhava no espelho batia no meu rosto e me perguntava o que era isso, meu pai nunca me deu esse exemplo, por que eu faço isso?

Não é um único fator que explica a origem do alcoolismo. Sabe-se haver um fator genético que, no entanto, de forma isolada, não é determinante para a instalação da dependência. Fatores como ambiente (fácil acesso, baixo custo); cultura (aceitação e aprovação do uso social de álcool); mídia (estímulo do uso sem especificar quantidade); aspectos psicológicos individuais (como crenças "só é possível se divertir sob o efeito do álcool) são denominados predisponentes que diferem na relação desenvolvida por cada pessoa com o uso do álcool (Figlie, Bordin, & Laranjeira, 2004/2018).

Já Olívia expressa as dificuldades mais gerais que surgem no âmbito das relações familiares:

O alcoolismo foi perverso comigo, me tirou o direito de trabalhar, fiquei desempregada e foi o suficiente para eu beber cada vez mais ... certo dia eu me acordava com uma coisa forçada, tentando tirar minha roupa, vi que era meu próprio irmão, (...) Eu penso que se eu tivesse cuidado dos meus filhos como eu cuido dos meus netos hoje, eu não teria visto meu filho nas drogas com 10 anos de idade e minha filha que hoje se prostitui, eu me sinto culpada, talvez se eu tivesse dado um bom exemplo

Zaitter e Lemos (2011) apontam que dentre as esferas mais afetadas na família pelo uso abusivo de álcool estão: a econômico-social, que abrange a questão de desemprego; a relacional, no que toca a deterioração da vida familiar, com situações de maus tratos, violência, incesto e negligência no cuidado dos filhos; e a moralidade, que vem como consequência dessas citadas.

Ainda é possível percebermos que algumas responsabilidades diárias como trabalho, cuidar de si e de filhos, por exemplo, deixam de ser feitas. O alcoolista passa, então, para uma fase de não ter mais condições físicas e psíquicas de importar-se com o lar e as atividades de rotina, não conseguindo mais exercer suas funções no trabalho, o que vai agravando até chegar ao desemprego e a desorganização total da família (Matos & Monteiro, 2015). O alcoolista passa a ser considerado na sociedade como "o bêbado" e fica longe de ocupar um lugar de credibilidade, perdendo na família, muitas vezes, o papel de pai, de provedor do lar, de cônjuge ou de filho.

Os participantes da pesquisa apontam o alcoolismo como doença da família, pois altera toda a dinâmica familiar. Para a irmandade do AA, o alcoolismo é considerado como uma "doença da família" por ser uma doença também de ordem moral que implica a totalidade do ser alcoolista, afetando sua construção como um indivíduo "responsável", impedindo-o de reconhecer-se nas identidades sociais que deve ocupar (Campos, 2009).

O indivíduo em AA encontra um lugar para o corpo e para o espírito, reconciliando-se consigo mesmo e com seus familiares através das histórias de vida compartilhadas. O termo irmandade, utilizado na literatura do AA, fortalece o significado do modelo terapêutico, pois remete construção de uma rede de reciprocidade, que serve de referência ao grupo no aspecto de reconstruir ou construir algo que foi desfeito: os laços afetivos. A reciprocidade é um aspecto que permite aos participantes do AA construir significados a partir do que eles têm em comum, o álcool, e com isso nasce um compromisso de cuidado para com o outro, constituindo, assim, uma "irmandade" (Campos, 2009).

O fundo de poço: sofrimento no alcoolismo

O sofrimento causado pelo uso abusivo de álcool está presente na vida dos alcoolistas entrevistados neste estudo. Trata-se de uma condição não somente física e social, mas também psíquica que dá início na vida desse sujeito a problemas de grande desordem. Durante uma das entrevistas, Joaquim relata seu grande sofrimento:

Eu totalmente desesperançado, abandonado pelas pessoas, sem desejo de viver e as coisas já começando a dá errado, minha vida não tinha sentido algum, aí resolvi me suicidar, eu pretendi morrer. Tomei muita cerveja e entrei num píer e fui pra debaixo pra morrer afogado. Quando as pessoas me retiraram viram que eu tinha mergulhado e não tinha voltado, eu quase morrendo consegui retornar.

A experiência de ser alcoolista é marcada por danos que provocam perdas e a falta de sentido é citada comumente pelos entrevistados. A pessoa que vislumbra o suicídio como uma solução coloca-se na posição de responder qual o valor que a vida tem para ela (Rocha, Boris, & Moreira, 2012), como pudemos observar na fala de Joaquim. O sujeito desacreditado em si mesmo se vê na situação de tirar a vida que, para ele, já não tem mais valor. Olívia expõe sua experiência da seguinte forma: "eu perdi o que o ser humano tem de melhor na vida que foi a fé, não tinha mais sentido eu achava que a única maneira era tirar minha própria vida, o suicídio resolveria meu problema".

O suicídio é um fenômeno humano complexo, um sério problema de saúde pública e de difícil prevenção e controle (Organização Pan-Americana de Saúde [OPAS] & Organização Mundial da Saúde [OMS], 2018). Envolve condições socioculturais, genéticas, psicodinâmicas, filosófico-existenciais e ambientais e se considera a presença de um transtorno mental como um forte motivo de risco para o suicídio. Além dos transtornos mentais, outras questões também estão diretamente associadas aos índices de suicídio, são elas: uso de álcool e outras drogas, desesperança e desespero, busca de sentido existencial, razão para viver, falta de habilidade de resolução de problemas, isolamento social, distanciamento do amigos, ter acesso a meios letais e impulsividade (Botega et al., 2009). Tais motivações estiveram fortemente presentes nos relatos de Olívia e Joaquim. A falta de sentido da vida foi evidenciada como um fator comum entre todos os entrevistados.

Em um estudo sobre o suicídio é apontado:

"O modo inautêntico de viver acarretará escolhas existenciais inadequadas, marcadas pelo fracasso, pela baixa autoestima, irrealização e infelicidade, gerando uma total incapacidade de amar e ser amado. Dá-se, então, o vazio existencial e a falta de sentido para a vida, querer sair do vazio e tentar preencher esse vácuo em direção a um desconhecido que lhe resgatará do sofrimento, ainda que seja ceifando a sua vida através de um ato de extrema violência, como o são o suicídio e a tentativa de suicídio (Dutra, 2000, p. 100)."

Frankl (1946/2014), sobre o vazio existencial, considera que o sentido da vida e do sofrimento está no fato do ser humano precisar de uma dinâmica existencial. Esse vazio pode ser compreendido como uma dupla perda, relacionadas à perda de alguns instintos que ditam o que o ser humano deve fazer e à perda de tradições, que desempenham um apoio para o comportamento. Os entrevistados queixam-se de uma falta de sentido, presente na experiência do ser alcoolista. A rotina de vida do alcoolista é perpassada parcial ou totalmente pela falta de tais conteúdos que dão sentido à vida humana em razão das perdas sofridas pelo individuo, perdas estas afetivas, sociais, psíquicas e físicas.

Olívia relata as marcas deixadas pelo alcoolismo, entre eles o HIV que descobriu quando frequentava o AA:

O alcoolismo deixa marcas que muitas vezes não são visíveis, mas (...) por causa de prostituição, troca de parceiro, eu cheguei em AA muito debilitada, pesando 44 quilos, em 2002 mas eu achava que fosse só consequência do alcoolismo, só que não era, em 2004 eu descobri que tinha contraído HIV, foi difícil. Pára pra imaginar se eu tivesse bebendo e descobrisse um negócio desse, quantas pessoas eu não teria contaminado?! Bêbada, revoltada, eu teria contaminado muita gente. Aí entrei em depressão foi muito difícil, quase que eu não saia, todo dia eu tava no hospital conversando com a psicóloga.

Pesquisas apontam que o consumo de álcool está relacionado a trocas habituais de parceiros sexuais, sexo em troca de dinheiro, maior número de parceiros, sexo não-desejado, prática de sexo sem preservativo, seja com parceiros fixos ou casuais (Cardoso, Malbergier, & Figueiredo, 2008). Moreira, Bloc e Rocha (2012), em um estudo sobre o HIV/AIDS, declaram ser essencial um olhar fenomenológico para compreensão desse fenômeno, ou seja, buscar o significado da experiência a partir de uma compreensão mundana, implicando um olhar crítico. Assim, as reflexões de Merleau-Ponty partem do pressuposto de um rompimento das dicotomias com base nas ambiguidades do ser humano e sua experiência a partir de seus múltiplos contornos. A partir do pensamento do filósofo, o HIV é entendido como também atravessado pelos múltiplos contornos: biológicos, sociais, morais e culturais que envolve muito sofrimento para o sujeito. Desse modo, o sofrimento provocado na vida do ser alcoolista parece sempre ser perpassado pelos aspectos sociais e pessoais. Olívia relata ainda a forma como passou a ser tratada ao descobrir o HIV:

Quando meus vizinhos descobriram que eu estava com HIV meus filhos passaram a ser alvo de piadas, certa vez meu filho brincando com outras crianças e a mãe de um deles falou: saia daí meu filho eu não quero você brincando com o filho da AIDS.

Outra marca na experiência alcoolista é o preconceito presente na vida desses indivíduos, conceito estreitamente relacionado ao estigma. Pode-se inferir que a estigmatização traz um forte impacto para a vida de pessoas e grupos e com intensas consequências sociais e psicológicas, tais como a vergonha e isolamento social. Quando um indivíduo aceita o diagnóstico de alcoolista, além das questões médicas ou psicológicas constitutivas desse rótulo, a percepção social atua diretamente na forma como o alcoolista irá portar o peso do diagnóstico. Na sociedade atual, o uso de álcool é muito frequente e, por vezes, o uso abusivo torna-se trivializado, dificultando cada vez mais o reconhecimento como doença por parte do indivíduo e a busca por tratamento (Ronzani & Furtado, 2010).

O sofrimento para o alcoolista compreendido nesta pesquisa é comparado à profundidade de um poço como colocado na descrição desta segunda categoria. O alcoolista desloca-se em uma direção cada vez mais danosa, a qual conduz a condições de grandes perdas, assim como o comprometimento de relações sociais e da condição de saúde que o compromete por toda a vida.

O que eu fui, consigo ser melhor só por hoje

Pode-se perceber a mudança de comportamento como uma questão identificada pelos entrevistados de duas formas: o antes e o depois do consumo do álcool. Jorge, quando interrogado sobre o porquê de se considerar alcoolista, responde: "Eu não me considerei um alcoólatra/alcoolista porque eu bebia todo dia, tem gente que bebe todo dia e não é alcoólatra, alcoólatra é comportamento, você bebe e muda o comportamento, aí pode se considerar alcoolista". E Joaquim, sobre a mesma questão, responde de forma semelhante:

O que mais me caracteriza como alcoólico não é a quantidade de bebida que eu ingiro, mas a forma como eu ajo após consumir a bebida, meu comportamento muda, essa pessoa que você está conversando com ela aqui agora se transforma e aí é impressionante a mudança.

A mudança vivenciada no AA parte da premissa dos Doze Passos que sugere uma profunda transformação através das reuniões em grupo em que são compartilhadas as experiências individuais com o uso do álcool (Alcoólicos Anônimos do Brasil, 2019). Os AA têm como objetivo auxiliar pessoas que desejam parar de beber através de uma programação intensa de recuperação estabelecida através de meios para o alcoolista conseguir permanecer o maior tempo possível longe do álcool, começando por evitar o primeiro gole por, pelo menos, 24 horas. O AA se mostra como um local de ajuda para alcoolistas permanecerem sóbrios a partir de suas vivencias compartilhadas, o que o torna uma "irmandade de homens e mulheres que compartilham, entre si, suas experiências, forças e esperanças a fim de resolver seu problema comum e ajudar outros a se recuperarem do alcoolismo." (Campos, 2004; Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos no Brasil [JUNAAB], 2004).

Os alcoolistas entrevistados nesta pesquisa compartilham vivências sobre promessas de deixar de beber que, por muito vezes, não conseguiram cumprir o que foi dito, tanto para si mesmo como para familiares e amigos. Dada essa situação, e com o intuito de evitar tais fracassos no período de "recuperação" do alcoolismo, o AA, sutilmente, apresenta um plano mais realístico de "24 Horas" (Alcoólicos Anônimos Online, 2019). É desse modo que o alcoolista, já em recuperação, julga mais acessível a ideia de não beber "só por hoje". Dessa forma, muitos conseguem "o parar de beber" na sua totalidade, mesmo que "só por hoje". Foi a partir desse pressuposto que os participantes deste estudo revelaram sua mudança de vida. Jorge, na fala a seguir, inicialmente em negação da aceitação da doença, relata como as "24 horas" o ajudaram:

Eu fui bêbado para a primeira reunião e ingressei, e no dia seguinte ela(esposa) me entregou a fichinha (de ingresso) e eu nem lembrava o que tinha feito. No outro dia ela me disse que meu padrinho ia passar pra me levar na reunião de outro grupo, eu não queria ir mas fui e chegando lá ouvindo dos companheiros que a programação era de 24 horas sem beber pensei: se essa bobagem funcionava pra eles eu também poderia e essa bobagem, que depois eu vi que é algo muito sério, fui tentando e estou aqui até hoje, 36 anos de sobriedade

As discussões atuais sobre a denominação de classificar o bebedor excessivo passam do termo alcoólatra para o alcoolista. O primeiro diz de um sujeito com uma identidade estigmatizada, desconsiderando qualquer outra que possa ter; e o segundo se refere a alguém que tem relação com a bebida, o que coloca o sujeito em um local de possibilidade de mudança como a de parar de beber (Gaulio, 2015). Percebe-se que o indivíduo quando ingressa no AA toma como identidade justamente essa segunda concepção, ele se coloca no local de alguém que precisa de tratamento. O alcoolista quando toma conhecimento que o seu "problema" é uma doença e aceita que precisa de tratamento consegue ingressar no grupo e ter maior êxito na sua tentativa de parar de beber, como observamos na experiência de Jorge: "eu vim saber que isso era uma doença aqui, eu conheci AA e as coisas mudaram".

Como colocado anteriormente, o sujeito alcoolista, como bebedor diarista, passa a não reconhecer no outro a sua importância. Olívia expôs isso em sua fala: "Quando a gente tá no campo do alcoolismo a gente não quer saber de nada, de mãe, de filho [...]". É interessante destacar a mudança de pensamento e comportamento do alcoolista quando ingressa no grupo de ajuda-mútua, pois os participantes aprendem com as experiências dos outros. O alcoolista descobre a si mesmo através da troca de experiências e passa de um lugar de bêbado/doente alcoólico, representado por uma posição moral e estigmatizante, para uma visão da "doença" correspondente ao modelo biomédico, mas (re)significada na vivência de AA, considerando assim um significado "físico-moral" (Campos, 2004). Nessa passagem de um lugar para o outro, o alcoolista experiencia a possibilidade de ressignificar aquilo que lhe é imposto como um estigma e passa a considerar o sentido do alcoolismo para ele mesmo.

Para o ingresso no AA o "único requisito é parar de beber" e, com isso, a admissão de impotência e de perda de controle perante o álcool que é o primeiro dos passos da filosofia do grupo. Por isso, é essencial que o indivíduo ingresse no grupo por vontade própria a partir da sua tomada de consciência, o que ainda é muito árduo para este, visto que o alcoolista, antes de ingressar no AA, costuma estar em negação. Os participantes deste estudo relatam que foram ao AA por insistência de amigos e/ou familiares e que o processo de aceitação e tratamento foi perpassado por negação e recaídas. Alguns relatos expressam essas experiências: "eu não preciso não, eu não tenho esses problemas...essa negação é normal, natural a pessoa que tá vivenciando o dia a dia no álcool ele sempre foge" (Pedro). Já Olívia afirma: "eu não tinha aceitação, hoje eu não escolho ninguém tenho que ouvir a todos". E Renato comenta: "eu me sentia notado, eu me achava o dono da situação, eu nunca pensei em parar de beber".

A partir do ingresso no AA e da vivência grupal, o sujeito passa a internalizar as experiências dos outros companheiros e a aprender com elas. A proposta é a reorganização dos hábitos do alcoolista através da transformação do olhar sob o mundo e da aquisição de outros olhares que permitam novos sentidos sobre si mesmo, sobre o álcool e sobre a dependência (Oliveira & Menandro, 2001).

Joaquim relata sua experiência no Alcóolicos Anônimos da seguinte forma:

Naquele dia eu ingressava em alcoólicos anônimos, foi em agosto de 2009, e minha vida mudou totalmente ... fui servindo, fazendo minha análise de vida, construir nova família, assumi novamente cargos de gerência, tive novos filhos, em termos de vida eu acordo todos os dias sabendo o que fiz no dia anterior que as pessoas não estão perdendo o sono por causa de você, os riscos.

O alcoolista passa, então, após reconhecer sua limitação, a retomar alguns lugares que foram interrompidos por motivos causados pelo abuso de álcool. Fazendo uma associação entre a experiência do indivíduo no grupo e a visão de Merleau-Ponty, é possível vermos um reflexo do "mundo percebido". Trata-se de compreender como a minha experiência se relaciona com a dos outros que têm a mesma realidade (Lima, 2003).

A mudança de vida "antes do álcool" e "depois do álcool" se manifesta pontualmente nas questões apresentadas como um "prejuízo". Como exemplo, a relação familiar que é fortemente abalada se reorganiza promovendo para o alcoolista um melhor suporte para lidar com as questões advindas da decisão de parar de beber. Renato, quando perguntado sobre alguma situação ou fase específica que o fez pensar em parar de beber, responde:

Acho que cheguei na hora certa, essa minha entrada no AA dia 17/11/2003, foi um dia após o nascimento da minha neta que tem 15 anos hoje, e eu tinha falado pra minha mulher, eu nem lembrava mais disso (de tantas promessas que fazia quando bêbado), que quando ela nascesse eu ia parar e todos os outros que viessem depois dela não iam me ver bebendo, e eu me emocionei bastante. O tempo que ela nasceu é meu tempo de AA, ela me ajuda muito até hoje".

O indivíduo ao ingressar no AA recebe um padrinho (alguém com quem pode contar no início do tratamento e durante toda a vida em AA). O novo membro recebe uma ficha como símbolo de ingresso e decisão, que troca por outra a cada três meses como indicativo da sua evolução. O alcoolista passa a desenvolver dentro do AA um aspecto antes bastante enfraquecido: manter e/ou fazer novos vínculos sociais. Isso viabiliza a reconstrução desses vínculos também fora do grupo, como com familiares e amigos que se afastaram durante o agravo da doença (Oliveira & Menandro, 2001).

Na retomada e restruturação dos espaços afetados pelo alcoolismo, a família e as pessoas do convívio mais próximo do alcoolista são "devolvidas" a ele, mesmo que não seja em sua totalidade. Desse modo, o alcoolista tem um suporte mais afetuoso para conseguir reestruturar sua vida a partir da ressignificação da sua experiência como alcoolista, apresentando-se, para sempre, como revelado pelos participantes do grupo, como "alcoolista em recuperação".

 

4. Conclusão

A experiência vivida de ser alcoolista é atravessada por questões individuais, sociais, culturais, biológicas, entre outros contornos que a compõem, atingindo amplamente o sujeito e suas relações. Com base nas entrevistas, pudemos perceber que o indivíduo nessa condição passa por dificuldades que tumultuam todo o ciclo de relações interpessoais, tornando o vínculo, sobretudo, com as pessoas do círculo familiar, mais vulnerável. Foi percebido que o preconceito está relacionado ao desconhecer o problema do alcoolismo como doença, tanto por parte dos próprios alcoolistas, quanto dos seus familiares. Quando esse sujeito ingressa ao grupo do AA toma conhecimento de sua condição e repassa esse pensamento para a família, o que tende a reestabelecer um vínculo, antes abalado, configurando um forte recurso para o desenvolvimento do tratamento.

A experiência de ser alcoolista é marcada por perdas e fracassos. Relatos de perda de sentido na vida e ideação/tentativa de suicídio são partilhadas pela população alcoolista. Ao adentrar no AA, os participantes parecem passar a ter a consciência de sua relação prejudicial com o álcool, devendo abandonar o hábito de beber, pois a ingestão do primeiro gole implica a perda do controle sobre si. A inserção no AA como processo de recuperação e o tratamento proposto pelo grupo devolve a esse indivíduo a liberdade de agir a partir de si mesmo e, assim, conseguir reorganizar a sua existência.

É de grande relevância a produção de pesquisas atualizadas sobre o alcoolismo, alcançando uma maior quantidade de pessoas e possibilitando a construção de um novo olhar e formas de tratamento que privilegiem os significados da experiência do sujeito que vivem o alcoolismo, ultrapassando o enfoque restrito no alcoolismo como doença.

 

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Endereço para correspondência
Nohara Nara Lima Holanda
E-mail: nohara_nara@hotmail.com

Lucas Guimarães Bloc
E-mail: blocpsi@unifor.br

Liliane Brandão Carvalho
E-mail: liliane@unifor.br

 

 

1 Nohara Nara Lima Holanda: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5246-2931
2 Lucas Guimarães Bloc : ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8528-131X
3 Liliane Brandão Carvalho : ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7995-6467

 

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