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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.3 Belém set./dez. 2021

 

RELATO DE PESQUISA BIBLIOGRÁFICA

 

Angústia, Eros e encontros inter-humanos: por uma clínica existencialista

 

Anguish, Eros and interhuman encounters: for an existentialist clinic

 

Angustia, Eros y encuentros interhumanos: para una clínica existencialista

 

 

Stephan Malta Oliveira1

Universidade Federal Fluminense – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo discutir aspectos fundamentais inter-relacionados da existência humana, como o fenômeno da angústia, a dimensão Eros do amor, os encontros inter-humanos e o sentido para a existência, extraindo implicações para a fundamentação de uma clínica existencialista. Busca-se ainda realizar uma interlocução entre a filosofia e a psicanálise na abordagem da noção Eros, oferecendo uma releitura existencialista desta. O existencialismo utilizado é delimitado pelos seguintes pensadores: Kierkegaard, Buber, Levinas, Frankl e Marcel. A metodologia consiste na revisão não-sistemática da literatura; o método utilizado é a investigação conceitual. Uma das principais implicações para a clínica diz respeito ao reconciliar-se com a angústia, que se dá por meio do amor, no sentido da construção de encontros autênticos; trata-se de uma clínica não pautada pela mecanização, mas que possibilita o reconhecimento da alteridade em sua unicidade, a abertura do ser ao humano e o preenchimento da existência de sentido.

Palavras-chave: angústia; eros; encontros utênticos; clínica existencialista; sentido


ABSTRACT

This article aims to discuss fundamental interrelated aspects of human existence, such as the phenomenon of anguish, the Eros dimension of love, inter-human encounters and the meaning of existence, extracting implications for the foundation of an existentialist clinic. It also seeks to carry out a dialogue between philosophy and psychoanalysis in the approach of the Eros notion, offering an existentialist reinterpretation of it. The existentialism used is delimited by the following thinkers: Kierkegaard, Buber, Levinas, Frankl and Marcel. The methodology consists of a non- systematic literature review; the method used is the conceptual investigation. One of the main implications for the clinic concerns the reconciliation with anguish, which happens through love, in the sense of building authentic encounters; it is a clinic not guided by mechanization, but which enables the recognition of otherness in its uniqueness, the opening of the being to the human and the filling of the existence of meaning.

Keywords: anguish; Eros; authentic encounters; existentialist clinic; meaning


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir aspectos fundamentales interrelacionados de la existencia humana, como el fenómeno de la angustia, la dimensión Eros del amor, los encuentros interhumanos y el significado de la existencia, extrayendo implicaciones para la fundación de una clínica existencialista. También busca llevar a cabo un diálogo entre filosofía y psicoanálisis en el enfoque de la noción de Eros, ofreciendo una reinterpretación existencialista de la misma. El existencialismo utilizado está delimitado por los siguientes pensadores: Kierkegaard, Buber, Levinas, Frankl y Marcel. La metodología consiste en una revisión de la literatura no sistemática; el método utilizado es la investigación conceptual. Una de las principales implicaciones para la clínica se refiere a la reconciliación con la angustia, que pasa por el amor, en el sentido de construir encuentros auténticos; es una clínica no guiada por la mecanización, sino que posibilita el reconocimiento de la alteridad en su unicidad, la apertura del ser a lo humano y el llenado de la existencia de sentido.

Palabras clave: angustia; Eros; encuentros autênticos; clínica existencialista; sentido


 

 

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo discutir alguns aspectos fundamentais da existência humana, inter- relacionados, quais sejam: o fenômeno da angústia, a dimensão Eros do amor, os encontros inter-humanos e o sentido da existência, extraindo implicações desta discussão para a fundamentação de uma clínica existencialista.

A metodologia utilizada consiste na revisão não sistemática da literatura mediante a seleção de trabalhos que abordam as temáticas acima mencionadas, de cunho existencialista. No caso da dimensão Eros do amor, busca-se realizar uma interlocução com outros campos da filosofia que tratam do tema e com a psicanálise, propondo uma releitura existencialista desta interlocução. Trata-se de uma forma bastante específica de existencialismo utilizada neste trabalho, que pode ser denominada por existencialismo teísta ou existencialismo judaico-cristão, uma vez que seus pensadores conferem grande relevância à dimensão da transcendência e utilizam em seus trabalhos, ao menos como inspiração, aspectos do Cristianismo ou do Judaísmo. São eles: Soren Kierkegaard, Gabriel Marcel, Martin Buber, Emmanuel Levinas e Viktor Frankl; os dois primeiros trazem com certa frequência, em seus escritos, menções ao Cristianismo, enquanto os três últimos se inspiram na tradição judaica. Todos estes pensadores foram filósofos, à exceção de Viktor Frankl, psiquiatra e fundador da logoterapia. O método de análise dos dados obtidos com os materiais selecionados é o da investigação filosófico-conceitual.

De modo a facilitar a compreensão do leitor, os Resultados serão divididos em quatro partes, de acordo com a investigação conceitual pretendida e sua relação com os propósitos de fundamentação de uma clínica existencialista: na primeira parte, será discutida a noção de angústia em Kierkegaard. A segunda parte será dedicada à discussão da dimensão Eros do amor no pensamento grego e cristão e sua relação com as demais qualidades do amor – Philia e Ágape. Realizar-se-á ainda uma interlocução com a psicanálise, enfatizando-se a relação entre Eros e o desamparo, a partir de uma releitura freudiana feita pelo psicanalista brasileiro Joel Birman. A relevância de se abordar Eros neste trabalho é por se tratar de uma dimensão fundamental da existência humana, muitas vezes negligenciada por escritos existencialistas, de uma forma geral. Certamente, o campo psicanalítico é um dos principais, senão o principal campo do pensamento ocidental a tratar da questão do erótico e da sexualidade. No entanto, em virtude de algumas limitações deste campo em situar a sexualidade no âmbito mais amplo da existência humana, faz-se necessário para os propósitos deste artigo realizar uma releitura de alguns de seus conceitos sob a ótica existencialista.

Na terceira parte da seção, serão discutidas as noções de encontros inter-humanos e sentido para a existência, buscando investigar a intrínseca relação existente entre ambas, sobretudo, a partir dos pensadores Martin Buber, Gabriel Marcel, Viktor Frankl e Emmanuel Levinas.

Na quarta seção, serão extraídas implicações de toda a discussão realizada para uma clínica de cunho existencialista, discutindo-se sua aplicabilidade às diversas formas de padecimento psíquico, incluindo aquelas presentes na infância. Embora, o existencialismo utilizado seja teísta, sua aplicação prática inclui obviamente não apenas pacientes que têm fé, mas também os ateus. A razão lógica disto será demonstrada ao longo do trabalho.

 

2. Metodologia

A metodologia utilizada consiste na revisão não sistemática da literatura, mediante a seleção de textos de autores de grande relevância no campo existencialista e que abordam as noções norteadoras do presente trabalho, como angústia, encontros inter-humanos e sentido para a vida, relacionando-as, ao mesmo tempo, à noção de transcendência. São eles: Kierkegaard, Martin Buber, Emmanuel Levinas, Gabriel Marcel e Viktor Frankl. Com relação à abordagem da noção eros, privilegiar-se-á uma interlocução entre autores que tratam do conceito segundo o pensamento grego e sua relação posterior com o Cristianismo – sendo feita uma breve exposição desta para não se perder o escopo do trabalho – e o campo da psicanálise, propondo-se uma releitura existencialista desta interlocução.

Deste modo, serão selecionados os seguintes trabalhos: a obra O conceito de Angústia, de Kierkegaard, para a investigação da noção de angústia. No caso da investigação das noções de encontros inter-humanos - que aparecem também como encontros face-a-face, encontros genuínos ou autênticos, relações ser a ser - e sentido para a vida, serão selecionadas as seguintes obras: Do diálogo e do Dialógico, de Martin Buber; Os homens contra o homem e L'homme problématique, de Gabriel Marcel; Em busca de sentido, psicoterapia e sentido da vida e A presença ignorada de Deus, de Viktor Frankl; e Entre Nós – ensaios sobre a alteridade, de Emmanuel Levinas. Na abordagem da noção eros, serão selecionados artigos e livros que relacionam o conceito ao pensamento grego e ao Cristianismo, realizando-se uma interlocução com a psicanálise. Neste último campo, opta-se pela seleção da obra Cartografias do Feminino, do psicanalista brasileiro Joel Birman, por se tratar de uma obra de grande relevância na área e pelo fato de que a mesma propicia uma articulação entre as noções de eros e desamparo com as noções kierkegaardianas de amor e angústia, favorecendo a proposta do presente trabalho de uma releitura existencialista dos conceitos abordados. Justifica-se o fato de se recorrer a outros campos do conhecimento para a abordagem do conceito eros, por serem campos que oferecem uma grande contribuição na análise do fenômeno erótico e que têm muito a contribuir para a abordagem existencialista em geral.

O método utilizado de análise do material selecionado é o método da investigação conceitual ou método filosófico-conceitual, no qual os conceitos são compreendidos como ferramentas extraídas de um determinado campo, como a filosofia, e utilizadas segundo propósitos específicos, em outros campos do conhecimento, como a saúde, contribuindo para a solução de problemas e o enriquecimento do campo de aplicação. Trata-se de um método de investigação de inspiração wittgensteiniana. Os conceitos investigados no presente trabalho serão utilizados como ferramentas conceituais, levando-se em consideração, sobretudo, sua aplicabilidade no campo da saúde, mais especificamente, o propósito de fundamentação de uma clínica existencialista. Segundo Martins (2004):

Ao filósofo cabe criar suas próprias ferramentas conceituais, modulando, interpretando e recriando aquelas existentes, a fim de lançar mão delas de acordo com os problemas que precisam enfrentar, e para os quais, em sua concepção, as ferramentas existentes podem até servir, contanto que atualizadas e reinterpretadas. A metodologia de criação filosófico-conceitual deve portanto ser utilizada para pensar problemas, da área da saúde por exemplo, que não foram os que os filósofos pensaram quando criaram suas filosofias e seus conceitos. (...) Quanto à questão de quais conceitos utilizar, e para quais casos, a resposta é que os próprios problemas com os quais nos defrontamos hoje nos pedem problematizações e soluções para os quais pensaremos em conceitos da história da filosofia que nos servirão, caso atualizados – tomados pois como ferramentas, e não por uma erudição estéril –, ou que nos inspirarão modificações, de modo que construiremos com base naqueles os nossos próprios. Dispondo de caixas de ferramentas diversas, isto é, de filosofias diversas, devidamente contextualizadas, podemos compreender seus conceitos no lugar de origem, na filosofia que lhes gerara, e a partir dessa compreensão, retirar este conceito – já nuançado em seu sentido –, isolá-lo e utilizá-lo como ferramenta para redimensionar e repensar uma questão atual (Martins, 2004, p. 956).

 

3. Resultados e Discussão

A presente seção será dividida em quatro partes: o conceito de angústia em Kierkegaard; a noção eros e sua relação com as noções de desamparo e as demais qualidades do amor; as noções de encontros autênticos inter- humanos e sua relação com o sentido para a vida; e as implicações da discussão realizada nas subseções anteriores para a fundamentação de uma clínica existencialista.

A angústia em Kierkegaard

A noção de angústia é central na obra kierkegaardiana, sendo um aspecto constitutivo da existência humana, presente em toda a vida do indivíduo. Angústia para Kierkegaard (2010) possui uma indeterminação, uma vez que não se relaciona a algo determinado, diferentemente do sentimento de medo, por exemplo, que se relaciona a algo conhecido. Outra relação direta com este conceito é a noção de possibilidade. Angústia se relaciona diretamente com a possibilidade, de tudo o que pode acontecer ao existente, inclusive com a possibilidade do pecado, havendo uma conexão intrínseca, portanto, com o problema da responsabilidade do indivíduo. Kierkegaard (2010) inicia sua abordagem da angústia tratando da inocência da criança, a qual não se depara com este afeto, embora ele ainda esteja presente, como em um sonho. Posteriormente, ao tratar dos diferentes estádios existenciais, o pensador dinamarquês aponta que no estádio estético, relacionado ao prazer e à imediatidade, o existente se depara com a angústia, mas busca de todas as formas esquivar-se dela, viver como se ela não existisse, criando todos os subterfúgios para evitá-la. Quando o indivíduo faz – caso faça - a passagem para o estádio ético, relacionado à internalização das obrigações morais, situando-se no âmbito do geral, a consciência da angústia começa a aumentar, havendo o início do que, analogamente, o autor denomina como formação na escola da angústia (Feijoo, Protasio, Gill e Veríssimo, 2015), uma espécie de educação pela angústia. É importante ressaltar que a passagem de um estádio para outro ocorre por meio de saltos qualitativos, não sendo, portanto, algo que se dê como uma continuidade. A formação na angústia é fundamental para a elevação do espírito, em que o existente deixa de se situar no geral e passa a se apresentar como Indivíduo – único - em seu vir a ser, tendo ampliada sua consciência de culpa e seu senso de responsabilidade, abrindo-se à infinitude. Deste modo, para que este não se afunde na angústia, o que pode levar até ao suicídio, segundo Kierkegaard (2010), é necessário que se dê o salto qualitativo, por meio da fé, na passagem para o estádio religioso. Segundo o autor, o indivíduo apenas supera a angústia, ou melhor, se reconcilia com ela - uma vez que esta se faz presente em toda a vida do existente - por meio da fé, ou seja, por meio de uma "certeza interior que antecipa a infinitude" (Kierkegaard, 2010, p. 165). O indivíduo, em sua temporalidade, se abre então à eternidade.

Com o auxílio da fé a angústia ensina a individualidade a repousar na Providência. Assim também em relação à culpa, que é o outro que a angústia descobre. Aquele que só aprende a conhecer sua culpa no contexto da finitude está perdido na finitude, e de modo finito não se deixa resolver a questão de se um homem é culpado, a não ser de um modo exterior, jurídico, extremamente imperfeito (...) Da finitude pode-se aprender muita coisa, mas não a se angustiar, a não ser num sentido muito medíocre e corrompido. Por outro lado, aquele que aprendeu a angustiar-se de verdade pode mover-se como na dança logo que as angústias da finitude começam a ressoar e quando o aprendiz da finitude perde a razão e a coragem (...) O verdadeiro autodidata é, justamente na mesma medida, um teodidata (...) Por isso, quem se educa pela angústia em relação à culpa, só há de encontrar repouso na reconciliação (Kierkegaard, 2010, p. 170-171)

Kierkegaard (2005, p. 20), no livro As obras do amor – algumas considerações cristãs em forma de discursos, afirma, por outro lado: "pois o que vincula o temporal e a eternidade, o que é, senão o amor, que justamente por isso existe antes de tudo, e permanece depois que tudo acabou". O autor, nesta obra, aborda o amor cristão como o amor desinteressado pelo próximo, enquanto o primeiro que aparece à minha frente. Kierkegaard (2005) contrapõe o amor romântico e da amizade (Eros e Philia) ao amor incondicional (Ágape), defendendo o último em detrimento aos primeiros. Além disto, ele considera o caráter de ação do amor, não podendo ser considerado apenas como um sentimento. Portanto, a partir deste livro, de 1847 (publicado três anos após O conceito de angústia), pode-se inferir que, no pensamento kierkegaardiano, o que possibilita a reconciliação com a angústia não é apenas a fé, mas também o amor.

Eros, as dimensões do amor e o desamparo

Eros é o deus do amor, da volúpia e do desejo; surge na mitologia grega como uma força cósmica, criadora do universo, que gera a vida e agrega os elementos. Em muitos escritos, aparece vinculado tanto à destruição quanto ao sagrado, ao divino. Segundo Marcondes (2008, p. 3):

Eros seja, sobretudo, uma força cósmica, na origem mesmo do universo, de tudo. Eros é nesse sentido atração, aquilo que agrega, aglutina e desta forma organiza o Cosmos, em oposição ao Caos, à desordem, à desagregação. É do Caos que no mito originário surge Eros, que representa assim a própria criação (...) Hesíodo na Teogonia (116) define Eros como o mais belo dos deuses, o impulso ou força vital, aquele que os une entre si e une também os deuses e os homens.

A autora Telma Birchal, em seu artigo Eros e Ágape, traz duas visões distintas acerca da relação entre estas duas terminologias gregas para o amor: uma do filósofo francês Georges Bataille, a partir de sua obra O erotismo, e outra do também filósofo e teórico literário Denis de Rougemont, com seu livro O amor e o Ocidente. Segundo Birchal (1990), Bataille analisa a experiência humana do erotismo a partir dos rituais extáticos de sociedades primitivas, mostrando como nestas sociedades o erotismo não foi reprimido, tal qual no Cristianismo, mas teve sua manifestação possibilitada por meio da intrínseca relação entre o interdito e a transgressão. Bataille (2004) mostra ainda a estreita vinculação existente entre Eros e Thanatos e entre Eros e o sagrado. Na visão do autor, o Cristianismo promoveu um rebaixamento da experiência erótica, a qual foi associada ao pecado. "A transgressão é transformada em rebaixamento - a vivência erótica é interpretada como sinal por excelência da queda do homem (...) se o cristianismo não nos autoriza a transgredir e a morrer, também a vida será menos nobre: decaída" (Birchal, 1990, p. 105).

De acordo com Bataille (2004), Eros é o responsável pela continuidade do ser e, ao mesmo tempo, pressupõe sua dissolução no todo. O filósofo parte de uma cosmovisão de sociedades tradicionais, na qual a realidade é constituída por um Uno dividido em múltiplas realidades particulares que, entretanto, caminham na direção da dissolução e reintegração, donde surge a aproximação entre Eros e Thanatos e entre Eros e o sagrado. Segundo Amaral e Ramos (2008), para o filósofo, erotismo não é apenas gozo e prazer, mas também dor e o sentimento de aniquilamento, estando presente a ideia de Eros relacionada à negação de si e do outro.

Por outro lado, Birchal (1990) aponta que a experiência do amor no Cristianismo se opõe à ideia de anulação de si e do outro. A autora mostra como Rougemont (1988) traz a visão cristã de uma separação radical entre Deus e os homens e entre estes, sem possibilidade de fusão, na qual a alteridade é preservada. Além disto, embora haja uma primazia do amor Ágape no pensamento do filósofo, Eros não seria negado, mas limitado, tomando seu lugar ao lado da vida e afirmado em sua dimensão carnal não como pecado, uma vez que o sagrado, que se encontra além, também lhe dá sentido.

Na verdade, é preciso retomar aos primórdios do Cristianismo para que se possa compreender melhor a relação entre corpo e espírito. Esta separação surge posteriormente em função de duas razões principais segundo Parrela (2004): a conversão de Constantino ao Cristianismo e a adoção deste como a religião oficial do Império Romano, no século IV; e a releitura da fé cristã feita pelo neoplatonismo, utilizando categorias gregas, na qual há uma exaltação do espírito e desvalorização da matéria, incluindo o corpo e a sexualidade. Na concepção judaica, ao contrário, há uma inseparabilidade entre corpo e espírito, o que pode ser visto na passagem Bíblica que diz que o Verbo se fez carne e na própria ressurreição do corpo de Cristo. Não se fala em imortalidade da alma, mas em ressureição do corpo (Parrela, 2004). Segundo o autor (p. 72), "o termo 'espiritual no pensamento Paulino, não significa a alma distinta do corpo, mas o interior da pessoa, corpo e alma, viva e cheia do Espírito de Cristo". Embora, o amor presente em praticamente todo o Novo Testamento seja Ágape, um exemplo acerca da inseparabilidade entre matéria e espírito e consequentemente entre as dimensões Eros, Philia e Ágape, pode ser dado por meio da própria vivência de Cristo, onde além de praticar o amor incondicional (Ágape), Ele estava sempre entre amigos (Philia) e pregava com muita vitalidade (Eros), inclusive na celebração de um casamento onde transformou água em vinho e festejava com os familiares e amigos (Parrela, 2004).

O teólogo alemão Paul Tillich (2004) busca, em seu pensamento, resgatar a unidade do amor, destacando a inseparabilidade do que denomina suas qualidades, a saber: epithymia (libido em latim), relacionada ao desejo sexual, à busca não por prazer segundo o autor, mas pela união com o objeto que resulta no prazer; Eros, que não se reduz à libido, embora a contenha, mas que diz respeito também à busca da reunião com o belo, presente na criação artística, e com o divino, por meio, inclusive, da mística; Philia, que diz respeito à amizade, às relações por afinidade e Ágape, o amor altruísta, doação desinteressada pelo próximo, que pode ser o estrangeiro, o desconhecido (Marcondes, 2008).

Segundo Tillich (2004), portanto, as qualidades do amor são inseparáveis, havendo um componente de epithymia, por exemplo, em Eros, Philia e Ágape. "Há um elemento de libido mesmo na amizade mais espiritualizada e no misticismo mais ascético. Um santo sem libido deveria deixar de ser uma criatura. Mas não existe tal santo" (p. 41). O pensador também argumenta que Philia e Eros são dois pólos opostos, mas ao mesmo tempo interdependentes, que há Eros em Philia e vice-versa. Segundo Amaral e Ramos (2008), Eros somente se torna potencialmente criativo quando subordinado a Ágape (e vinculado a Philia, poder-se-ia acrescentar); do contrário, se torna uma força destrutiva, não representando mais o amor. Tillich (citado por Amaral e Ramos, 2008, p. 70) afirma que "ágape sem eros é sujeição a uma lei moral (...) eros sem ágape é desejo desenfreado".

Na última parte desta seção, será abordada brevemente uma concepção particular de Eros no campo psicanalítico, relacionada, portanto, à pulsão de vida e à sexualidade. Trata-se de uma releitura freudiana feita pelo psicanalista brasileiro Joel Birman em sua obra Cartografias do feminino. A ideia é que esta discussão possa dialogar com as contribuições filosóficas acerca de Eros, contribuindo para sua melhor compreensão.

Um dos eixos centrais da discussão apresentada por Birman (1999) é a situação do desamparo humano. O psicanalista aborda ainda a questão da feminilidade como aquilo a que se chega ao final de uma análise, sendo acessível não só à mulher, mas também ao homem. Neste percurso em direção à feminilidade, há todo um trajeto onde a erotização e os diferentes destinos pulsionais assumem um importante lugar.

Segundo Birman (1999), a feminilidade representa um registro psíquico que se opõe ao registro fálico, possibilitando que o sujeito possa acessar e lidar com seu próprio desamparo. O registro fálico, ao contrário, é marcado pela evitação à situação de desamparo e ao próprio afeto de angústia que dele pode derivar, representando a onipotência narcísica. "Enquanto pelo falo o sujeito busca a totalização, a universalidade e o domínio das coisas e dos outros, pela feminilidade o que está em pauta é uma postura voltada para o particular, o relativo e o não-controle sobre as coisas" (Birman, 1999, p. 10).

A aventura psicanalítica segue, então, em direção à feminilidade e à desfalicização – ou experiência de castração freudiana – em que o desejo passa a circular difusamente por outras áreas corporais erógenas. Neste registro, o sujeito se depara com seu próprio desamparo, onde se defronta "com o imponderável e o indizível, na medida em que ele não pode dominar inteiramente o curso das coisas, do mundo e do outro pela postura arrogante do eu" (Birman, 1999, p .13). Por outro lado, é justamente o horror que o desamparo suscita que faz com que o psiquismo lance mão de diversos recursos no interior do registro da onipotência fálica como forma de evitar a dor, que são os destinos funestos na gestão do desamparo, de acordo com Passos, Neves e Menezes (2018). Alguns destes são os destinos pulsionais relacionados ao sadismo – como negação da castração – e ao masoquismo.

O que está em jogo aqui é uma maneira de o sujeito se proteger do que há para ele de insuportável e de horror na experiência do desamparo. 'Goze com o meu corpo e faça com ele o que bem entenda, me humilhe como quiser, mas fique comigo e não me abandone sozinho no meu desamparo', parecem dizer os ditos masoquistas morais e femininos para os seus algozes, no evitamento sistemático que fazem da experiência feminina do desamparo (Birman, 1999, p. 14).

Uma saída para a situação do desamparo, que seria um destino criativo segundo Passos, Neves e Menezes (2018), é a via do masoquismo erógeno que, segundo Birman (1999), possibilita ao sujeito articular dor e desejo e se diferencia dos masoquismos moral e feminino, situados no registro fálico. Um dos exemplos que o autor menciona se dá na positivação que ele faz do que denomina histericização, não relacionada ao caráter patológico da histeria, mas ao jogo da sedução próprio da feminilidade, em que o erótico se faz presente nas relações humanas. Ainda na via do lidar com a situação do desamparo e consequentemente com a angústia e o horror, Joel Birman se utiliza da noção freudiana de sublimação, que se refere a um destino pulsional não direcionado para atividades sexuais, mas para a cultura, a criação artística, a produção intelectual, etc. No entanto, o psicanalista considera que o aspecto da erotização se faz presente no fenômeno da sublimação, o qual possibilita ao sujeito lidar com o desamparo exposto por sua própria finitude. "Com Freud, podemos aprender que a feminilidade e o desamparo nos destinam inevitavelmente ao erotismo e à criação, formas seminais de ser nas quais podemos reconhecer a nossa mortalidade e a nossa finitude." (Birman, 1999, p. 172).

Finalizando esta seção, faz-se necessário para os propósitos deste artigo tecer uma releitura das noções psicanalíticas apresentadas a partir do que foi discutido acerca das múltiplas qualidades do amor. Isto se dá pelo fato de a psicanálise tratar muito bem dos destinos funestos no que se diz respeito à gestão do desamparo, no sentido das diversas formas de destinos pulsionais que servem à sua evitação. No entanto, parece que o campo psicanalítico possui sérios limites quando se trata da dimensão existencial do ser humano. O conceito de sublimação, por mais fecundo que seja, embora se adeque razoavelmente bem ao vocabulário da criação artística, parece não oferecer alcance semântico às diversas formas de se lidar com o desamparo e a angústia e à relação com a transcendência. Uma interessante releitura pode ser feita a partir da noção de amor apresentada anteriormente. O amor com suas múltiplas qualidades indissociáveis, Eros, Philia e Ágape, parece ser o que de fato possibilita esta gestão eficiente do desamparo, ou nas palavras de Kierkegaard, a reconciliação com a angústia. Entretanto, nos casos de evitação desta e do desamparo, parece que o que está em jogo é a qualidade Eros do amor dissociada das demais. Desta forma, Eros se apresentaria com toda sua força desenfreada e destrutiva, como na compulsão à repetição (Freud, 2007). Analogamente, então, Eros prevalecendo sobre Philia e Ágape equivaleria à força destrutiva da pulsão de morte freudiana, a Thanatos, enquanto as três dimensões articuladas corresponderiam ao amor, à pulsão de vida e ao encontro com o sagrado.

Em sua obra Do diálogo e do dialógico, Buber (1982) faz uma importante menção a Eros, que também nos ajuda a distinguir um Eros destrutivo de outro criador, estabelecendo uma distinção entre o que denomina Eros monológico e Eros dialógico. No primeiro, o que há na verdade é um apaixonamento pela própria paixão, uma busca de satisfação das próprias necessidades, portanto, uma predominância do egoísmo. Trata-se do uso da força de Eros na objetificação do outro. Com relação às dimensões do amor, poder-se-ia mesmo dizer que, neste caso, Eros encontra-se separado de Philia e Ágape. No segundo, Eros impulsiona o ser na descoberta e reconhecimento da alteridade, no qual o esquecer de si em direção ao outro não é fictício, mas realidade, havendo entrega e reconhecimento mútuos. Aqui, as dimensões Eros, Philia e Ágape encontram-se interconectadas.

Sob o regime do Eros de asa mutilada (...) as almas agacham-se onde estão, cada uma em sua cápsula, em vez de voar para fora (...) o reino do Eros de asa mutilada é um mundo de espelhos e espelhamentos (...) Um apaixonado erra por aí e está apaixonado somente pela sua própria paixão. Aí, alguém veste seus sentimentos diferenciados como medalhas. Aí, alguém saboreia a aventura do seu próprio fascínio. Aí, alguém contempla, encantado o espetáculo do seu suposto abandono de si mesmo (...) Os fiéis adeptos do Eros dialógico, do Eros de asas fortes, conhecem o ser amado. Eles experienciam sua vida peculiar na simples presença (...) Os dois fiéis do Eros dialógico, que amam um-ao-outro, recebem cada um a sensação do evento comum também do lado do outro (...) Lá onde reina o Eros alado, não há espelhamento (...) O Eros dialógico tem a simplicidade da plenitude (...) Somente o ser cuja alteridade, acolhida pelo meu ser, vive face a mim com toda a densidade da existência é que me traz a irradiação da eternidade. Somente quando duas pessoas dizem, uma-à-outra, com a totalidade dos seus seres: 'És Tu!' é que se instala entre elas o Ente (Buber, 1982, p. 63-64-65).

Encontros autênticos e o sentido para a existência

Nesta seção, mostrar-se-á a intrínseca relação existente entre a construção de encontros autênticos ou encontros verdadeiramente inter-humanos e o sentido para a existência a partir de quatro pensadores do existencialismo teísta: Martin Buber, Gabriel Marcel, Viktor Frankl e Emmanuel Levinas.

O filósofo austríaco e judeu Martin Buber construiu seu pensamento em torno de uma articulação entre a tradição judaica, sobretudo o Hassidismo – corrente mística do judaísmo – e a filosofia, sendo sua grande obra Eu e Tu, de 1923, a qual contém toda a base de sua filosofia acerca dos encontros autênticos inter-humanos. Segundo o pensador, as relações são marcadas, via de regra, pelas duas palavras-princípio, que se sobrepõem nos acontecimentos da vida: Eu-Tu, que caracteriza o encontro genuíno pessoa-pessoa, e Eu-Isso, que representa uma relação onde há a objetificação do outro, a coisificação, que pode se dar no conhecimento cientifico por exemplo, a partir da delimitação de um objeto de análise, mas também pode ocorrer com outro ser humano ou com a natureza em geral, onde a outra pessoa é objetificada – relação pessoa-objeto – ou um animal ou a natureza são utilizados não como um fim em si mesmo, mas como um meio para satisfazer algum interesse específico, como por exemplo no uso de um animal para transporte ou no uso da terra para o plantio.

Buber (1982), em Do diálogo e do dialógico, tece uma interessante crítica ao pensamento kierkegaardiano com relação à ideia de fé e à relação com o divino pensada pelo filósofo dinamarquês. Esta crítica se efetua a partir da categoria Indivíduo de Kierkegaard. Buber reconhece a grande contribuição kierkegaardiana por meio desta noção, uma vez que ela está diretamente relacionada à realização da natureza da pessoa, em seu vir a ser, no sentido de assumir a responsabilidade pela própria existência e no sentido da relação da pessoa com Deus, ao adentrar no estádio religioso por meio do salto qualitativo na fé.

O 'tornar-se um Indivíduo' de Kierkegaard não é pensado no sentido socrático: este tornar-se tem por finalidade não a vida 'verdadeira', mas o penetrar em uma relação (...) significa estar preparado para a única relação, que só pode ser penetrado pelo Indivíduo, o Um, relação em função da qual o homem existe. Esta relação é exclusiva (...) graças à sua essencialidade única, bane todas as outras relações para o reino da inessencialidade (Buber, 1982, p. 91)

Por outro lado, o filósofo judeu critica o fato de a relação com o divino ser pensada em Kierkegaard por meio da renúncia ao mundo, o que foi experienciado pelo próprio pensador em sua biografia, quando do término do noivado com Regina Olsen.

'Para chegar a amar', diz Kierkegaard sobre sua renúncia a Regina Olsen, 'tive que remover o objeto'. Isto significa entender mal a Deus da forma mais sublime. A criatura não é uma barreira no caminho que leva a Deus, ela é este próprio caminho. Somos criados um-com-o-outro e tendo em vista uma existência em comum. As criaturas são colocadas no meu caminho para que eu, criatura como elas, encontre Deus através delas e com elas. Um Deus que fosse alcançável pela exclusão das criaturas não seria o Deus de todos os seres, em que todos os seres se realizam. Um Deus em quem somente se cruzam as vias paralelas de acesso seguidas pelos Indivíduos é mais aparentado com o 'Deus dos filósofos' do que com o 'Deus de Abrão, de Isaac e de Jacó'. Deus quer que a ele venhamos por meio das Reginas que criou e não por meio da nossa renúncia a elas (Buber, 1982, p. 93-94)

Portanto, a fé para Buber, se manifesta, sobretudo, nos encontros inter-humanos, no cotidiano da vida. Kierkegaard (2005), por outro lado, não chega a estabelecer uma correlação explícita entre fé e amor, no sentido do encontro com o outro, mas em seu livro As obras do amor, o pensador dinamarquês defende o amor cristão como o amor incondicional e desinteressado pelo próximo – amor Ágape – afirmando tratar-se do cumprimento da lei. No entanto, o autor confere extremo valor a Ágape em detrimento ao amor romântico (Eros) e da amizade (Philia).

A proposta buberiana, inspirada na tradição judaica, sobretudo no Hassidismo, é de que o encontro com o sagrado, com o Tu eterno, pode se dar por várias maneiras, inclusive em cada acontecimento do cotidiano, seja no encontro genuíno com outros seres vivos, com a Natureza, seja no encontro com outros seres humanos, com um Tu. Umas das características centrais de tais encontros é a dialogicidade e reciprocidade. Eles podem ocorrer mesmo que não haja troca de palavras, por meio do silêncio, onde um ser se abre genuinamente ao outro, no reconhecimento da alteridade do próximo.

Assim como o mais ardoroso falar de um para o outro não constitui uma conversação (...), assim, por sua vez, uma conversação não necessita de som algum, nem sequer de um gesto. A linguagem pode renunciar a toda mediação de sentidos e ainda assim é uma linguagem (...) Imaginem-se dois homens, sentados lado a lado, em algum lugar solitário do mundo. Eles não falam um com o outro, não olham um para o outro (...) Um deles está sentado no banco comum da maneira que, obviamente, lhe é habitual: sereno, disposto de uma forma receptiva para tudo que possa acontecer (...) O outro, sua atitude não o trai, é um homem reservado, controlado (...) que por trás de toda atitude está entrincheirada a impenetrável incapacidade de se comunicar. E agora – imaginemos que esta seja uma daquelas horas que conseguem romper as sete tiras de ferro que envolvem o nosso coração – o feitiço dissolve-se de repente. Mas mesmo agora, o homem não diz uma palavra, não move um dedo. E, entretanto, ele faz alguma coisa. A dissolução do feitiço aconteceu-lhe (...) libera dentro de si uma reserva sobre a qual somente ele tem o poder de ação.

Sem reservas, a comunicação jorra do seu interior e o silêncio a leva ao seu vizinho, para quem ela era destinada e que a recebe sem reservas, como recebe todo o destino autêntico que vem ao seu encontro (...) Pois onde a ausência de reserva reinou entre os homens, embora sem palavras, aconteceu a palavra dialógica de uma forma sacramental (Buber, 1982, p. 35-36).

É possível perceber por meio desta passagem como o filósofo austríaco aborda a questão do dialógico de uma maneira poética, com uma profundidade e sensibilidade ímpares. O que importa na relação dialógica, marcada pela reciprocidade entre os interlocutores e não por um monólogo entre duas pessoas, é o reconhecimento do outro em sua irrepetibilidade, em sua existência única e missão irrepetível. É o que caracteriza o encontro autêntico inter-humano. Cada ser humano precisa encontrar, por meio dos signos que a vida dirige a cada um de nós a todo instante, qual missão lhe foi destinada na criação. Há vários caminhos que uma pessoa pode seguir, mas apenas um corresponde à sua missão. Todos estes ensinamentos são oriundos do hassidismo, reapropriados de forma muito rica por Buber (Pfeffer e Daher, 2008). Outro aspecto importante da dialogicidade é a distinção que o filósofo faz entre coletividade e comunidade. Na coletividade, os indivíduos encontram-se na massificação, onde nenhuma individualidade, nenhuma singularidade pode ser reconhecida. Por outro lado, na comunidade há comunhão; os interesses comuns ao grupo não impedem que cada membro possa entrar em relação face-a-face um com o outro, reconhecendo a alteridade do próximo. Buber (1982) oferece-nos um exemplo deste encontro face-a-face, quando ele participava de um cortejo junto a outro amigo, no qual ninguém era reconhecido, em que todos faziam parte de uma massa anônima e, repentinamente, dirige seu olhar a uma outra pessoa no meio do caminho, que simultaneamente lhe retribui o olhar. Neste momento, por um breve segundo, há o reconhecimento mútuo da unicidade de ambos.

O pensador mostra ainda que mesmo em ambientes onde menos poderia se esperar, como em uma empresa, por exemplo, o encontro autêntico pode ocorrer.

Não há fábrica nem escritório tão abandonado pela criação que neles um olhar da criatura não se possa elevar de um lugar de trabalho ao outro, de uma escrivaninha à outra, um olhar sóbrio e fraternal, que garanta a realidade da criação que está acontecendo: quantum satis. E nada está tão a serviço do diálogo entre Deus e o homem como esta troca de olhares (Buber, 1982, p. 72).

O filósofo francês Gabriel Marcel elaborou uma filosofia existencialista de cunho cristão, bastante original, que em muitos aspectos dialoga com Buber e Levinas. Marcel (1991) realiza uma contundente crítica à abstração em filosofia, defendendo o que ele denomina por filosofia do concreto, trazendo ao longo de sua obra exemplos bastante concretos da aplicação de seus constructos. Outros aspectos importantes do pensamento do autor dizem respeito à encarnação e à intersubjetividade (Peretti, Azevedo e Fernandes, 2016). Encarnação no sentido da corporificação; antes mesmo de Merleau-Ponty, foi Marcel quem proferiu a frase eu sou meu corpo. Intersubjetividade, na visão do filósofo, diz respeito às relações inter-humanas propriamente ditas, à experiência da comunhão.

Marcel (1991) tece uma importante crítica à sociedade técnico-industrial do mundo ocidental bem como à racionalidade objetivista. Segundo o pensador, há um excesso de técnica e de funcionalização do mundo, que reduz o ser humano às suas funções – biológicas, sociais ou psicológicas – como se fosse uma máquina, ao mesmo tempo em que a razão busca o conhecimento do ser, objetificando-o. Cada vez mais, o valor de uma pessoa é dado pelo seu rendimento, ao que ela pode produzir (Marcel, 1991). Tais características do mundo contemporâneo dificultam significativamente que o ser possa estabelecer encontros autênticos, fraternos, verdadeiramente intersubjetivos. Em um de seus livros, L'homme problématique, Marcel (1955) mostra que o homem contemporâneo é um homem em agonia, angustiado. Com a morte de Deus decretada por Nietzsche, como uma expressão da atmosfera das sociedades modernas, a inquietude original do ser em busca da transcendência se transforma em desespero, angústia, e o homem contemporâneo agoniza na busca de respostas sobre quem ele é (Carvalho, 2016). A frase nietzscheana, talvez se tornasse mais apropriada à sociedade racionalista e tecnicista, se decretasse, ao contrário, a morte do encontro com o outro, do encontro com Deus.

Um dos exemplos concretos acerca da funcionalização do ser dado por Marcel (1991) é com relação à degradação da palavra serviço. Segundo ele, esta palavra, no seu uso ordinário, foi se degradando de tal maneira que passou a designar a função que um homem exerce, tal qual o serviço feito por uma máquina, ou mesmo designando um local de trabalho, uma repartição. Um trabalhador, por exemplo, presta o seu serviço de acordo com o contrato pré-estabelecido, nem mais nem menos; trabalha pelo tempo previamente combinado para receber o que lhe é de direito; o faz por obrigação. Isto contrasta com o sentido original do termo, que remete à ideia de servir ao outro, de dedicação e fidelidade. Desta maneira, Marcel (1991) aponta como as relações são despersonalizadas, num processo contínuo de desumanização do ser. Por outro lado, o autor defende a necessidade humana de realizar encontros, de estabelecer relações ser a ser, fraternas, que preencham a existência de sentido.

Cada um de nós deve multiplicar à sua volta as relações de ser a ser, e lutar tanto quanto puder contra a espécie de anonimato devorador, que prolifera em torno como um tecido canceroso. Mas estas relações de ser a ser são o que sempre se chamou fraternidade. A esta luz da fraternidade pode ainda hoje a noção de serviço desenvolver toda a sua riqueza concreta (Marcel, s/d, p. 185).

O autor critica a associação feita outrora na França entre igualdade e fraternidade. Ele afirma que igualdade representa uma espécie de afirmação e reivindicação do eu, no sentido de "sou teu igual, não valho menos que tu", ao passo que fraternidade diz respeito ao outro, ao próximo, "és meu irmão" (Marcel, s/d, p. 186). Tal qual Buber, Marcel enfatiza a experiência do encontro com a alteridade, na qual não basta simplesmente estar junto, no mesmo ambiente que outra pessoa, mas é preciso que haja entrega, reconhecimento e mútua abertura, de forma que se estabeleça uma comunhão fraterna entre duas presenças, uma relação intersubjetiva onde o "eu se encontra com o tu em uma doação e recepção mútua" (Oliveira, 2011, p. 56).

O terceiro autor desta seção é Viktor Frankl, psiquiatra austríaco, que passou por quatro campos de concentração nazistas, incluindo Auschwitz. Frankl foi o criador da logoterapia, a terapia da busca do sentido para a vida. Segundo o autor, apenas uma pequena parte do sentido para a vida diz respeito à dimensão racional, reflexiva, sendo a maior parte relacionada à dimensão pré-reflexiva da consciência, portanto, tácita. Além disto, o sentido para a vida deve ser encontrado em cada circunstância do cotidiano, nas situações concretas da vida. De acordo com Frankl (2016), não somos nós que perguntamos pelo sentido da vida, mas é a própria vida que nos faz esta pergunta a cada momento, em sua concretude.

Frankl (2003) aborda ainda na logoterapia a questão do sofrimento, o pathos inerente à existência humana. O autor, a partir de suas próprias vivências nos campos de concentração, afirma que em todo sofrimento, por mais intenso que seja, é possível encontrar algum sentido; ainda que não seja possível à priori, mas ao menos em um momento posterior.

De acordo com Aquino e Cruz (2020), no texto em que mostram a inspiração frankleana no hassidismo, tal como Martin Buber, o povo judeu é um exemplo disto, pois ao longo de sua história marcada pela perseguição, invariavelmente disse sim à vida diante de todo sofrimento vivenciado.

A relação entre sentido para a vida e encontros inter-humanos aparece no pensamento do psiquiatra austríaco a partir da noção de autotranscendência. Frankl (2016) aponta que o homem irreligioso tem sua própria consciência como limite, mas o homo religiosus se define pela transcendência da consciência, a qual vai além de si mesma. A autotranscendência se dá, sobretudo, por meio do amor, seja o amor a uma causa maior que a própria pessoa, seja o amor por outro indivíduo, na rendição pessoal a outro ser. Frankl (1985) mostra que um dos fatores que mais lhe ajudou a sobreviver nos campos de concentração foi a lembrança das pessoas que amava, de sua esposa à época e seus pais. A autotranscendência leva à autorrealização e se relaciona ao sentido para a vida que mais se aproxima do suprassentido (Frankl, 2016).

O autor que finaliza esta seção é Emmanuel Levinas, filósofo nascido na Lituânia e se naturalizado francês, tendo tido contato com Husserl e Heidegger. Levinas foi preso durante a Segunda Guerra Mundial em um campo de trabalho forçado como militar francês e teve sua família assassinada nos campos de concentração (Ferreira, 2017). Levinas se apropria de muitos pensamentos da tradição judaica, sobretudo do Talmude, estabelecendo uma inter- relação com o pensamento filosófico, em especial com a fenomenologia husserliana e o existencialismo heideggeriano. Com relação a este último, o filósofo franco-lituano realiza uma contundente crítica, sendo esta mais especificamente direcionada à Ontologia e às suas consequências.

A ética da alteridade radical perpassa toda a obra levinasiana. Trata-se de uma ética fundamentada na responsabilidade originária por outrem. A ênfase do filósofo recai justamente sobre a alteridade e não sobre o eu; é aí que se encontra a grande diferença para a Ontologia. Segundo Levinas (1997), a ética é a filosofia primeira e precede a Ontologia; sua crítica a esta recai sobre a tendência universalizante e totalizante do pensamento ontológico acerca do conhecimento sobre o ser. Neste sentido, a alteridade de outrem é reduzida e submetida ao Mesmo, o que anula sua diferença radical. É justamente neste ponto que Levinas (1997) identifica uma relação intrínseca entre a totalização do outro e sua identificação e redução ao eu – em decorrência da Ontologia – e o totalitarismo, justificando-se desta maneira toda forma de violência contra a alteridade, tal qual a que ocorreu no regime nazista. Sobre estas formas de violência, de subjugação do outro ao ponto de fazê-lo acreditar que é algo menos que humano, Gabriel Marcel (1991) descreve as técnicas de aviltamento também utilizadas na Segunda Guerra.

Na ética da alteridade radical, o eu é convocado pelo Rosto nu e indigente do outro a se responsabilizar por ele; o Rosto do outro traz ao mesmo tempo o mandamento ético do Não matarás. Este chamamento poderá ser aceito ou não. Levinas (1997), diferentemente de Buber, defende que os encontros inter-humanos, via de regra, são marcados pela assimetria, onde um se encontra em situação de maior vulnerabilidade que o outro. O autor postula ainda que no encontro face-a-face, há a dimensão do amor e da transcendência, no qual o eu se desloca de si em direção ao outro, mantendo, entretanto, a separação radical entre ambos. Neste encontro autenticamente inter-humano, que não totaliza o outro, há o reconhecimento da alteridade em sua diferença radical, da unicidade, incomparabilidade, irredutibilidade bem como do caráter inapreensível e inassimilável de outrem em sua totalidade; o reconhecimento do mistério e do Rosto de outrem como vestígio do Infinito (Levinas, 1997).

Sobre a questão da angústia, embora não seja um tema central na obra do filósofo, a ênfase também recai sobre a alteridade. A inquietação, segundo Levinas (1997), pela morte de outrem é anterior à preocupação consigo mesmo, precedendo a angústia com relação à própria morte. O autor aborda ainda a ideia do morrer por, no sentido de uma ética do sacrifício, que não seria compreensível a partir da ontologia heideggeriana, na qual a ênfase recai sobre o ser e a angústia do existente é com relação à própria morte, no ser-para-a-morte. Levinas trata também da dimensão do amor como mais forte que a morte, transcendendo-a.

Com efeito, apesar da separação que a morte comumente significa, e apesar dos textos de Sein und Zeit, citados acima, em que a morte, 'poder ser o mais próprio', 'o mais autêntico', é também aquele em que 'todas as relações a outros Dasein – a outros ser-aí – a outros homens, são dissolvidos'. Um versículo bíblico vinha-me ao espírito: 2Samuel 1, 23, versículo do canto fúnebre do profeta, chorando a morte no combate do Rei Saul e de seu filho Jonatas: 'Caros e amáveis durante a sua vida, eles não foram separados pela morte, mais leves que as águias, mais fortes que os leões'. Como se, contrariamente à análise de Heidegger, na morte não se dissolvesse toda relação a outrem. Não penso que este versículo faça alusão a uma 'outra vida' que, após a morte, possa unir aqueles que não estão mais aí. Mas não penso, igualmente, que estas palavras sobre a 'não separação na morte' apareçam no texto apenas como forma metafórica de falar, para exaltar o amor entre pai e filho, amor que seria dito 'mais forte que a morte' (...) 'Mais leves que as águias e mais fortes que os leões' – superação do humano no esforço animal da vida, puramente vida – do conatus essendi da vida – e abertura do humano através do vivente: (...); do humano que, no ser-aí, em que 'importava sempre ser', seria despertado à guisa de responsabilidade pelo outro homem (...); do humano em que a inquietude pela morte de outrem precede a preocupação por si mesmo. Humano do morrer pelo outro que seria o próprio sentido do amor na sua responsabilidade pelo próximo (...) Apelo da santidade precedendo a preocupação por existir, a preocupação de ser-aí e de ser-no-mundo; utopia e des-inter-essamento mais profundo que o ser-com-os- outros ou para-os-outros da Für-Sorge implicada no ser-no-mundo, em que o ser do outro equivale à sua profissão, e só se entende a partir dos 'negócios' e do interessamento (Levinas, 1997, p. 260-261).

Implicações para uma clínica existencialista

Como pode se perceber, as implicações para a clínica das discussões abordadas ao longo do texto são muitas, sendo preciso, portanto, uma delimitação em torno daquelas consideradas mais importantes. Faz-se necessário, de antemão, mencionar que, embora se trate de um existencialismo teísta, a aplicação da clínica proposta se dá a todas as pessoas, independentemente se crentes ou ateus.

O percurso inicial das implicações a serem extraídas é a angústia, o desamparo, o pathos constitutivo do humano – característica central da clínica em saúde mental, seja psicológica, seja psiquiátrica – e o quê afinal possibilita o lidar com o desamparo ou, nos termos kierkegaardianos, a reconciliação com a angústia? A partir da concepção kierkegaardiana, pode-se responder que é o amor. Amor como compreendido no presente trabalho, a partir de Buber, Marcel, Frankl e Levinas, que se dá na abertura ao outro, na doação desinteressada, na comunhão e no encontro com o próximo, que confere sentido à existência. É justamente por isto que as implicações clínicas se estendem a todas as pessoas, independentemente de serem ateus ou crentes.

Um aspecto bastante importante é que o amor precisa ser considerado em todas as suas qualidades ou dimensões – Eros, Philia e Ágape. A dimensão Eros do amor não deve ser negligenciada, o que pode ocorrer algumas vezes numa abordagem existencialista, sobretudo, no seu âmbito teórico. Em função disto, foi necessário recorrer a alguns autores da filosofia que trataram desta temática e à psicanálise, campo que, sem dúvida nenhuma, ofereceu uma grande contribuição ao estudo do erótico e da sexualidade em geral. No entanto, foi igualmente necessário tecer uma releitura existencialista dos conceitos psicanalíticos abordados, de tal modo a situar a dimensão Eros do amor e a própria sexualidade em uma perspectiva mais abrangente do ponto de vista da existência humana.

Sabe-se que, muito frequentemente na psicopatologia e, consequentemente, na clínica, Eros se encontra dissociado das outras dimensões; seja no caso de um aplacamento, como nas inibições em geral, o que pode ser visto em quadros depressivos ou ansiosos, seja no caso de uma hipertrofia, de um predomínio desta sobre as demais dimensões. Eros dissociado de Philia e de Ágape, aparecendo com toda sua força desenfreada, como por exemplo, na compulsão à repetição, relacionada à pulsão de morte (Oliveira, 2015), ou nos casos de uma busca compulsiva por sexo sem envolvimento emocional, o que acaba resultando em sensações de vazio e falta de sentido na vida (May, 1987). Desta forma, para que a pessoa possa, de fato, lidar com o desamparo, reconciliar-se com a angústia, é preciso que Eros - enquanto não apenas uma força libidinal, mas também uma força volitiva e motivacional – Philia – enquanto relações de amizade, que se dão por afinidade e que inclui a Storgé ou amor familiar (Marcondes, 2008) – e Ágape – enquanto o amor altruísta, desinteressado pelo desconhecido, pelo próximo como o primeiro que aparece à minha frente – estejam agregados, interconectados. Isto é fundamental para que o existente se abra ao humano e estabeleça encontros autênticos com o outro, no sentido de uma abertura mútua e do reconhecimento da alteridade em sua unicidade, incomparabilidade e irredutibilidade. É importante ressaltar que se pretende extrair enquanto implicações da discussão teórica realizada não apenas a ideia de que é fundamental que o profissional/terapeuta se aproprie destes constructos em sua técnica, mas sobretudo, que o paciente possa seguir este percurso em seu processo terapêutico, em que a abertura ao mundo, à alteridade, e o estabelecimento de relações genuínas Eu-Tu (na abertura ao humano, que preenche a existência de sentido), representem um dos principais objetivos do processo psicoterapêutico. Isto pode ter uma importante implicação na clínica contemporânea para quadros, por exemplo, que cursam com um esvaziamento do sentido para a vida, como nas autolesões não suicida e/ou comportamento suicida, cada vez mais frequentes, sobretudo, entre os mais jovens.

É fundamental, para se evitar confusões, fazer uma distinção entre o fazer tudo pelo outro, frequentemente visto na psicopatologia e na clínica, e a doação desinteressada ao próximo, no caso dos encontros autênticos. No primeiro caso, o indivíduo faz tudo pelo outro, no sentido de agradá-lo quase por uma obrigação, mas com o intuito, frequentemente relatado na clínica, de obter o reconhecimento da outra pessoa; ou seja, agrada ao outro com um interesse próprio, de satisfazer necessidades narcísicas de ser reconhecido. No segundo caso, ao contrário, há uma doação desinteressada pelo próximo, ou seja, trata-se de um transcender a si mesmo em direção à alteridade, mas sem exigir nem esperar nada em troca, por isto, o desinteressamento. Não se deve pensar que esta doação ao outro seja possível apenas quando a pessoa já se encontra bem, sem nenhum quadro psicopatológico evidente; ela pode e deve acontecer ao longo do trabalho terapêutico, sendo estimulada pelo terapeuta e contribuindo, inclusive, para a própria melhora clínica do paciente, iniciando-se com a abertura à alteridade, com a transcendência em direção ao outro.

Além disto, a clínica existencialista proposta neste artigo se aplica tanto a adultos quanto a crianças, independentemente da técnica utilizada. Trata-se de pressupostos que podem orientar, por exemplo, não apenas uma técnica psicoterápica mais tradicional, baseada na fala e nas expressões não verbais do clínico e do paciente, mas também outras tantas formas de se fazer clínica, como a musicoterapia, as oficinas terapêuticas expressivas frequentemente utilizadas no trabalho clínico da rede pública de saúde mental brasileira (Pádua e Morais, 2010), as arteterapias em geral ou as atividades físicas adaptadas, que cada vez mais vêm sendo utilizadas na abordagem de crianças consideradas com algum tipo de deficiência. No autismo, por exemplo, o que se busca é a abertura da criança ao mundo, ao outro, como via para o estabelecimento de trocas genuínas e encontros autenticamente inter-humanos, quando o momento presente se torna o momento eterno, expressão máxima do Carpe Diem.

O presente estudo oferece, desta maneira, uma importante contribuição à clínica de uma maneira geral e, mais especificamente, à clínica existencialista, no sentido de oferecer ferramentas teóricas que fundamentem o fazer clínico. Além disto, contribui para a construção de novas possibilidades dentro da própria abordagem fenomenológico-existencial, uma vez que se baseia em pensadores que enfocam não apenas as noções comumente abordadas nesta clínica, mas também as noções de amor – enquanto encontros autênticos, doação, responsabilidade, comunhão – e transcendência, resultando em uma abordagem existencialista teísta que, no entanto, se aplica indistintamente a todos os seres humanos que sofrem.

 

4. Considerações Finais

Buscou-se com o presente artigo discutir aspectos fundamentais da existência humana, inter-relacionados, como a angústia, a dimensão Eros do amor, os encontros inter-humanos e o sentido para a existência, extraindo implicações desta discussão para a fundamentação de uma clínica existencialista.

O existencialismo proposto foi delimitado em pensadores da transcendência, mais especificamente em Kierkegaard, Buber, Marcel, Frankl e Levinas, sendo por isto definido como existencialismo teísta ou judaico-cristão, uma vez que estes autores estabeleceram em suas obras alguma interface ou com o Judaísmo ou com o Cristianismo. Entretanto, as aplicações clínicas desta abordagem se estendem tanto a crentes quanto a ateus, uma vez que a ideia de reconciliação com a angústia, tomada a partir da discussão realizada, se dá por meio do amor – que contém Eros – no sentido da responsabilidade pela alteridade e da construção de encontros autênticos, nos quais há o reconhecimento de um Tu, do outro em sua unicidade e incomparabilidade.

Trata-se, na verdade, de pressupostos existencialistas a serviço da clínica, independentemente da técnica que venha a ser utilizada; de uma clínica não pautada pela performance, pela mecanização – que reduz o humano à máquina, ou seja, que desumaniza - ou pela homogeneização, na qual se busca comparar aquele/a que é incomparável, mas uma clínica que possibilita o lidar com o pathos constitutivo da existência humana por meio do encontro genuíno inter-humano, que preenche a existência de sentido, ou nos termos kierkegaardianos, possibilita o elevar-se pelo espírito.

 

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Endereço para correspondência
Stephan Malta Oliveira
E-mail: stephanmoliveira@gmail.com

Recebido: 30/04/2021
Revisado: 07/07/2021
Aceito: 01/07/2021
Publicado: 08/10/2021

 

 

1 Stephan Malta Oliveira : ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9806-9844

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