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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.3 Belém set./dez. 2021

 

ENSAIO

 

Aspectos psicológicos da acalásia à luz da gestalt-terapia

 

Psychological aspects of achalasia in the light of gestalt therapy

 

Aspectos psicológicos de la acalasia a la luz de la terapia gestalt

 

 

Juliana Testoni dos Santos Rengel1

Faculdade IELUSC, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A acalásia idiopática do esôfago é uma disfunção rara, caracterizada por uma contração muscular persistente do esfíncter esofágico inferior e uma perda ou diminuição dos movimentos peristálticos ao longo do corpo do esôfago. Estudos atuais têm sugerido que este tipo de acalásia teria uma etiologia autoimune, relacionada a fatores genéticos e emocionais. Neste ensaio teórico, o objetivo é oferecer uma compreensão sobre os aspectos psicológicos da acalásia à luz do referencial teórico da Gestalt-terapia. Os resultados construídos confirmaram a possibilidade de compreender a acalásia como um processo autoimune que, no âmbito psicológico, mostra-se relacionado a processos de contenção ou direcionamento para si mesmo da energia agressiva que originalmente se destinaria ao meio. À guisa de conclusão, propõem-se formas de manejo clínico entendidas como adequadas no atendimento a pessoas com acalásia e se deixa um convite para considerar a possibilidade de assumir a acalásia idiopática do esôfago como uma expressão psicossomática.

Palavras-chave: Acalasia esofágica; Terapia gestalt; Medicina psicossomática.


ABSTRACT

Idiopathic esophageal achalasia is a rare dysfunction characterized by persistent muscle contraction of the lower esophageal sphincter and a loss or decrease in peristaltic movement along the body of the esophagus. Current studies have suggested that this type of achalasia has an autoimmune etiology, related to genetic and emotional factors. In this study, the aim is to provide an understanding of the psychological aspects of achalasia in the light of the theoretical framework of Gestalt-therapy. The constructed results confirmed the possibility of understanding achalasia as an autoimmune process that, in the psychological sphere, is related to processes of containing or directing towards oneself the aggressive energy that was originally intended for the environment. In conclusion, forms of clinical management understood as adequate in the care of people with achalasia are proposed, and an invitation is left to consider the possibility of assuming idiopathic esophageal achalasia as a psychosomatic expression.

Keywords: Esophageal achalasia; Gestalt therapy; Psychosomatic medicine.


RESUMEN

La acalasia esofágica idiopática es una disfunción rara caracterizada por la contracción muscular persistente del esfínter esofágico inferior y una pérdida o disminución del movimiento peristáltico a lo largo del cuerpo del esófago. Los estudios actuales han sugerido que este tipo de acalasia tiene una etiología autoinmune, relacionada con factores genéticos y emocionales. En este estudio, el objetivo es proporcionar una comprensión de los aspectos psicológicos de la acalasia a la luz de la terapia Gestalt. Los resultados construidos confirmaron la posibilidad de entender la acalasia como un proceso autoinmune que, en el ámbito psicológico, se relaciona con procesos de contención o de dirigir hacia uno mismo la energía agresiva que originalmente estaba destinada al medio ambiente. En conclusión, se proponen formas de manejo clínico entendidas como adecuadas en la atención de personas con acalasia y se deja una invitación a considerar la posibilidad de asumirla como expresión psicosomática.

Palabras clave: Acalasia del esófago; Terapia gestalt; Medicina psicosomática.


 

 

1. Introdução

Acalásia é uma expressão oriunda do grego, resultante da combinação entre a (privado de), khálasis (relaxamento) e ia (qualidade), significando uma privação ou prejuízo na qualidade do relaxamento. Na linguagem médica, o termo refere-se a um distúrbio motor no qual o relaxamento dos músculos dos esfíncteres não ocorre, ou ocorre de forma incompleta.

Frequentemente, o termo acalásia é utilizado para designar um distúrbio motor do esôfago, também conhecido como acalásia esofágica. Esta é clinicamente caracterizada por um relaxamento incompleto do esfíncter esofágico inferior, bem como pela diminuição ou perda de movimentos peristálticos ao longo do corpo do esôfago. É comumente classificada em dois tipos: como secundária à doença de Chagas; e como primária ou idiopática, isto é, sem causa conhecida (Rezende, 2011; Furuzawa-Carballeda et al., 2016).

Dentre os distúrbios digestivos, a acalásia está longe de ser tão conhecida no senso comum como a úlcera, o refluxo ou a gastrite. Com sutileza poética, Casimiro de Abreu (1858) escreveu acerca da existência de dores, agonias e dramas tão fundos e pungentes, que nem sequer há suspeita de que existam - como parece ser o caso da acalásia. Em parte, é possível que o desconhecimento sobre a patologia se deva à raridade da condição, que afeta, em um espectro mundial, 10 a cada 100.000 pessoas (Sadowski et al., 2010; Enestvedt, Williams & Sonnenberg, 2011).

O desconhecimento das causas da acalásia idiopática é, por si só, um relevante motivo que justifica a necessidade de pesquisas que intentem perscrutá-las, uma vez que, não se conhecendo as causas ou o que parece favorecer o surgimento de uma patologia, a conduta terapêutica tende a se restringir à diminuição ou supressão dos sintomas.

No tratamento da acalásia, é comum que se adote uma abordagem cirúrgica, performando-se tradicionalmente a miotomia de Heller, um procedimento no qual se realiza, por videolaparoscopia, uma ruptura das fibras musculares do esfíncter esofágico inferior, seguida geralmente de uma fundoplicatura gastroesofágica, uma técnica operatória amplamente utilizada em casos de refluxo, justamente a fim de reduzir a possibilidade deste sintoma após a realização da miotomia.

Salienta-se que a terapêutica cirúrgica, especificamente a miotomia de Heller com fundoplicatura gastroesofágica, não se orienta para a cura da acalásia, mas para o tratamento de sintomas como entalo, regurgitação, tosse noturna e dor no peito, típicos da condição. Tem-se como muito efetiva a avaliação desta cirurgia nos casos de acalásia, com taxas de sucesso que variam de 95% após 5 anos a 75% após 15 anos de acompanhamento (Furuzawa- Carballeda et al., 2011).

O cenário para a acalásia idiopática parece apontar, portanto, para uma condição que possui possibilidade de tratamento e que demanda estudos e pesquisas que busquem desvendar os fatores envolvidos em sua manifestação, desenvolvimento e tratamento. Um estudo brasileiro publicado em 2010, que teve por objetivo caracterizar a acalásia idiopática do esôfago e elaborar hipóteses quanto à sua etiologia, concluiu após estudar prontuários de 78 pacientes operados no Hospital das Clínicas da UNICAMP entre 1989 e 2008 e entrevistar 33 deles, que a acalásia idiopática do esôfago tem origem provavelmente autoimune e está associada a fatores emocionais (Oliveira, Lopes & Coelho-Neto, 2010).

Outras pesquisas também têm sugerido que a origem da acalásia seria autoimune. Em julho de 2014, uma equipe de pesquisadores da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, da Universidade de Bonn, na Alemanha, e de outras instituições europeias confirmaram, pela primeira vez, na revista Nature Genetics, uma origem autoimune da acalásia, enfatizando o papel de fatores genéticos, em especial de variações na região HLA-DQ, na susceptibilidade à acalásia idiopática do esôfago (Gockel et al., 2014).

Ainda que os mistérios que rondam a origem da acalásia tenham sido parcialmente respondidos com a proposta de uma etiologia autoimune, há quem compreenda que a designação autoimune seria quase sinônimo de causa desconhecida, uma vez que a etiologia permanece obscura para a maioria das doenças autoimunes (Harvard Health Publishing, 2018).

Cada vez mais, no entanto, a compreensão do adoecimento autoimune apresenta o papel do estresse físico e psicológico como sendo central em sua origem, desenvolvimento e prognóstico - o que nos convida a compreender a especificidade do papel que os fatores psicológicos desempenham no início e curso de uma patologia como a acalásia.

Neste estudo, o objetivo é desenvolver uma compreensão teórica sobre os aspectos psicológicos da acalásia idiopática do esôfago à luz do referencial teórico da Gestalt-terapia.

 

2. Aspectos teórico-metodológicos

A escolha pelo referencial teórico da Gestalt-terapia para compreender os aspectos psicológicos da acalásia se dá pelo fato de ser uma abordagem que investiga um fenômeno compreendendo-o como produto da interação entre a pessoa e o seu meio, denominando este interagir como campo organismo-ambiente (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). Sob esta perspectiva, a acalásia não poderia ser compreendida como uma patologia do esôfago, mas uma patologia do campo. Ainda que localizada no esôfago, não se restringe a ele, uma vez que é produzida na relação entre ser e mundo.

Foi também a Gestalt-terapia que, em seus estudos iniciais, utilizou justamente "[...] a metáfora da digestão para descrever o funcionamento do homem no mundo” (Alvim, 2006, p. 126) e, por isso, pode se configurar como um arcabouço teórico especialmente interessante para se estudar distúrbios de ordem digestiva, visto que já nos primórdios da teoria, equiparou-se o processo biológico da alimentação aos processos mentais, que chegaram a ser referidos como metabolismo mental.

A Gestalt-terapia também oferece uma possibilidade de compreensão e manejo clínico em situações de sofrimento e vulnerabilidade relacionadas a processos saúde-doença, que Adriana Schnake (1995) denominou como Enfoque Holístico da Saúde e da Enfermidade. Neste, busca-se criar condições para que a pessoa dialogue com o órgão que manifesta o sintoma, partindo do princípio que este órgão apresenta, em sua própria anatomia e fisiologia funcionais, pistas dos aspectos que a pessoa pode estar a negar, rejeitar, excluir em si mesma. Tomar esses aspectos negados, rejeitados, excluídos, assumindo-os também como partes de si, em um processo de inclusão e reconciliação interior, seria um caminho de integração e crescimento psicológico.

Se uma patologia não é propriamente de um órgão, mas produzida no campo, poderia se afirmar que doenças são processos vivos que se dão no contato entre a pessoa e o meio. É nesta relação viva que se dá na fronteira entre organismo e ambiente, que os processos saúde-doença podem acontecer. Por isso, estudar o contato, isto é, a forma como uma pessoa está se relacionando consigo mesma e com o seu entorno, vão tracejando uma compreensão acerca de seus possíveis ajustamentos em cada momento de sua existência.

Estudar o contato é, também, observar as situações em que ele se encontra rigidamente interrompido. Nem sempre os ajustamentos criativos de uma pessoa são plenamente funcionais; podem ser criativos, por um lado, e trazer sofrimento ou dificultar a fluidez no viver, a abertura ao novo e ao crescimento, por outro. Quadros clínicos disfuncionais como as doenças autoimunes (lembrando que a autoimunidade é, atualmente, a principal hipótese para a etiologia da acalásia) têm sido estudados em Gestalt-terapia e, recentemente, Fukumitsu (2017) referiu acerca do adoecimento autoimune, da automutilação e do suicídio como processos autodestrutivos, nos quais há um aspecto comum: formas disfuncionais de contato com a energia agressiva. Todos estes mecanismos seriam facetas da autodestruição.

Há, assim, pelo menos três razões pelas quais a Gestalt-terapia demonstra ser uma teoria profícua para a compreensão dos aspectos psicológicos da acalásia: (1) por se constituir como uma abordagem holística, que não isola o fator psicológico dos demais fatores envolvidos na multideterminação de um fenômeno como a acalásia; (2) por utilizar a digestão como metáfora do funcionamento psicológico humano, apresenta pistas de como fazer o exercício de observar dinâmicas psíquicas no funcionamento digestivo; (3) por contar com estudos que fornecem compreensões teóricas e possibilidades terapêuticas em processos de adoecimento (Schnake, 1995) e autoimunidade (Fukumitsu, 2017).

O levantamento bibliográfico para este ensaio teórico iniciou-se com a organização de um Grupo de Estudos de Psicologia Clínica (Gestalt-Terapia) – GEPSIC-GT em uma instituição de ensino superior no sul do Brasil, formado por quatro participantes: uma professora, também coordenadora do Projeto APA – Aspectos Psicológicos da Acalásia; duas estudantes do curso de Psicologia; e uma estudante do curso de Fonoaudiologia.

Durante quatro meses, este grupo reuniu-se semanalmente para realizar leituras, fichamentos e debates acerca de literaturas gestálticas selecionadas e consideradas relevantes para a elaboração de uma compreensão psicológica da acalásia. Essa relevância foi definida com base na hipótese, já levantada por Fukumitsu (2017), de que processos de adoecimento autoimune, aos quais a acalásia tem sido associada, poderiam estar relacionados a uma forma disfuncional de se relacionar com a energia agressiva.

A literatura gestáltica selecionada foi, assim, composta das seguintes obras: (1) o livro Ego, fome e agressão (Perls, 1947); (2) o capítulo O antissocial e a agressão, do livro Gestalt-terapia (Perls, Hefferline & Goodman, 1997); (3) o capítulo Facetas da autodestruição: suicídio, adoecimento autoimune e automutilação, do livro Quadros clínicos disfuncionais e gestalt-terapia (Fukumitsu, 2017); (4) o artigo Uma leitura da noção de "agressão” nas obras de Fritz Perls (Araújo & Holanda, 2017); (5) o artigo Origens do conceito de agressão na gestalt-terapia: Freud, Reich e outras fontes (Araújo & Holanda, 2018); (6) e, por fim, o livro Los diálogos del cuerpo: un enfoque holístico de la enfermidad (Schnake, 2005).

A análise dos dados obtidos nos fichamentos de leitura e nos debates do grupo de estudos, seguiu os passos indicados por Gomes (1998) que, em síntese, organiza o percurso analítico em três etapas: (1) Descrição: transcrição dos dados exatamente como foram obtidos; (2) Redução: elaboração de perguntas a partir dos dados obtidos, de modo a organizar este material em unidades de significado; (3) Compreensão: redação de um texto final, descrevendo os dados obtidos em uma linguagem derivada de uma compreensão psicológica.

Partindo dessas premissas, a seguir será traçada uma compreensão da acalásia como processo autoimune, à luz de referenciais teóricos da Gestalt-terapia.

 

3. Acalásia, autoimunidade e gestalt-terapia: a agressão no centro da cena

A acalásia idiopática do esôfago, como já dito, apresenta duas características principais em sua sintomatologia: (1) o esfíncter esofágico inferior - segmento muscular localizado no hiato diafragmático que conecta o esôfago ao estômago - que, normalmente, contrai e relaxa em resposta à deglutição, não relaxa ou relaxa insuficientemente, gerando como consequência uma disfagia (dificuldade para engolir); (2) baixo ou nenhum movimento peristáltico ao longo do corpo do esôfago. Ainda que se diga idiopática (sem causa conhecida), especula-se que as causas deste tipo de acalásia poderiam ser relacionadas a:

[...] lesão por agente tóxico por exposição prolongada a agentes químicos potentes - os mais referidos são os herbicidas; doença autoimune, como as colagenoses; infecções virais prévias em especial as da infância, como varicela, caxumba, sarampo e herpes vírus tipo I; histórico familiar com esta afecção; fator emocional com uso contínuo de medicamentos principalmente psiquiátricos; uso prolongado de tabaco e etilismo. (Aquino et al., 2015, p. 99).

Atualmente, entende-se não ser possível afirmar que há padrões distintos de incidência da acalásia esofágica em termos de idade e gênero, uma vez que pode afetar ambos os sexos, todas as raças e todas as idades. Alguns estudos, no entanto, têm sugerido picos de incidência da acalásia entre 30 e 60 anos (O’Neill, Johnston & Coleman, 2013).

Há alguns casos de acalásia esofágica que aconteceram em mulheres grávidas. Se a acalásia, por si só, já é uma patologia considerada rara, durante a gestação, relata-se que menos de 40 casos foram reportados na literatura e que não há diretrizes específicas para a conduta terapêutica na acalásia durante a gravidez (Vosko et al., 2021).

Na gestação, a sintomatologia da acalásia pode ser agravada em função de mudanças fisiológicas no esfíncter esofágico inferior, e também pelo fato de ser facilmente confundida com refluxo ou hiperêmese gravídica. O atraso no diagnóstico pode ser considerável e possíveis deficiências nutricionais maternas podem levar a consequências perinatais adversas, como restrição no crescimento fetal, nascimento prematuro, morte fetal e até mesmo morte materna (Spliopoulos, Spliopoulos & Awala, 2013).

Um diagnóstico equivocado pode, por exemplo, culminar em condutas médicas questionáveis, como a prescrição de xarope antitussígeno para o sintoma de tosse noturna, quando essa tosse, relativa à acalásia, seria um processo de autorregulação organísmica a fim de impedir uma obstrução pulmonar. Devido à alta quantidade de alimentos retidos no esôfago, algum conteúdo pode alcançar os pulmões, e por isso, através da tosse, há uma chance de impedir que alguma broncoaspiração. Salienta-se também que um diagnóstico inadequado pode também fazer com que se prescreva à gestante remédios para refluxo e enjoo, inclusive na forma de comprimidos, sendo que há justamente uma dificuldade de engolir.

Sejam mulheres grávidas, adultos de 30 a 60 anos independente do sexo, crianças, adolescentes ou idosos – o início da acalásia, para quem a vivencia, pode começar de um até cinco anos antes dos sintomas clínicos (Spiliopoulos, Spiliopoulos & Awala, 2013). Evidências recentes sugerem que um dano inicial ao esôfago, talvez uma infecção viral ou outro fator ambiental, resultaria na inflamação do plexo mioentérico, um complexo muscular presente no esfíncter esofágico inferior. Essa inflamação conduziria, então, a uma resposta autoimune na população suscetível, que pode ser geneticamente predisposta. De modo subsequente, a inflamação crônica levaria à destruição das células ganglionares inibitórias no plexo mioentérico, resultando na patologia clínica da acalásia idiopática (Park & Veazi, 2005).

Outros estudos, além do supracitado, sugerem uma etiologia autoimune para a acalásia esofágica, sendo que alguns deles a apontam como principal hipótese. Este é um passo importante na compreensão da sua etiologia, dado que até então especulava-se que sua causa era desconhecida. Mas ainda que se dê este passo, basta nos aprofundarmos na compreensão do adoecimento autoimune para entender que os aspectos que levam o sistema imunológico a confundir células saudáveis do organismo com agentes invasores, atacando-as repetidamente, são multifatoriais. Sabe-se que parece haver fatores genéticos, ambientais, hormonais e imunológicos envolvidos, porém, o que de fato promove o aparecimento das doenças autoimunes ainda é um enigma (Stojanovich, 2010).

A teoria mais comum é a de que uma pessoa com susceptibilidade genética a falhas no sistema imunológico encontraria, no ambiente, um gatilho (como uma infecção ou exposição a uma toxina) que desencadearia uma doença autoimune. No entanto, ainda não há clareza acerca destes gatilhos em determinadas populações, e o motivo pelo qual algumas pessoas desenvolvem tal condição e outras não (Harvard Health Publishing, 2018).

Dentre os possíveis gatilhos para as doenças autoimunes, alguns pesquisadores têm se dedicado a investigar sobre o papel do estresse físico e psicológico. Diferentes estudos, em animais e humanos, têm demonstrado o efeito de estressores na função imunológica. Dentre tais estudos, há pesquisas retrospectivas que descobriram uma proporção de até 80% de pacientes que relataram um estresse emocional incomum antes do início de uma doença autoimune. Outras revisões recentes têm apresentado hipóteses acerca do papel do estresse psicológico e dos principais hormônios relacionados ao estresse na patogênese da doença autoimune, presumindo que hormônios neuroendócrinos desencadeados pelo estresse levariam à desregulação imunológica, resultando em uma doença autoimune (Stojanovich, 2010).

Sobre os estudos anteriormente citados, cabe a advertência de que ainda estão em fase especulativa, e que ensaios clínicos randomizados e pesquisas baseadas em evidências são necessárias para adensar a compreensão da relação entre estresse e doenças autoimunes. O que se pode dizer, por hora, é que no tocante às doenças autoimunes, uma abordagem multidisciplinar se torna essencial, desde o diagnóstico até os cuidados e intervenções (Stojanovich, 2010; Shmerling, 2018).

Em estudo que analisou a história clínica e os antecedentes na etiologia e no perfil de pacientes com acalásia idiopática do esôfago, constatou-se:

1) presença de um fator emocional desencadeante dos sintomas (cerca de 80%) e mais de 30% com tratamento psiquiátrico/psicológico declarados; 2) infecções típicas da infância muito prevalente (88% sarampo, varicela, rubéola ou outras); 3) possíveis associações a: exposição a químicos, em especial herbicidas; outras doenças do trato gastrintestinal; doenças autoimunes; pré-disposição genética; outras alterações no sistema nervoso destacadamente as convulsões. (Oliveira, Lopes & Coelho-Neto, 2010, p. 11)

Ainda neste mesmo estudo, o achado da alta taxa de uso de medicações psiquiátricas chamou a atenção dos pesquisadores para um aspecto ainda não apreciado em outros estudos: o fator emocional relacionado à acalásia. Nas entrevistas realizadas, 79% dos pacientes entrevistados reconheceu a existência de problemas emocionais significativos antes no início dos sintomas da acalásia, sendo que 48% reportou diversos problemas familiares. Cerca de 33% também declarou ter passado por acompanhamento psiquiátrico ou psicológico, um dado que, para os autores, determina a seriedade das questões emocionais pelas quais os pacientes estavam passando e ainda pode ser um número aquém do estimado, tendo em vista que algumas pessoas podem não se sentir confortáveis para relatar a respeito desta questão em uma entrevista (Oliveira, Lopes & Coelho-Neto, 2010).

Os autores do estudo também consideraram surpreendente o fato de o acompanhante do paciente entrevistado, por mais de uma vez, ter demonstrado interesse em saber detalhes do trabalho dos pesquisadores, e muitos foram categóricos em afirmar que o paciente estava passando por grandes problemas emocionais antes do desenvolvimento da acalásia. Ainda, relataram casos específicos nos quais o paciente começou a apresentar sintomas após a morte de um familiar próximo, divórcio dos pais, separação do cônjuge ou de um relacionamento de longo prazo (Oliveira, Lopes & Coelho-Neto, 2010). Nota-se, nos casos relatados, a presença de situações existenciais desafiadoras, potencialmente vivenciadas como cortes ou mudanças significativas em relações de apego e vínculo, o que permite sondar acerca dos aspectos psicológicos que podem estar presentes em uma enfermidade como a acalásia.

Para a Gestalt-terapia, uma enfermidade é uma porta de entrada, um aviso de que o organismo está sendo exigido, em algum sentido; está sendo convocado a lidar com a algo, que por enquanto está além de sua organização e possibilidades. Por vezes, o corpo modifica seus próprios ritmos e disposições, incluindo as genéticas, para seguir funcionando em aparente harmonia – só se queixa, na forma de uma enfermidade, quando a exigência ultrapassa toda possibilidade e limite (Schnake, 2005). Poderíamos dizer, nesse sentido, que uma enfermidade como acalásia traz consigo notícias a respeito dos limites e das possibilidades de um ser, diante de exigências que lhe são enderençadas em certo momento de vida.

Situações de perdas e separações podem ser vividas exatamente assim: como algo que não se escolheu, mas que aconteceu e agora demanda do sujeito uma forma de responder. Convoca-lhe uma responsabilidade não pretendida, exige-lhe lidar com algo indesejável. São situações que aparecem como reinvindicações, talvez, para que a pessoa mobilize recursos que até então não mobilizava ou até rejeitava em seu percurso existencial.

É aí que se encontra um vicejo para compreender a acalásia à luz da Gestalt-terapia. Podemos nos perguntar: que notícia traz a acalásia, sobre recursos internos subutilizados ou excluídos por uma pessoa em seu trajeto vital? Que pistas o próprio órgão afetado – o esôfago – pode fornecer a respeito da relação da pessoa com o seu meio? Ou ainda, que rastros o próprio processo autoimune deixa no caminho, para serem conhecidos?

Na técnica psicoterapêutica do diálogo com o órgão proposta por Schnake (2005), explana-se que o órgão que expressa a enfermidade, quando funcional, apresenta características que podem ser descrições precisas das mesmas características que uma pessoa precisaria para enfrentar certos desafios existenciais. Tomando como exemplo o esôfago, este é descrito pela autora com as seguintes características: suave, passivo, não seletivo, facilitador, adaptável, tolerante, condutor. Poderiam ser estes, ou alguns destes, recursos subutilizados ou aspectos rejeitados da personalidade de uma pessoa com acalásia?

Além do diálogo com o órgão, não visto de forma isolada, mas como parte de um campo, uma outra possibilidade para compreender os aspectos psicológicos da acalásia à luz da Gestalt-terapia, é debruçar-se sobre o processo autoimune que parece estar em sua origem. Tendo em vista a tese de Fukumitsu (2017) de que processos autoimunes podem ser lidos como processos autodestrutivos, um dos principais contributos teóricos que podem auxiliar na compreensão da autoimunidade é o conceito de (auto)agressão.

Sob uma perspectiva gestáltica, a agressão é compreendida como uma força de vida, que permite a conservação da vida e tem uma função reguladora do contato entre organismo e ambiente. Nesta concepção teórica, a agressão:

[...] representa uma função biológica e um instrumento de vida que possibilita a preservação de um sentido de si mesmo, e que medeia o contato com o meio. Permite ao indivíduo ter um impacto no mundo, ser criativo e produtivo. Sendo assim, é uma energia/função biológica de vida, da natureza, e é o que move o ser humano, podendo ser direcionada para o "mal” (machucar, prejudicar) ou para o "bem” (conquistar algo). (Araújo & Holanda, 2017, p. 35)

A função agressiva é necessária à sobrevivência humana, uma vez que permite assimilar ou rejeitar estímulos que nos chegam por meio dos órgãos dos sentidos e outros conteúdos psíquicos. Perls também chamou a função agressiva de força biológica ou força positiva de vida, afastando-se da visão freudiana de que a agressão estaria relacionada à pulsão de morte.

Ainda que na Gestalt-terapia a teoria da agressão tenha deixado um legado de contributos ora esclarecedores, ora confusos, entende-se ser possível caminhar na direção de conceber uma perspectiva gestáltica da agressão na qual o ser humano não é naturalmente agressivo ou submisso, mas possui uma tendência natural à autorregulação e à atualização; portanto, a agressão não seria meramente instintiva, mas essencialmente produzida na relação entre a pessoa e o meio e emergindo como possibilidade no processo de ajustamento criativo.

Quando a agressão é inibida, represada ou oprimida – portanto, deslocada de sua função vital original – é que as desordens e conflitos psíquicos começam a aparecer nas formas de ajustamento neurótico. Araújo e Holanda (2018), discorrendo acerca da influência do pensamento de Reich sobre as noções de agressão encontradas na Gestalt-terapia, aduziram que, na compreensão reichiana, a inibição da agressão está relacionada a um aumento da rigidez muscular e a um bloqueio afetivo, que ao atingir um grau crônico, se apresenta na forma de uma couraça muscular, isto é, de um enrijecimento da função vital da agressão.

Se a agressão, em sua função vital, encontra-se represada, há um entendimento de que é através da neurose que essa energia agressiva poderá encontrar um desvio possível de realização. Assim, algumas saídas neuróticas possíveis da agressão inibida seriam as explosões de violência, as implosões autodestrutivas, a dessensibilização, o embotamento afetivo e a impotência.

Compreender que não é a agressão, mas a sua inibição, que pode gerar um desvio de sua função vital para uma disfunção neurótica, é essencial para entender a visão de Fukumitsu (2017) sobre as doenças autoimunes. Para a referida autora:

[...] o medo de destruir o meio é um pensamento onipotente da pessoa acometida pela doença autoimune. [...] Acreditando não estar capacitada para comunicar ao meio sua insatisfação, a pessoa prefere, de maneira autossuficiente, conter a energia. Talvez ela tenha aprendido que deveria gerir todos os recursos necessários para viver e introjetou que teria de dar conta do recado sozinha. Ou seja, quando se decepciona com o outro, direciona contra si a energia agressiva em vez de expor suas insatisfações. Para gerenciar o conflito, exige- se viver um processo solitário em busca de maneiras de se defender do que antecipa ter de enfrentar. (Fukumitsu, 2017, p. 82)

Em Gestalt-terapia, pelo menos duas leituras se fazem possíveis ao considerarmos esta contenção e/ou direcionamento da energia agressiva contra si mesmo: é possível ler estes movimentos como retroflexivos e/ou como egotistas. Tanto a retroflexão quanto o egotismo são formas de bloqueio do contato entre organismo e ambiente que podem ser encontradas no funcionamento neurótico.

Assim como quaisquer mecanismos de evitação do contato, a retroflexão e o egotismo, em si mesmos, não podem ser caracterizados como saudáveis ou não saudáveis. Apenas contextualizando esses mecanismos na história de vida e na forma de funcionamento da pessoa, é que se pode chegar a determinar se a retroflexão e o egotismo estão assumindo uma forma disfuncional ou patológica. Os bloqueios de contato "[...] são estados temporários adequados [...]. Apenas quando perdem seu caráter temporário e sua função espontânea, cristalizando-se como estruturas rígidas, é que podemos falar deles como mecanismos disfuncionais” (Struchiner, 2008, p. 38).

Ao recordar que a psicopatologia, em Gestalt-terapia, trata-se do "[...] estudo da interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo” (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 45), pode-se dizer que um mecanismo de evitação do contato pode ser pensado como disfuncional quando inibe ou interrompe a espontaneidade da pessoa, obliterando sua possibilidade de "[...] apoderar-se, crescer a incandescer com o que é interessante e nutritivo no ambiente” (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 45).

A retroflexão é caracterizada por voltar para si próprio a energia mobilizada, fazendo consigo aquilo que, originalmente, gostaria de fazer ao outro ou que o outro lhe fizesse (Ginger & Ginger, 1995). Exemplos de movimentos retroflexivos são encontrados em comportamentos como roer as unhas, ranger os dentes, cerrar os punhos, falar consigo mesmo (fala mental), comer compulsivo, entre outros. Explica-se que:

[...] neuroticamente, o retrofletor evita a frustração tentando não ter estado envolvido em absoluto; isto é, ele tenta desmanchar o passado [...]. Esse processo de desmanchar é obsessivo e repetitivo na natureza do caso; porque uma modificação, como qualquer outra coisa, só pode ser assimilada se vier a incluir material ambiental novo; ao desmanchar o passado, ele revista o mesmo material repetidas vezes. (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 256)

Chama a atenção o fato de que, na acalásia, o alimento sólido ou líquido (material ambiental novo) não consegue ser digerido (incluído e assimilado), apenas desmanchado pela mastigação dos dentes e pelas enzimas salivares. Que novo é este, que a pessoa com acalásia não estaria conseguindo incluir e assimilar?

O alimento, uma vez deglutido, poderá permanecer no esôfago por horas ou até dias, em um processo de desmanchar obsessivo e repetitivo. Se houver algum movimento peristáltico ao longo do esôfago e algum relaxamento do esfíncter esofágico inferior, esse material desmanchado poderá seguir ao estômago para continuar o processo digestivo e ser assimilado. Se não, a quantidade de material desmanchado excederá a capacidade esofágica de armazenamento, podendo provocar tanto uma distensão do órgão (megaesôfago), quanto uma sensação de entalo e ânsia que poderá culminar na regurgitação.

Ao regurgitar, a pessoa com acalásia pode experimentar a sensação de revisitar o mesmo material repetidas vezes, pois o alimento regurgitado é colocado para fora mantendo a mesma aparência de quando foi deglutido. E esta não assimilação do conteúdo ingerido e sua colocação para fora podem aludir ao ajustamento do tipo egotista.

No egotismo, identifica-se uma rigidez na fronteira que separa o eu do outro, dificultando uma abertura para incluir aspectos da realidade externa. Neste modo de funcionar, a autoconsciência é exacerbada e a pessoa exerce uma vigilância excessiva sobre suas fronteiras, selecionando criteriosamente tudo que entra e tudo que sai de seu sistema. Nesta forma de se defender, mantém suas fronteiras enrijecidas no fechamento, interrompendo o contato com o meio e, em sua fantasia, protegendo-se da possibilidade de ser dominado, sufocado, traído, invadido ou abusado em suas relações. Além disso, pode construir e se fixar em uma imagem idealizada de si próprio, alimentando ilusões de enaltecimento do valor e poder pessoais (Dias, 1994; Tenório, 2012).

A dificuldade de abrir-se para incluir aspectos da realidade descrita no egotismo pode ser identificada, na acalásia, na dificuldade de abrir/relaxar o esfíncter esofágico inferior para incluir/assimilar alimentos. Assim como a seleção criteriosa de tudo que entra e sai de seu sistema e a manutenção das fronteiras enrijecidas no fechamento, interrompendo o contato com o meio, pode-se relacionar com a contração muscular permanente e à interrupção do processo digestivo, pela via da regurgitação.

Ressalta-se que é preciso relacionar esses comportamentos retroflexivos e egotistas a uma pessoa e a um contexto, para entender se estão ou não configurando um ajustamento criativo disfuncional e, portanto, impedindo a pessoa de viver novas experiências de crescimento. Ademais, ainda que se identifique a existência de uma retroflexão ou egotismo patológicos, "[...] a ação do Gestalt-terapeuta não deve objetivar, atacar, vencer ou superar as resistências quando o cliente está evitando o contato, mas principalmente, torná-las mais conscientes ou figurais, favorecendo seu uso adaptado à situação do momento” (Ginger & Ginger, 1995, p. 132).

Na acalásia, há uma barreira física - uma contração permanente do esfíncter esofágico inferior - que impede uma assimilação nutricional adequada dos alimentos. O emagrecimento e as deficiências nutricionais que podem acontecer ao longo da condição demonstram o quanto a acalásia pode tolher o processo de crescimento da pessoa. E partindo do princípio que olhar gestalticamente para a acalásia implica em uma visão contextualizada, que se interessa em compreender como esta doença é vivenciada pela pessoa, como se relaciona à sua história e às suas circunstâncias, é possível questionar: é somente o esfíncter esofágico inferior que não consegue relaxar, ou se poderia dizer que é uma pessoa inteira, que não está conseguindo relaxar? Que se sente permanentemente contraída, contida, rígida? Que não consegue assimilar alguma mudança/novidade?

Perls, Hefferline e Goodman (1997) contam-nos de um grupo de impulsos e perversões que são chamados de agressivos - aniquilar, destruir, combater, satisfazer-se ao sentir ou causar dor, matar, caçar, dominar, conquistar e iniciar - e que, em sua maioria, são vistos como ruins ou prejudiciais à vida civilizada em sociedade. A generalização de que o que é agressivo é prejudicial, somada à "[...] rejeição social imediata e irrestrita de diversas agressões” (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 148) tornam-se um terreno fértil para a emergência de movimentos retroflexivos, que visam conter em si ou direcionar para si a energia agressiva que inicialmente tinha o meio como destino.

Uma hipótese que se levanta é que diante de situações emocionais desafiadoras, a energia agressiva pode aparecer na forma da raiva, sentida e/ou expressa. Mas a depender da relação da pessoa com esta emoção, bem como dos seus padrões de contato com a realidade, em vez da energia agressiva ser expressa no meio, pode haver um investimento significativo de energia agressiva na contenção ou no direcionamento dessa mesma energia contra si.

No manejo clínico junto às pessoas com acalásia, considera-se de extrema relevância favorecer o processo de ampliação de consciência sobre como a pessoa mobiliza a energia agressiva, criando condições para que ela possa se dar conta das situações em que conteve/voltou contra si essa energia e como vivenciou isto em seu corpo.

Igualmente importante é sublinhar as situações em que percebemos que a pessoa que estamos acompanhando direcionou a energia agressiva ao destino original - o meio. Podemos colaborar com a tessitura de sua compreensão ao convidá-la a abrir sua percepção sobre como expressou essa energia: foi na forma da assertividade, da iniciativa, da tomada de decisão, da expressão espontânea? Foi com a linguagem verbal, corporal ou ambas?

Também podemos oportunizar que ela compreenda o efeito de sua ação e revise ou atualize alguns introjetos: o meio realmente foi destruído, quando ela permitiu que essa energia agressiva chegasse ao meio? Ou ainda, ela realmente está destruída ao permitir a expressão de sua energia agressiva? O fato de expressá-la, de fato anula outras partes da personalidade com as quais ela se identifica?

Se a acalásia é um processo de adoecimento autoimune, e em Gestalt-terapia entende-se a autoimunidade como uma faceta da autodestruição, então o manejo clínico junto a pessoas com acalásia requer conhecer a relação delas com sua própria energia agressiva, que em hipótese estaria disfuncional. Recorda-se a descrição da etiologia da acalásia de Park e Veazi (2005): uma inflamação crônica que levaria à destruição das células ganglionares inibitórias no plexo mioentérico, tendo como resultado a acalásia. Inflamação e destruição. Inflamar e destruir – não seriam funções agressivas?

Precisamos destruir certos aspectos que nos chegam para poder integrá-los, como fazemos na digestão. É necessário inflamar, queimar algo do que nos vem, para que seja processado e enfim assimilado, podendo se tornar parte de nós. Se, na acalásia, o que está sendo inflamado e destruído é uma parte do próprio esôfago, poderíamos nos dispor a descobrir com o cliente: o que realmente se quer/precisa inflamar e destruir? Novamente, oportunizando que o cliente compreenda como vivencia sua raiva, como se relaciona com seus aspectos agressivos.

Vivemos em uma sociedade em que manter-se calmo, desenvolver autocontrole e dominar as próprias emoções são comportamentos significados como virtuosos, honrosos e desejáveis - tornando desafiador às pessoas que possam fazer as pazes com sua própria energia agressiva, acolhendo-a como parte fundamental, funcional e legítima da personalidade.

É um trabalho psicoeducativo quando podemos tecer, junto com a pessoa que nos chega, uma compreensão sobre agressão que não se limite à agressão disfuncional. Afinal, a agressão é "[...] o passo em direção ao objeto do apetite ou da hostilidade. A passagem do impulso para a tomada de providências e a iniciativa: aceitar o impulso como nosso próprio impulso e aceitar a execução motora como nossa própria execução motora” (Perls, Hefferline & Goodman, 1997, p. 150).

No âmbito da energia agressiva, nem tudo é prejudicial à pessoa, ao meio ou à ordem social. Aquilo que se entende como agressivo pode ser, inclusive, salutar ao processo de crescimento de uma pessoa. Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 148) levantaram a hipótese de que "[...] é na análise e liberação de agressões que devemos procurar o próximo avanço da sociedade em direção a normas mais felizes”. Os autores também buscaram mostrar que ao menos a aniquilação, a destruição, a iniciativa e a raiva podem ser funções de contato essenciais para o crescimento no campo organismo-ambiente.

 

4. Considerações Finais

À luz da Gestalt-terapia, é possível compreender que a acalásia é uma configuração existencial possível em um dado momento do ciclo vital de uma pessoa; trata-se de uma situação que emerge no campo organismo-ambiente e, ao mesmo tempo em que produz sofrimento e vulnerabilidade, também pode estar a serviço da autorregulação organísmica e do crescimento pessoal.

Considera-se importante que, ao refletir sobre o serviço que a acalásia pode estar prestando ao crescimento do ser que a manifesta, isto não seja feito de um lugar romantizado, como se não houvesse dor no processo ou como se a pessoa precisasse passar por isso para então se dar conta de algumas questões sobre si mesma e sua vida. Pode ser ousado dizê-lo, mas não acredito que ninguém precise passar pelas situações que passa. Entendo que situações acontecem. Em alguns casos, contam com um campo fértil para acontecer. E uma vez que acontecem, quem sabe, seja possível escolher aprender algo com elas e crescer a partir da experiência.

A acalásia atinge uma minoria quando comparada a outras doenças do trato digestivo e até pouco tempo, dizia- se que sua causa era desconhecida. Só mais recentemente, com a publicação de evidências de uma etiologia autoimune, tem-se falado sobre os aspectos genéticos e os fatores emocionais – traumas e estresse – que estariam envolvidos na emergência dos sintomas. No entanto, falar em trauma e estresse sem lhes dar nome e sobrenome pode criar um certo vazio, aqui tomado como um vazio fértil, um espaço no qual podem nascer novas compreensões.

No espaço deste estudo, foi possível compreender que rompimentos significativos em relações de apego, como perdas e separações, podem configurar situações traumáticas e estressoras que criam condições para a cronicidade inflamatória e a decorrente resposta autoimune em pessoas com susceptibilidade genética para a acalásia. De forma um pouco mais generalista, pode-se dizer que não somente perdas e separações, mais quaisquer situações de vida cujo desafio e exigência ultrapassem os limites e possibilidades atuais de uma pessoa para lidar com elas, tendem a fertilizar o campo para a emergência de enfermidades.

Por isso, processos de autoconhecimento e psicoterapia, que possibilitem a uma pessoa estar em contato consigo mesma, conhecer seus limites e possibilidades e atualizar o seu potencial, criando recursos para ajustar-se criativamente e funcionalmente aos acontecimentos, são um dos aspectos considerados relevantes para a prevenção de estresse crônico e promoção de saúde integral.

Em Gestalt-terapia, é um objetivo psicoterapêutico que a pessoa possa se dar conta da relação de totalidade que há entre seu corpo, suas emoções, sua história pregressa e atual, suas expectativas e os introjetos que têm orientado sua vida até então. Nesse sentido, considera-se fundamental que, no âmbito terapêutico, lance-se luz sobre a forma como a pessoa com acalásia se relaciona com seus aspectos agressivos. Há pistas de que esta forma esteja cristalizada em movimentos principalmente retroflexivos e egotistas, que refletem processos de contenção da energia agressiva, dificultando sua expressão no meio ou direcionando a agressão para si. Mas essas pistas ficam de fundo – pois é no encontro com o cliente e a partir do que ele experimenta e do que conta daquilo que vive, que será possível compreender, fenomenologicamente, sua relação com aquilo que chamamos de agressão.

No manejo terapêutico junto às pessoas com acalásia, também se considera salutar que o acompanhamento clínico possa, além de favorecer a ampliação de consciência sobre como o cliente se relaciona com seus aspectos agressivos, criar condições para que a pessoa possa fazer contato com estes, na medida de suas possibilidades. Que possa conhecer como a agressão aparece em seu corpo. Que possa ousar expressar essa parte no meio, ainda que este meio inicialmente se limite ao experimento clínico, a fim de experienciar como é manifestá-la, como o outro reage e quem ela mesma se torna ao engolir e assimilar a energia agressiva como parte de si. São possibilidades a serem sentidas e vividas no âmbito clínico, descobertas a serem sondadas a partir do encontro com o cliente.

Neste movimento de tomada de consciência e integração dos aspectos agressivos, o trabalho clínico pode se orientar a convidar o cliente colocar a agressão, como fez a Gestalt-terapia, sob uma luz positiva, entendendo-a como por natureza sadia e a serviço da vida, e realçando seu papel de nos habilitar a arriscar ter um impacto no mundo, nos libertar para criar e produzir, nos permitir mastigar plenamente as nossas experiências, absorver aquilo de que precisamos e nos livrar do que não mais precisamos (Perls, Hefferline & Goodman, 1997).

Salienta-se que alguns cuidados clínicos podem se fazer necessários no atendimento a pessoas com acalásia. Seja o atendimento realizado em consultório presencial, virtual ou na modalidade de acompanhamento terapêutico da clínica ampliada, se a pessoa com acalásia estiver sintomática, isto é, apresentando sintomas clínicos como dificuldade para engolir, regurgitação e tosse, pode ser difícil expressar-se oralmente, através da comunicação verbal. A pessoa pode apresentar episódios de entalo e engasgo com a própria saliva, ou ao tomar um gole de água, o que traz um desafio à configuração terapêutica predominantemente baseada na oralidade. Diferentes formas de expressão, como a escrita, a produção artística e a expressão corporal não-verbal passam a constituir importantes recursos terapêuticos nestes casos.

À guisa de conclusão, elaborar este ensaio teórico sobre os aspectos psicológicos da acalásia com base no referencial teórico da Gestalt-terapia permitiu a constatação de que há, de fato, como uma interdependência fundamental entre aspectos psíquicos e aspectos físicos em todos os estágios dos processos saúde-doença, uma vez que o próprio ser humano funciona enquanto totalidade indivisível. Nas palavras de Ramos (2006), seria reducionista pensar que há doenças causadas puramente por fatores psicológicos ou puramente orgânicos, pois há sempre um pluralismo a ser considerado na observação e compreensão de quaisquer fenômenos, o que sustenta a tendência de assimilar todas as doenças como psicossomáticas, na medida em que envolvem uma interação contínuo entre corpo e mente em sua origem, desenvolvimento e cura.

Partindo dessa premissa é que se faz, aqui, um convite a pensar a acalásia como expressão psicossomática, em vez de pensá-la como uma patologia do esôfago. Entende-se que assumi-la como psicossomática é um passo na direção de reconhecer a fundamental relevância do acompanhamento psicológico nestes casos. A terapêutica atual parece restrita à conduta cirúrgica, que permanece se mostrando eficaz no manejo dos sintomas, mas entende-se que é possível ir além, aprofundando-se nos aspectos psicológicos da acalásia. Aspectos que podem revelar partes desconhecidas e/ou obliteradas da subjetividade de quem a vivencia, como por exemplo, os aspectos agressivos. Partes tão fundas e insuspeitas, mas que podem ser exatamente o que essas pessoas precisam para realizar um potencial e crescer existencialmente, atualizando sua forma de estar no mundo.

 

Agradecimentos

Agradecimento especial à Faculdade IELUSC pelo financiamento do projeto de pesquisa Aspectos Psicológicos da Acalásia (APA) e às acadêmicas Ana Júlia Vieira, Beatriz Rosa e Letícia Raquel Elias Oliveira pela participação e contribuições em uma fase do processo de pesquisa.

 

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Endereço para correspondência
Juliana Testoni dos Santos Rengel
E-mail: julianatsrengel@gmail.com

Recebido: 30/04/2021
Revisado: 07/07/2021
Aceito: 01/07/2021
Publicado: 08/10/2021

 

 

1 Juliana Testoni dos Santos Rengel : ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1817-2153

 

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