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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.13 no.3 Belém Sep./Dec. 2021

 

ENSAIO

 

Aplicabilidade e releitura da teoria da personalidade e do comportamento no hospital

 

Applicability and Rereading of Theory of Personality and Behavior in the Hospital

 

Aplicabilidad y Relectura de la Teoría de la Personalidad y la Conducta em el Hospital

 

 

Andréa Batista de Andrade Castelo Branco1, I; Leticia Silva de Souza2, II; Bianca Veiga Prates3, II

IDepartamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará, Brasil
IIInstituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se realizar uma releitura da teoria da personalidade e do comportamento de Carl Rogers à luz da psicologia hospitalar, de modo a analisar como suas proposições podem ser aplicadas nesse contexto de atuação. Realizou-se um ensaio teórico e utilizou-se técnicas de leitura na coleta e análise dos dados. Os resultados apontaram que a iatrogenia do ambiente hospitalar, bem como as possíveis vivências de despersonalização, dor, perdas, alterações no corpo, mudanças na dinâmica familiar e morte podem desencadear negação ou distorção da experiência. As intervenções psicológicas, no entanto, favorecem maior congruência entre o campo fenomenológico da experiência e a estrutura conceitual do self, possibilitando a simbolização consciente e ampliação perceptiva das vivências relacionadas ao adoecimento, tratamento e hospitalização. Considera-se que a teoria da personalidade tem aplicabilidade no contexto hospitalar, podendo subsidiar a atuação do psicólogo da saúde na tríade paciente-família-equipe.

Palavras-chave: Psicologia Hospitalar; Teoria da Personalidade; Psicologia Humanista; Self; Psicologia da Saúde.


ABSTRACT

The objective was to re-read Carl Rogers' theory of personality and behavior from the perspective of hospital psychology, in order to analyze how his propositions can be applied in this context of performance. A theoretical essay was performed and reading techniques were used to collect and analyze the data. The results showed that the iatrogenesis of the hospital environment, as well as the possible experiences of depersonalization, pain, losses, changes in the body, changes in family dynamics and death can trigger denial or distortion of the experience. Psychological interventions, however, favor greater congruence between the phenomenological field of experience and the conceptual structure of the self, enabling the conscious symbolization and perceptual expansion of experiences related to illness, treatment and hospitalization. It is considered that the personality theory has applicability in the hospital context, being able to subsidize the performance of the health psychologist in the patient-family-team triad.

Keywords: Hospital Psychology; Personality Theory; Humanistic Psychology; Self; Health Psychology.


RESUMEN

El objetivo fue releer la teoría de la personalidad y el comportamiento de Carl Rogers desde la perspectiva de la psicología hospitalaria, con el fin de analizar cómo se pueden aplicar sus propuestas en este contexto. Se realizó un ensayo teórico y se utilizaron técnicas de lectura. Los resultados mostraron que la iatrogénesis del entorno hospitalario, así como las posibles experiencias de despersonalización, dolor, pérdidas, cambios en el cuerpo, cambios en la dinámica familiar y muerte pueden desencadenar la negación o distorsión de la experiencia. Las intervenciones psicológicas favorecen una mayor congruencia entre el campo fenomenológico de la experiencia y la estructura conceptual del yo, permitiendo la simbolización consciente y la expansión perceptiva de las experiencias relacionadas con la enfermedad, el tratamiento y la hospitalización. Se considera que la teoría de la personalidad tiene aplicabilidad en el contexto hospitalario, pudiendo subsidiar la actuación del psicólogo en la tríada paciente-familia-equipo.

Palabras clave: Psicología Hospitalaria; Teoría de la Personalidade; Psicología Humanista; Self; Psicología de la Salud.


 

 

1. Introdução

Carl Rogers (1951/1992) desenvolveu a Teoria da Personalidade e do Comportamento mediante evidências clínicas e científicas para oferecer uma estrutura conceitual consistente relativa à psicoterapia, à dinâmica da personalidade e à compreensão da experiência do cliente. A teoria em tela é composta por 19 proposições que versam sobre a estruturação, desestruturação e reestruturação ou reorganização da personalidade no contexto da psicologia clínica (P. Castelo Branco, 2019).

No entanto, a atuação dos psicólogos expandiu-se para além do âmbito clínico, surgindo a necessidade de articular os conhecimentos já produzidos com as demandas emergentes e contemporâneas. O próprio Rogers trouxe implicações da sua teoria para intervenção nos processos grupais, resolução de conflitos inter-raciais e aplicações no contexto educacional.

No Brasil, a maioria das contratações dos psicólogos ocorre pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Especificamente no âmbito hospitalar, o psicólogo visa oferecer uma assistência integral ao paciente de forma breve e focal, por meio de intervenções voltadas à promoção da saúde mental, superando os limites e dificuldades impostos pelo adoecimento, tratamento e hospitalização (Castro & Bornholdt, 2004). Além disso, o desafio do psicólogo é atender não somente as demandas do paciente, mas atentar-se à dinâmica na qual está inserida a família, a equipe e a cultura da instituição hospitalar.

Diferentemente da clínica, o psicólogo da saúde que atua no hospital deve necessariamente fazer busca ativa de pacientes, realizar atendimentos nos corredores ou leitos, identificar aspectos psicossociais que afetam o processo saúde- doença, incluir a família no processo de cuidado, trabalhar na perspectiva multiprofissional, garantir a continuidade do cuidado na rede de atenção e desenvolver psicoterapias breves ou de apoio (Angerami-Camon, 2010). Tais especificidades convocam os psicólogos rogerianos a repensarem os fundamentos teóricos e práticos dessa clínica no contexto hospitalar, numa perspectiva de clínica ampliada. Ou seja, uma clínica transversalizada e contextualizada, na qual considera os determinantes sociais e os aspectos sanitários na produção do cuidado.

Embora a Teoria da Personalidade e do Comportamento tenha sido essencialmente desenvolvida para a prática clínica (Rogers, 1951/1992), as suas proposições podem ter aplicações no contexto hospitalar, ainda que a ambiência iatrogênica, as peculiaridades do setting terapêutico e a falta de privacidade possam interferir no encontro entre psicoterapeuta-cliente. Ressalta-se que Rogers (1951/1992) sinalizou que as pesquisas e sua vasta experiência clínica resultaram em formulações teóricas sempre mutáveis, passíveis de comprovação ou refutação. Nesse sentido, a releitura de sua teoria pode trazer novas reflexões e contribuições significativas para subsidiar a prática do psicólogo humanista que atua no hospital.

Após um breve levantamento bibliográfico de artigos indexados no Scielo, Pepsic e Lilacs, utilizando os descritores "Abordagem Centrada na Pessoa (ACP)" and "Hospital" and "Psicologia", identificou-se apenas três estudos, nos quais abordam, respectivamente: o serviço de plantão psicológico com funcionários de um hospital geral (Cury & Palmieri, 2007); a análise de um livro literário que aborda um paciente com limitações motoras (Faria & Rocha, 2012); e, a investigação de significados atribuídos e sentimentos experienciados por médicos residentes no enfoque da ACP (Arruda & Calhau, 2018).

Considerando a escassez de estudos que articulam psicologia hospitalar e ACP, bem como a relevância da teoria da personalidade e do comportamento no substrato do pensamento rogeriano, este estudo objetivou fazer sua releitura à luz da Psicologia da Saúde, de modo a analisar como as proposições podem ter aplicabilidade no contexto hospitalar. Neste panorama, responderemos a seguinte pergunta-problema: como a Teoria da Personalidade e do Comportamento de Rogers pode ser repensada e aplicada pelo psicólogo hospitalar?

 

2. Metodologia

Trata-se de um ensaio teórico sobre um tema de relevância científica e profissional, cujos resultados podem subsidiar a prática de psicólogos humanistas que atuam no contexto hospitalar. O ensaio teórico é um recurso que possibilita promover a construção de novos saberes por meio da capacidade criativa, crítica e reflexiva do pesquisador frente às demandas emergentes e atuais (Meneghetti, 2011).

Utilizou-se também as seguintes técnicas de leitura nos textos analisados (Lima & Mioto, 2007): Leitura de reconhecimento do material bibliográfico; Leitura exploratória; Leitura seletiva; Leitura reflexiva/crítica; e, Leitura interpretativa. Tais técnicas permitiram a identificação de conteúdos pertinentes ao objeto de estudo proposto e um estudo crítico do material, bem como possibilitaram a associação de ideias, a transferência de situações e a comparação de elementos que constituíram as obras analisadas.

Foram descritas e analisadas as 19 proposições da Teoria da Personalidade e do Comportamento de Carl Rogers (1951/1992) mediante aspectos teóricos, casos clínicos e possibilidades interventivas do psicólogo no contexto hospitalar. Para facilitar a lógica da exposição dos resultados desse estudo, inspirou-se na seguinte proposta de sistematização analítica da referida teoria, elaborada por Paulo Castelo Branco (2019): Organização da Personalidade (proposições 1 à 9); Desorganização da Personalidade (proposições 10 à 14); e Reorganização ou Reestruturação da Personalidade (proposições 15 à 19).

Ressaltamos que o uso, exclusivamente brasileiro, do termo Psicologia Hospitalar não é consenso entre os pesquisadores, uma vez que o local de atuação não deveria ser determinante para definir uma área de atuação, e sim as particularidades relacionadas às habilidades e competências do psicólogo frente às demandas específicas (Castro & Bornholdt, 2004). Porém, a denominação Psicologia Hospitalar está consolidada na linguagem dos psicólogos brasileiros e será mantida neste estudo como uma subárea da Psicologia da Saúde. Além disso, como todas as ressalvas semânticas em relação ao uso da palavra paciente e suas conotações de passividade, manteremos a terminologia no artigo por ser amplamente utilizada no ambiente hospitalar e nas pesquisas do campo. Em outros momentos, utilizaremos os termos indivíduo, cliente ou pessoa, considerando a linguagem rogeriana.

 

3. Resultados e Discussão

Organização da Personalidade no contexto hospitalar

A ACP aplicada ao contexto hospitalar pode favorecer um setting terapêutico acolhedor, sustentado por atitudes de congruência, empatia e consideração positiva incondicional, de modo a facilitar a organização da personalidade e a simbolização de experiências no contexto hospitalar. Além disso, a ACP enfatiza o uso das potencialidades do cliente que contribuem no enfrentamento das adversidades impostas pelo adoecimento, favorecendo crescimento pessoal, ampliação perceptiva e mudanças de autoconceito e de comportamento (A. Castelo Branco & Gomes, 2019).

Rogers afirma que "todo indivíduo existe num mundo de experiências em constante mutação, do qual ele é o centro" (Rogers, 1992, p. 549). Trata-se de um campo fenomenológico que inclui tudo que é experimentado pelo organismo, de forma conscientemente percebido ou não, cujo sentido completo e autêntico só pode ser conhecido pelo próprio indivíduo que o experimenta. Dessa forma, o psicólogo hospitalar pode facilitar um processo de simbolização da experiência do paciente hospitalizado para que ele possa acessar de modo consciente suas necessidades organísmicas, contribuindo com maior fluidez na figura-fundo.

No hospital, o paciente tende a colocar sua doença ou dor como figura, dificultando o contato com suas emoções e sentimentos subjacentes. Assim, o psicólogo pode catalisar uma ampliação da consciência para que o paciente possa integrar novos elementos a sua experiência.

Embora variados impulsos, sensações e experiências viscerais não sejam totalmente simbolizados, grande parte do campo de experiências encontra-se disponível à consciência e pode tornar-se consciente, caso o cliente a mobilize para satisfação de suas necessidades sob determinadas condições (Rogers, 1951/1992). Tais condições podem ser disponibilizadas pelo psicoterapeuta humanista na medida em que potencializa um setting sem julgamentos e com intervenções pautadas no referencial interno do cliente, reduzindo possíveis mecanismos de defesa comuns no contexto hospitalar. A imersão no seu mundo interno permite ao indivíduo maior conhecimento de si e a expressão de pensamentos e sentimentos ocultos, de inadequação ou suprimidos (Rogers, 1977).

Para Rogers (1951/1992), "o organismo reage ao campo da maneira como este é experimentado e percebido, sendo este campo a 'realidade' para o indivíduo" (p. 550-551). Assim, o organismo não reage a uma realidade absoluta, mas à percepção dessa realidade. Isso traz implicações importantes para a prática do psicólogo hospitalar, uma vez que recebe informações distintas de pacientes, familiares e equipe sobre um mesmo fenômeno. Porém, não se trata de buscar ou tentar explicar uma realidade verdadeira ou se o paciente está realmente narrando uma possível realidade válida no atendimento psicológico.

Em termos psicológicos, a realidade é o mundo particular das percepções do indivíduo, ao passo que, em termos sociais, a realidade consiste nas percepções compartilhadas em alto grau por um conjunto de pessoas (Rogers, 1951/1992). Isso significa que o paciente que acredita que sua comida do hospital está envenenada, pode reagir de forma agressiva à equipe, sendo uma experiência real para ele, por mais que sua percepção não seja compartilhada socialmente. O medo de morrer e o sentimento de desconfiança da equipe são vivenciados de forma realista.

A iatrogenia do ambiente hospitalar e as perdas provocadas pelo processo de adoecimento podem desencadear reações psíquicas adversas nos pacientes. É possível, por exemplo, dois pacientes apresentarem o mesmo diagnóstico com limitações semelhantes, mas reagirem de formas distintas. Quando o psicólogo possibilita a ampliação da percepção do paciente, este pode ser capaz de identificar suas potencialidades e estratégias próprias de enfrentamento através de novos comportamentos. A abertura à experiência pode ser o melhor caminho para o paciente confrontar suas percepções ou acrescentar novas perspectivas para que a experiência se torne um guia mais confiável para sua compreensão da realidade.

No setor de emergência do hospital geral, o psicólogo acolhe muitos casos de pacientes com comportamento suicida. É comum o relato de pacientes que percebem a morte como única saída para resolver seus problemas, findar o sofrimento intenso, pedir ajuda e/ou projetar sentimentos em terceiros. Trata-se de possíveis percepções enrijecidas que podem influenciar no modo como o paciente percebe a realidade vivida. Para Rogers (1977), a única realidade possível de conhecer é a do mundo como cada um percebe e vivencia naquele momento. Isso significa que as realidades são múltiplas, reais e diferentes uma da outra. "Os 'mundos reais' são tantos quanto as pessoas" (Rogers, 1977, p.189). A partir do momento que o paciente percebe outras alternativas para lidar com suas tensões organísmicas e de se comunicar com o outro/mundo, pode reagir ao campo de outras formas que não seja a busca pela própria morte.

Quando o cliente entende a percepção como uma hipótese que pode ser verificada pela experiência, conforme suas necessidades, ele tende ser mais aberto à ampliação perceptiva e, consequentemente, à mudança de suas reações ao campo.

De acordo com Rogers (1951/1992), "o organismo reage a seu campo fenomenológico como um todo organizado" (p. 553), cuja alteração em uma de suas partes pode produzir modificações em qualquer outra. Assim, quando uma via está bloqueada, o organismo se organiza para utilizar outra via para alcançar a mesma meta (Rogers, 1951/1992). No contexto hospitalar, é comum o paciente, através da somatização, buscar vias de compensação em situações adversas como forma de obter homeostase.

Algo que não é experienciado conscientemente pode transformar-se, por exemplo, em ganhos secundários da doença. Uma criança pode perceber benefícios em manter-se doente ao adquirir maior atenção e cuidado dos pais no período da hospitalização. A busca pela atenção e cuidado seria a meta do seu organismo, e a manutenção da doença seria uma via de compensação para a criança atender suas necessidades psicológicas, apresentando quadros inexplicáveis de somatização para equipe hospitalar. Na medida em que a criança encontra outras vias mais saudáveis de atingir sua meta, os sintomas psicossomáticos tendem a desaparecer. Para Rogers (1951/1992), o desbloqueio dessas vias contribui para uma independência e auto-responsabilidade maiores.

Isso é possível por que "o organismo tem uma tendência e um impulso básico de realizar, manter e aperfeiçoar o organismo que experimenta" (Rogers, 1951/1992, p. 554). Assim, um paciente hospitalizado pode encontrar diferentes formas de lidar com a tensão que experimenta entre o organismo adoecido e o ambiente hospitalar.

Ao perceber que pode estar com uma doença grave, o paciente pode encontrar diferentes formas de regulação: pode evitar contato com o médico para não obter maiores informações sobre o diagnóstico e evitar a tensão; pode aderir ao tratamento passivamente sem avaliar a relação entre o impacto das intervenções médicas, as expectativas familiares e suas necessidades internas; pode tornar-se mais ativo para enfrentar o processo de adoecimento e adaptar-se à nova realidade imposta pela doença, tomando decisões conscientemente; ou pode contestar o diagnóstico, gerando conflitos com a equipe e buscando terapêuticas alternativas em outros ambientes. Esse processo de autorregulação, portanto, implica na tentativa do organismo de: evitar o contato; alterar seu funcionamento para adequar-se ao ambiente; tentar mudar o ambiente; ou sair do ambiente que gera tensão (P. Castelo Branco, 2019).

Assim, o psicólogo hospitalar humanista pode facilitar o paciente a compreender melhor seus modos de funcionamento para potencializar maior integração do self. Ainda que o paciente precise atravessar o sofrimento, quando os elementos da experiência são claramente percebidos, a homeostase tende a ser gratificante e possibilita crescimento. Os fatores de escolha do paciente no contexto hospitalar devem ser percebidos com nitidez para que a tendência ao movimento se manifeste.

Por vezes, a equipe ou familiares tendem a impor tratamentos ou procedimentos invasivos em pacientes com indicação para amputação ou pacientes oncológicos em cuidados paliativos. Do ponto de vista de uma ética rogeriana, o psicólogo hospitalar não deve assumir o papel de reproduzir ou legitimar o discurso persuasivo de adesão ao tratamento. O psicólogo deve fortalecer a autonomia do paciente e sua capacidade de tomar decisões.

É importante mencionar também que a tendência básica à independência e à integração autodeterminada, mesmo sentindo dores, é tão forte quanto (não é mais forte que) o desejo de manter-se na zona de conforto ou de apoiar-se em autoridade externa para sentir-se mais seguro (Rogers, 1951/1992). Às vezes, a dependência temporária aos cuidados da equipe hospitalar, por exemplo, parece ser necessária e adaptativa. O paciente pode inclinar-se à dependência e passividade no tratamento na busca pela sobrevivência. Porém, dificilmente, o paciente vai escolher a dependência de forma deliberada ou desnecessária após examinar sua situação profundamente.

É preciso confiar na capacidade do paciente em realizar suas escolhas de forma consciente e autônoma, quando os fatores do contexto estão claros. Trata-se de uma força direcional à maturação e autonomia maiores, distanciando-se do controle de forças externas. Quando o paciente percebe os principais elementos envolvidos, parece escolher o caminho gratificante da autorrealização e crescimento, mesmo que o caminho seja doloroso e difícil. (Rogers, 1951/1992).

Rogers (1951/1992) afirma também que "o comportamento é, basicamente, a tentativa dirigida para uma meta que o organismo utiliza para satisfazer as necessidades que ele experimenta, no campo que ele percebe" (p.558). Embora não necessariamente consciente, o comportamento é projetado funcionalmente para uma meta que busque reduzir a tensão, preservar e aperfeiçoar o organismo, satisfazendo suas necessidades. Porém, nem sempre há correspondência entre o comportamento, a meta, a percepção da realidade e a satisfação da necessidade (Rogers, 1951/1992).

O paciente hospitalizado, por exemplo, pode perceber a realidade do diagnóstico como ameaçador à sua própria vida e passa a apresentar comportamentos de queixas frequentes e solicitações repetidas à equipe na busca de satisfazer a necessidade de cuidado, segurança e preservação. A equipe, por sua vez, rotula o paciente como poliqueixoso ou paciente-problema e passa a diminuir a comunicação e o contato com o paciente. Quando o paciente compreende melhor seu quadro clínico e percebe que seu comportamento não consegue atingir a meta, é provável que mude seu comportamento frente à equipe. Nesse sentido, é importante que o psicólogo atue como elo do fluxo comunicacional entre o paciente e a equipe para melhor compreensão das motivações e satisfação das necessidades de ambos.

Nesse entendimento, Rogers (1951/1992) menciona ainda que o comportamento não é determinado por experiências que ocorrem no passado. Apesar das experiências passadas de adoecimento e hospitalização, por exemplo, modificarem o significado percebido em experiências da internação atual, todo comportamento busca reduzir uma tensão atual e satisfazer necessidades do presente. Portanto, o psicólogo hospitalar não deve restringir suas intervenções às experiências passadas, mas sim ao que se apresenta no aqui-e-agora. Os significados passados podem vir à tona durante os atendimentos psicológicos, mas com o objetivo de compreender o modo como se articulam às necessidades atuais.

Torna-se digno de menção o papel que a emoção pode ocupar na experiência de hospitalização. Segundo Rogers (1951/1992), "a emoção acompanha e, em geral, facilita o comportamento dirigido para uma meta, sendo que o tipo de emoção relaciona-se com os aspectos de busca versus consumação de comportamento" (p. 560). O autor, portanto, coloca a emoção no lugar de elemento facilitador do comportamento dirigido para uma meta. Ele afirma ainda que há dois grupos de emoções: as desagradáveis e/ou exaltadas que indicam uma vivência de tensão que motiva o indivíduo a concentrar esforços para superar e alcançar um objetivo; e as emoções calmas e/ou satisfeitas que tendem a acompanhar a satisfação da necessidade, ou seja, a experiência de consumação. (Rogers, 1951/1992).

Ressalta-se que não se deve emitir julgamento de valor entre o que seria uma emoção boa ou ruim. Na verdade, desde que não seja em excesso, o medo do paciente em sofrer novo acidente de moto em decorrência do consumo prejudicial de álcool, por exemplo, pode fazer com que o paciente evite comportamentos de risco novamente ou até mesmo se motive para mudar o padrão de uso com o objetivo de reduzir os danos causados pelo uso abusivo.

O psicólogo hospitalar que atende pacientes que fazem uso prejudicial de álcool deve incluir nas intervenções a compreensão das emoções que antecedem, motivam, acompanham ou se apresentam após o uso. É possível que alguns pacientes não percebam que principiam o consumo quando se sentem sozinhos, tristes ou ansiosos. Muitas vezes, fazem também o uso abusivo para atender necessidades imediatas de prazer e socialização, mas não percebem de modo mais acurado efeitos e danos posteriores do álcool que podem dificultar outros tipos de necessidades organísmicas, tais como, saúde, afeto e vinculação familiar.

No hospital, frequentemente, as emoções consideradas desagradáveis são barradas pelos profissionais, uma vez que é dada ênfase aos aspectos orgânicos e físicos da patologia. É comum o discurso de que chorar faz mal para imunidade ou recuperação do paciente, fazendo com que muitos evitem ou suprimam a expressão das emoções. Por essa razão, o psicólogo hospitalar pode catalisar as emoções eminentes dos pacientes, viabilizando sua expressão e aceitação, mesmo que sejam consideradas desagradáveis. Entende-se que as emoções são uma via importante para dar sentido a experiência de adoecimento, hospitalização e tratamento.

Além disso, Rogers (1951/1992) afirma que "a intensidade da emoção relaciona-se com a importância percebida do comportamento para a preservação e o aperfeiçoamento do organismo". Quando um paciente apresenta um comportamento acompanhado de forte emoção no contexto hospitalar, pode ajudar a compreender o grau de envolvimento do organismo e, principalmente, do self frente à busca de satisfação de determinadas necessidades. Às vezes, a satisfação das necessidades de self podem ir contra as necessidades do organismo. A mãe de um bebê internado na UTI, por exemplo, pode ter necessidades orgânicas de descansar e se alimentar de forma adequada, mas permanece por longos períodos no hospital para atender seus ideais de self, pois seu autoconceito perpassa pela noção de maternidade (boa mãe) como aquela mulher que abdica do autocuidado para estar ao lado do filho incondicionalmente.

A melhor forma de compreender as emoções dos clientes, suas necessidades de self e suas necessidades organísmicas é mediante a atitude empática. Rogers (1951/1992) assevera que "o melhor ponto de observação para compreender o comportamento é a estrutura de referência interna do próprio indivíduo" (p. 561), a qual representa o campo perceptivo e o arcabouço de experiências que orientam os seus comportamentos. Na psicoterapia, o psicólogo hospitalar rogeriano consegue compreender melhor o comportamento do paciente quando abdica das suas condições de valia, de conselhos, de testes psicológicos ou de interpretações que dependem de inferências externas. Trata-se de um empenho do psicoterapeuta em observar o mundo da experiência do paciente, na medida do possível, através dos olhos do próprio paciente.

Apesar de restringir-se ao que é experimentado pela consciência do paciente e comunicado (à nível verbal e não- verbal) ao psicólogo, tornando alguns aspectos do campo fenomenológico incompletos, ainda assim, a empatia é a via mais confiável para compreender o significado do comportamento do paciente no contexto hospitalar. Quando o psicólogo consegue acessar a experiência do paciente mediante o referencial interno dele, vários comportamentos considerados estranhos ou atípicos passam a fazer sentido. É importante mencionar que o fato de alguns objetos da percepção do cliente encontrarem correspondência com o campo de percepção do psicólogo, bem como já ter experimentado variadas sensações (medo, raiva, luto, satisfação) em relação aos objetos, é possível acessar o mundo experiencial do paciente. A atitude empática é fundamental, pois permite que mais experiências do paciente sejam acessadas de modo consciente e que a comunicação seja mais livre de mecanismos de defesa, potencializando novos aprendizados.

O acolhimento dos usuários da saúde mental no hospital geral ainda é um grande desafio para o psicólogo humanista. Seguramente, ele será convocado pela equipe multiprofissional para classificar sintomas e definir diagnóstico. Além disso, terá que lidar com os estigmas e estereótipos comuns sobre a loucura no ambiente hospitalar, cujas categorias preconcebidas associam a pessoa em sofrimento à irracionalidade, periculosidade ou anormalidade. Assim, o psicólogo hospitalar humanista pode favorecer a construção de um novo lugar social para a loucura, baseado no reconhecimento de uma verdade do mundo percebido e experienciado pelo paciente, superando a lógica do modelo asilar em que o paciente é silenciado através de contenções físicas e químicas.

Rogers (1951/1992) alude também que "uma parte do campo da percepção total torna-se gradualmente diferenciada como self" (p. 565), cujo conceito se refere à consciência de ser, de funcionar. Os objetos ou experiências são considerados como parte do self quando são percebidos dentro do controle do self (Rogers, 1951/1992). Assim, uma experiência cirúrgica, por exemplo, pode ser extremamente ameaçadora para o paciente.

Sob o efeito da anestesia, o paciente perde o controle do seu corpo e, consequentemente, este se torna desintegrado de seu self. À vista disso, o psicólogo rogeriano pode amparar o momento que antecede à cirurgia, esclarecendo as dúvidas, acolhendo os sentimentos e trabalhando eventuais fantasias relacionadas ao procedimento, de modo a potencializar a autonomia, a capacidade de tomada de decisão e a sensação de algum tipo de controle do paciente frente à situação vivenciada.

Rogers (1951/1992) assevera ainda que "como resultado da interação com o ambiente, e particularmente como resultado da interação avaliatória com os outros, é formada a estrutura do self" (p. 566). Ele complementa que tal estrutura é "um padrão conceitual organizado, fluido, coerente de percepções de características e relações do 'eu' ou do 'mim', juntamente com valores ligados a esses conceitos (p. 566)". Tomemos como exemplo um paciente que sofre a amputação de um membro. Inicialmente, é comum o relato de desintegração do corpo (principalmente nas reabordagens cirúrgicas), sensação de membro-fantasma e perda do sentido da vida. Nesses casos, o self precisa se reorganizar para incorporar a nova imagem corporal, sendo esse processo resultado das interações ambientais, do significado atribuído ao membro faltante e do olhar avaliativo do outro.

Muitos pacientes apresentam uma percepção negativa sobre a aparência física, evitando o contato visual com o corpo e negligenciando autocuidado com o coto. A avaliação do self pelos outros traz impactos significativos, pois o estigma percebido pelos pacientes amputados promove mal-estar e redução de suas atividades sociais, gerando maior isolamento social (Gabarra & Crepaldi, 2009). À medida que o psicólogo favorece a possibilidade do paciente elaborar novos valores e percepções sobre o corpo, é provável que o paciente não reduza a parte do corpo faltante à totalidade de sua existência.

Desorganização da Personalidade e reações à hospitalização

A experiência de hospitalização é perpassada por rupturas abruptas na rotina pessoal, laboral e familiar, além de possíveis perdas simbólicas e funcionais decorrentes do adoecimento (Romano, 2002). Nesse sentido, algumas reações emocionais podem se manifestar de forma intensa no período de internamento, sendo comum um processo de desorganização da personalidade.

Para Rogers (1951/1992), "os valores ligados a experiências e os valores que fazem parte da estrutura do self são, em alguns casos, valores experimentados diretamente pelo organismo" (p. 566). Em outros casos, "valores introjetados ou tomados de outras pessoas que, percebidos de forma distorcida, parecem ter sido experimentados diretamente" (p. 566). Isso significa que nem sempre a pessoa experiencia algo diretamente através de uma apreciação organísmica para estruturar seu self, visto que pode ter introjetado valores de terceiros e gerado distorções da simbolização da experiência de outras pessoas ou negação à consciência das satisfações experimentadas (Rogers, 1951/1992).

No ambiente hospitalar, é comum pacientes recém-chegados ouvirem narrativas de outros pacientes da mesma enfermaria sobre a hospitalização e as tomarem para si. Uma simbolização acurada seria: "- Percebo que outros pacientes experimentaram situações desagradáveis e insatisfatórias para eles na hospitalização". Uma simbolização distorcida seria: "- Eu percebo a hospitalização como uma experiência desagradável e insatisfatória'".

Na pediatria, é possível também identificar algumas distorções da experiência nas crianças. Ao invés de perceber que determinados comportamentos são insatisfatórios para os pais, passam a achar que esses comportamentos são insatisfatórios por si só. O impasse da criança seria: "- Se eu assimilar à consciência que esses comportamentos são satisfatórios para mim, isso será discordante com meu self como sendo alguém digno de amor dos meus pais". A criança, muitas vezes, se comporta de determinado modo apenas para agradar os pais, sem entrar em contato com suas necessidades internas.

Além desses dois exemplos, é bastante frequente pacientes agirem passivamente durante os atendimentos psicológicos, de modo que a família responde às perguntas que são direcionadas ao paciente sobre o que pensa ou como sente frente ao adoecimento e à internação. Em alguns casos, os pacientes reproduzem o discurso dos familiares sobre sua experiência de hospitalização, como se fosse baseada na evidencia do seu próprio aparato sensoperceptivo. Assim, os valores que alguns pacientes integram à experiência dissociam-se do funcionamento organísmico, e a experiência é avaliada por outras pessoas. Tais valores passam a ser percebidos tão reais quanto os valores associados às experiências diretas e podem fazer parte da estrutura do self da mesma forma (Rogers, 1951/1992).

De acordo com Rogers (1951/1992), "à medida que ocorrem na vida do indivíduo, as experiências podem (a) ser simbolizadas, percebidas e organizadas em alguma relação com o self" (p. 572) e, portanto, são aceitas na consciência; "(b) ser ignoradas porque não há relação percebida com o self" (p. 572), visto que algumas experiências estão em segundo plano no campo fenomenológico e a pessoa se torna alheia a elas por não reforçarem, não contradizerem ou não satisfazerem nenhuma necessidade relacionada ao self; "(c) ter simbolização negada ou distorcida porque a experiência é incoerente com a estrutura do self" (p. 572), sendo muito comum nos pacientes hospitalizados em sofrimento psíquico. Ou seja, as experiências do indivíduo podem ser simbolizadas, ignoradas ou negadas, a depender da relação estabelecida com o self. (Rogers, 1951/1992).

Assim, no contexto hospitalar, o paciente pode assumir uma postura de enfrentamento da doença, integrando a nova experiência ao self, em correspondência à imagem de pessoa forte e que é capaz de lidar com as dificuldades. Por sua vez, alguns elementos da experiência podem ser ignorados por não se configurarem como prioritários pelo paciente no período de adoecimento e internação. Outro paciente pode negar a gravidade de um diagnóstico, narrando que está tudo bem, que não sente nada, que Deus opera na sua vida e que não precisa do hospital. Em outro exemplo, um paciente do sexo masculino pode sentir vontade de chorar, mas essa expressão é contraditória ao seu conceito de self de que homem não pode chorar.

Em casos mais graves, a distorção da experiência pode desencadear lutos complicados, somatizações ou sofrimento psíquico intenso no ambiente hospitalar. Trata-se de um movimento do paciente em reconhecer e ter uma reação organísmica fisiológica avaliativa e discriminatória à experiência, de forma subliminar, aos estímulos ameaçadores à estrutura do self e impedi-los de chegar à consciência; fenômeno chamado de subcepção (Rogers, 1951/1992). A ansiedade, por exemplo, é uma tensão frequente no ambiente hospitalar quando as subcepções indicam que a simbolização de determinadas experiências seria destrutiva para manutenção do conceito organizado de self.

Considerando que a simbolização acurada da experiência, normalmente, contribui para a saúde psicológica, mas que em determinadas circunstâncias pode provocar uma contradição traumática ao conceito de self ao emergir à consciência, é importante que o psicólogo hospitalar humanista seja capaz de perceber o momento mais oportuno para intervir, respeitando o tempo processual do paciente.

Acrescenta-se que a aceitação de uma percepção que altere ou expanda o conceito de self na direção socialmente aceitável parece ser quase tão complexo quanto aceitar uma experiência que o altere numa direção desaprovada socialmente. Isso significa que as percepções são negadas por serem contraditórias ao self, e não por serem reprováveis. (Rogers, 1951/1992).

Rogers (1951/1992) afirma que "a maior parte dos modos de comportamento adotados pelo organismo são os que apresentam coerência com o conceito de self" (Rogers, 1951/1992, p. 576). Nesse sentido, o self tem função reguladora do organismo. Se um paciente internado no hospital tem valores associados a um bom pai como provedor, certamente, irá se empenhar em obter realizações mediante meios que lhe possibilitem manter financeiramente a família. Ele pode ser sentir triste ou frustrado por está hospitalizado e não poder, ainda que temporariamente, assumir o papel de provedor da família.

Há situações, no entanto, que a negação desempenha uma função nesse processo. Um paciente, por exemplo, que tem um autoconceito de corajoso e precisa fazer uma cirurgia cardíaca de alto risco, pode sentir fisiologicamente o medo e necessidade de fugir da cirurgia, mas essas reações não podem ser admitidas à consciência, visto que seria contraditório com o conceito de self. Desse modo, ele não sinaliza ao médico que sente medo da cirurgia, mas apresenta dores de cabeça, enjoos ou problemas estomacais no dia da cirurgia, o que faz a equipe optar por desmarcar o procedimento. Como em muitos casos de somatização, o paciente apresenta necessidades orgânicas que não podem ser reconhecidas pela consciência. Com efeito, adota um comportamento que atenda essa necessidade fisiológica, porém através de vias que sejam coerentes com o conceito organizado de self.

Rogers (1951/1992) coloca também que "o comportamento pode ser induzido por experiências e necessidades orgânicas que não foram simbolizadas. Tal comportamento pode ser incoerente com a estrutura do self mas, em tais casos, o indivíduo não é 'dono' do comportamento" (p. 578). Tal pressuposto é exemplificado comumente em situações ameaçadoras ou emergenciais, as quais não é possível uma simbolização consciente, cabendo ao organismo através dos aspectos fisiológicos atuar na perspectiva de autorregulação (Rogers, 1951/1992).

Em tais situações, é comum o indivíduo relatar a vivência com frases do tipo 'Eu não estava em meu juízo normal' ou 'Eu não sabia o que estava fazendo'; e quanto maior a ocorrência desses processos dissociativos, maior o sofrimento psíquico que se configura como uma falta de controle sobre si (Rogers, 1951/1992).

No contexto hospitalar, alguns pacientes que se envolvem em situações de violência interpessoal ou autodirigida relatam não estar conscientes de suas ações durante o ocorrido. Trata-se de eventuais comportamentos organicamente motivados, baseado em experiências negadas, sem que tenha estabelecido relação concordante com o self. Em tais situações, é importante o psicólogo hospitalar compreender a experiência dissociativa diante do autoconceito do paciente, os sentimentos subjacentes e como isso impacta no seu processo de hospitalização.

No ambiente hospitalar, há ainda comportamentos dissociativos desencadeados por experiências psicológicas traumáticas, à exemplo de mulheres hospitalizadas em decorrência de estupro. A paciente pode ter paresia corporal com ausência de controle dos movimentos do corpo e não reagir aos estímulos ambientais logo após o evento traumático. A experiência mostrou-se desorganizadora ou ameaçadora ao self. Estratégias interventivas de pré-contato, de base rogeriana, parecem ser úteis nesses casos específicos.

Embora Rogers (1951/1992) não tenha feito menção aos efeitos medicamentosos ou dos sintomas de algumas doenças orgânicas na determinação do comportamento, é possível identificar alguns casos no hospital. Pacientes que estão saindo da sedação, por exemplo, podem apresentar comportamentos agressivos que não condizem com o seu conceito de self. Outros pacientes com neurocisticercose ou diabéticos com picos glicêmicos podem também apresentar comportamentos que não são reconhecidos pelo próprio paciente. Nesses casos, porém, não há o mecanismo de negação presente, mas o paciente pode apresentar sentimento de culpa ou angústia pela perda de controle sobre o comportamento.

Rogers (1951/1992) afirma ainda que "o desajustamento psicológico existe quando o organismo nega à consciência experiências sensoriais e viscerais significativas que, consequentemente, não são simbolizadas e organizadas na gestalt da estrutura do self. Quando essa situação ocorre, há uma tensão psicológica básica ou potencial" (p. 580). A negação constante e prolongada de experiências organísmicas resulta em tensão psicológica.

A estrutura do self, sendo uma elaboração simbólica de parte das experiências que exerce ampla influência no comportamento, passa a ter uma discrepância muito grande em relação ao organismo que experimenta, tornando-se pouco representativa da experiência organísmica. Assim, o organismo tem pouco controle consciente à medida que luta para satisfazer necessidades negadas pelo self mais rígido. (Rogers, 1951/1992).

Há dois graus de tensão: no primeiro, o indivíduo tem o autoconceito fundamentado, em parte, nas suas experiências orgânicas; no segundo, o conceito de self é abalizado quase integralmente em avaliações externas introjetadas através da negação ou distorção da experiência. Como os valores de terceiros não confluem, necessariamente, com as experiências reais do organismo, a dissonância entre a estrutura do self e o mundo da experiência passa a manifestar-se, gradativamente, como tensão. (Rogers, 1951/1992).

Podemos citar o exemplo de um familiar com conflitos pré-existentes à hospitalização do paciente. O filho que está como acompanhante apresenta um autoconceito de bom filho que foi estruturado por algumas experiências de afetividade com o pai internado, mas que foi, principalmente, introjetado por valores sociais. Antes da internação, o pai não era tão presente na vida do filho, o que despertava nele um sentimento de raiva que não era admitido à consciência durante a hospitalização, visto que precisava desempenhar o papel de um filho cuidadoso e amoroso. Instalam-se, portanto, a angústia e tensão psicológica, visto que o filho tem pouca consciência dessa tensão ou discrepância. Quando o filho inclui tanto seu afeto como a aceitação da sua raiva no conceito de self, é possível reduzir a tensão interna.

Alguns familiares que se responsabilizam pelo paciente durante a hospitalização podem apresentar também sentimento de culpa com base nas concepções que possuem sobre o que é ser um bom cuidador. Os relatos mais frequentes são: 'Eu deveria ter percebido antes esses sintomas', 'Eu poderia tê-lo convencido a procurar ajuda médica mais rapidamente'.

Conflitos pré-existentes na dinâmica familiar são bastante comuns na rotina hospitalar, sendo necessário compreender o modo de funcionamento e estruturação do self de pacientes e familiares, sobretudo em relação aos valores que interferem na hospitalização. A tensão entre a experiência organísmica e o self do paciente ou familiar é frequente, já a doença se caracteriza como um fenômeno complexo, raramente previsto, representando, deste modo, uma ameaça à estrutura da personalidade, tal como na dinâmica familiar (Lustosa, 2007).

Reorganização da Personalidade e atuação do psicólogo hospitalar

O psicólogo hospitalar que atua na perspectiva rogeriana tem como principal objetivo reorganizar da personalidade do paciente, catalisando o ajustamento psicológico através da simbolização consciente. Rogers (1951/1992) entende que o ajustamento psicológico "existe quando o conceito de self é tal que todas as experiências sensoriais e viscerais do organismo são, ou podem ser, simbolicamente assimiladas para formar uma relação coerente com o conceito de self" (p. 582). Tal entendimento remete tanto à abertura experiencial quanto à simbolização acurada de todas as experiências significativas por parte do self. Quando essa integração ocorre, a tendência em direção ao crescimento torna-se atuante e o indivíduo percebe que seu movimento é dirigido à atualização e aprimoramento de um organismo unificado, sentindo-se mais autônomo, espontâneo e com maior controle consciente (Rogers, 1951/1992). Trata-se de um processo de descobrir o seu verdadeiro self.

Desse modo, a reorganização do self de pessoas que se encontram em estado de desajustamento ocorre quando estas apresentam uma ampliação perceptiva sobre as experiências de hospitalização, também referentes ao tratamento e adoecimento. A conscientização e significação da experiência dos pacientes ou familiares no hospital, tal como os comportamentos e emoções gerados nesse contexto, podem ser englobados aos seus autoconceitos, possibilitando redução da tensão. Nesse processo, a dinâmica familiar também adquire maior fluidez e alternância de papéis para manter o sistema funcionando de forma saudável, compreendendo o sistema familiar como um organismo ampliado.

Segundo Rogers (1951/1992), "qualquer experiência incoerente com a organização ou estrutura do self pode ser percebida como uma ameaça, e quanto mais numerosas forem essas percepções, mais rigidamente a estrutura do self é organizada para preservar-se" (p. 585). Para Rogers (1951/1992), o self se organiza de modo a se preservar, julgando como ameaças as experiências percebidas como incoerentes, e, com o tempo, intensificando as respostas defensivas frente às aparições. O indivíduo percebe ou antecipa tais dissonâncias da experiência como ameaças, gerando a ansiedade como resposta à situação e comportamentos defensivos que envolvem negação e distorção da experiência, causando, ao longo do tempo, uma generalização a situações que não compreendem ameaças reais ao self (Rogers, 1951/1992).

No processo de hospitalização, as circunstâncias vivenciadas apresentam, potencialmente, grande teor ameaçador ao self, uma vez que pacientes e familiares lidam com limitações impostas pela doença, eventuais sequelas ou mutilações, perdas, lutos e possibilidade de morte. Nesse sentido, é comum apresentarem ansiedade e comportamento defensivo. Atitudes de julgamento ou de confronto podem deixar essas pessoas ainda mais ansiosas e na defensiva. Logo, a consideração positiva incondicional apresenta-se como a principal atitude facilitadora quando o ambiente é percebido de forma ameaçadora.

Rogers (1951/1992) entende que "sob certas condições, principalmente na ausência completa de qualquer ameaça à estrutura do self, experiências incoerentes com essa estrutura podem ser percebidas e examinadas, e a estrutura do self pode ser revista para assimilar e incluir tais experiências" (p. 587). Assim, ao se perceber em um ambiente acolhedor, o indivíduo tem condições mais propícias de integrar as experiências discordantes. A iatrogenia inerente ao ambiente hospitalar e a sobreposição dos aspectos orgânicos em detrimento dos aspectos psicológicos, sustentados pelo modelo biomédico, tornam o psicólogo hospitalar um dos principais atores sociais na humanização do cuidado, cujas intervenções possibilitam exploração da experiência e maior expansão e integração do self.

Rogers (1951/1992) afirma que "quando o indivíduo percebe e aceita, num único sistema coerente e integrado, todas as suas experiências sensoriais e viscerais, ele adquire necessariamente uma compreensão e uma aceitação maior dos outros como indivíduos diferenciados" (p. 590). Ou seja, a aceitação de si próprio aprimora as relações interpessoais.

As mudanças, normalmente, ocorrem da seguinte forma: a) A pessoa nega ou distorce algumas experiências ameaçadoras ao self; b) Consequentemente, as reações são defensivas e as experiências são generalizadas como ameaças potenciais; c) Logo, o ambiente e as relações interpessoais também representam ameaças; d) Não há compreensão do outro como uma pessoa diferenciada; e) A partir do momento que as experiências são integradas à consciência, as atitudes defensivas são reduzidas; e, f) O outro é percebido como um indivíduo diferenciado que atua com seu próprio aparato perceptivo. Desenvolve-se, portanto, relações menos idealizadas através de experiências reais, sendo satisfatórias para ambos. (Rogers, 1951/1992). Assim, a teoria rogeriana traz implicações importantes para as relações interpessoais, de modo que sua utilização potencializaria a interação e a comunicação na tríade paciente-equipe-família.

Por fim, Rogers (1951/1992) assegura que "à medida que percebe e aceita em sua estrutura de self uma parcela maior de experiências orgânicas, o indivíduo descobre que está substituindo seu sistema de valores atual (...) por um processo contínuo de apreciação organísmica" (p. 593). No processo de mudança impulsionado pela psicoterapia, seja de curta ou longa duração, a pessoa examina acuradamente os valores que foram introjetados e utilizados como se fossem fundamentados em sua experiência. Logo, o indivíduo percebe que seu próprio organismo oferece as evidências mais satisfatórias e confiáveis para formar e revisar seus juízos de valor através da simbolização consciente (Rogers, 1951/1992).

No hospital, normalmente, as situações-problema que geram os tensionamentos organísmicos são contextuais e pontuais, causados por adoecimentos ou acidentes abruptos, sendo possível o psicólogo atuar na reorganização da personalidade e do comportamento na perspectiva do Aconselhamento Psicológico. Os casos que demandam reestruturação da personalidade podem ser acolhidos com intervenções de apoio e compreensivas (Rogers & Kinget, 1962/1977), a família pode receber suporte psicológico e orientações sobre o processo de cuidado do paciente e a continuidade do cuidado deve ser garantida mediante articulação com a rede de atenção.

Nesse panorama teórico-conceitual, percebe-se que as possíveis interfaces entre ACP e psicologia hospitalar, permitem uma compreensão da experiência de adoecimento, do funcionamento do self frente às mudanças impostas pela doença, do modo como o organismo reage à realidade da hospitalização, da maneira como o comportamento e as emoções se manifestam no hospital e da forma como o psicólogo hospitalar humanista pode atuar.

 

4. Considerações Finais

A Teoria da Personalidade e do Comportamento de Rogers aplicada ao contexto hospitalar pode ser um caminho profícuo de movimento contra-hegemônico aos modelos biomédico e asilar, propondo uma nova ética de cuidado com reverberações nas relações interpessoais e sociais. Assim, esse estudo proporcionou uma nova visada sobre os fenômenos do adoecimento, tratamento e hospitalização, de modo a refletir acerca das demandas psicológicas comuns no ambiente hospitalar e subsidiar a prática do psicólogo hospitalar humanista mais fundamentada teoricamente.

Torna-se digno de menção que não se trata de reproduzir ou adaptar uma psicologia clínica tradicional ao hospital. O psicólogo humanista deve utilizar essa releitura da teoria da personalidade e do comportamento com o objetivo de compreender a dinâmica de funcionamento na relação organismo-ambiente e as mudanças no processo terapêutico a partir das possíveis intervenções utilizadas no contexto hospitalar. Isso não exclui o desenvolvimento de outras estratégias de clínica ampliada, sobretudo relacionadas às ações sanitárias, de educação em saúde, o trabalho multiprofissional e articulação da rede de cuidado, conforme exemplificado nos casos apresentados no decorrer do estudo.

Conclui-se que este estudo permite uma compreensão da experiência de adoecimento, do funcionamento do self frente às mudanças impostas pela doença, do modo como o organismo reage à realidade da hospitalização, da maneira como o comportamento e as emoções se manifestam no hospital e da forma como o psicólogo hospitalar humanista pode atuar. Por fim, espera-se que esse ensaio teórico sirva de mote para outros estudos teóricos e novas pesquisas empíricas sobre a aplicabilidade das teorias rogerianas em diferentes contextos de atuação do psicólogo, de modo a considerar suas especificidades e potencialidades.

 

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Endereço para correspondência
Andréa Batista de Andrade Castelo Branco
E-mail: andrea.andrade@ufc.br

Leticia Silva de Souza
E-mail: letticiasouza34@gmail.com

Bianca Veiga Prates
E-mail: biancaveiga11@hotmail.com

Recebido: 30/04/2021
Revisado: 07/07/2021
Aceito: 01/07/2021
Publicado: 08/10/2021

 

 

1 Andréa Batista de Andrade Castelo Branco: ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5371-7211
2 Leticia Silva de Souza: ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2273-2862
3 Bianca Veiga Prates: ORCID: http://orcid.org/ 0000-0001-5716-301X

 

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