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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.14 no.1 Belém jan./abr. 2022

 

ARTIGO

 

Temporalidade e Historicidade como aspectos hermenêutico-fenomenológicos para a compreensão do modo de ser do Dasein

 

Temporality And Hitoricity as a Hermeneutic-Phenomenological Aspects for Understanding Dasein's Way of Being

 

Temporalidad e Historicidad como aspectos hermenéutico-fenomenológicos para comprensión del modo de ser del Dasein

 

 

Antonio Joel Lima da Silva1 I

I Universidade do Estado do Parál

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo debater como a temporalidade e historicidade são aspectos hermenêutico-fenomenológicos que possibilitam a compreensão dos modos de ser do Dasein em Ser e Tempo. Desse modo, a hipótese levantada é a seguinte: pensa-se que o esclarecimento de como Heidegger debate estes dois fenômenos (temporalidade e historicidade) possibilitará a compreensão de como o ser em geral é relacionado ao ser do Dasein nesta referida obra de Heidegger. Sendo assim, o que se pretende, aqui, é traçar um caminho que perpasse os conceitos de ser-no-mundo e cuidado e explicar como ambos são estruturas que correspondem à essência do Dasein, para, depois, relacioná-los com a temporalidade extática e a historicidade.

Palavras-chave: Temporalidade; Cuidado; Dasein.


ABSTRACT

This article aims to discuss how temporality and historicity are hermeneutic-phenomenological aspects that enable the understanding of Dasein's ways of being in Being and Time. Thus, the hypothesis raised is the following: it is thought that the clarification of how Heidegger debates these two phenomena (temporality and historicity) will make it possible to understand how being in general is related to the being of Dasein in this work by Heidegger. Therefore, what is intended here is to trace a path that permeates the concepts of being-in-the-world and care and explain how both are structures that correspond to the essence of Dasein, and then relate them to ecstatic temporality. and historicity. Include summary.

Keywords: Temporality; Caution; Dasein.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir cómo la temporalidad y la historicidad son aspectos hermenéutico-fenomenológicos que posibilitan la comprensión de los modos de ser del Dasein en Ser y Tiempo. Así, la hipótesis planteada es la siguiente: se piensa que el esclarecimiento de cómo Heidegger debate estos dos fenómenos (temporalidad e historicidad) permitirá comprender cómo el ser en general se relaciona con el ser del Dasein en esta obra de Heidegger. Por lo tanto, lo que aquí se pretende es trazar un camino que permee los conceptos de ser-en-el-mundo y cuidado y explicar cómo ambos son estructuras que corresponden a la esencia del Dasein, para luego relacionarlos con la temporalidad extática y la historicidad.

Palabras clave: Temporalidad; Precaución; Dasein.


 

 

1. Introdução

O objetivo deste artigo consiste em debater como a temporalidade e historicidade são aspectos hermenêutico-fenomenológicos que possibilitam a compreensão dos modos de ser do Dasein em Ser e Tempo. Dessa forma, levanta-se a seguinte hipótese: pensa-se que o esclarecimento do debate acerca dos fenômenos do tempo e da história (que Heidegger chama de temporalidade e historicidade) possibilitará a compreensão da relação entre o ser em geral e o ser do Dasein em Ser e Tempo.

Sob esse prisma, o debate busca esclarecer o ser do Dasein em seu sentido ontológico-existencial no horizonte da temporalidade, do cuidado e da transcendência. Sendo assim, o que se pretende, aqui, é traçar um caminho que perpasse os conceitos de ser-no-mundo e cuidado e explicar como ambos são estruturas que correspondem à essência do Dasein, para, depois, relacioná-los com a temporalidade extática e a historicidade. Nessa perspectiva, este artigo busca contribuir com o debate acerca do ser do Dasein indicando como Heidegger afunila o caminho existencial deste ente partindo de sua condição mais geral, que é ser-no-mundo, e culminando em seu sentido ontológico mais próprio: a temporalidade e historicidade.

Na temporalidade, o Dasein é compreendido de forma total; por isso, Heidegger chama a compreensão temporal deste ente de ser-total ou ser-todo. Trata-se de dizer que o ser do Dasein foi compreendido e apreendido fenomenologicamente em sua totalidade e, portanto, em seu modo mais original. Pois, no horizonte do tempo, segundo Heidegger, o homem se temporaliza e seu acontecer é temporalização; pressupondo, assim, o arco entre vida e morte que faz do Dasein, além de temporal, histórico. Tal compreensão torna explícita a unidade extática-temporal que une vigor de ter sido (passado-presente), atualização (presente-passado) e porvir (futuro).

Desde essa perspectiva, o ser do Dasein será abordado como uma unidade entre os tempos extáticos que moldam e possibilitam o acontecer deste ente. Assim, a unidade temporal significa uma ruptura entre temporalidade original e temporalidade imprópria, de maneira que ambas correspondem respectivamente à propriedade mais própria do Dasein e a impropriedade ou o impessoal.

Ora, o tempo do relógio é entendido como tempo vulgar e impróprio. Já a temporalidade extática revela o ser autêntico do Dasein, pois, no tempo, e somente nele, o Dasein alcança uma compreensão originária de si, uma vez que, diferente do tempo cronometrado pelo relógio, a temporalidade extática possibilita a união da estrutura temporal (passado, presente e futuro) no cuidado; tornando, assim, o Dasein capaz de se projetar para além da decadência e assumir para si, cada vez mais, o seu projeto de ser, ou as possiblidades de seu ser, em outras palavras, a temporalidade extática permite a compreensão do ser do Dasein em sua totalidade (vigor de ter sido, momento da decisão e vir-a-ser/projetar-se).

 

2. A temporalidade como sentido ontológico do cuidado

Segundo a analítica existencial do Dasein, em Ser e Tempo, a essência do Dasein é descrita como ser-no-mundo; nesse sentido, ser-no-mundo é o todo estrutural que corresponde à existencialidade deste ente, que deve ser analisado e descrito de modo ontológico-existencial (Heidegger, 1927/2005, p. 10). Isso significa que descrever a existencialidade do Dasein é, sobretudo, descrever como ele se constitui originalmente enquanto ser-no-mundo - pois, "a descrição fundamental do ser humano é como ser-no-mundo, ou seja, não há dualismo, polaridade ou oposição entre homem e mundo: ser-homem é indissociável do mundo" (Roehe & Dutra, 2014, p. 107). Assim, a analítica existencial se mobiliza em esclarecer todos os momentos existências que constitui a essência do Dasein como ser-no-mundo, bem como diz Heidegger (1927/2005, p. 75):

Na questão sobre o sentido do ser, o primeiro a ser interrogado é o ente que tem o caráter da pre-sença. Em subcondição preparatória, a analítica existencial da pre-sença necessita, de acordo com o seu modo próprio de ser, de uma explicação e delimitação face a investigações aparentemente equivalentes. Mantendo-se o ponto de partida já estabelecido na investigação, deve-se liberar uma estrutura fundamental da pre-sença, o ser-no-mundo. Este ‘a priori' da interpretação da pre-sença não é uma determinação composta por adição, mas uma estrutura originária e sempre total. Não obstante, oferece perspectivas diversas dos momentos que a constituem. Mantendo-se continuamente presente a totalidade preliminar desta estrutura, deve-se distinguir fenomenalmente os respectivos momentos. Torna-se, pois, objeto de análise: o mundo em sua mundanidade; o ser-no-mundo como ser-com e ser-próprio; o ser-em como tal.

Heidegger expõe, nesse arcabouço, a maneira como ele planeja tratar a analítica existencial sobre a totalidade do Dasein, que corresponde à sua essência como ser-no-mundo. Assim, portanto, tal analítica ao lançar luz sobre o todo estrutural do Dasein acaba abrindo perspectivas dos momentos que constituem o próprio Dasein enquanto ser-aí. Trata-se de "uma analítica capaz de descrever fundamentalmente o modo pelo qual o homem é, em geral, compreendido, mas, sobretudo, o modo como o homem, a todo momento, compreende a si mesmo." (Kirchner, 2016, p. 115-116)

É necessário, contudo, reiterar que será apresentado, aqui, uma breve analítica da essência do Dasein como ser-no-mundo, para assim clarear o caminho ontológico-existencial que abre o horizonte possível para a interpretação do todo estrutural do ser do Dasein no horizonte do tempo. Por isso, buscar-se-á descrever como os modos de ser do Dasein correspondem à sua estrutura ser-no-mundo. Nesse sentido, deve-se considerar a seguinte proposição:

‘Nós, os humanos' somos tomados, aqui nesta análise, como Dasein. Este somos nós mesmos, enquanto somos o aí, o lugar, a abertura, a clareira (o Da) do ser (Sein). Nós somos aqueles que vivem na proximidade do ser, para quem o ser se clareia como o lar, a terra natal, a pátria. Somos, isto quer dizer, ao modo de um dom, um privilégio, um apanágio que não escolhemos, mas que nos escolheu, que nos é constitutivo, ontologicamente. Somos, isto quer dizer, ao mesmo tempo, ao modo de uma tarefa, de uma vocação e convocação, dito em uma palavra, a modo do ter-que-ser (zu sein) de nossa responsabilidade (Fernandes, 2006, p. 217).

Esta pode ser considerada uma compreensão do modo de ser do Dasein, pois, enquanto ser-aí, somos a clareira do ser, ou seja, onde o ser faz sua morada, por isso, Loparic (1999) diz que o homem é aquele que interroga-se sobre a questão do ser, ou ao seu sentido. Isso significa, também, que, enquanto Dasein, possuímos a tarefa e a responsabilidade de sermos o que somos, quer dizer, possuímos em nosso modo de ser uma abertura que ouve o apelo do ser. Para tanto, isso indica que, enquanto ser-aí, somos o aí (Da) do ser (Sein), ou seja, somos nós que respondemos: "presente(!)", para o chamado do ser, pois, "estamos aí para o ser" (Rocha, 2011, p. 78-79).

E, dessa forma, ser Dasein é ser, também, "o pastor do ser" (Rocha, 2011, p. 79). Ora, isso implica dizer, também, "que a linguagem é a casa do ser" (Heidegger, 2003, p. 75), em outras palavras: "o homem é o ente que se distingue de todos os outros entes por ser o Aí da manifestação de todos os entes, [...] o Aí, o a priori da pura manifestação de tudo e de todos, é o que temos-que-ser" (Loparic, 1999, p. 204). Isso nos soa como uma vocação e convocação, pois, conforme diz Fernandes (2006): "essa tarefa que nos é dada pelo ser, resume-se em uma expressão, qual seja: ter-que-ser (Zu Sein)" (p. 217). Nesse sentido, ter-que-ser representa um aspecto existencial do ser-no-mundo. Esse aspecto é entendido como um poder-se, i. e., "porque o Dasein é um poder-ser (Seinkönnen), seu modo de ser não é o de uma realidade objetivamente dada ou essencialmente determinada" (Rocha, 2011, p. 78). Assim, enquanto entes que ouvem o apelo do ser, somos tocados e provocados a perguntar pelo que é o ser, e uma vez nos colocando nesse nível de questionamento, nós mesmos já estamos incluídos na própria questão. Trata-se, em termos heideggerianos, de fazer referência à auto-compreensão ôntico-ontológica do ser-aí.

Conforme aponta Silva (2012), auto-compreender-se também diz que assumimos a responsabilidade de ter-que-ser-sempre-uma-possibilidade-de-ser. Esse tratamento da questão implica sempre um projeto possibilitador próprio de cada ser-aí, ou seja, assumimos, enquanto ser-aí, o projeto de sermos o que somos. Ora, é isso que está em jogo na questão do ser: o modo como somos e acontecemos. Como sugere a interpretação de Fernandes (2006, p. 217-218):

É que, tudo aquilo que somos, o somos não como realidade (Wirklichkeit), mas como possibilidade (Möglichkeit), como poder-ser. Nós somos as possibilidades que temos. Ter uma possibilidade, porém, é recebê-la, resguardar esta própria recepção sempre de novo, dela cuidar, para que ela se torne, de fato, o necessário, o que urge. Com efeito, todas as possibilidades que temos, as temos no modo do cuidado (Sorge). Todas as estruturas da existência se configuram num todo, que nós podemos chamar de cuidado, com outras palavras, são estruturas da liberdade. A liberdade é o fato por excelência de nossa existência e é este fato, já sempre feito e, ao mesmo tempo, já sempre por se fazer, que transforma todos os fatos de nossa existência em tarefas de responsabilização.

Fernandes (2006, p. 217-218) observa que todas as estruturas existências do Dasein se encontram num todo estrutural que se chama cuidado, no qual Heidegger, em Ser e Tempo, compreende como "cura" ou, seguindo outra tradução, simplesmente, "cuidado". Em outras palavras, os termos cuidado, liberdade e reponsabilidade, usados por Fernandes, correspondem à noção de cura, empregada por Heidegger para definir conceitualmente o todo estrutural do ser-no-mundo, como o próprio filósofo alemão nota:

Porque, em sua essência, o ser-no-mundo é cura, pode-se compreender [...] o ser junto ao manual como ocupação e o ser como co-pre-sença dos outros nos encontros dentro do mundo como preocupação. O ser-junto a é ocupação porque, enquanto modo de ser-em, determina-se por sua estrutura fundamental que é a cura. A cura caracteriza não somente a existencialidade, separada da facticidade e de-cadência, como também abrange a unidade dessas determinações ontológicas. [...] A cura não pode significar uma atitude já se caracterizada ontologicamente como preceder a si mesma, nessa determinação, porém, já se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto-a (Heidegger, 1927/2005, p. 257).

A cura é o todo estrutural do ser do Dasein sendo, pois, compreendido por Heidegger (1927/2005, p. 257) como a sua essência. Assim, a cura, "como modo de ser do Dasein, atualiza as possibilidades de cada Dasein enquanto poder-ser" (Rocha, 2011, p. 83). Dessa forma, observa-se que, mesmo aqui, ainda temos como referência para a compreensão do modo de ser do Daseina sua essência ser-no-mundo, pois, o cuidado (Sorge) significa liberdade para sermos o que somos e responsabilidade para guardar o que somos. Nessa medida, o que somos só tem sentido existencial no mundo (ser-em-um-mundo), já que, no mundo, somos afetados pelos entes que nos vêm ao encontro (ser-junto-a). Por isso, a cura é o "constitutivo que permite uma união intencional entre Dasein e mundo a partir do conceito ser-no-mundo" (Braga &; Junior, 2018, p. 160).

Nessa perspectiva, pôde-se examinar que o cuidado é a estrutura que compreende o poder-ser do Dasein e toda sua essência enquanto ser-no-mundo. Ora, pois, este, só é o que é no mundo, diante de si mesmo e do outro. Observamos, portanto, que "o homem – existencialmente, ontologicamente – se caracteriza pela convivência, pelo ser-com; o mundo do homem é mundo compartilhado" (Roehe & Dutra, 2014, p. 109-110). Assim, "o mundo se transformou num horizonte de sentidos compartilhados por entes que se compreendem e que, portanto, se encontram sempre uns com os outros, e não uns "ao lado dos outros" no mundo exterior (Duarte, 2002, p. 163). Como nota Rocha (2011, p. 83):

depois de articular o Cuidado com as estruturas existenciais dos modos de ser do Dasein, isto é depois de analisá-lo como ‘um ser lançado no Mundo', [e] depois de mostrar como o Dasein, na sua estrutura ontológica de poder-ser, tem a tarefa de realizar suas possibilidades existenciais no exercício do existir [...], vale dizer [...], que ele pode escolher no exercício de sua liberdade com suas possibilidades mais próprias é uma ‘realização' do cuidado, Heidegger, no capítulo terceiro da segunda parte do Sein und Zeit, apresenta a temporalidade (die Zeitlichkeit) como o sentido ontológico do Cuidado.

A temporalidade foi descrita como o sentido ontológico do cuidado; entretanto, é necessário observar como o cuidado compreende os momentos constitutivos do ser-aí em sua estrutura. Segundo Heidegger (1927/2005), são três os momentos que constituem a estrutura do cuidado. Tais momentos não se dão de forma separada, mas como uma unidade entre existencialidade, facticidade e decadência; ou seja, na "unidade dessas determinações ontológicas é que se poderá compreender ontologicamente o [ser do Dasein] como tal" (Heidegger, 1927/2005, p. 255-256). Conforme também aponta Benedito Nunes (1986, p. 116):

a angústia acusa a nadificação pela qual o Dasein se encontra lançado em meio ao ente que transcende. Movimento do ente ao ser aberto pelo Nada, a transcendência corresponde à estrutura da subjetividade, aderida à compreensão prévia do ser. Tanto quanto o acesso ao Nada pela angústia que a complementa, essa compreensão marca a nossa finitude, que se mostra no cuidado, como fenômeno que articula, numa só unidade, a existencialidade, a facticidade e a queda.

No cuidado, segundo Nunes (1986), articula-se toda estrutura do Dasein. Assim, como sua própria finitude, reconhecendo que o todo da essência ser-no-mundo é compreendido no cuidado. Por essa razão, este trabalho não se ocupará com existenciais como angústia, temor ou nada, pois entende-se que, de modo geral, tais existenciais já estão inclusos na estrutura do cuidado. E isso o próprio Heidegger (1927/2005) nos confirma ao dizer que a "cura não pode derivar-se desses fenômenos [angústia, temor ou nada], pois eles mesmos nela estão fundados" (p. 245). Dessa maneira, apenas a compreensão da unidade desta estrutura faz parte dos interesses deste trabalho. E, pensando nisso, explicitar-se-á cada determinação da estrutura do cuidado – para depois relacioná-la com a temporalidade - da seguinte forma:

a) a existencialidade que consiste no existir livre para poder-ser, isto é, é a capacidade própria do Dasein como possibilidade de ser o que ele é, sendo cada vez mais si mesmo a partir de suas decisões (Roehe; & Dutra, 2014, p. 109);

b) a facticidade, por sua vez, é o que nos diferencia existencialmente dos entes simplesmente dados, isto é, trata-se da "iniludível carga efetiva pela qual, nunca indiferente, sempre sentindo deste ou daquele modo, o homem, independentemente de qualquer pressuposto extrínseco, [...] existe imerso no meio do ente" (Nunes, 2016, p. 17). - Entretanto, estar imerso no ente não pode ser confundido com a fatualidade dos entes dados, pois, estes, apesar de virem ao encontro do Dasein a partir do mundo, não existem facticamente, ou seja, são indiferentes diante da convocação e do apelo do ser;

c) a de-cadência como a abertura onde o "[ser-no-mundo [está] lançado, se projeta e que, em seu ser junto ao "mundo e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio" (Heidegger, 1927/2005, p. 244).

Posto isso, é necessário acercar-nos do seguinte: se a analítica existencial nos mostrou que a cura (Sorge) é a essência da existência do ser-aí, que a partir da decadência, projeta-se e compreende-se no mundo como ser-com e ser-junto-a, como seria, entretanto, possível introduzir a questão do tempo das três determinações do cuidado? Para tanto, deve-se mostrar como o cuidado só é possível por meio da temporalidade. Nessa perspectiva, observar-se-á a seguinte proposição de Benedito Nunes (2016, p. 52):

No cuidado, três constituintes do Dasein – a existência, o fáctico ser-no-mundo e o envolvimento (queda), cada um dos quais é uma escala da compreensão de si e do mundo – unem-se no movimento de transcendência desse mesmo ser. Por isso, situado no seu irredutível aí fáctico, junto às coisas com que se preocupa, sob a estabilizada dominância da vida cotidiana, sempre está aberto ao mundo, como diante de si mesmo.

Desse modo, o movimento que une os três aspectos constituintes do Dasein, segundo Nunes (2016), chama-se transcendência. Para Braga e Junior (2018) a transcendência é um conceito-chave para a compreensão da finitude do Dasein enquanto ser-no-mundo, e isso de tal modo que, em Ser e Tempo, a

análise da angustia, os problemas do Dasein, mundanidade e realidade, assim como a interpretação da consciência moral e o conceito de morte, todos servem à consideração progressiva da transcendência, até que depois ela mesma é outra vez convertida expressamente em problema: ‘A temporalidade do ser-no-mundo e o problema da transcendência do mundo' (Braga & Junior, 2018, p. 161).

Sendo assim, é por meio deste conceito que a discussão acerca da temporalidade se inicia. E, considerando tal discussão, pode-se entender a transcendência como o movimento temporal que só é possível do todo estrutural do cuidado, ou seja, o cuidado remete à temporalidade; e a temporalidade à transcendência; e, por essa razão é compreensível dizer que, "fenomenologicamente, a temporalidade é experimentada de modo originário no ser-todo" (Heidegger, 1927/2005, p. 95) da temporalidade o movimento de transcendência é possível. Bem como afirma Benedito Nunes (2016, p. 52):

a temporalidade perfaz-se extaticamente: é a saída, o desclausuramento da subjetividade, dando conta do movimento de transcendência do Dasein, a partir de si mesmo para a derrelição no mundo e para o envolvimento pelos entes, que caracterizam a banalidade da existência cotidiana.

Desse modo, pôde-se constatar que, temporalidade, transcendência e cuidado estão entrelaçados unitariamente ao ser do Dasein, e de tal forma que a compreensão de qualquer um desses termos implica compreender o outro, porque, segundo Braga e Junior (2018), a transcendência do Dasein não é um movimento alcançado de modo subsequente à sua existência, ou seja, "a transcendência não é um comportamento a mais do Dasein em meio a outros comportamentos, mas é a constituição fundamental de seu ser" (Braga & Junior, 2018, p. 171). Nesse caso, subentende-se que na transcendência já está pressuposta a à própria essência ser-no-mundo do Dasein, pois, o " Dasein é aquele que transcende e, ao mesmo tempo, está vinculado com o que é transcendido – os entes – pois os manifesta, isto é, revela-os em seu ser (Braga & Junior, 2018, p. 171).

A bem da verdade, o transcender seria um projetar-se para fora de si, e esse movimento permite ao Dasein burlar a objetividade do cotidiano e remeter-se à morte, que é o "inultrapassável fim do ser-no-mundo, sua mais extrema possibilidade" (Nunes, 2016, p. 52). Com o vislumbre da morte, contudo, não se quer dizer o fim do Dasein, já que, para Heidegger (1927/2005), a "finitude não diz primordialmente término. Finitude é um caráter da própria temporalização" (p. 124). Nesse sentido, diante da morte

Lograríamos a compreensão própria de nós mesmos, tornando-nos aquilo que verdadeiramente somos. Assumida contra a tendência para encobri-la no envolvimento cotidiano, cessa a oscilação que polariza o Dasein, e que a Analítica acompanha, entre o plano da existência autêntica e o da inautêntica. Com a definitiva autenticidade de um si mesmo sem disfarces ou encobrimentos, alcançando numa decisão, antecipamos o fim que já somos (Nunes, 2016, p. 52-53).

A expectativa da morte, motivada pela transcendência, faz com que o Dasein se projete para fora de si. Ora, o si mesmo do Dasein é bipolar, pois está polarizado entre existência autêntica (ser-si-mesmo mais próprio) e a inautêntica (impróprio) em que, a primeira, indica a capacidade originária de projetar-se e transcender-se em função da sua finitude. A segunda é, segundo Heidegger (1927/2005), a sua imersão no mundo das ocupações ocorrentes. É dessa inautenticidade que a transcendência do Dasein liberta-o; significando, assim, ir para fora da inautenticidade e transcender-se para seu ser-si-mesmo mais próprio, pois, somente "a de-cisão de si mesma, coloca a presença na possibilidade de, sendo com outros, se deixar ‘ser' em seu poder-ser mais próprio e, juntamente com este, abrir a preocupação que libera numa antecipação" (Heidegger, 1927/2005, p. 88).

Como a experiência da morte pode e é capaz de imprimir uma existência autêntica ao Dasein? Como visto, nas linhas anteriores, a morte é a possibilidade extrema do Dasein, e não deve ser entendida como um desprendimento do mundo (Heidegger, 1927/2005, p. 102), ao contrário, "pensar na morte e falar da morte, acaba sendo um tocar e ser tocado pelo limite, pelo extremo da possibilidade da vida" (Fernandes, 2006, p. 221-222). O pensar na morte, então, impulsiona o Dasein à "decisão do agir" (Heidegger, 1927/2005, p. 102), e a "assumir aquele adiantar-se e antecipar-se no qual a presença se destranca para o poder-ser si-mesma" (Fernandes, 2011, p. 167). E é nesse sentido que a morte imprime ao Dasein uma existência autêntica, isto é, fazendo-o assumir o seu ser próprio, enquanto poder-ser.

A experiência da morte pode ser compreendida, também, de forma paradoxal, pois, ao mesmo tempo que remete o Dasein à possibilidade de poder-ser-si-mesmo, ela é a impossibilidade da vida fáctica, ou o nada que nos aflige. Não seria, justamente, a possibilidade de morrer que leva o Dasein a preocupar-se em não morrer e que, dessa forma, o faz viver de forma autêntica? Como isso, porém, acontece? Isso pode ser da seguinte maneira:

Toda a possibilidade da vida é recolhida e colhida por esta impossibilidade radical. A morte se encontra no âmago da vida. Ela não vem de fora da vida, mas emerge de seu mais íntimo, sobe-lhe de suas profundezas. Emergindo, a morte nos incumbe: morrer é uma tarefa e, na aprendizagem da realização desta tarefa, decide-se a plenitude da própria vida. Assim, a morte nos incumbe de dar sentido à vida, ou seja, à totalidade de tudo o que somos e não somos, de tudo o que é, foi ou será (Fernandes, 2006, p. 223).

Ora, se a morte conduz o Dasein ao seu si-mesmo autêntico, ela, em outras palavras, é a experiência possibilitadora do cuidado – que aqui foi percebido como o todo estrutural do ser-no-mundo. Isso porque o Dasein só percebe a sua finitude na expectativa da morte, do contrário, ele estaria imerso na ocupação dos afazeres e fazeres cotidianos. Em função disso, entretanto, "sob o foco da morte, onde o arco finda, a temporalidade extática, originária, revela-se finita, nela espelhado o sentido do Dasein em sua mesma finitude" (Nunes, 2016: 52). Ou seja, em "sentido próprio, ‘pensar na morte' é a transparência existenciária do querer-ter-consciência" (Heidegger, 1927/2005, p. 101).

Desse modo, a transcendência apresenta relevância, pois, se a morte é a possibilidade do si-mesmo mais próprio do Dasein, que, ao visualizá-la, antecipadamente, ele atinge o que realmente é sem encobrimentos. Em contrapartida, sua antecipação só é possível a partir da transcendência que, segundo Heidegger (1927/2005), possibilita a própria abertura de mundo, ou seja, transcendência é a maneira/abertura em que o Dasein se encontra diante dos entes intramundanos e dos outros Dasein como ele. Nesse caso,

O ser que, de fato, se ocupa junto ao que está à mão, a tematização do ser simplesmente dado e a descoberta objetivante deste ente já pressupõe mundo, insto é, só são possíveis como modos de ser-no-mundo. Fundando-se na unidade horizontal da temporalidade ekstática, o mundo é transcendente (Heidegger, 1927/2005, p. 167).

Por isso, Benedito Nunes (2016) diz que a temporalidade – que, como foi dito, possibilita a transcendência. A temporalidade une os três constituintes do cuidado e, por essa razão, cada um dos constituintes do cuidado se funda na temporalidade extática que, enquanto êxtases, possibilitam o sair fora ou o movimento de transcendência do Dasein, conforme segue:

Assim, o futuro fundando o poder-ser da existência, o passado fundando o ser-no-mundo fáctico e o presente a queda são, cada qual, um êxtase, um sair fora, e é o enlace recíproco entre os três, de tal modo que cada qual se produz em função de outro, o que constitui a temporalidade, também cognominada extática. (Nunes, 2016, p.52)

Esta proposição de Nunes (2016) corrobora com o que diz Heidegger (1927/2005) acerca da temporalidade, pois, o filósofo alemão, a temporalidade é um fenômeno unificador da estrutura do cuidado. Sendo assim, a "temporalidade ekstática ilumina originalmente o pre. Ela é o regulador primordial da unidade possível de todas as estruturas essencialmente existenciais da presença" (Heidegger, 1927/2005, p. 150).

O cuidado revela os êxtases temporais e, nesse sentido, passado, presente e futuro, correspondem, cada um, ao mesmo tempo, à transcendência; que, por sua vez, remete o ser-aí à sua finitude. Assim, portanto, o sentido do cuidado só é compreendido no horizonte do tempo, e o termo temporalidade, quando entendido a partir dos modos de ser do Dasein, significa temporalização. Isso quer dizer que presente, passado e futuro estão presentes quer no tempo vulgar das ocupações, quer no tempo originário; mas quando remetidos ao ser do Dasein ocorre que o substantivo temporalidade passa a ser verbo, passa a ser temporalização, pois o homem, como um ser temporal, temporaliza-se dentro do tempo.

 

3. Historicidade como estrutura do acontecer do Dasein e temporalização da temporalidade

A temporalidade extática foi descrita como o fenômeno possibilitador da compreensão dos existenciais do Dasein, que correspondem ao cuidado. O cuidado, por sua vez é visto como a essência da existência deste ente privilegiado. Sob tal prisma, ele é constituído por três aspectos fundamentais que se fundam na temporalidade extática do passado, presente e futuro.

Benedito Nunes (2016) diz, acerca da temporalidade extática, que o futuro, em seu sentido extático-temporal, é percebido como advir (Zukunft), o passado como o vigor de haver sido (Vergangenheit), e o presente como o momento da decisão (Geschenk). Deve-se, porém, ressaltar que os tempos extáticos não se definem como os tempos comuns do relógio, mas, sim, sob a condição de êxtases temporais, conforme segue:

Comecemos por notar que, pela descrição da temporalidade, nem futuro nem o passado nem o presente, interligados, correspondem aos mesmos termos na linguagem comum, ordinária. O primeiro, como advir, no qual o Dasein já está projetado, não é o termo para onde se desloca, indefinidamente, em seu presente; o segundo, como haver sido, é um passado-presente; e o terceiro, enquanto presentificar, é o agora-aqui do confrontar-se com os outros ou com as coisas. O haver sido, aquilo que já fomos, [...] faz parte igualmente do futuro. (Nunes, 2016, p. 52)

A temporalidade extática, de acordo com a proposição de Nunes, não consiste no tempo vulgar determinado, por exemplo, pela física ou pela historiografia, que contam o tempo de maneira cronológica e consecutiva. Ao contrário disso, cada um dos êxtases temporais possui um sentido temporal diferente do tempo pensado habitualmente. (Nunes, 2016, p. 55)

Nesse sentido, corroboram com a inferência de Nunes as palavras de Seibt (2010) quando diz que o futuro extático é a possibilidade de ser e a antecipação da possibilidade maior do Dasein (a morte). Ao passo que o futuro, em seu sentido habitual, é a simples espera de ocorrências. O presente "é retirado da dispersão da ocupação imediata, e é retido no futuro e no passado" (Seibt, 2010, p. 255), configurando-se como o instante da decisão.

Sobre o passado, Seibt (2010) diz que somente um Dasein que possui o vigor de haver sido pode ser afetado pelo mundo. E, dessa forma, o passado é um passado-presente, pois "[o] que nós somos por havê-lo sido não é passado, no sentido em que poderíamos desfazer-nos de nosso passado como alguém que se desembaraça de suas roupas velhas" (Nunes, 2016, p. 52), ao contrário, a temporalização dos êxtases enlaça na experiência do tempo o passado e o futuro no instante de decisão do Dasein.

A partir disso, deve-se salientar que cada um destes momentos extáticos-temporais representam a estrutura do "cuidado". E a temporalidade extática significa o horizonte de compreensão dos modos de ser do Dasein (cuidado). Além de descrever como o próprio Dasein se compreende e se interpreta enquanto ser-no-mundo e ser-para-a-morte. Sendo assim: eis "o tempo a que chega a Analítica – tempo originário, expressamente chamado de temporalidade. [...] poder-se-á dizer que ela é a condição de possibilidade do Cuidado e da compreensão do ser pelo Dasein." (Nunes, 2016, p. 52)

Segundo as palavras de Nunes, o Dasein compreende a si mesmo e aos entes intramundanos a partir da temporalidade. Isso também nos diz que o Dasein, enquanto ser ôntico-ontológico, compreende-se no tempo, ou seja, o Dasein é um ser no tempo. E é esse o motivo que faz Heidegger dizer, no § 6 de ST, que o Dasein "é" o seu passado no modo de seu ser "e sempre ‘acontece' a partir de seu futuro (Heidegger, 1927/2005, p. 48), e isso nos permite compreender que o Dasein, além de temporal, também é um ser histórico.

Diante, faz-se necessário discutir como o Dasein é um ser histórico: ele seria um ser histórico por estar na história? Ou o seu caráter histórico antecipa até mesmo aquilo que se entende como historiografia? Sim, diz Heidegger. Pois, a constituição ontológica do acontecer do Dasein é a historicidade. E "é com base na historicidade que a "história universal", e tudo que pertence historicamente à história do mundo, se torna possível" (Heidegger, 1927/2005, p. 48). Posto isso, ontologicamente, o ser do Dasein é histórico e, uma vez que ele é o seu passado no seu modo de ser, trata-se de compreender como a historicidade faz parte de sua estrutura ontológica-existencial.

Nos estudos sobre a temporalidade extática, compreendemos que o Dasein é transcendente por se antecipar para a sua possibilidade maior. Sob tal ponto de vista, ele é um ser-para-a-morte que deve assumir sempre o seu pro-jeto ou deve sempre ser um envio (ao futuro) em seu modo de ser. Indicações basearam toda pesquisa, porém, como um ser-para-a-morte, o Dasein se projeta para o futuro – como que sempre impulsionando-nos para frente ou apenas para o futuro. Dizer, contudo, dizer que o ser-aí é o seu passado no seu modo de ser, e que ele sempre acontece a partir do seu futuro, significa dar unidade historial ao seu acontecer, isto é, a historicidade deve tornar clara a unidade do arco finito entre nascimento (passado) e morte (futuro), que representam a temporização do ser do Dasein.

A essa maneira, se outrora foi discutido anteriormente o fenômeno da temporalidade extática como o "sair para fora" ou o movimento de transcendência, deve-se, mediante este ponto, tentar esclarecer como Heidegger pensa o conceito de historicidade.

Posto isso, iniciaremos a discussão sobre a historicidade com a proposição de Nunes (2016, p. 53) que diz não haver precedentes do tempo sobre a história, induzindo-nos a pensar que, historicidade e temporalidade são dimensões hermenêutico-fenomenológicas de igual importância para a compreensão dos modos de ser do Dasein. Tal intérprete observa que

[...] o ser humano em seu curso de vida, entre nascimento e morte, a mesma mobilidade extática, que inclui tanto mudança quanto permanência, é um acontecer (Geschehen) histórico. Não há precedências do tempo sobre a história. Afirma Heidegger que o Dasein ‘somente existe e pode existir historicamente porque é temporal no fundo de seu ser'. A historicidade, com que deparamos agora, nada mais é do que a mesma temporalidade, o mesmo tempo finito transportado aos dois níveis solidários, individual e coletivo da existência de ser-no-mundo, que implicam o agir e, portanto, também, a tomada de decisões. (Nunes, 2016, p. 53)

A historicidade é a temporalidade em todos seus momentos extáticos, como afirma Nunes. Ou seja, passado, presente e futuro, enquanto acontecimentos inerentes ao arco finito que compreende nascimento e morte são, ao mesmo tempo, acontecimentos historiais do Dasein. Ainda é necessário explicitar como, de fato, a historicidade pode representar a temporalização dos êxtases do Dasein. E, por isso Heidegger passa a questionar como seria possível apreender, de forma abrangente e total, os modos constitutivos do cuidado partindo da temporalidade à historicidade, movimento esse acompanhado por Heidegger como a extensão entre nascimento e morte, e que envolve movimentação e permanência. Conforme segue:

É na temporalidade que a totalidade da constituição da cura encontra o fundamento possível de sua unidade. No horizonte da constituição temporal da pre-sença, deve-se tomar como ponto de partida o esclarecimento ontológico do ‘contexto da vida' [...]. A movimentação da existência não é o movimento de algo simplesmente dado. Ela se determina pela ex-tensão da pre-sença. Chamamos de acontecer da pre-sença a movimentação específica deste estender-se na ex-tensão. A questão sobre o ‘contexto' da pre-sença é o problema ontológico do seu acontecer. Liberar a estrutura do acontecer e suas condições existências e temporais de possibilidade significa conquistar uma compreensão ontológica da historicidade (Heidegger, 1927/2005, p. 179).

Como visto, o movimento entre nascimento e morte, descritos na perspectiva da temporalidade, é a possibilidade e o fundamento da unidade totalizadora das estruturas do Dasein (Heidegger, 1927/2005, p. 177). Assim, percebe-se que, diferente do tempo vulgar, a temporalidade extática do cuidado dispersa a sucessão de agoras – tempo cronológico regulador das ocorrências – e une os tempos originários que, enquanto êxtases, significam o contexto unitário que abrange nascimento (passado-presente) e morte (futuro-presente). E ora, esse movimento específico que se estende na ex-tensão do arco finito do Dasein é denominado por Heidegger de "acontecer" do Dasein. Dessa forma, descrever as estruturas temporais e existências do acontecer do Dasein, consiste em compreender ontologicamente as estruturas da historicidade.

As colocações anteriores nos mostram que existe, da parte de Heidegger, uma crítica ao tempo vulgar, mas não somente isso. Existe, também, uma severa crítica à própria concepção de História como historiografia. Posto isso, é válido para corroborar com esta discussão as seguintes palavras:

Heidegger, assim como outros historiadores e filósofos de seu tempo, rechaçou a História tradicional. Sua crítica está no entendimento da História como o estudo do ser humano no tempo, como se a História se constituísse do conjunto de sucessões de fatos e ações passadas. O problema que Heidegger via nessa perspectiva é a do desligamento/separação do ser do presente em relação ao passado e - ainda mais grave para a percepção de Heidegger - do rompimento entre o passado e o futuro, pois essas relações seriam necessárias para a cura do Ser e a abertura para o mundo das coisas. (Silveira, 2016, p. 187)

A partir disso, entende-se o porquê Heidegger usa a palavra historicidade ao invés de historiografia ou simplesmente história. Heidegger utiliza o termo historicidade para distinguir o tempo originário do tempo simplesmente dado de forma cronológica.

A proposição, contudo, de Silveira (2016, p. 187) nos revela como o método historiográfico está alicerçado na concepção vulgar do tempo, ou mesmo na concepção de tempo pensado pelas Ciências Naturais. Ou seja, se a História estuda o homem no tempo, interessando-se apenas por momentos específicos do passado; isso significa que ainda vigora em seu método a divisão do tempo em agoras, representando um hiato entre os tempos extáticos. De acordo com Silveira (2016, p. 187), o tempo na historiografia (sucessão de agoras) configura-se como um desligamento/separação do presente, passado e futuro. Ao passo que a historicidade compreende o acontecer do Dasein a partir do enlaçamento do presente, passado e futuro, caracterizando-se como a totalidade estrutural do acontecer do homem.

Dessa forma, a culminância deste trabalho se dirige para à exposição da totalidade ontológica-existencial do Dasein descrito como historicidade. Para tanto, pretende-se situar como a historicidade é a estrutura que une passado, presente e futuro, descrevendo assim, o "acontecer" histórico do Dasein, e constituindo-se como a temporalização da temporalidade.

Sendo assim, é necessário esclarecer como a historicidade, apesar de ser a condição possibilitadora da historiografia, só é possível com bases na temporalidade extática. Por isso, elucidar-se-á como o homem só é um ser histórico por ser temporal, como afirma Heidegger (1927/2005, p. 181):

A análise da historicidade da pre-sença busca mostrar que esse ente não é ‘temporal' porque ‘se encontra na história', mas, ao contrário, que ele só existe e só pode existir historicamente porque, no fundo de seu ser é temporal. Todavia, a pre-sença deve ser chamada de ‘temporal' também no sentido de ser e estar no tempo. Mesmo sem uma construção historiográfica dos fatos, a pre-sença, de fato, precisa e se vale de calendário e relógio. Ela faz a experiência do que ‘com ela' acontece, como acontecendo ‘no tempo'.

Entende-se, com isso, que o homem por ser temporal possui uma percepção interna do tempo. E, apesar de Heidegger não negar o tempo vulgar, é necessário compreender que tanto o tempo vulgar como a historiografia representam uma negação do ser-para-a-morte. Isso acontece porque pensar em um tempo exterior ao Dasein que lhe regula os passos e suas ações a partir da instrumentalização cronológica e impossibilita-o de interpretar-se autenticamente, é o mesmo que pensar em um Dasein como um ser-para-o-presente, que vive em uma temporalização fragmentada e fixada no agora.

Da mesma forma, pensar o Dasein a partir da historiografia é tomar o passado como fundamento principal do tempo, e isso implica negar a temporalidade extática e toda existencialidade temporal discutida até aqui; caracterizando, assim, o Dasein como um ser-para-o-passado que possui sua fixação temporal naquilo que já não é mais. (Araújo, 2013, p. 39) Se, no entanto, o que se persegue é a elucidação da historicidade como temporalização da temporalidade, logo, precisa-se compreender o que é temporização. Mais: devemos descrever como somente o Dasein é primordialmente histórico.

O que é ser primordialmente histórico? Por acaso, com essa pergunta não nos vem o entendimento prévio de que existe, ainda, o secundariamente histórico? Sim. E é nisso que nos empenharemos: em descrever o que é, para Heidegger, o ser primordialmente histórico. Dessa forma, espera-se que com o esclarecimento do que é histórico em sua originariedade, esclareça-se, também, como a historicidade é a estrutura que temporaliza a temporalidade do Dasein.

No § 73 de ST, Heidegger levanta uma discussão que busca investigar a essência originária da História. Assim, ele parte das seguintes palavras:

A primeira meta é encontrar o lugar em que se deve inserir a questão originária sobre a essência da história, ou seja, a constituição existencial da historicidade. Este lugar se determina através do que é, originalmente, histórico. A consideração começa, portanto, caracterizando o que a interpretação vulgar da pre-sença entende por ‘história' e ‘histórico' (Heidegger, 1927/2005, p. 183).

Posto isso, tem-se dois caminhos: 1) compreender como se dá a compreensão vulgar das coisas históricas; e 2) a partir disso, situar, hermeneuticamente, a constituição do ser que é primordialmente histórico. Por conseguinte, analisar-se-á uma passagem do § 73 de ST, em que Heidegger levanta uma problemática acerca da condição histórica dos entes simplesmente dados:

As ‘antiguidades' conservadas no museu, os utensílios domésticos, por exemplo, pertencem a um "tempo passado" e se encontram também simplesmente dados no "presente". Se esse instrumento ainda não passou, em que medida ele é histórico? Será apenas porque ele se tornou um objeto de interesse historiográfico no cultivo das coisas antigas e regionais? Este instrumento, no entanto, só pode ser um objeto historiográfico porque, em si mesmo, já é, de algum modo, histórico. A questão se repete: Com que direito chamamos esse ente de histórico se ele ainda não passou? Ou será que estas ‘coisas' possuem ‘em si' ‘algo passado', não obstante serem ainda hoje simplesmente dadas? Será que estas coisas simplesmente dadas são ainda o que foram? Manifestamente, as coisas se modificam. ‘Com o correr do tempo', o utensílio tornou-se frágil e deteriorado. Mas o caráter especificamente passado, que faz dele algo histórico, não reside nessa contingência que continua se dando no museu. O que então passou no instrumento? O que foram as ‘coisas' que hoje não são mais? [...] Nada mais que o mundo (Heidegger, 1927/2005, p. 185).

Nesta passagem, o que está em jogo é a condição histórica dos entes simplesmente dados, a partir da crítica ao "passado" descrito como desligamento temporal que condiciona e faz dos entes dados históricos. Assim, Heidegger baseia essa sua crítica tendo em vista a seguinte questão: o que faz um utensílio do museu ganhar a condição de um ente histórico? Segundo Heidegger, é comum acreditar que relíquias de outras épocas são históricas por representarem e trazerem consigo um outro momento da história, dando-nos a impressão e sensação de que esses entes possuem em si mesmos uma disposição histórica. Ora, isso se sucede porque a fixação da historiografia no passado e nas coisas que passaram tenta imprimir aos entes intramundanos, como por exemplo, as antiguidades conservadas no museu, um caráter histórico por elas serem do passado. Dessa maneira, no sentido de ainda pertencerem a esse momento passado que já não está mais presente trazem lembranças de épocas que já não vigoram.

Percebemos, entretanto, nos argumentos de Heidegger, que existem controvérsias acerca da legitimação histórica desses entes do passado, já que, como entes que passaram, eles ainda se fazem dados no presente. Pois bem, como isso é possível? Como entes que representam o passado podem ainda estar presentes?

A resposta está no entendimento historiográfico do passado. Como foi dito, anteriormente, o passado representa um desligamento com o presente, e, por isso, entes passados são históricos aos olhos da historiografia por não pertencerem à época vigente. Logo, a controvérsia desta proposição acerca do passado é percebida, justamente, na ambiguidade que o sentido de passado ganha na historiografia, pois, se o que afirma e preserva a condição histórica das relíquias do museu é o fato de elas serem passadas, como, então, estão ainda presentes? Por acaso – pergunta Heidegger – sua condição histórica se dá na contingência que os anos lhe imprimiram ao passar do tempo?

Essa, porém, não pode ser a resposta que explique a condição histórica dos entes intramundanos, uma vez que, apesar de se deteriorarem com o passar do tempo, eles ainda são exatamente aquilo que foram no passado, isto é, entes à mão que um dia serviram para um determinado fim. Tudo se passa como se o tempo não pudesse mudar-lhes sua função, apesar de, no presente, eles não serem mais usados para o mesmo fim, em outras palavras: um vazo sempre será um vazo estando em uso ou não. Nesse sentido, Heidegger diz que não está no ente intramundano a explicação do seu fator histórico, pois, se ele ainda é e representa a mesma função que desempenhava no "passado", então, o que passou para que ele seja considerado histórico? Heidegger afirma que o que passou foi o mundo no qual as antiguidades pertenciam.

Isso torna claro alguns aspectos da crítica de Heidegger dirigida ao caráter "histórico" dos entes intramundanos, pois o mundo no qual os utensílios pertenciam, na verdade, é o mundo do Dasein. Noutros termos, o que passou foi o mundo como caráter do ser do Dasein ou as significações mundanas que o ser-aí atribuiu ao mundo enquanto abertura das possibilidades de relações entre o seu ser e os entes que estão disponíveis à mão, os intramundanos. Assim, "o caráter histórico das antiguidades ainda conservadas funda-se, portanto, no passado da pre-sença, a cujo mundo elas pertenciam" (Heidegger, 1927/2005, p. 186).

Eis a resposta à questão do que é primariamente histórico e do que é secundariamente histórico. Ao compreendermos que as antiguidades conservadas no museu são históricas apenas por fazerem parte da história de um mundo que não mais vigora, esta compreensão também diz que a própria história universal encontra-se em um degrau abaixo na primazia do que é histórico por excelência. Logo, o que é a história universal senão a história de um mundo que não vigora mais no presente? Assim, o Dasein é projetado como o histórico por excelência ou o primeiramente histórico e os entes intramundanos como secundários, já que é o Dasein quem condiciona a possibilidade histórica do mundo, e por conseguinte, a história dos utensílios do museu.

Chegamos, enfim, à seguinte constatação: a historicidade é uma autêntica dimensão existencial do Dasein, já que ela expressa a condição de tudo que é histórico, como a própria história universal. Ela revela, com isso, que a temporalização é a experiência/percepção histórica interna do Dasein, já que este não é apenas o projetar-se à sua possibilidade maior, mas é, do mesmo modo, o ente entre nascimento e morte.

 

4. Considerações finais

O debate acerca dos modos de ser do Dasein empreendido aqui neste trabalho desvelou sucintamente como Heidegger pensa o ser deste ente a partir de sua essência ser-no-mundo; e, consequentemente, como esta essência corresponde à estrutura do cuidado. O cuidado, por sua vez, remete o debate para à temporalidade, pois, para o pensador alemão, o cuidado tem seu sentido ontológico na temporalidade extática. Sendo assim, entendeu-se que os modos de ser do Dasein são temporais e unitários, ou seja, a unidade das determinações do cuidado (existencialidade, facticidade e decadência) revela, sobremaneira, o existir temporal do homem.

Nesse sentido, o todo estrutural que corresponde ao ser do Dasein permite que este ente transcenda o mundo e a si mesmo, configurando, dessa maneira, uma abertura para o ser, que Heidegger chama de transcendência. A transcendência é o fenômeno que possibilita o projetar-se do Dasein ou o seu envio para a visualização da morte. A visualização da morte torna a sua existência autêntica e própria. Afinal, esta autenticidade é, em outras palavras, a temporalização do seu ser, uma vez que no tempo, o ser-aí compreende-se e assume o projeto de si mais próprio. O Dasein deixa de se pensar fora do tempo para incluir-se no tempo junto ao mundo. E, dessa forma, ele assume sua própria história. Ele é, então, a unidade entre vigor de ter sido (passado), atualização e decisão (presente) e o porvir (futuro), ou seja, o seu ser é temporal e histórico a partir de sua estrutura total manifesta, agora, como cuidado e ser-no-mundo.

A questão levantada neste trabalho que visava compreender como temporalidade e historicidade são dimensões hermenêutico-fenomenológicas que possibilitam a compreensão do modo de ser do Dasein, deu-nos as seguintes contribuições: na temporalidade e historicidade comprova-se que a existencialidade ontológica do Dasein é temporal, uma vez que ele não é só uma possibilidade que cada vez mais põe em jogo o seu ser, mas só o é assim por já haver sido. Em outras palavras, o que o Dasein é e pode ser, só o é porque é impulsionado pelo seu passado-presente que sempre o remete ao seu devir e o coloca diante da decisão de sempre poder-ser.

Por fim, é na historicidade "que o homem se temporaliza, e o seu acontecer histórico, é temporalização" (Nunes, 2016, p. 53). Pois, como diz Heidegger (2005, p. 191):

O ente que é essencialmente por vir, [...] livre para a sua morte, nela pode se despedaçar e se deixar relançar para o fato de seu pre é um ente que, sendo seu pro vir, é de modo igualmente originário o vigor de ter sido. Somente este ente, transmitindo para si mesmo a possibilidade herdade, pode assumir o seu próprio estar-lançado e, neste in-stante, ser para o "seu tempo". Somente a temporalidade própria, que é também finita, torna possível o destino, isto é, a historicidade em sentido próprio.

 

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Endereço para correspondência
Antonio Joel Lima da Silva
E-mail: antoniojoel167@gmail.com

Recebido: 10/01/2022
Revisado: 20/01/2022
Aceito: 30/01/2022
Publicado: 18/04/2022

 

 

1 Antonio Joel Lima da Silva: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5102-3742.

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