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Revista do NUFEN

versión On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.14 no.1 Belém ene./abr. 2022

 

ARTIGO

 

Psicologia jurídica, logoterapia e apologia de Sócrates: uma interconexão de saberes

 

Legal psychology, logotherapy and the apologetics of socrates: an interconnection of knowledge

 

Psicología jurídica, logoterapia y apologética de sócrates: una interconexión de conocimientos

 

 

Alenilson da Silva Cruz1 I; Tatiana Cristina Vasconcelos2 II; Jakson Luis Galdino Dourado3 III

I Faculdade Maurício de Nassau
II Universidade Estadual da Paraíba
III Faculdade Rebouças de Campina Grande

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Psicologia Jurídica ao analisar e colaborar para uma compreensão assertiva quanto aos processos judiciais, tem no parecista, especialista que analisa a subjetividade das pessoas com base num conjunto de saberes . A Logoterapia, descreve o homem como um ser biológico, psicológico e noético. Justifica- se o presente artigo por considerar que a existência humana é permeada por sofrimento e assim mesmo, que o homem tem vontade de encontrar sentido para sua existência. O método de revisão de literatura do tipo narrativa e análise dos conceitos de forma qualitativa com descrição dialética e dedutiva. Nesse contexto, o objetivo do trabalho é descrever a dimensão noética do filósofo grego Sócrates em face da ausência de valores humanistas nas personalidades dos seus detratores, tomando como base a filosofia de Max Ferdinand Scheler.

Palavras-chave: Logoterapia; Filosofia; Existencialismo.


ABSTRACT

The Legal Psychology, when analyzing and collaborating for an assertive understanding of judicial processes, has in the parecista, specialist who analyzes the subjectivity of people based on a set of knowledge. Logotherapy describes man as a biological, psychological and noetic being. This article is justified because it considers that human existence is permeated by suffering and even so, that man wants to find meaning for his existence. The method of reviewing literature of the narrative type and analyzing the concepts in a qualitative way with a dialectical and deductive description. In this context, the general objective is to describe the noetic dimension of the Greek philosopher Socrates in the face of the absence of humanistic values in the personalities of his detractors, based on the philosophy of Max Ferdinand Scheler.

Keywords: Logotherapy; Philosophy; Existencialism.


RESUMEN

La Psicología Jurídica, al analizar y colaborar a una comprensión asertiva de los procesos judiciales, tiene en el perito judicial, un especialista que analiza la subjetividad de las personas a partir de un conjunto de conocimientos. La logoterapia describe al hombre como un ser biológico, psicológico y noético. Este artículo se justifica porque considera que la existencia humana está impregnada de sufrimiento y que el hombre tiene la voluntad de encontrar un sentido a su existencia. El método de revisión bibliográfica de tipo narrativo y análisis de los conceptos de forma cualitativa con descripción dialéctica y deductiva. En este contexto, el objetivo de la obra es describir la dimensión noética del filósofo griego Sócrates frente a la ausencia de valores humanistas en la personalidad de sus detractores, tomando como base la filosofía de Max Ferdinand Scheler.

Palabras clave: Logoterapia; Filosofía; Existencialismo.


 

 

1. Introdução

O saber jurídico fundamentado apenas no Direito normatizou todos os aspectos de um processo judicial durante longo período da História. Tal processo compreende desde o período investigativo com análise de hipóteses e provas até a fase do julgamento e cumprimento da sentença. Nessa perspectiva, da supremacia do Direito com uma abordagem puramente normativa, o comportamento era o único objeto de análise forense. A prática punitiva do século XIX procurará pôr o máximo de distância possível entre a pesquisa serena da verdade e a violência que não se pode eliminar que separa o crime maior que o que ele quis castigar (Foucault, 2014).

Em um contexto histórico jurídico em que o comportamento era o único objeto de estudo e regulamentação das normas jurídicas, havia uma certa presunção de que se estava realizando justiça social. Cabia aos legisladores regulamentar quais tipos de comportamentos não eram socialmente aceitos. Como também, aos juízes quando o comportamento era tipificado como inaceitável, julgar o grau da gravidade delituosa.

No entanto, todo comportamento é uma ação que faz parte de um aspecto maior do ser humano, que a Psicologia denomina como subjetividade. Implica compreender que, falar em subjetividade é falar num processo de produção de si, que ganha forma ao se conectar com múltiplos elementos como: as relações familiares, a mídia, a cultura, a arte, a violência social, entre outros (Parpinelli & Fabiano, 2007).

Assim, o comportamento não aceitável ele é a expressão de sentimentos e emoções. Que por sua vez, os sentimentos e emoções são também interconectados com as faculdades cognitivas, como percepção, atenção, raciocínio e etc. Portanto, ao explicitar que um comportamento é parte de uma expressão existencial, significa dizer que ao julgar tendo como único objeto de análise as ações de um ser humano, muitos outros aspectos importantes são desprezados. No entanto, o Direito despertou para sua limitação que intencionava regulamentar as relações sociais. Esse despertar resultou na adoção de outros saberes, como o médico, o psicológico e o social. Assim, a Psicologia começou a fazer parte do processo jurídico. Para Sacramento (2019) a Psicologia Jurídica traz aos autos a realidade psicológica dos agentes envolvidos enriquecendo o processo jurídico, possibilitando análise mais justa, não tendo apenas os fatos como componente único do julgamento.

Essa inserção do saber psicológico na busca de compreender todos os aspectos humanos envolvidos num contexto de jurisdição, proporciona o surgimento de um campo novo do saber e atuação para a Psicologia. Sacramento (2019) afirma que, entendemos que a Psicologia Jurídica consiste na aplicação dos conhecimentos psicológicos relacionados ao Direito.

A Psicologia Jurídica ao analisar e colaborar para uma compreensão assertiva quanto aos processos judiciais, tem um psicólogo jurídico ou parecista que analisa a subjetividade das pessoas com base num conjunto de saberes. Esses são conhecimento de Psiquiatria, Psicologia Clínica, Psicologia Social, Sociologia e Filosofia. Portanto, há de se entender que o representante da Psicologia Jurídica deve ter uma formação interdisciplinar e conhecimento aprimorada, sobretudo de sua Ciência enquanto formação acadêmica.

Na proposta de atuação de um profissional de Psicologia Jurídica, esses com formação em Psicologia Humanística Fenomenológica Existencial podem colaborar, pois a compreensão teórica conscientiza que, o existir é regulamentado por princípios como: a responsabilidade por si mesmo, a valorização da experiência individual e grupal, a qualidade da relação do psicoterapeuta ou analista existencial com seu cliente, a capacidade do homem de se autorregular frente aos conflitos intrapessoal e interpessoal, a convicção que o homem é livre e escolhe diante das situações aflitivas o caminho dotado de sentido para si mesmo.

Assim, a Psicologia Existencial é antes uma preocupação em compreender a estrutura do ser humano, e sua experiência, à qual deve, em maior ou menor grau, estar subordinada toda a técnica (May, 1986). Na intenção de realizar uma interconexão de saberes, Psicologia Jurídica, Psicologia Clínica e Filosofia, faremos no decorrer do texto uma breve análise da historicidade dos métodos de punição e do suplício vivenciado pelo filósofo grego Sócrates. Nesse contexto supracitado, é realizada uma análise do livro Apologia de Sócrates de autoria do seu mais célebre discípulo, o filósofo Platão.

Na especialização da Psicologia Clínica há uma diversidade de teorias e técnicas de intervenções psicoterapêuticas. Neste sentido, o presente artigo está fundamentado na linha teórica da Logoterapia, que teve como percursor e até os dias atuais como principal referencial, o neurologista vienense Viktor Emil Frankl.

Apreender que o ser humano não apenas é constituído pelo tradicional paradigma de Renê Descartes corpo/mente é uma contribuição muito significativa a perguntar clássica da filosofia antropológica, o que é o homem? Portanto, o homem é um ser noético que transcende suas dimensões biológica e psicológica.

A definição do termo nous em grego significa espiritual ou mente. O estudo pioneiro da dimensão nous no homem é pressuposto para outra pergunta que causa muita inquietação ao espírito, se a vida tem algum sentido? Inquieto por tal indagação existencial Frankl, ao longo da sua vida apreende a resposta e consolida sua terapia através do sentido da vida, conhecida como Logoterapia.

A axiologia do filósofo alemão Max Ferdinand Scheler exerceu muita influência nos estudos de Frankl e contribuiu para que a dimensão nous fosse definida em termos de intrínseca, única do ser humano e dotada de valores. Como também, foi referência para que este elaborasse sua própria axiologia com fins de subsidiar sua psicoterapia. O foco da presente pesquisa é descrever a dimensão noética do filósofo grego Sócrates em face da ausência de valores humanistas nas personalidades dos seus detratores, tomando como base a interconexão dos saberes da Psicologia Jurídica, Psicologia Clínica e Filosofia.

O contexto da obra Apologia de Sócrates descreve as últimas experiências existenciais referentes à acusação, julgamento, anúncio e cumprimento da sentença. Os últimos registros históricos atribuídos ao seu discípulo Platão. No contexto da análise existencial, portanto, será descrito a dimensão dos valores por meio de uma leitura fundamentada na ética de alguns filósofos existencialistas e clássicos a exemplo de Scheler, Fromm e Epicuro.

Sócrates, réu acusado e condenado por crime de impiedade, que neste período sua tipicidade era negar ou ofender a Teogonia do poeta Hesíodo. Na concepção religiosa desta época convinha acreditar que se os deuses fossem ofendidos eles amaldiçoariam os cidadãos atenienses, o homem que demonstra piedade terá a misericórdia do Deus (Hesíodo, 1979).

Justifica-se o presente artigo por considerar que a existência humana é permeada por sofrimento e assim mesmo, que o homem tem vontade de encontrar sentido para sua existência. No entanto, no percurso existencial, lamentavelmente, é comum o ser humano desviar-se de uma vivencia significativa, recaindo em experiências delituosas. Nesse aspecto, os saberes: da Psicologia Jurídica, Psicologia Clínica e Filosofia são aliadas de suma importância para o Direito normatizar um padrão de conduta.

Nesse contexto, a presente produção acadêmica tem como objetivo geral descrever a dimensão noética do filósofo grego Sócrates em face da ausência de valores humanistas nas personalidades dos seus detratores, tomando como base a filosofia de Max Ferdinand Scheler.

 

2. Metodologia

O presente artigo tem dois eixos de conhecimento, Filosofia e Psicologia. Quanto as obras filosóficas são autores representantes desde a Filosofia Antiga até a Filosofia Contemporânea: Epicuro e sua Carta Sobre a Felicidade, Max Scheler e sua obra axiológica Da reviravolta dos valores, Hesíodo e sua obra Teogonia como clássico da mitologia grega. Por fim, as duas obras pilares da confecção do presente texto, Apologia de Sócrates do discípulo Platão e um clássico da crítica social na contemporaneidade, Vigiar e Punir: nascimento da prisão, autoria de Michel Foucault.

No que concerne a literatura de Psicologia representativa da Logoterapia temos Viktor Frankl com as seguintes obras: Em Busca de Sentido: Um Psicólogo no Campo de Concentração; A Presença Ignorada de Deus; Psicoterapia e Sentido da Vida: Fundamentos da Logoterapia e Análise Existencial; O Que Não Está Escrito nos Meus Livros.; A Vontade de Sentido. A autora Elizabeth Lukas e sua Psicologia Espiritual. Há também o psicanalista Erich Fromm com sua obra Análise do Homem. Como também, o psicólogo existencialista Rollo May e sua obra Psicologia Existencial.

As obras supracitadas são fontes primárias por se tratarem de literaturas clássicas consagradas pela pesquisa científica e prática profissional. São as expressões dos próprios autores sobre suas teorias, métodos de pesquisa, intervenções filosóficas e técnicas de cuidados do homem que sofre. Vale ressaltar a presença como fonte de saber de dois autores brasileiros, a psicóloga Izar Xausa e sua obra A Psicologia do Sentido da Vida (Xausa, 2011); e a presença marcante do antropólogo e sociólogo Vanderlan Silva, pesquisador do sistema carcerário brasileiro, tendo como uma de suas obras o livro Conflitos e violência no universo penitenciário brasileiro (Silva, 2008).

A revista eletrônica intitulada de Cadernos de Psicologia Jurídica: Psicologia na prática jurídica, publicada pela Associação Brasileira de Psicologia Jurídica - ABPJ, um artigo no eixo teórico da Psicologia Social que apresenta estudo sobre subjetividade, são fontes bibliográficas que nos auxiliou numa reflexão assertiva sobre a experiência do encarceramento.

Os critérios que fundamentaram escolher os periódicos eletrônicos foram apresentarem conteúdos de Psicologia Jurídica, que estivessem intimamente relacionados com a pesquisa bibliográfica de conteúdo clássico, realizada pelo autor do presente artigo científico. Consequentemente, possibilitasse uma fundamentação de pensamentos e entrelaçamento de conceitos, convergindo na construção reflexiva para pensar criticamente a Psicologia e o Direito nos moldes da atualidade.

Os argumentos do presente artigo são de acordo com o método dedutivo. Desde o tema, os objetivos e justificativas subsidiando os resultados e discussões como descrição do conteúdo das etapas citadas. No que se trata da análise e compreensão do tipo qualitativo por analisar e descrever conceitos, termos e argumentos dos autores que compõem a presente produção acadêmica.

Quanto as etapas na construção do presente trabalho, a ordem didática foi a definição da linha de pesquisa, pesquisa bibliográfica de autores clássicos e contemporâneos, elaboração de projeto, passagem para a escrita do artigo. Ressaltando que todo o processo sob supervisão acadêmica. Como todo o processo de pesquisa e escrita foram fundamentados em publicações já realizadas, não houve pesquisa de campo e nem submissão a comitê de ética. Portanto, toda a fonte de informação foi bibliográfica.

 

3. Resultados e Discussão

No presente texto abordamos os tópicos a seguir com breve descrição com finalidade introdutória: Suplícios passados e presentes e os desafios para a Psicologia ser humanista - breve descrição do desenvolvimento do direito criminal e a aplicabilidade das punições.

Os tópicos supracitados contêm os objetivos do nosso estudo de revisão da literatura como exposto adiante: A desumanidade dos detratores de Sócrates - realizada descrição do perfil dos traços psicológicos dos acusadores de Sócrates no tribunal de Heliastes; o enaltecimento da virtude e o ressentimento humano - síntese dos estudos sobre de uma parte do conjunto teórico de Max Ferdinand Scheler pouco abordado na academia; compreendendo a dimensão noética - descrições das diversas, mas coerentes definições do conceito de dimensão espiritual de acordo com a Terapia do Sentido da Vida ou Logoterapia

 

3.1 Suplícios passados e presentes e os desafios para a psicologia ser humanista

No livro Vigiar e Punir, cuja autoria de Michel Foucault, na primeira parte, nos capítulos I e II, denominados respectivamente: Os corpos dos Condenados e A Ostentação dos Suplícios, descreve de forma histórica os modelos de punição outrora vigentes. Modelos de suplício para condenados por crimes graves. Com base na leitura desse capítulo podemos compreender que os suplícios nos séculos XV à XVII, intentavam como sistema socialmente aceito desenvolver pavor na massa. Assim, criar modelo punitivo que visava exemplificar para as pessoas que assistiam a verdadeiros espetáculos de horror não cometerem crimes. Podemos abstrair o método de usar da crueldade na intenção de evitar outras crueldades. Constituindo assim, uma tecnologia do poder para obtenção de resultados esperados. A execução pública é vista então como uma fornalha em que se acende a violência (Foucault, 2014).

O suplício, como ostentação da justiça, realizada pelos poderes socialmente constituídos, tinha um caráter vingativo, cuja intenção era de punir de forma severa o crime cometido. Exercer justiça pela imposição do sofrimento de múltiplas formas: sofrimento ao corpo, parte mais visível do sistema de punição, sofrimento a alma e sofrimento social pela exposição agonizante do criminoso em público. Nesse sentido, Foucault (2014) afirma que: o suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento. Mas, não é só, essa produção é regulada. O suplício faz correlacionar ao tipo de ferimento físico, a qualidade, a intensidade, o tempo dos sofrimentos com a gravidade do crime, a pessoa do criminoso, o nível social de suas vítimas.

O suplício, como modelo de punição para pessoas condenadas por crimes cometidos contra a vida de outrem, ressuscita um outro modelo de jurisdição de civilizações antigas, em que o princípio era o de justiça executada de acordo com a lei mosaica, ‘do olho por olho e dente por dente'! Impor punição na mesma ou maior medida do crime outrora praticado pelo contraventor, de tal modo a fazer com que o criminoso experimentasse as mesmas sensações de sofrimento físico e mental que sua vítima. Em plena idade média os modelos de jurisdição e de aplicabilidade da justiça não se diferenciavam dos moldes de jurisdição das primeiras civilizações.

O que é muito intrigante das primeiras civilizações até as sociedades europeias da idade média é o modelo de jurisdição e punição serem focados no suplício do corpo. Vale ressaltar que, o corpo tinha uma simbologia muito importante para a execução das penas. O corpo como patrimônio vital dos criminosos. Portanto, infligir penalidades cruéis ao corpo como método de fazer com que o sujeito criminoso sentisse em sua própria pele o ardor da vingança socialmente aceita e regulamentada. Na atualidade é demasiado aceitar que o suplício nessa perspectiva tinha de fato uma intenção de realização da justiça. O corpo supliciado se insere em primeiro lugar no cerimonial judiciário que deve trazer à luz a verdade do crime (Foucault, 2014).

As formas de suplício eram chicotadas, esquartejamento, decapitação de mãos, braços, línguas, marcar com ferro quente a pele, derramar substâncias químicas em estado de efervescência sobre a pele purulenta depois de inúmeros açoites. E, quando o criminoso vinha a óbito, seus restos mortais eram expostos nas beiras de estrada, expostos em patíbulo de praças públicas, como também os membros separados por um carrasco eram cremados publicamente. Um espetáculo de vingança socialmente regulamentada e aceita .Certamente, ainda na atualidade a memória da massa está impregnada por essa ‘tecnologia do poder', fazendo uso da expressão de Michel Foucault. Assim sendo, por essa razão, a maioria dos populares não verem outra alternativa a não ser banir a violência com o emprego da crueldade. Uma forma de memória ancestral inconsciente.

No caso das civilizações europeias, houve uma transição paulatina na execução da justiça em que o corpo demasiadamente supliciado, divide com a alma os castigos impostos pela jurisdição e o sistema de penalidade. Pois, não é mais o corpo, é a alma. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições (Foucault, 2014).

O sistema de jurisdição e de aplicabilidade de penas realizou transição da punição do corpo para a alma. O suplício moderno se desenvolveu com vistas a punir na dimensão psicológica. Ao invés do suplício relatado no início desse tópico, houve um redirecionamento do sistema punitivo. Assim, surge um sistema mais complexo para regulamentar um sistema de suplício que castigue de forma cruel, mas objetivando não deixar marcas visíveis. Elaboração de legislação, criação de presídios, recrutamento de profissionais especialistas em saúde mental, como psiquiatras e psicólogos. Tudo com objetividade para retirar do sujeito criminoso o seu bem mais precioso na vida moderna, a liberdade. Liberdade retirada que é substituída pela solidão do isolamento carcerário.

No cotidiano de uma pessoa presa, é dilacerante a experiência do isolamento social proveniente das singularidades do cárcere, conforme descrição a seguir:

Chicó: Rapaz, é muito ruim, me sinto mesmo assim, uma pessoa, não me sinto nem uma pessoa. Eu sofro muito aqui nas visitas, inclusive minha família não vem porque não tem condições e é muito ruim, que é muito ruim você ver muita gente tendo sua visita, né? E você não tendo. Isso, se você não tiver, é aquela, tal, se você não tiver uma mentalidade muito formada, você faz besteira.

A solidão proveniente da quebra de vínculos assíduos com parentes, amigos, colegas de trabalho é um sentimento dilacerante para a alma do apenado. Uma solidão resultante como imposição do encarceramento. Com certeza, a condição existencial marcante de um suplício moderno do sistema de jurisdição. Silva (2008, p. 145), relata quanto ao sentimento de solidão:

A luta desenvolvida pelos internos para manter seus visitantes, em especial as mães e mulheres, campeãs em visitas como frequentadoras semanais ou ocasionais daquela instituição, expressa a aspiração em procurar conservar as relações que lhes restam como possíveis.

Nesse contexto, temos um desafio para a Psicologia na atualidade: destacar uso da violência como método de punir, enfatizando que é uma contrariedade histórica combater violação dos direitos de outrem com métodos de crueldade. Os profissionais de Psicologia atuando em instituições carcerárias precisam se comprometer com a humanização dos métodos que visam a recuperação dos carcerários. Não corroborar um sistema equivocado de punir um comportamento não desejado pela instituição e pela sociedade.

Para quem dispõe de sensibilidade emocional, aceita a proposta reflexiva a seguir: parte significativa dos apenados, quando eram crianças e adolescentes adquiriram a maturidade biológica, no entanto não desenvolveram inteligência emocional, porque cresceram num arranjo familiar, em que as relações com os genitores eram condicionadas a violação dos seus próprios direitos. Apenados que quando crianças e adolescentes vivenciaram suas mães sendo vítimas de violências físicas, emocionais, financeira e espiritual.

Apenados que também sofreram severos castigos físicos, cresceram ouvindo de seus genitores expressões que culminaram com construção de uma baixa-estima. Sem esquecer de mencionar privações de alimentos, vestuário, educação, moradia. Portanto, muitos dos detentos já foram desumanizados nos seus primeiros estágios de desenvolvimento psicológico, social e biológico.

Nesse aspecto abordado, o profissional de Psicologia tem o desafio de facilitar a verdadeira reconstrução da história do apenado, contando sua história para fatos anteriores ao início da prática dos crimes. Levando em consideração experiências traumatizantes da sua infância e adolescência. Colaborando para a reconstrução da ‘escrita de si mesmo', fazendo uso da expressão de Foucault. Sensibilizando as instituições a adotarem métodos de ressocialização que potencializem a reumanizacão, de quem, outrora, também foi negligenciado pelas pessoas que tinham o dever moral e social de cuidar e amparar. Reumanizar e posteriormente, ressocializar, deveriam ser os imperativos de bons planos de ressocialização das instituições carcerárias.

O profissional de Psicologia deve evitar a postura profissional de ser um parecista em processos judiciais, que valide o sistema carcerário com suas desumanidades. Deve sim, como profissional que compreende a psiquê, atuar com assertividade para ao menos contar a história pregressa, para contextualizar o envolvimento do apenado nos atos ilegais.

 

3.2 A desumanidade dos detratores de sócrates

A posterior, quatro argumentos descritos dos algozes de Sócrates que segundo os mesmos eram razões pelas quais se justificaram o contexto de julgamento ao qual ele estava submetido. Na primeira, fica claro o sentimento de leviandade, de que havia um certo Sócrates, homem sábio, que se ocupava dos fenômenos celestes, investigava o que se passava debaixo da terra e era capaz de fazer prevalecer as boas e as causas más (Platão, 1997).

Na segunda e terceira das acusações fica claro, respectivamente, os sentimentos de cobiça e impiedade (não venerar os deuses da Teogonia grega). Mas, se nada disto é verdadeiro, tampouco o é a afirmação que tendes ouvido fazer de que me ocupo a instruir as pessoas a troco de dinheiro. Desta forma, Sócrates é culpado de corromper a juventude e de não crer nos deuses em que crê a cidade, mas em divindades novas (Platão, 1997).

Na quarta acusação fica clara a inveja, "E será isso que causará a minha perda, se eu for condenado, não Meleto, nem Ânito, mas a calúnia e a inveja de muitos" (Platão, 1997, p. 26).

Nesse sentido, o filósofo Scheler afirma quanto as intenções maléficas da inveja:

A inveja que libera a mais forte formatação e conformação do ressentimento é, por isso, aquela inveja que se direciona contra a essência e o ser individual de uma pessoa estranha: a inveja existencial. Esta inveja sussurra continuamente: "eu posso te desculpar tudo, a única coisa que eu não posso te desculpar é o fato de que tu és e és a essência que tu és, apenas o fato de eu não ser o que tu és; sim, que eu não sou tu (Scheler, 2012, p.56).

O poeta Meleto, o político Ânito e orador penal Lion, foram os acusadores formais no tribunal de Heliastes. Sequiosos de inveja, além de motivados pela soberba de sua ideologia helenística e, ávidos para expressar seus juízos moralíssimos de ressentimentos, acusaram Sócrates de ser arrebatador de jovens e anciões.

 

3.3 O enaltecimento da virtude e o ressentimento humano

Diante da riqueza axiológica do pensamento de Scheler o princípio é o significado da virtude. Assim, o filósofo mencionado situa a virtude no tempo:

Enquanto hoje se associa à palavra um esforço penoso, em relação para com algo que não se mostra para outras pessoas, naquele tempo se falava com prazer sobre o "brilho" da virtude, sobre a joia que ela concedia, comparando-a assim as mais valiosas e belas pedras preciosas Scheler (2012, p.21).

Scheler resgatou a importância da reflexão ética sobre o significado da virtude, inspirando-se na cultura grega e romana que a reconhecia como meta para existência humana. O tornar-se virtuoso como meta da filosofia da educação e mitologia. Neste sentido, o homem moderno ao separar-se do conceito de virtude e de sua implicação construtiva na subjetividade perde o brilho de sua própria existência.

Permanecendo muito materializado frente a si mesmo por ter como meta o desenvolvimento de habilidades. Assim, relegando seu crescimento moral a um plano secundário de intenções. Quando for possível ainda perceber em algum nível intenção de crescimento moral. Conforme Scheler (2012, p.21) afirma:

É suficiente para nossa era do trabalho e do êxito falar de "habilidade". Daí os virtuosos de nosso tempo serem tão pronunciadamente feios, desprendidos do homem; deles terem se tornado, tão intensamente, a norma da vida monstruosidade independente, a qual chamamos "negócio" ou "empreendimento": os homens de gosto cultivam a virtude, em sua máxima altives, sem palavras, atenciosamente refletidos no que quase não deixam vir a manifestar-se.

Deste modo, compreende-se que a virtude é traço de personalidade imprescindível para a subjetividade no processo de tornar-se pessoa ética. Como também, as pessoas virtuosas não são percebidas porque não são procuradas, mas nem por isso inexistam na atualidade.

Outra reflexão da axiologia de Scheler é o estudo do ressentimento na criação e recriação da subjetividade. O fazer-se homem, tornar-se homem e expressar-se como homem perpassa a adoção de valores morais. O homem da época de Scheler era percebido repleto por ressentimento. Em decorrência do contexto político, social e filosófico da Europa do século XX. No entanto, o que compreender por ressentimento?

Duas respostas de acordo com o próprio Scheler, definem: a primeira como o ressentimento é um envenenamento pessoal da alma, com causas e consequências bem determinadas. A segunda, o ressentimento é um revivenciar da emoção mesma – um sentir após, um sentir de novo (Scheler, 2012).

Ressentimento é um todo que pode ser representado por unidades tais como o sentimento de vingança, leviandade, maldade, cobiça, rancor, inveja, dentre outros. Sentimentos tão presentes nas relações interpessoais que carecem de adoção de valores éticos. No entanto, o ressentimento como forma de relação interpessoal pode ser verificável muito antes do nacionalismo alemão.

 

3.4 Compreendendo a dimensão noética

A Logoterapia enquanto conhecimento científico sobre o homem define-o como um ser biológico, psicológico e noético. Três dimensões distintas que podem se harmonizar a partir do nous. De acordo com Xausa (2011, p.137), a definição do que é o homem na perspectiva da teoria em estudo, como sendo:

O homem é uma entidade bio-psico-espiritual. A Logoterapia expressa assim o somato, psico e noogênese. O espiritual refere-se ao noos ou logos (nous) e pode ser chamado de noético. A espiritualidade é uma das dimensões do ser humano. O ser humano enquanto sujeito é existencial-espiritual. O espiritual vai mais além do religioso ou do sobrenatural.

Fica bem definido que enquanto conhecimento científico sobre o homem, delimitação em três dimensões distintas, a saber: biológico, psicológico e noético. Frankl, não conformado com a dualidade cartesiana de corpo/mente, base para o desenvolvimento da Psicologia em seu tempo, compreende que a estrutura do ser humano transcende conflito díade. Como alternativa Frankl (2011) estabeleceu em sua teoria, a ontologia dimensional está longe de resolver o problema mente-corpo. No entanto, ela explica porque tal questão não pode ser solucionada. Inevitavelmente, a unidade do ser humano – unidade essa, apesar da multiplicidade do corpo e mente – não pode ser achada em suas faces psicológica, nem biológica, mas deve ser procurada em sua dimensão noológica, da qual o homem foi, de início, projetado.

A Logoterapia expressa à interconexão das dimensões biológica, psicológica e noética. Assim sendo, o homem sapiens relativo à ciência positivista é superado pela análise existencial como pessoa existencial-espiritual. Pessoa esta que, vivencia suas experiências preservando sua integridade psicológica e física pela vontade de encontrar sentido para sua vida. Existir, vai muito além do que preservar suas funções biológicas e cognitivas.

Então, para quê convergir toda potencialidade orgânica, emocional e espiritual? Certamente, alcançar a concretização de uma autotranscedência a partir da criatividade, da vivência dos valores humanistas e da atitude ética. Tão somente possível quando o para quê é satisfeito com uma resposta significativa. Frankl (2003, p.98) esclarece quanto à atitude de ser- responsável diante da vida que:

Não se deveria procurar um sentido abstrato da vida. Cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que esta a exigir realização. Nisto a pessoa não pode ser substituída, nem pode sua vida ser repetida. Assim, a tarefa de cada um é singular como a sua oportunidade específica de leva-la a cabo.

Frankl, apesar de estar no complexo dos campos de concentração de Auschwitz como prisioneiro, dedicou-se aos cuidados dos irmãos judeus enfermos e outros, exercendo seu ofício de médico, e, sobretudo o de psicólogo. Pois, num contexto em que os cuidados médicos não tinham objetivo de curar os enfermos, apenas prolongar os sofrimentos dos mesmos, desenvolver atendimentos psicológicos no campo de concentração foi sem dúvida a principal tarefa significante.

Provocar os companheiros que tanto sofrimento deveria ter um sentido a ser apreendido. Compreender que a vida exigia respostas naquele momento poderia proporcionar esperança no futuro de liberdade de escolhas e reconquista da própria autonomia da vida. Imagine um Frankl cabisbaixo e pessimista entregue a crueldade alheia sem assumir uma atitude de liberdade interior frente o contexto delicado dos campos de concentração de Auschwitz?

Então, como descrever as características da dimensão noética? Frankl (2003) elucida, em suma, cada pessoa é questionada pela vida; e ela pode somente responder a vida respondendo por sua própria vida; a vida ela somente pode responder sendo responsável. Assim, a Logoterapia vê na responsabilidade (responsibleness) a essência propriamente dita da existência humana.

A responsabilidade diante da própria existência é o papel considerável intrínseco da dimensão noética na perspectiva Logoterapêutica. Ser-responsável é por excelência a atitude que a vida espera do vivente. Assim, no contexto dos campos de concentração Frankl prometeu a si mesmo não abreviar sua vida de maneira intencional pelo suicídio. Responsabilidade para preservar sua própria vida apesar do contexto social não ser favorável à manutenção da mesma.

Conforme Frankl (2003) relatou após a libertação do campo de concentração, na primeira noite em Auschwitz, pouco antes de adormecer, fiz a mim mesmo a promessa, uma mão apertando a outra, de não "ir para o fio". Esta expressão corrente no campo, designava o método usual de suicídio: tocar no arame farpado, eletrificado em alta tensão.

Responsabilidade como atitude frente ao desespero e angústia nos momentos permeados por sofrimento e ausência de discernimento para a própria vida. Contudo, para agir de modo responsável, se faz necessário, outros pré-requisitos como decidir e discernir. Porém, a fim de poder decidir, ela deve ser capaz, de alguma forma, de discernir. E ambas as ações, decidir e discernir, são próprias de algo espiritual (Frankl, 2004).

Quanto à consciência na dimensão noética "em síntese, a consciência é um órgão de sentido. Ela poderia ser definida como a capacidade de procurar e descobrir o sentido único e exclusivo oculto em cada situação" (Frankl, 2004, p. 68). Neste significado Frankl reconhece o potencial do homem, de sua consciência como norteador existencial para encontrar o sentido de cada situação conflituosa.

Ademais, consciência é um instrumento pelo qual uma voz o sensibiliza quanto às escolhas da vida que devem ser feitas com o sentimento do amor, por sua vez, o mais nobre que uma pessoa existencial-espiritual dedica a outra pessoa existencial-espiritual ou a realização de uma missão. Na verdade, somente o amor, e somente ele, é capaz de ver a pessoa na sua singularidade, como o indivíduo absoluto que é (Frankl, 2004).

A dimensão noética, é uma expressão do existir. Assim, imprescindível para questionar uma visão persistente da ciência positivista em que duas dimensões são antagônicas e conflitantes entre si. A razão do conflito não é ser diferente, mas reconhecer a dimensão noética acima das dimensões biológica e psicológica para que o homem se aproxime, daquilo que verdadeiramente ele deva ser em sua natureza mais íntima e real. Portanto, a dimensão espiritual harmoniza o corpo e a psique.

 

3.5 A dimensão noética do filósofo sócrates

Platão (1997, p.66) descreve a voz da consciência de Sócrates no diálogo com Críton:

Se deixares esta vida agora, morrerás vítima de uma injustiça, praticada não por nós, as leis, mas pelos homens; se, pelo contrário, te evadires assim vergonhosamente, respondendo a injustiça com a injustiça e ao mal com o mal, violando os teus compromissos e os acordos que fizeste conosco, e prejudicando aqueles a quem menos devias prejudicar, a ti próprio, aos teus amigos, a tua Pátria [...]

Eis aí a voz da consciência de Sócrates. O sentido último de sua vida. Não abandonar seus valores e virtudes. Não temeu a injustiça dos seus algozes a qual deveria se libertar de maneira voluntária. Sua vontade de ser justo até o último momento existencial foi maior que a tentação da aparente liberdade de fugir da prisão como sugerido e arranjado por todos os meios por seu discípulo Críton. Neste sentido, Fromm (1964) descreve consciência como convocação do homem para si mesmo, e analisa o significado do cumprimento da sentença de morte, quando compreende que, Sócrates preferiu a morte a adotar uma linha de ação em que teria de trair sua consciência fazendo acomodações com a verdade. Se não existisse a consciência, a raça humana há muito tempo teria ficado atolada em seu atribulado caminho.

Frankl (2010, p.95) ao analisar a relação intrapessoal do homem com sua dimensão noética afirma:

Na sua vivência, vão ao encontro da instância que os incumbe da missão. Vivem a missão como mandato. A vida deixa transparecer neles a presença de um mandante transcendente. E é com isto, a meu ver, que se poderia desenhar um dos rasgos essenciais do homo religiosus: aquele homem em cujo ser-consciente e ser responsável se dão conjuntamente a missão vital e o mandante que lhe confere.

Desta forma, a morte não prevaleceu sobre sua história de vida e o que construiu como educador da psique. Críton precisava desta última lição espiritual. Um homem não deve temer a finitude da vida se antes deste momento viveu dignamente de acordo com valores éticos humanistas, e seu labor foi produtivo de modo que deu sentido a sua própria vida e além das outras mais a quem foi possível dotar de sentido.

Portanto, o amor aos seus ensinamentos, seu ser-consciente e ser-responsável, a sua ética singular para seu tempo, sua virtude de ser prudente, de viver de acordo com o sentido que sua consciência lhe falava, a responsabilidade diante de si mesmo que sabe que uma vida ceifada é aquela que foi um projeto de outrem, a responsabilidade diante de seus discípulos que ficariam desapontados e desacreditados na Filosofia de seu mestre são significados que constituem a dimensão noética do filósofo grego Sócrates. Platão (1997, p.28), afirma quanto ao sentido da vida do mestre Sócrates:

Se, apesar de tudo isto, me dissésseis: Sócrates, não daremos crédito às acusações de Ânito, mas só te absolvemos com uma condição, a de não mais te entregares a esse gênero de pesquisa e de renunciares à Filosofia. Se fores apanhado nestas atividades, morrerás; se isto que acabo de dizer fosse a condição que me impusésseis para me absolver, dir-vos-ia: atenienses, tenho por vós consideração e afeto mas antes quero obedecer ao deus do que a vós, e, enquanto tiver um sopro de vida, enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de filosofar e de vos advertir e aconselhar.

Sócrates mesmo estando preso, era livre, pois seu amor pela Filosofia o libertara do temor pela finitude da vida, como também do julgamento alheio que não compreendia a natureza libertadora e espiritual de seus ensinamentos. Enquanto filósofo dedicou sua reflexão e dialética ao nascimento de espíritos livres. Não seria ele próprio autor da liberdade em seu tempo que se sentiria aprisionado pela sentença injusta do tribunal de Heliastes.

Sócrates não deixou se moldar pelo suplício da condenação a perda da liberdade e de sua vida. Esse momento existencial deve inspirar um psicólogo jurídico a compreender que a verdadeira condenação a privação de liberdade, é a renúncia de valores, renúncia de um sentido de vida. Portanto, pessoas que se iniciaram em comportamentos criminosos já perderam antecipadamente, o direito de viver de forma virtuosa e com sentido. Tudo isso porque foram desumanizadas em períodos de suas vidas aos quais eram extremamente, vulneráveis as atitudes ressentidas de outrem.

Certamente, deve ser nestes últimos momentos da vida que rememorar aquela pergunta que um dia a consciência desafia respondê-la, o que é o homem? Frankl (2003), refletindo a partir de sua própria experiência afirma que, ficamos conhecendo o ser humano como talvez nenhuma geração humana antes de nós. O que é, então, um ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é. É o ser que inventou a câmara de gás: mas é também aquele ser que entrou nas câmaras de gás, ereto, com uma oração nos lábios.

Neste contexto, "(...) isto é, no momento da morte torna-se irrelevante se um caminho foi íngreme ou agradável, suave ou difícil, mas para onde conduziu. Ali o homem se eternizou" (Lukas, 2002, p. 59). Dessa maneira, Sócrates caminha para os instantes finais de sua vida com uma poesia nos lábios, como quem confessa diante de sua própria consciência que o convocara assumir a última das responsabilidades que seja morrer com dignidade, integralidade, sentido. Relembra a todos os presentes no tribunal e em especial ao seu discípulo Críton que precisava da última lição de seu mestre, que a condenação seria a consagração de sua vida como educador da alma para o sentido da vida ética. Assim, deixou seu legado filosófico para a humanidade. Logo independentemente do que tenhamos feito e criado, do que tenhamos vivido ou experimentado, nós o salvamos no passado, e nada e ninguém é capaz de destruí-lo (Frankl, 2010).

Condenado à morte por que não aceitou a coerção da crença em um sistema de religiosidade vigente em sua época. Sócrates não deveria ser forçado assumir uma fé que não lhe era autêntica. Ninguém precisa assumir uma posição a favor de uma obrigação moral vigente, principalmente, se tal código de fé se constitua numa convicção generalizada e alienada da voz transcendente da consciência, como a sociedade ateniense. O estado espiritual de quem crê ou venera uma divindade não tem de ser um efeito da autoridade religiosa de outrem. Mas, uma relação autêntica e espontânea que cada ser humano, identificada na sua própria dimensão noética.

Desta forma, um olhar contemplativo e retrospectivo compreendendo a partir das atitudes de Sócrates, que seu legado a posteridade é irretocável quanto a sua capacidade de educar e vivenciar seus próprios ensinamentos. Esta ética socrática se eterniza na história da Filosofia que transpassa a demagogia do discurso eloquente, que por muitas vezes, silencia a voz da consciência das pessoas que desejaram encontrar sentidos para sua vida.

 

4. Conclusão

A Psicologia Jurídica enquanto especialização da ciência psicológica, atua de forma interdisciplinar com outros saberes como a Psiquiatria e principalmente, o Direito. Esse ramo do conhecimento da Psicologia moderna analisa as personalidades das pessoas envolvidas com situações que contrariam a normatização jurídica. Assim, tem na atualidade valor imprescindível para a humanização de todo o rito jurídico.

No entanto, na perspectiva proposta pelo presente texto, de forma abstrata podemos desde o tempo do filósofo grego Sócrates compreender que sua filosofia e sua compreensão da vivência de seu concernente suplício, já havia uma Psicologia Jurídica na essência das suas análises filosóficas. Pois, o próprio filósofo citado, faz uma análise psicológica dos perfis das personalidades de seus acusadores. O poeta Meleto, o político Ânito e orador penal Lion.

Ouvir a voz de sua consciência e discernir quais valores protejam a vida e a dignidade humana. Sem dúvida uma espiritualidade condizente com o projeto de homem noético. Este texto registra um olhar do século XXI, tomando como base uma das teorias da Psicologia. Compreender a história do filósofo grego Sócrates, suas atitudes pelo prisma da análise existencial de Frankl se constituiu numa tarefa por demais desafiadora e arriscada.

Desafiadora porque a partir de uma visão escrita no século XX d.C. do que possa vir a ser o homem, se desenvolveu um olhar retrospectivo existencial da história de um momento tão delicado para Sócrates, que foram seus últimos dias de vida. Em que se defrontou diante do tribunal de Heliastes e dos cidadãos atenienses que estavam divididos pela absolvição ou acusação do réu. Como também, dos temores dos seus discípulos que não aceitavam a ideia de separação do mestre.

A propósito, os dois supracitados têm muito em comum em suas biografias. Dois homens que se sacrificaram voluntariamente, por amor, discernimento e, responsabilidade aos caminhos que a voz transcendente da consciência sensibilizava para os rumos que deveriam seguir enquanto educadores célebres. Este texto de forma implícita deixa transparecer esta ideia. Realizada a árdua tarefa de analisar a personalidade sábia, carismática, nobre e altiva do filósofo Sócrates em conformidade com a Logoterapia e a Psicologia Jurídica. Considera-se que independente de uma época, cultura, religião e filosofia que cada ser humano adote para sua vida, sua consciência sempre o desafia a reflexão de valores, a busca pelo autoconhecimento, a conhecer ao menos em parte seus semelhantes, e assim, viver sua existência de forma que faça sentido pelo respeito à dignidade humana.

O presente artigo dissertou sobre a vontade de sentido, sentido na vida de forma atemporal. Pormenorizadamente, que o filósofo grego Sócrates vivenciou suas últimas experiências com sentido e de forma autotranscendente. Deste modo, suas atitudes foram fundamentadas com responsabilidade e direcionadas por sua consciência como órgão de sentido. Bem como, apreendeu o suprassentido que poucos são capazes de discerni-lo nos últimos momentos existenciais.

Consagração de um filósofo que se dedicou à educação de jovens e anciãos de seu tempo. Educação esta que ainda na atualidade fala na consciência de cada um que ouve a vontade de encontrar sentido de sua voz interior. A morte de Sócrates não se constitui como nada diante da sua biografia. Houve sentido porque sua existência foi uma escola para aqueles que se matricularam confiantes na luz da ética socrática. O biológico desfaleceu com a ingestão do veneno da cicuta, a psique se silenciou juntamente com seu corpo, porém a dimensão noética de Sócrates educa até hoje no mundo das ideias.

Muitos argumentam que Sócrates não existiu, mas tal afirmação tem implícito o questionamento se de fato é possível que um homem de tamanha nobreza espiritual realmente sentiu sobre seus pés o solo deste planeta? Capaz de aceitar uma sentença tão injusta e imposta de forma irreversível, e ainda assim, caminhar para a finitude da vida de forma tão serena e altiva sem odiar seus algozes, sem se queixar da sua morte como imposição, mas confiante no legado que deixaria para a posteridade.

A biografia de Sócrates é uma fonte inestimável de riqueza capaz de auxiliar na apreensão do sentido último da vida, mesmo que os últimos instantes sejam em contexto social de um suplício por privação de liberdade. Ora, um filósofo impedido de transitar livremente, e filosofar com ardor da sua paixão pela Filosofia.

Portanto, o cumprimento da sentença não foi o último parágrafo da biografia daquele que fez de sua vida uma história digna de ser narrada e ouvida por toda a tradição filosófica. Mestre nas atitudes de educar e discípulo de sua consciência como órgão de sentido. Escolheu as atitudes assertivas diante dos seus algozes. Não praticou a vingança e nem pediu que fosse feita em seu nome.

Tanto a Psicologia como principalmente o Direito podem se beneficiar assumindo uma postura epistemológica e axiológica de busca incessante da verdade. Em virtude de que, os fatos são parâmetros para se compreender comportamentos inadequados, no entanto sempre haverá motivações subjetivas a serem conhecidas, nesse desvelamento da subjetivação do homem, o Direito pode beneficiar-se descobrindo que uma pessoa que praticou crime contra a vida de outrem pode, e não muito raro, ter sido vítima de severas violências em fases iniciais de sua vida.

Refletir com base na história relatada por Platão sobre o processo de acusação, julgamento e cumprimento da sentença do mestre Sócrates, como também sobre a hermenêutica da análise crítica em Vigiar e Punir, podemos considerar que o sistema de jurisdição desde a antiguidade até a contemporaneidade tem severas dificuldades para realizar justiça social quando é imperativo punir indivíduos ou grupos marginalizados. Outro problema consiste na autoanálise crítica por parte dos operadores dos sistemas de justiça social. Sócrates foi injustamente condenado. Quantos não são aqueles que foram injustamente condenados e suas histórias de vida ficaram no anonimato? Nesse ínterim, a Psicologia pode colaborar pela humanização e demarcar uma nova era de justiça e bem coletivo.

Uma Psicologia que preza pela verdade e valorização do direito de viver. Uma especialidade da Psicologia que deve evitar o enaltecimento da elaboração de parecer em processos judiciais que valide o sistema carcerário com suas desumanidades. Deve sim, pela autoridade do saber psicológico atuar com assertividade para ao menos contar a história pregressa, para contextualizar o envolvimento do apenado nos atos ilegais.

O presente texto ambiciona encaminhar consciências para refletir se os representantes da Psicologia no âmbito da atuação das atividades de jurisprudência estão corroborando injustiças sociais, negligenciando os aspectos humanos das pessoas envolvidas em autos processuais. Não se trata de propor legislar em benefício de um dado sujeito delituoso, assim assumir um poder impróprio a natureza de seu saber, mas reunir todos os pontos intercessores que culminaram com fato criminoso. Pela tradição do poder judiciário o comportamento é julgado, no entanto os profissionais especialistas em comportamento humano sabem que existem outros referenciais que pertencem tipicamente ao homem que são relevantes a serem investigados e considerados. Humanização é o imperativo que não é atendido desde a morte de Sócrates.

 

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Endereço para correspondência
Alenilson da Silva Cruz
E-mail: alenilsondasilvacruz@gmail.com

Tatiana Cristina Vasconcelos
E-mail: vasconcelostc@yahoo.com.br

Jakson Luis Galdino Dourado
E-mail: jaksonpsi@gmail.com

Recebido: 15/01/2022
Revisado: 25/01/2022
Aceito: 10/02/2022
Publicado: 18/04/2022

 

 

1 Alenilson da Silva Cruz: ORCID: https://orcid.org/ 0000-0001-7337-2225
2 Tatiana Cristina Vasconcelos: ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3525-4521
2 Jakson Luis Galdino Dourado: ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-2677-734X

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