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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.14 no.1 Belém jan./abr. 2022

 

ARTIGO

 

O significado da espiritualidade no cotidiano de religiosas carmelitas

 

The meaning of spirituality in the daily life of carmelites religious

 

El significado de la espiritualidad en la vida diaria de los carmelitas religiosos

 

 

Karla Giovanna Costa Dias1 I; Berla Moreira de Moraes2 I; Karoline Costa Dias3 I

I Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo objetivou compreender o significado da espiritualidade no cotidiano de religiosas carmelitas. Trata-se de um estudo descritivo com abordagem qualitativa realizado no Carmelo Santa Maria Mãe de Deus-PB/BR, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa-CCS, sob Parecer4.473.717 e CAEnº40592320.2.0000.5188. Foi adotado amostragem por acessibilidade, resultando na participação de três religiosas com faixa etária de 22-38 anos, naturais da região Nordeste. A entrada das religiosas na Ordem ocorreu durante juventude. Os dados foram obtidos pela modalidade de cartas no período de março à abril de 2021. O material empírico foi analisado pela Técnica de Análise de Conteúdo, utilizando métodos sistematizados e objetivos. A análise das cartas revelou duas categorias: a interface do cotidiano com a espiritualidade; e o encontro com Deus relacionado ao sentido de vida. Os relatos evidenciaram que o engajamento das religiosas no cotidiano era movido por um profundo sentimento religioso, desvelando-se uma experiência profunda de significado.

Palavras-chave: Cotidiano; Espiritualidade; Religiosidade; Logoterapia; Terapia Ocupacional.


ABSTRACT

The present study aimed to understand the meaning of spirituality in the daily life of Carmelite nuns. This is a descriptive study with a qualitative approach carried out in Carmelo Santa Maria Mãe de Deus-PB/BR, approved by the Research Ethics Committee-CCS, under Opinion 4,473,717 and CAEnº40592320.2.0000.5188. Accessibility sampling was adopted, resulting in the participation of three religious women aged 22-38 years, born in the Northeast region. The entry of nuns into the Order took place during their youth. Data were obtained by means of letters in the period from March to April 2021. The empirical material was analyzed by the Content Analysis Technique, using systematic and objective methods. The analysis of the letters revealed two categories: the interface of everyday life with spirituality; and the encounter with God related to the meaning of life. The reports showed that the religious women's engagement in everyday life was driven by a deep religious feeling, revealing a deep experience of meaning.

Keywords: Daily Life; Spirituality; Religiosity; Logotherapy; Occupational Therapy.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo comprender el significado de la espiritualidad en la vida cotidiana de las monjas carmelitas. Se trata de un estudio descriptivo con abordaje cualitativo realizado en Carmelo Santa Maria Mãe de Deus-PB/BR, aprobado por el Comité de Ética en Investigación-CCS, bajo el parecer 4.473.717 y CAEnº40592320.2.0000.5188. Se adoptó un muestreo de accesibilidad, resultando en la participación de tres religiosas de 22 a 38 años, nacidas en la región Nordeste. La entrada de las monjas en la Orden se produjo durante su juventud. Los datos fueron obtenidos por medio de cartas en el período de marzo a abril de 2021. El material empírico fue analizado por la Técnica de Análisis de Contenido, utilizando métodos sistemáticos y objetivos. El análisis de las cartas reveló dos categorías: la interfaz de la vida cotidiana con la espiritualidad; y el encuentro con Dios relacionado con el sentido de la vida. Los informes mostraron que el compromiso de las religiosas en la vida cotidiana fue impulsado por un profundo sentimiento religioso, revelando una profunda experiencia de significado.

Palabras clave: Vida Diaria; Espiritualidad; Religiosidad; Logoterapia; Terapia Ocupacional.


 

 

1. Introdução

Billock (2002) aponta que a essência da atribuição de significados é em si um processo espiritual que se expressa através do fazer humano. A autora conceitua a espiritualidade como uma vivência profunda e interior que promove significado e engajamento no cotidiano, nas ocupações diárias, e apresenta-a como o componente mais profundo e central do indivíduo.

A American Occupational Therapy Association – AOTA (2015), em seu documento referente a Estrutura da Prática da Terapia Ocupacional: domínio & processo, reconheceu a espiritualidade como uma dimensão da vida cotidiana dos indivíduos, que deve ser contemplada na prática do terapeuta ocupacional. Desenvolvendo este conceito, expressam que "valores, crenças e espiritualidade influenciam a motivação de uma pessoa para se envolver em ocupações e dar o sentido à sua vida" (AOTA, 2015, p.7).

O Modelo Canadense de Desempenho Ocupacional foi a primeira abordagem da Terapia Ocupacional a apresentar a dimensão espiritual como centro dos aspectos que compõe as relações entre pessoa, ambiente e ocupação. Para Elmescany e Barros (2015), a espiritualidade é a fonte que emana um sentido transcendente para o viver, por meio da fé. A religiosidade está entrelaçada a este conceito, sendo ela uma experiência espiritual. A etimologia da palavra religião tem origem no latim religio , sendo composta por "re" que significa novamente, e "ligare", que tem sentido de união.

Há muitos indivíduos que realizam as atividades cotidianas pela ótica da espiritualidade, e encontram também sentido e motivação para a realização das ocupações diárias através das experiências espirituais como a oração, meditação, leitura de livros teológicos e dedicação em serviços religiosos (Billock, 2002).

Nesse contexto, destacam-se as religiosas consagradas, que se sentem chamadas a se entregar inteiramente a Deus, no serviço à Igreja, na prática dos conselhos evangélicos, a saber: a obediência, a pobreza e a castidade, e vivendo o amor esponsal, mediante um modo de vida. Entre diversas Ordens Religiosas destaca-se a Ordem Carmelita que possui como princípio de sua Regra viver em obséquio de Jesus Cristo, meditando dia e noite a lei do Senhor e velando em oração (Paulo II, 1996; Silva, 2019).

Com base nesse entendimento, compreende-se que os papeis ocupacionais das religiosas carmelitas estão estreitamente ligados a espiritualidade e a religiosidade. Nota-se dessa forma, a necessidade de compreender como o sentido e a espiritualidade no cotidiano das mesmas se correlacionam e de que forma as atitudes religiosas possibilitam a presença de sentido no dia a dia (Silva, 2019).

Compreendendo a relevância desse tema e sua incipiência na literatura, são necessários novos estudos que visem contribuir com a referida temática, com o escopo de ampliar o conhecimento na área da Terapia Ocupacional, com ênfase na linha de Espiritualidade e Saúde. Além disso, as religiosas podem trazer contribuições mediante o seu modo de viver (Silva, 2019; (Ballarin, Amaral, Tannus & Casacio, 2017).

Diante do exposto, este trabalho teve como fio condutor a seguinte questão norteadora: Qual o significado da espiritualidade no cotidiano para religiosas carmelitas? Nesse sentido, este estudo tem como objetivo geral compreender o significado da espiritualidade no cotidiano de religiosas carmelitas à luz da Terapia Ocupacional e da Logoterapia; e como objetivos específicos apresentar o cotidiano de religiosas carmelitas, e identificar a relação existente entre espiritualidade, cotidiano e sentido de vida das religiosas carmelitas a partir dos princípios propostos pela Terapia Ocupacional e Logoterapia.

 

Metodologia

O presente estudo seguiu com rigor aos princípios éticos contidos na Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa que estabelece às diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos no Brasil, que preconiza os aspectos éticos da pesquisa. O estudo foi iniciado, após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba - CEP/CCS, sob o Parecer de 4.473.717 e CAE: nº 40592320.2.0000.5188.

Trata-se de um estudo descritivo transversal com abordagem qualitativa. A pesquisa descritiva é um método que visa descrever características de um determinado fenômeno ou de uma população específica. Esse tipo de pesquisa tem por finalidade realizar o levantamento de opiniões, atitudes e crenças de um determinado público podendo também ter como propósito, a identificação de possíveis associações entre variáveis (Gil, 2017).

No que se refere ao estudo de natureza qualitativa, esse tipo de pesquisa trata da busca da essência e intensidade dos fenômenos, dos seus significados e singularidades. Nesse ínterim, sua atenção não está direcionada para o quantitativo numérico de participantes, mas para a essência manifestada por meio de crenças, valores, pontos de vista, interrelações, costumes, práticas, entre outros (Minayo, 2017). Dessa forma, justifica-se a escolha da abordagem, pois o estudo versa sobre o significado da espiritualidade no cotidiano de religiosas carmelitas.

O cenário da pesquisa foi o Carmelo Santa Maria Mãe de Deus, um mosteiro pertencente a Ordem dos Monjas Descalças da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo, situado na Paraíba/Brasil, fundado em 1997. Sendo o universo da pesquisa três religiosas que residem no Carmelo Santa Maria Mãe de Deus, selecionada por acessibilidade , na qual o quantitativo de participantes que o pesquisador tiver acesso durante o período de coleta de dados (Gil, 2017).

Para seleção da amostra foram adotados os seguintes critérios de inclusão: que a religiosa estivesse em atividade no mosteiro durante a fase de coleta de dados e com disponibilidade para participar da pesquisa proposta. Quanto aos critérios de exclusão foram elegidos os seguintes elementos: as carmelitas estavam no período da coleta de dados com algum problema de saúde e/ ou que estivesse em outra missão externa ao Carmelo.

A coleta de dados ocorreu no período de março de 2021 a abril de 2021. Inicialmente a pesquisadora realizou um contato prévio por telefone com a Madre Superiora do Carmelo, na qual foi exposto os objetivos do estudo e sua relevância, além disso, foi explicado sobre o rigor das observâncias éticas na condução da pesquisa. Em seguida, foi feito o convite para a participação na pesquisa. Diante da concordância da religiosa em participar do estudo, foi solicitado a colaboração da madre para divulgar o trabalho com as demais religiosas do mosteiro.

Considerando o momento pandêmico que estamos vivenciando no nosso país, decorrente do novo coronavírus, tornou-se inviável a coleta de dados presencial no local selecionado para o estudo. Desse modo, foi escolhido como instrumento de coleta de dados a modalidade de cartas.

A pesquisadora enviou por e-mail o convite para participação no estudo, o projeto de pesquisa e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, com a finalidade de obter a anuência formal mediante o referido termo. Em seguida, foi feito o contive para as carmelitas escreverem uma carta a punho, contando sucintamente sobre si, sua cidade natal, idade, bem como sobre sua vida no Carmelo, ano de ingresso, atividade que é responsável, cotidiano no Carmelo, significados que atribui às atividades diárias, o momento mais significativo de seu dia, e sobre o sentido de sua vida.

As cartas como instrumento de pesquisa possibilitam o desvelar de sentimentos, pontos de vistas e aspirações de forma autêntica e espontânea. Portanto, não se refere apenas às palavras articuladas, mas a experiência do remetente em tecer sua narrativa, bem como as atitudes, valores e significados pessoais contidos nesse processo (Netto et. al. 2012).

O material empírico advindo das cartas das três religiosas carmelitas, foram codificados com a finalidade de preservar o anonimato. Dessa forma, aos relatos das participantes do estudo foram atribuídos nomes de tipos de flores indicadas pelas participantes, como Lírio, Hortênsia e Rosa.

O material empírico oriundo das cartas das participantes do estudo foi transcrito na integra e em seguida analisados qualitativamente a partir da Técnica de Análise de Conteúdo proposta por Bardin (2017). Esta técnica se apresenta como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza métodos sistematizados e objetivos. Segundo Bardin (2017), as fases da análise são respectivamente: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados, inferência e interpretação dos dados. Durante a análise do conteúdo foram seguidas pelas seguintes etapas:

Na pré-análise ocorreu a sistematização das ideias iniciais, a partir de leituras e preparação do material. Essa etapa se conceitua como a fase da organização, e possui papel fundamento na orientação das fases subsequentes. Na segunda fase, referente a exploração do material, foi realizada a definição de categorias e a codificação, ocorrendo assim a decomposição e o tratamento do material, ou seja, a lapidação dos dados brutos e o agrupamento de pares.

A última fase refere-se ao tratamento dos resultados, inferência e interpretação, onde ocorre a formação de um compêndio dos resultados e põe em evidência as informações relevantes advindas da análise (Bardin, 2017). Nessa etapa, os dados obtidos foram analisados à luz da Terapia Ocupacional e da Logoterapia.

 

Resultados e Discussão

A amostra foi constituída por três irmãs carmelitas na faixa etária de 22 aos 38 anos. As participantes são naturais da Região Nordeste, sendo duas da Paraíba e uma de Pernambuco. No que se refere ao período ao qual ingressaram na vida religiosa, as freiras relataram que foram admitidas no mosteiro no início da juventude, após um tempo de experiência no convento. Foi realizado um convite as religiosas a fim de obter o consentimento das mesmas na pesquisa.

Quanto as funções no convento, uma das religiosas é superiora e mestre das noviças (fase inicial de preparação para profissão dos votos religiosos), além disso auxilia nas diversas atividades diárias da comunidade; outra religiosa possui o papel de provisora, função responsável em providenciar os alimentos da casa; e por fim outra religiosa é provisora e também sacristã, sendo responsável pelo cuidado com a Igreja.

A partir da análise das cartas foram identificadas duas categorias: a interface do cotidiano com a espiritualidade; o encontro com Deus na vivência da vocação religiosa e o sentido de vida. Nessas categorias, mediante os relatos das irmãs religiosas, foram tecidos diálogos com os autores da Terapia Ocupacional e da Logoterapia, sendo desvelada a presença de afinidade teórica sobre o referido tema. Tais questões contidas nas categorias serão contempladas a seguir:

 

A interface do cotidiano com a espiritualidade

No tocante a esta primeira categoria, evidenciou-se a relação da espiritualidade com a vida cotidiana das religiosas, que por sua vez é constituída pela oração, trabalho e vida fraterna, conforme revela os trechos dos relatos a seguir:

Nossa vida no Carmelo, assim como a vida da Sagrada Família em Nazaré, é muito simples, basicamente dividida em momentos de solidão e momentos comunitários, momentos de trabalho, recreação e oração, que é o fundamento e o que permeia nossa vida [...] Cada irmã desempenha um trabalho na casa, que chamamos de "oficina", que vai desde cuidar do jardim à lavação de roupa, produção de velas, etc. Vendo assim, cada momento de nosso dia é importante, porque cada um tem um "chamamento de Deus" escondido e discreto [...] Em cada lugar e momento de nossa vida podemos nos encontrar com Ele. (Rosa)

O significado que atribuo às minhas atividades diárias é a oferta de minha vida a Deus primeiramente, à igreja e a humanidade inteira. (Hortênsia)

Buscamos viver em obséquio de Jesus Cristo com a Virgem Maria, que é nosso modelo de vida. Somos chamadas a meditar dia e noite a Palavra do Senhor, a fim de conhecê-los e imitar-lhe a vida em meio ao nosso dia-a-dia. (Lírio)

Os relatos das carmelitas deixam transparecer de modo enfático uma grande profundidade do sentimento religioso, bem como a presença do significado espiritual presente em seus cotidianos.

Por meio do cotidiano é possível acessar a experiência, o real, o imaginário, a memória, os sonhos, os sentimentos, as necessidades e os afetos. A leitura do cotidiano permite ainda conhecer os modos de pensar, agir e sentir de sujeitos e coletivos (Galheigo, 2020, p.7-8).

O conceito de cotidiano possui grande destaque na Terapia Ocupacional (TO), pois o interesse da profissão está centrado no fazer humano e nas atividades realizadas pelos indivíduos. Salles e Matsukura (2013, p.268) argumentam que a vida é constituída pelas ações correntes, que acontecem exatamente no dia a dia, e apontam que "o cotidiano é a vida de todos os dias, de todos os homens, o homem nasce inserido em sua cotidianidade".

A Terapia Ocupacional atenta-se com a produção de vida das pessoas em seus cotidianos, onde está por sua vez, possui um sentido único, singular e pessoal, envolvendo diversas questões: quais as realizações dos indivíduos, como utilizam o seu tempo, quais suas aspirações, qual local e contexto estão inseridos, e se há engajamento, satisfação e também dificuldades (Salles & Matsukura, 2013).

Galheigo (2020, p.7-8), revela que os estudos referentes à vida cotidiana versam sobre a contemplação das cenas habituais e ordinárias da vida dos sujeitos, e expressa que o cotidiano "é a vida presente, de homens e mulheres presentes". Mediante este trecho, compreendemos a relevância da atenção e postura frente à vida, pois só assim, a podemos vivenciá-las com sentido nas suas diversas dimensões.

Acerca da interface da Terapia Ocupacional com a espiritualidade, Ballarin et. al. (2017) apresentam que esta relação é reconhecida na profissão e que a espiritualidade é um componente presente na vida diária de muitos indivíduos, proporcionando envolvimento, satisfação e sentido para as ocupações cotidianas, possuindo assim um valor potencial para a promoção de saúde, em seu mais amplo conceito.

Para Billock (2002), a espiritualidade pode ser conceituada como uma experiência profunda de significado, que emerge a partir do engajamento em ocupações que envolvem sentidos pessoais. Elmescany e Barros (2015) ressalta que as atividades diárias muitas vezes não são vivenciadas como espirituais, contudo, cada uma delas possuem um potencial para sê-la, se forem significativas. Notamos a presença de tal realidade nos relatos das irmãs religiosas, conforme trechos abaixo:

Nossa meta é a união com Deus, nos preparamos e vivemos para isso. O buscamos e Ele se deixa encontrar: nas panelas, nas irmãs, nos corredores, nas celas, nos campos e, mais ainda, no Sacrário. (Lírio)

Santa Teresa de Jesus nos diz que "em meio às panelas está o Senhor", ou seja, nas atividades mais corriqueiras do nosso dia a dia nós podemos encontrar com Cristo e identificar sua vontade. (Rosa)

Levamos uma vida simples, porém profunda. Ela consiste em: oração, trabalho e vida fraterna. Eles são inseparáveis, o trabalho é vazio sem a oração, esta tem que mover cada ato e frutificar no amor a Deus e aos irmãos, que se prova na vida comunitária. (Lírio)

Dentre os relatos, a carmelita Rosa apresenta uma citação de Santa Teresa de Ávila:" Em meio às panelas, também anda o Senhor" (De Jesus, 1939, p.39). Diante dessa afirmação, nota-se que o encontro com o Divino na vida cotidiana é um elemento salutar, presente no carisma carmelitano descalços, seja nos momentos de oração, ou nos deveres mais ordinários. Nota-se na vida cotidiana das carmelitas, uma constante recordação de Deus, que se revela como presença, dando significado para cada instante e para toda a vida.

Observa-se também que a oração para as participantes é fonte de sentido para a realização dos trabalhos e na vida fraterna. Para Santa Teresa de Jesus o conceito de oração é "senão tratar de amizade - estando muitas vezes tratando a sós - com quem sabemos que nos ama" (De Jesus, 2015, p.68). A partir desta afirmativa compreende-se a oração possui um significado de encontro, que reverbera e atribui valor espiritual para os demais momentos do dia a dia. Neste contexto, as participantes evidenciam a presença um sentido espiritual em seus cotidianos:

Nossos momentos de Oração, Trabalho e Convivência fraterna são oferecidos a Deus pelo bem da humanidade e santificação das almas. (Hortênsia)

As coisas têm valor da redenção, do sacrifício de Cristo, tudo se torna uma potência e uma força que gera benefício para a humanidade inteira. (Rosa)

Em cada função da casa somos convidadas a servir umas às outras, como o próprio Cristo nos ensinou. No entanto só frutificará mediante a união com Deus, é na oração que ganhamos forças para nos doar. Deste modo nos tornamos mais humanas, à semelhança do Mestre. (Lírio)

Santa Teresa de Ávila aponta o papel primordial da oração na sua família religiosa, seja na Liturgia, nos momentos de colóquio com Deus, ou nas atividades cotidianas, sendo cada momento da vida um encontro com Deus, uma busca de unir-se a Ele, apontando assim, um dinamismo de integração da sua experiência espiritual com a experiência da vida (Silva, 2019).

Além do mais, Santa Teresa apresenta uma nova ótica no que concerne ao valor das atividades, apontando que sua importância não está na magnanimidade das obras, mas na forma de realizá-las, com diligência. Dessa forma, ao contemplar a simplicidade dos cotidianos das religiosas, repletos de atividades comuns, pode-se compreender que estes são carregados de sentido (De Jesus, 20115a). Enfim, irmãs minhas, aquilo com que quero concluir é que não façamos torres sem fundamentos, porque o Senhor não olha tanto à grandeza das obras como ao amor com que se fazem (De Jesus, 2015a p. 260).

Salles e Matsukura (2013) afirmam que há um ponto central no dia a dia do indivíduo. Nesse ínterim, as participantes relataram que o primeiro instante do despertar, a vivência da Liturgia da Missa, a adoração e louvor a Deus, são os momentos mais significativos de seu cotidiano, conforme as falas a seguir:

O momento mais significativo do meu dia é o despertar a cada manhã e sentir que Deus me chamou à vida novamente, para amá-lo, louvá-lo e servi-lo, principalmente na oferta ao próximo. (Hortênsia)

O ponto alto do nosso dia é a Santa Missa, na qual Nosso Senhor se faz nosso alimento. (Lírio)

O sentido, a razão do nosso viver é adorar, amar, conhecer e fazer Deus conhecido. Somos dotados de sentidos, inteligência, sentimentos, dons, aptidões exatamente para isto, para ser colocados à disposição Dele na adoração, no louvor. (Rosa)

Contudo, a falta de atenção e sentido no cotidiano é uma possibilidade fragilizante, entretanto mediante o relato a seguir, constatamos que a união com Deus é um divisor de águas para a promoção de significado em seu cotidiano:

Nossa rotina é sempre a mesma: os mesmos horários, as mesmas atividades, as mesmas pessoas… Nossa vida tão simples pode se tornar fontes de graças para todo o mundo ou cair no perigo do cotidiano. O que faz a diferença é Deus! Cada ato vivido com Ele, para Ele e n'Ele. É Ele que preenche nosso dia, caso contrário viveremos de maneira imperfeita nossa vocação e nos tornaremos amargas. (Lírio)

Quanto ao sentido de vida no cotidiano, Viktor Frankl apresenta uma analogia que diz respeito a fitar a existência como em um filme, e contemplar que o mesmo é constituído por centenas e centenas de fotografias individuais, onde cada uma delas possui um potencial de sentido. Nesse ínterim, o autor afirma que o indivíduo ao contemplar o resultado final da construção de sua vida, e ao fazer considerações se ela foi plena de significado, perceberá que isto dependeu do sentido colocado em cada pequeno instante (Frankl, 2018).

 

O encontro com deus na vivência da vocação religiosa e o de sentido de vida

Nesta segunda categoria constatou-se por meio dos relatos uma relação dialógica entre sentido de vida e espiritualidade. Segundo Evangelista et. al. (2015), a dimensão espiritual é um atributo inato dos indivíduos, que promove significado para a vida. É também compreendida como uma força interior que motiva o ser para atribuir sentido às circunstâncias, história de vida e existência.

A espiritualidade é reconhecida como um relevante componente de cuidado, por considerar como o indivíduo se relaciona consigo, com o outro, com o mundo e com o Divino. Por meio dela, os seres humanos desenvolvem a capacidade de se adaptar frente às intempéries, por meio da transcendência, como se nota na fala de Rosa:

A vida de união com Deus é, então, uma força para superar as dores e trabalhos da vida e uma esperança que nos impulsiona para o amanhã, o futuro.[...] Deus nos pensou e nos criou para realizarmos uma função nesta terra à serviço do próximo com o valor de salvação e redenção para nós e para os outros, e se nos pormos em atenção pela oração silenciosa e reflexão auto-avaliativa, poderemos identificar qual é esta nossa função; seja a de curar como médico ou a de advogado, engenheiro, ou mesmo como religiosa ou mãe de família, todos temos dentro de nós os talentos e aptidões necessários para realizarmos nossa "função", ou "vocação", e uma vez que a realizamos somos plenamente felizes e realizados, pois finalmente é possível colocarmos para fora e exercer as aptidões com que Deus nos cumulou. (Rosa)

Diante do exposto, nota-se que para participante Rosa, sua vida possui uma finalidade em que nomeia de função ou vocação, com isso, infere que é por meio do processo de identificação e conquista deste propósito, que ela encontra felicidade e plena realização. Frankl (2018, p.10) considera que a felicidade não deve ser o alvo do viver, mas que ela acontece e encontra seu lugar como "efeito colateral de uma dedicação pessoal a uma causa maior que a pessoa."

Assim, Frankl (2018) expõe que cada ser humano deve encontrar o seu propósito de vida por si mesmo, por este possuir um caráter pessoal, único e intransferível. Nesse ínterim, mediante tal descoberta, cada um é chamado a engajar-se ou não na realização deste sentido (Frankl, 2017). Para isso, a presença da vontade de sentido é imprescindível neste processo. Frankl expressa que "em termos agostinianos, poderíamos dizer que o coração do homem não descansa até que se encontre e se realize o sentido de sua vida." (Frankl, 2017, p.73). Encontrei sentido para minha vida em Deus, fora d'Ele caio num vazio existencial. Não digo apenas como religiosa, mas como humana que sou. [...] Nosso Senhor me trouxe ao Carmelo, onde encontrei tudo o que queria. (Lírio)

Viktor Frankl expõe que a autorealização é um resultado da atitude de autotranscedência e apresenta três vias para o sentido de vida: os valores criativos, que diz respeito a atos de criação; os valores vivenciais que se referem a experiência com algo, como por exemplo a natureza, bondade, beleza e verdade, e no encontro com alguém "em sua genuína unicidade – em outras palavras, no amor a outro ser humano" (Frankl, 2017, p. 90). Nesta via, pode-se ainda atribuir ao encontro com o Divino. Por fim os valores atitudinais, que estão relacionados a postura que se toma diante de um sofrimento inevitável (Frankl, 2017; 2018).

Corroborando com esse pensamento, Sommerhalder e Erbolato (2010) discorre que ter um propósito de vida, encontrar um sentido para as atividades diárias, bem como a ressignificação de as circunstâncias envolta de dificuldades, são meios para promover sentido à existência. A vivência destes três valores, estão presentes nas falas das participantes, como vemos a seguir:

O sentido de minha vida está em doá-la cada dia mais e sinto que quanto mais me dou, espaços vazios são preenchidos no meu coração e dão lugar aos sentimentos de alegria e paz interior. Não há nada que nos traga mais paz do que fazer o bem ao próximo e sentir que contribuímos para que a vida de alguém seja mais plena e feliz. [...] Na vida comunitária encontramos todas as possibilidades de conhecimento próprio que nos ajuda no processo de amadurecimento, capacidade de discernimento e superação das dificuldades humanas e espirituais, inerentes à nossa condição de seres humanos, o que dá ainda mais sentido à nossa vida e vocação. (Hortênsia)

Ali podemos perceber que Deus nos criou para vivermos em sociedade, em união fraterna com os irmãos, pois nos criou não para nós, mas para o outro. Ali percebemos, através de nossas limitações e falta de conhecimento em muitas áreas, que necessitamos do irmão, pois, como diz o ditado, "ninguém é tão alguém que não precise de ninguém". Quando nos vemos necessitados da caridade do irmão em uma ajuda para realizar um trabalho que não sabemos ou não podemos fazer só, ou quando necessitamos desta ajuda para superar uma dificuldade humana ou espiritual, entendemos que somos limitadas para que possamos necessitar do outro. Um irmão "completa" no outro, e isso em toda a vida humana e cristã. (Rosa)

Nesse sentido, Viktor Frankl desvela que o ser humano pode buscar o sentido da vida por meio da fé. Aquino et. al. (2009) retratam que a religiosidade favorece a promoção de bem-estar, percepção de sentido de vida, visão de mundo mais otimista, compreensão da vida como uma missão, e prevenção do vazio existencial (Frankl, 2017).

Carlo e Kudo (2017), apresentam que sendo a dimensão espiritual tão relevante na vida cotidiana, ela possui potencial para promover um impacto exponencial na saúde e nas ocupações dos sujeitos, auxiliando na esperança e no encontro da paz interior diante das intempéries da vida.

Sob este prisma, os autores supracitados ao discorrerem sobre a dimensão espiritual dentro do campo da Terapia Ocupacional, afirmam que para haver uma integralidade na atenção, é indispensável reconhecer a espiritualidade como uma importante dimensão que compõe o ser humano e promove o sentido de vida.

 

Conclusão

O estudo proposto traz relevantes contribuições sobre a relação da dimensão espiritual com o sentido de vida e o cotidiano, mediante os depoimentos das religiosas carmelitas. Á vista disso, nota-se um vínculo entre: a dimensão central do ser, que entendemos como espiritualidade; a Terapia ocupacional, profissão que se volta para o cotidiano e os significados atribuídos nas ocupações diárias; e a abordagem que tem como principal interesse o sentido de vida, a Logoterapia.

Ante o exposto, foi possível compreender os significados que as participantes atribuem a sua vida cotidiana e a sua existência, destacando o papel da espiritualidade que demonstrou ser o fio condutor com o qual as carmelitas tecem seu viver. Dessa maneira evidenciou-se que o engajamento nas atividades diárias das participantes, era movido por um profundo sentimento religioso, desvelando-se uma experiência profunda de significado.

Ao contemplar a espiritualidade como um componente que constitui a vida dos sujeitos, é sobremaneira importante que se considere a relevância deste elemento na atenção à saúde. Desse modo, espera-se que este estudo suscite reflexões para os profissionais da saúde e em destaque aos terapeutas ocupacionais, pois somente com um olhar ampliado, integral e sensível as motivações, sentidos e significados genuínos que os sujeitos expressam em seus cotidianos, pode-se alcançar a excelência na assistência.

Além disso, poderá subsidiar novas pesquisas acerca da temática apresentada, pois a literatura atual revela-se insipiente, no que concerne especialmente ao impacto da espiritualidade na experiência de vida dos sujeitos, sob a ótica da Terapia Ocupacional. Nesse enfoque, dentre os profissionais que compõem a atenção em saúde, os terapeutas ocupacionais se destacam especialmente no que concerne ao significado atribuído as ocupações. Deste modo, para a ampliação de sua assistência é de suma importância que estes promovam um cuidado holístico, centrado também nas questões existenciais do ser.

Em suma, o presente estudo evidencia que para as religiosas carmelitas entrevistadas, o significado da espiritualidade em seus cotidianos está intrinsecamente relacionado a vida de união com Deus, sendo Ele fonte e sentido para a sua existência, que se desvela no cotidiano.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Karla Giovanna Costa Dias
E-mail: karlagiovannajp@gmail.com

Berla Moreira de Moraes
E-mail: berlaufpb@gmail.com

Thainá Karoline Costa Dias
E-mail: thaiinakaroline@gmail.com

Recebido: 10/01/2022
Revisado: 20/01/2022
Aceito: 30/01/2022
Publicado: 18/04/2022

 

 

1 Karla Giovanna Costa Dias: ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9721-079X
2 Berla Moreira de Moraes: ORCID: https://orcid.org/00000000-0003-0741-1980
2 Thainá Karoline Costa Dias: ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7265-1350

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