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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.14 no.2 Belém maio/ago. 2022

 

ARTIGO

 

O Eu como polo de atividades e hábitos

 

The ego as a pole of activities and habits

 

El yo como polo de actividades y hábitos

 

 

Eunides Almeida1 I; Tommy Akira Goto2 II

I Universidade de Brasília, Brasil
II Universidade Federal do Piauí, Brasil

Endereço para correspondência


 

 

Introdução à traduçao

Este artigo é uma tradução das lições § 41. e § 42 ministradas por Edmund Husserl no verão de 1925; extraídas de sua obra publicada em 1962, Phänomenologische Psychologie. Vorlessungen Sommersemester e da versão francesa Psychologie phénoménologique de 1925, traduzida por P. Cabestan, N. Depraz, A. Mazzú, F. Dastur. Esta publicação postuma compreende textos referentes as lições que Husserl ministrou no semestre do verão de 1925, a quarta versão do Artigo para a Enciclopédia Britânica e as Conferências de Amsterdã e alguns apêndices. Especificamente nas Lições temos 45 seções compondo a parte sistemática que Husserl expõe cada lição dialogando com os alunos. Este percurso é marcado, de um lado, pela crítica sobre o modo de conhecer a subjetividade a partir de uma psicologia submetida às ciências da natureza e, por outro lado, simultaneamente, à cada reflexão crítica, apresenta o método fenomenológico e seus resultados, desde a orientação fenomenológica até a redução fenomenológica. Nessa análise fenomenológica, Husserl parte da ideia da "experiência" e do "mundo da experiência", sobre a qual, como ele mesmo afirma, têm partido todos os conhecimentos, inclusive o das ciências da natureza. Assim, iniciando sua análise pelo objeto que se apresenta à percepção, Husserl vai apresentado e desenvolvendo o método fenomenológico e, concomitantemente, os resultados desta análise, até chegar à análise da própria percepção; o que permitiu alcançar a subjetividade pura psíquica e transcendental e suas propriedades específicas. As descrições são detalhadas e vão atingindo características cada vez mais complexas, ou seja, as descrições das vivências puramente psíquicas e espirituais e suas leis, levando-o à afirmar, por conseguinte, que tais descrições devem ser entregues à Psicologia, justificando, por sua vez, a partir da redução fenomenológica, a necessidade do nascimento de uma "Psicologia Fenomenológica". Com o reconhecimento da importância desses escritos, selecionamos uma seção das Lições, porque entendemos que nela temos a análise de um dos conceitos fundamentais da Psicologia: o "eu". O conceito do "eu" é um dos conceitos psicológicos mais recorrentes, mas que, ao mesmo tempo, tem sido o mais amplamente confudido em termos de sua natureza própria, principalmente ao se atribuir conceitos naturalizantes, tal como é a natureza mundana. Vejamos isso com Husserl.

 

Tradução das lições § 41. E § 42

<§41. Reflexão sobre o polo objetivo na atitude noemática, e reflexão sobre o polo-eu, como o que está subjacente ao polo objetivo. Síntese universal do polo-eu. O eu como polo de atividades e hábitos.>3

[207/194]4 Graças à redução fenomenológica, junto com a autêntica subjetividade pura, quer dizer, com as efetividades reduzidas, suas aparições, suas modalidades de crença, o eu que se relaciona com elas e seus atos egóicos, abordamos também as subjetividades puras imaginadas que se relacionam com elas, dotadas de contextos imaginados correspondentes.

Mas todos esses substratos imaginados e a subjetividade imaginada são imaginados, de fato , na subjetividade pura, atual e verdadeira. Seguimos isso trazendo à luz diretamente das vivências e das sínteses de vivências, sem colocar, à cada vez, pura e simplesmente, o mundo da experiência da orientação natural. Estamos sempre lidando novamente com a consciência como consciência daquilo é consciente nela como tal, com aparições perceptivas do que aparece, que é descrito como o que aparece e de que maneira aparece, com aparições de lembrança daquilo que se rememora, etc. Tudo o que é objetivo, que está pura e simplesmente na orientação natural, aqui é colocado entre aspas e apenas colocado como a finalidade dos fins, como o objeto de experiência das experiências, como objeto da imaginação de imaginações, etc. Estes podem ser considerados isoladamente ou mesmo em encadeamentos sintéticos. E, se a experiência natural, em sua crença na experiência, antecipa sobre as infinidades implicadas da experiência possível, então é a consideração fenomenológica que, sem se estabelecer ingenuamente no solo da experiência, revela precisamente essas infinidades como sendo puramente subjetivas e, assim, revela para nós o que a experiência ingênua esconde intencionalmente em si mesma como "um mundo que existe pura e simplesmente".

Nas descrições que indicamos, privilegiamos uma direção descritiva que é chamada na fenomenologia de direção noemática. Quer dizer, o nosso olhar foi inicialmente dirigido para o objetivo tal como é dado | subjetivamente de acordo com o significado objetivo, as modalidades de ser, de acordo com os modos subjetivos nos quais ele se dá ali. A partir daí, voltamos às aparições mais profundas, ao novo sentido em que esse algo objetivo e o objetivo no como subjetivo aparecem, por exemplo, os percebidos em perspectiva, ou as perspectivas temporais correspondentes nas quais o temporal se [207/195] constitui como tal. Todavia, sempre nos deparamos novamente com o eu [Ego].

Mas, além disso, a reflexão, em vez de ir em primeiro lugar do objeto às suas aparições, pode, como se pode notar, ir também imediatamente para o eu, como aquele eu que realiza atos e possui objetos; os possui, por meio das aparições.

Na atitude noemática (e na direção do olhar, que lhe está ligada, conduzida até as multiplicidades em que os objetos se constituem no seu5 o que e seu como subjetivos), tudo se produz sob o título de objetos existentes, primeiro na unidade sintética de percepções em progresso e outros modos de experiência, e isso, tomado puramente como objetos de experiência, uma polarização de eventos subjetivos. Por meio da subjetividade pura, por meio do fluxo de multiplicidade de vivências unificadas sinteticamente, surge o mundo único da experiência como uma multiplicidade ligada de polos de unidade. Em verdade, se voltarmos ao próprio fluxo de vivências imanentes, este é um sistema polar relativo aos fenômenos da constituição original dos objetos temporais e, assim, o conjunto da vida imanente é constituído por ela mesma, como um sistema polar.

Todavia, essa polarização tem sua correspondência notável na polarização egóica. A partir de cada objeto dado diretamente como objeto, a reflexão não conduz somente às vivências constituintes, nas quais o objeto se constitui como um polo, mas uma reflexão é possível também a cada vez que se relaciona com o eu idêntico: e esse eu é o sujeito de todas as vivências, o sujeito para todos os seus objetos, como o polo de unidade de suas intencionalidades; contudo, ele não é, ele mesmo, uma vivência. Vimos anteriormente que o objeto, tal como aparece na multiplicidade de vivências e como é visado em seu ser, é irreal em relação a essas vivências; ele não é um momento real desses, pois é um objeto idêntico nas vivências separadas na temporalidade imanente. Por outro lado, também não podemos [208/195] encontrar o eu no fluxo real das vivências, nem como vivência, nem como parte, como momento real das vivências. Eu, que percebe agora e que realiza essa percepção; eu sou identicamente o mesmo que aquele (eu)6 que encontro na rememoração, como o eu que percebeu o passado. Eu reconheço a identidade absoluta na reflexão. Todas as minhas vivências estão relacionadas a mim mesmo como um eu idêntico, mas por meio de minha vivência todos os objetos o são igualmente, pois são constituídos neles como polos objetivos. Para dizer a verdade, toda reflexão relacionada [208/196] comigo mesmo e, toda síntese de reflexões na qual eu me encontro como ser idêntico a mim mesmo7, são elas mesmas vivenciadas e me tornam objetivo – objetivo para mim.

Mas esse caractere único e distinto é bem claro, que consiste em que, por meio do fluxo das vivências e por meio do ser que se constitui sinteticamente nelas como permanente, se realiza uma síntese universal em virtude da qual eu sou, mesmo em um modo não reflexivo, sempre um polo de identidade, em relação ao qual todo o resto é "objetivo"8. Se reflito sobre o eu-mesmo, então, eu sou como sujeito da atividade reflexiva, sou um eu operante; por outro lado, sou um objeto enquanto objeto da reflexão que designo como eu. Aliás, para além de tudo o que pode ser um objeto, o eu operante é um polo idealmente idêntico de todos os objetos

Mas, aqui é preciso ter cuidado com o fato que esse eu não é o ser humano, embora tenha o hábito de dizer, porém, na atitude natural e na percepção espacial, ele é «eu, esse ser humano». Como qualquer objeto espacial, o corpo que considero como o meu é a unidade de minhas aparições; eu sou o eu puro dessas vivências na medida em que são minhas e, o eu para o qual é constituída sua unidade de vivência, que é o corpo.

Mas, esse eu puro – que Kant obviamente tinha em mente quando falou do eu da apercepção transcendental – não é um polo morto de identidade.

Ele é o eu das afecções e das ações, o eu que, no fluxo das vivências, só tem vida porque, por um lado, exerce nelas, como vivências intencionais, intenções; que é, portanto, dirigido para as objetividades intencionais e lida com elas e, por outro lado, porque recebe [209/196] estímulos desses objetos, | que é tocado por eles como um eu que sente, que ele é atraído em direção a eles, que é motivado por eles a agir. Enquanto ele foi isso, ele está desperto e, nisso, ele está particularmente "desperto" de várias maneiras em vista de tais e tais objetos. Mas também pode ser um eu insensível e adormecido . Quer dizer, seja no modo imanente ou transcendente, nada se destaca, tudo é intrincado de forma indiferenciada em um fluxo. Assim, mesmo o eu é precisamente e à sua maneira um polo-sujeito que não se destaca, a saber, que não é então um polo que funciona em funções egóicas variáveis, tocado por afecções particulares e esperando por elas, atraído por elas, depois, seguindo seu impulso e reagindo com atividades egóicas e movimentos atuais de atenção. O eu adormecido só se revela naturalmente, em seu próprio caráter, a partir do eu desperto, por meio da reflexão [209/197] retroativa de sua própria espécie. Olhando mais de perto, o sono só possui o sentido em relação à vigília e carrega consigo as potencialidades da vigília.

Consideremos os atos do eu. O eu, como o eu desperto, está ativo em um sentido específico. Por exemplo: tenho uma apercepção de tipo perceptivo, "considero" algo, me dirijo ao passado por meio da memória, eu o apreendo, eu realizo uma presentificação que é uma tomada em consideração, eu explicito o objeto, eu o determino como substrato dotado de propriedades que lhe pertencem, relaciono-o com outros objetos, comparo e diferencio, eu o avalio como sendo belo ou odioso, eu o imagino como sendo diferente e mais belo, eu desejo que ele seja outro. "Eu posso" formá-lo de outra maneira, querer e conseguir. Em tais eventos que podem ser trazidos à luz em uma base puramente interna, o eu está sempre aí – não como uma palavra vazia, mas como um centro que pode ser trazido à luz diretamente, como um polo.

Cada ato possui o caráter de um ato que emana do polo egóico, que não flui passivamente a partir dele, mas que dele procede unicamente sobre o modo da atividade. No entanto, cada ego cogito deste tipo está ligado à pressuposição segundo a qual, anteriormente, o eu foi afetado, isto é, previamente, por uma intencionalidade passiva – na qual o eu ainda não reina – mas que já constituiu nele mesmo um objeto do qual o polo egóico foi afetado e determinado no actus. Além disso, cada actus, tanto colocado em jogo pelo eu quanto produzido a partir dele, é tal que ele é imediatamente uma vivência, inscrevendo-se no mesmo fluxo de vivências ao qual pertence as vivências passivas.

[210/197] Ainda, isso leva a um enriquecimento do mundo dos objetos, que, uma vez que é constituído, pode sempre e novamente afetar e motivar novas atividades do eu, por meio das quais sempre novos objetos são constituídos, produzidos de forma especificamente egóica, que se inserem no mundo circundante do eu. Em verdade, o eu não volta simplesmente sua atenção para o que é passivamente pré-dado, e não é simplesmente o eu da perceptividade. Mas, por exemplo, comparando, constitui a similaridade; ao formar determinadas relações, constitui relações objetivas, estados de coisas, relações qualitativas, relações de relações; depois, da mesma forma, relações de avaliação, relações práticas, ações, meios visando fins, etc. Mesmo objetos intencionais desse tipo têm seu modo de doação original, são percebidas em um sentido cada vez mais amplo do termo. Mas seu caráter original é um caráter original resultante de uma conduta ativa do eu, sobre a base de algumas pré-doações passivas. E, é apenas como um processo e tendo procedido do agir egóico que isso existe para o eu. E, uma vez lá, é doravante uma aquisição permanente; se trata de algo que o eu pode, a cada vez, voltar com o raio de seu olhar, que ele pode ver retrospectivamente depois de uma forma receptiva, que ele pode se presentificar de novo, se identificar objetivamente, tomar e de outra forma tratar como um ponto de referência com vista a novas ações relacionadas a ele.

Agora temos uma ideia do eu como o ponto-fonte de todas as produções, todas as produções e todos os produtos lógicos, axiológicos e práticos, configurações egóicas do espírito; nosso interesse, entretanto, não é apenas neste grau superior do mundo objetivo circundante, que surgiu por meio dessas configurações espirituais do eu, ele não faz menos, correlativamente, em uma mutação característica que acontece aqui com o próprio eu. O polo egóico puro é numérica e identicamente o mesmo, é o centro um e único do conjunto da pura subjetividade que gradualmente passamos a conhecer a partir de nosso ponto de partida, cada um partindo de suas [211/198] percepções e suas experiências externas. Mas, assim como um polo-objeto é o mesmo, segundo a identidade numérica, e isso, no curso contínuo que parte de suas aparições e, se dirige em direção às aparições sempre novas que a ela se ligam de modo sintético concordante, mas, no entanto, determinando-se de uma maneira sempre nova por meio de conteúdos objetivos sempre novos, <e> continua <assim> doravante a portar dentro de si os sedimentos dessas determinações; o mesmo acontece com o eu. Mas, com certeza, o eu puro não é um simples objeto coisificado que se constitui como unidade de aparições, e se constitui como um substrato de determinações características materiais. O eu realiza atividades. Mas não é um ponto polar de ideia e vazio, simplesmente determinado como o ponto de intersecção das atividades que dele surgem, que então se encontram pré-dadas; mas, é ao mesmo tempo um polo de habitualidades correspondentes. No entanto, no caso dele, como no caso do objeto como uma coisa, não se trata de propriedades dadas na percepção e trazidas à luz como propriedades de coisa, mas de propriedades constitutivas que surgem nele, a partir de sua gênese, a partir do fato de que cada vez ele realizou tal actus, e que só lhe pertencem historicamente por referir-se a elas. Por meio desta decisão de origem, o eu se torna este eu que em sua origem é o objeto de uma decisão. Ele agora pode imediatamente ter uma tal intuição dele mesmo, e ter uma tal intuição se identificando como sendo o mesmo, ainda sendo o mesmo que foi o objeto daquela decisão. O eu tem uma história e, a partir de sua história, cria algo que permanece para si no modo do hábitos e como o mesmo.

Por exemplo, se eu aprender a reconhecer um objeto espacial por uma única consideração, e eu adquirir dele, pela primeira vez, uma "representação unitária", um "conceito", se eu o obtiver como um substrato de caracteres que lhe pertencem, é uma operação ativa que vai além da passividade e fornece justamente esse "conceito".

Se mais tarde eu vir este objeto novamente, ele não é mais um objeto novo para mim, mas é eo ipso o objeto concebido. Se voltarmos ao eu do ato de origem e ao do ato que posteriormente reconhece, fica claro o seguinte: no ato de origem eu adquiro conhecimento, mas não conhecimento momentâneo do ato, mas conhecimento como uma convicção que permanece em mim. A realização ulterior é de fato a realização de um ato semelhante, na medida em que o conteúdo pode ser semelhante, mas esse ato não se modifica simplesmente na medida em que desperta o ato anterior e recebe o caráter de conhecimento familiar sob relação do [212/199] conteúdo objetivo; nem simplesmente nisso, reativando a rememoração, posso agora dizer a mim mesmo: agora acredito na mesma coisa e vejo a mesma coisa que descobri anteriormente; devo antes dizer: já tive consciência disso antes, e esse conhecimento permaneceu comigo como uma convicção. Esta é a minha convicção, e a visão renovada confirma essa convicção que, entretanto, foi continuamente a minha.

Tomemos uma demonstração que eu primeiro estabeleci durante as atividades implícitas. Se, em meus pensamentos, eu fizer um retorno para esta demonstração, não é apenas uma questão de uma memória do que eu demonstrei antes, e de uma crença correlativa que foi anteriormente demonstrado, que é recentemente realizado a partir do presente, mas, minha convicção, digo eu, não se modificou, ainda a tenho como aquela convicção outrora instituída em demonstração. E, acrescento: continuo o mesmo – eu, que adotei essa convicção, sou o mesmo – na medida em que eu sempre volto a ter essa convicção. O fato de estar engajado em uma atividade e de ter adquirido uma certa convicção, um certo resultado de uma efetuação posicional, abre uma perspectiva de futuro para o eu. Com a instituição dessa convicção, um tal ser se desenvolveu para mim, um tal durável para mim, não uma expectativa empírica de como me comportarei mais tarde.

42. O eu das instituições originárias e instituições posteriores. Identidade do eu que retém suas convicções por completo. A individualidade de si mesmo se manifesta em suas decisões, as quais se fundam sobre convicções.>

O eu não possui nenhuma das propriedades da coisa, ele possui exclusivamente seu ser-tal como o sujeito de convicções autoinstituídas.

O eu, que realiza instituições originárias e, assim, se institui do mesmo modo, ele mesmo, em um sentido correlativo como eu de convicções originárias autoinstituídas, torna-se, entretanto, também, na comunidade, um eu que inclui posteriormente os eus estrangeiros em seu próprio fazer originariamente instituinte. E que, "aderindo", isto é, ajustando-se a ela, encaixando-se nas motivações dos outros e na sua convicção, realiza na sua própria unidade de vida – nesta instituição ulterior, nesta última sequência – uma crença, uma avaliação comum. As convicções que são assim instituídas no eu não procedem do eu; ele não as forma, ele não institui, ele mesmo, em [213/200] sua originalidade egóica. Ele segue, se orienta de acordo com o outro, de acordo com suas convicções e suas motivações. Ele pensa, avalia, não age por si mesmo e para si mesmo, mas segue as sugestões do outro, vive nele, transpõe-se nele vivendo com ele, e ele afirma, age de acordo, assume uma posição, uma posição comum. Ora, possuímos dois lados, dois tipos de tomadas posição.

1) a tomada de posição, decisão, convicção procedente puramente de motivos racionais, em que "vemos", percebemos, alcançamos um objetivo ao vê-lo.

2) tomadas de posições a partir de motivos "cegos", que, é verdade, podem ser entendidos uma vez revelados, e que têm, junto com sua inteligibilidade, uma racionalidade indireta, mas não uma racionalidade visível, segundo a necessidade da qual é o portador. Sua racionalidade deveria primeiro ser delimitada. Existe um campo de transferência associativa e aperceptiva, a partir da esfera da visão para o que é antecipado sem ser visto, com base na analogia com <este> que foi postulado previamente como sendo visto e que não foi fundamentado por uma verificação que é visível.

Mas é necessário igualmente fazer uma diferenciação entre a motivação racional e esta motivação (esta causalidade psíquica, a causalidade passiva e a causalidade do eu) que me motiva a adotar geralmente os ensinamentos da razão, o que me coloca na posição de poder e de dever ver, seguindo os afetos passivos. Se eu sigo o outro, é possível que depois eu possa reproduzir em mim sua intuição e que eu o faça. Nisto, eu o sigo racionalmente e decido de acordo com a razão dele e, igualmente, de acordo com a minha, considerando que, a dele, por imitação, torna-se a minha.

Minha decisão é uma decisão copiada e, no entanto, tomei minha decisão com base em uma livre razão. Posso justificar essa decisão diante de mim mesmo. Por outro lado, permanece o fato de que não vem originariamente de mim mesmo: eu não sou o autor, sou uma autoridade estrangeira, mas, ao mesmo tempo, eu a sou em virtude da minha própria razão. Eventualmente, eu tenho uma ideia e sigo minha ideia, mas o outro absolutamente não a compartilha, então não sou-eu a sua ideia em mim conformada.

Mas, devemos também distinguir de antemão entre o acompanhamento "passivo" e a decisão livremente refletida que tomo para adotar a decisão do outro, com a diferença que pode ser tomada racionalmente [214/201] (possivelmente puramente racional) ou de razões a partir de motivos não justificados. Também temos:

1) convicções sugeridas e somente isso;
2) seguir livremente o outro, convicções relacionadas com a adesão ativa;
3) convicções relacionadas à adesão a partir de nossa própria razão (possivelmente seguindo seu caminho intuitivo e sua intuição mesma). Estou me instituindo originariamente a partir de mim mesmo; através dos outros, eu sou o sujeito, livremente motivado, de convicções que passam na instituição posteriormente.

Toda modificação de convicção é uma modificação do eu: eu não tenho convicções como tenho vivências passageiras, mas minhas convicções são propriedades do eu, que possuo a partir de minhas próprias atividades originariamente instituintes, ou então de minhas próprias decisões que seguem livremente outros eus e suas decisões; convicções que eu, no entanto, acabo perdendo eventualmente por outras atividades, e isso, sendo motivado conforme toda necessidade destas últimas. Enquanto eu não abandonar tal convicção, ela conserva para mim sua validade. Eu, que sou quem sou, sou agora a maneira na qual eu sou, eu sou tal ou tal convicção que procede de uma decisão originalmente própria. O eu não possui nenhuma outra propriedade. Muitas coisas dependem da particularidade fundamental do eu. Assim, por exemplo, o que nomeamos autopreservação, quer dizer, tal qual ela se relaciona puramente ao eu. Em última instancia, a vida egóica é atravessada por aspiração para chegar a uma unidade e a uma unanimidade na multiplicidade de suas convicções, de tal maneira que o eu quer tornar-se um eu tal qual ele permaneça fiel a ele mesmo, tal qual ele possa permanecer fiel a ele mesmo, contanto que ele nunca esteja inclinado a abandonar suas convicções e – isso está associado de uma maneira essencial – a se perder. Se trata naturalmente de uma ideia, mas caracteriza o sentido da aspiração à autoconservação em sua idealidade.

Da mesma forma, os conceitos de personalidade, caráter e individualidade, naquele sentido puramente egóico que determina fortemente a língua, se relacionam a este campo de convicções que se formam a partir do eu e que o determinam egoicamente.

O eu se estende a sua maneira no tempo como eu, que dura continuamente apesar da mudança de suas ações, portanto, também de suas convicções, [215/202] de suas decisões. Contudo, ele não dura simplesmente continuamente como, por assim dizer, um estágio vazio em que aconteceria tal mudança, ou melhor, como um mero substrato para essa mudança. Além disso, o que literalmente chamamos de eu (abstração feita da relação de comunicação com um tu ou um nós), significa uma individualidade pessoal. Existe neste conceito uma unidade que perdura de maneira idêntica e se constitui na mudança das decisões. Ela é um tanto análoga à unidade da coisa real em relação aos estados de mudança das coisas. À maneira em que o eu se deixa motivar, em relação ao mundo circundante de sua consciência, às decisões mutáveis e, assim, levando em conta a particularidade de suas próprias decisões tomadas e de seus contextos, o eu conserva um estilo individual que podemos vir a conhecer. O polo-egóico (eu) não possui apenas seus sedimentos mutáveis, mas uma unidade constituída neste estilo por meio de suas mudanças. O eu tem sua individualidade, seu caráter individual, que, por meio de todas as decisões e resoluções, permanece idêntico a si mesmo; como característica individual, ele tem particularidades, qualidades específicas que são as qualidades de seu caráter.

Nas decisões, tais como elas nascem no contexto – tal como ele é novamente apreendido –, das decisões já conhecidas do eu, se anuncia de forma aperceptiva e gnosiológica tais ou tais qualidades do caráter e, assim, a individualidade em geral.

Mas, a este respeito, devemos acrescentar que, na experiência associativa indutiva, são formadas expectativas quanto à maneira como as pessoas em questão se comportarão, de acordo com seu comportamento até então (ou de acordo com o comportamento anterior de meu eu por mim mesmo – nesse caso, se trata da minha experiência própria do eu-mesmo.

Ainda, a unidade que se forma em um modo indutivo empírico, o substrato das orientações de expectativa, é aqui o índice de uma unidade interna, inteligível posteriormente, a ser revelada na sua plena inteligibilidade. Nas decisões do eu, ele mesmo, há uma consequência que delineia com antecedência as decisões subsequentes, e esta é uma esfera de inteligibilidade; mas com certeza, em muitos aspectos, ainda requer elucidação.

 

Referências

Husserl, E. (2001). Psychologie phénoménologique (1925-1928). P. Cabestan, N. Depraz, A. Mazzú, F. Dastur, (Trad.). Librairie philosophique J. Vrin, Paris, Place de la Sorbonne.         [ Links ]

Husserl, Edmund. (1962). Phänomenologische Psychologie. Vorlessungen Sommersemester 1925, ed. Wlater Biemel. Den Haag, Martinus Nijhoff (Husserliana IX, citada: Hua. IX).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Eunides Almeida
E-mail: eunidesalmeida@gmail.com

Tommy Akira Goto
E-mail: tommy@ufu.br

Recebido: 16/04/2022
Revisado: 16/05/2022
Aceito: 16/06/2022
Publicado: 30/06/2022

 

 

1 Eunides Almeida: ORCID: https://orcid.org 0000-0002-8694-5819
2 Tommy Akira Goto: ORCID: https://orcid.org/ 0000-0003-4972-7801
3 Apendices XII, XXIV e XXV.
4 A marcação das páginas seguem a seguinte ordem: em primeiro lugar estão as páginas da publicação original em alemão e na sequência as da publicação da tradução em francês.
5 Itálico nosso.
6 (eu) – destaque nosso.
7 O Eu Transcendental kantiano.
8 Síntese da apercepção transcendental.

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