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Revista do NUFEN

On-line version ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.14 no.2 Belém May/Aug. 2022

 

ARTIGO

 

Vivências de mães no cuidado de crianças com transtorno do espectro autista

 

Experiences of mothers in the care of children with autistic spectrum disorder

 

Experiencias de madres en el cuidado de hijos com transtorno del espectro autista

 

 

Amélia Belisa Moutinho da Ponte1 I; Lucivaldo da Silva Araujo2 I

I Universidade do Estado do Pará, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Diante dos desafios do cuidado de uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), muitas vezes as mães se deparam com uma realidade diferente da idealizada em que são reduzidas à condição materna. Diante disto, buscou-se identificar como se constitui e quais os sentidos da maternagem para essas mães. A pesquisa, aprovada em comitê de ética, obteve os dados por meio de entrevistas semidirigidas, analisadas segundo a hermenêutica de Ricoeur. Os resultados evidenciaram a experiência do descobrir e do adaptar-se à rotina do cuidado de um filho neuroatípico e as dificuldades encontradas para o exercício de múltiplos papéis, incluindo os enlaces relacionados à conjugalidade e à participação do pai no cuidado com o filho. A despeito de existências limitadas pela maternagem, destacam-se o protagonismo e o empoderamento de mulheres que reivindicam a participação ativa dos companheiros e de suas redes de suporte no cuidado com a criança com TEA.

Palavras-chave: Maternagem; Fenomenologia; Transtorno do Espectro Autista.


ABSTRACT

Faced with the challenges of caring for a child with Autism Spectrum Disorder (ASD), mothers are often faced with a reality different from the idealized one in which they are reduced to the maternal condition. In view of this, we sought to identify how it is constituted and what are the meanings of mothering for these mothers. The research, approved by an ethics committee, obtained data through semi-structured interviews, analyzed according to Ricoeur's hermeneutics. The results showed the experience of discovering and adapting to the routine of caring for a neuroatypical child and the difficulties encountered in the exercise of multiple roles, including the bonds related to conjugality and the father's participation in caring for the child. Despite existences limited by motherhood, the protagonism and empowerment of women who claim the active participation of their partners and their support networks in the care of children with ASD stand out.

Keywords: Maternity; Phenomenology; Autism Sp e ctrum Disorder.


RESUMEN

Ante los desafíos del cuidado de un hijo con Trastorno del Espectro Autista (TEA), las madres se enfrentan muchas veces a una realidad diferente a la idealizada en la que se reducen a la condición materna. Frente a eso, buscamos identificar cómo se constituye y cuáles son los significados de la maternidad para estas madres. La investigación, aprobada por un comité de ética, obtuvo datos a través de entrevistas semiestructuradas, analizadas según la hermenéutica de Ricoeur. Los resultados mostraron la experiencia de descubrir y adaptarse a la rutina de cuidar a un niño neuroatípico y las dificultades encontradas en el ejercicio de múltiples roles, incluidos los vínculos relacionados con la conyugalidad y la participación del padre en el cuidado del niño. A pesar de existencias limitadas por la maternidad, se destaca el protagonismo y empoderamiento de las mujeres que reclaman la participación activa de sus parejas y sus redes de apoyo en el cuidado de los niños con TEA.

Palabras clave: Maternidad; Fenomenología; Trastorno del espectro autista.


 

 

1. Introdução

O termo "autismo" foi utilizado pela primeira vez em 1911 por Leo Kanner, para designar uma condição neuroatípica que se caracteriza pela perda do contato com a realidade. Em 1943, o mesmo autor usou essa expressão para descrever o comportamento de 11 crianças que apresentavam dificuldade para estabelecer contato afetivo e interpessoal, que julgou ser derivado da esquizofrenia (Klin, 2006).

Klin (2006) aponta que, no estudo de Kanner, as mães das crianças investigadas eram definidas como frias, distantes e de elevada capacidade intelectual, sendo este um fator desencadeante para o que ele chamou de "Distúrbios Autísticos do Contato Afetivo".

Durante as décadas de 1950 e 60, vários teóricos se posicionaram a respeito do autismo, especialmente aqueles vinculados à psicanálise. A crença corrente comunicava que o autismo era causado por pais pouco responsivos emocionalmente a seus filhos, sobretudo, pelas mães, que naquela época foram denominadas de "mães geladeiras", em alusão ao suposto comportamento frio das genitoras (Klin, 2006).

Até hoje, a hipótese lançada por Kanner não foi cientificamente comprovada e, apesar de outros estudos terem identificado que não há diferença significativa entre a afetividade de pais de crianças autistas e de crianças não autistas, sua tese ainda ecoa (Klin, 2006).

Pinho (2015, p.26) explica que com a publicação do DSM V (APA, 2014), elimina-se todos os subtipos similares de transtornos autísticos, passando-se a diagnosticar os indivíduos em um único espectro, com diferentes níveis de gravidade. Assim, o s Transtornos Globais do Desenvolvimento, que no DSM IV incluíam o Autismo, Transtorno Desintegrativo da Infância e as Síndromes de Asperger e Rett foram absorvidos por um único diagnóstico, denominado Transtorno do Espectro Autista (TEA).

Em virtude de o DSM V ter simplificado o diagnóstico, houve críticas sobre as mudanças, pois diziam existir diferenças significativas entre os vários transtornos símiles. A APA, em oposição, afirmava não existir vantagens diagnósticas e terapêuticas nessa diferenciação, já que a dificuldade em subclassificar o transtorno poderia causar confusão e dificultar o diagnóstico (Araújo & Lotufo Neto, 2014).

O dissenso teórico e clínico, ao longo dos anos, refletiu na complexidade diagnóstica dos casos de autismo que, intuía-se, eram significativamente subnotificados (Monteiro et al., 2017). Nas últimas décadas, com o aumento do número de pesquisas sobre essa população e suas famílias, maior difusão e acesso à informação, além do envolvimento de múltiplos profissionais no cuidado com as crianças que estejam dentro do espectro autista, o número de casos tem aumentado significativamente.

A prevalência de diagnósticos de TEA também pode estar relacionada com a maior sensibilidade dos instrumentos utilizados para diagnóstico. Da mesma forma, deve-se levar em conta o aumento de serviços de referência que trabalham com a população infantil neuroatípica, como os Centro de Atenção Psicossocial Infantil (CAPSi) e os Centros Especializados em Reabilitação (CER) (Brasil, 2012).

Do ponto de vista nosológico, o TEA é classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento, cuja causa, de acordo com Mello (2007), é desconhecida. Pode ocorrer em qualquer classe social, etnia ou cultura, em que cerca de 65% a 90% dos casos estão associados à deficiência intelectual (Gadia, Tuchman & Rotta, 2004).

O comportamento de crianças com o TEA se caracteriza principalmente pela dificuldade de estabelecer um sistema adequado de comunicação com o meio social, em decorrência do atraso na aquisição da linguagem, do uso estereotipado e repetitivo da fala, como também a falta de reciprocidade social e emocional que apresentam em suas relações (Baptista & Bosa, 2002; Nunes, Souza & Giunco, 2009).

Em síntese, pode-se dizer que o TEA é um transtorno neuroevolutivo que se apresenta como uma condição crônica e implica em dificuldades importantes no que tange à realização de tarefas comuns do dia a dia, gerando significativas demandas de cuidado e, consequentemente, impactos na rotina familiar (Christmann, 2017).

Maternidade: desafios e avanços contemporâneos

Os pais de crianças com TEA, sobretudo, as mães, que na maioria das vezes assumem a responsabilidade dos cuidados, necessitam desenvolver habilidades para lidar com a realidade diferente da idealizada. Sobre essa questão, Demyer e Goldberg (1983) publicaram um trabalho que abordou o estresse dos pais de crianças com autismo. Os resultados demonstraram maior presença de tensão física, culpa e incertezas nas mães dessas crianças quanto às habilidades maternas e psicológicas. Neste estudo, os pais também se mostraram afetados, porém de modo indireto, isto é, reagiram ao sofrimento de suas esposas.

Outro estudo sobre diferentes papéis desempenhados por pais e mães de crianças com autismo apontou que as mães tendem a apresentar maior risco de crise e estresse parental em relação aos pais, devido à demanda dos cuidados com a criança. Conforme os autores, existe uma expectativa social de que as mães tomem para si esses cuidados, assumindo-os com mais intensidade do que os pais (Milgram & Atzil, 1988).

Mesmo com diversos trabalhos publicados acerca do TEA, não se observa investigações dedicadas ao desvelamento dos sentidos atribuídos por mães de crianças com TEA à vivência da maternagem . Logo, esse se configura como objeto de pesquisa, tendo como o bjetivo compreender os sentidos da maternagem para mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista.

Sobre esse campo temático é importante destacar que, enquanto a maternidade é tradicionalmente relacionada à gestação, permeada pela relação consanguínea entre mãe e filho, a maternagem é estabelecida no vínculo afetivo do cuidado e acolhimento ao filho. Esta prática está relacionada ao contexto cultural em que está inserida a família e a criança, bem como os valores sociais e significados que lhe são atribuídos. Portanto, é possível afirmar que a vivência da maternagem varia histórica e culturalmente ao longo dos séculos (Kitzinger, 1978).

Nos últimos séculos são notórias as diversas conquistas das mulheres relacionadas à sua forma de ser e estar no mundo, a despeito das circunstâncias sociais, econômicas e políticas. Com esse modo de ocupação da mulher, a liberdade de agir e de se expressar tornou-se patente, desobrigando-a dos comportamentos sociais "forçosos". Entretanto, persistem as amarras de alguns padrões seculares nos quais a mulher ainda é, muitas vezes, retratada na condição de mãe, entre eles, o mito da maternagem, que há muito vincula a mulher a um possível instinto materno "natural" (Baluta & Moreira, 2019).

Nesta perspectiva, Stellin et al. (2011) salientam que uma mulher não se configura "primordialmente como mãe". A função materna é um processo de construção a partir da relação mãe-filho, que se constitui através de questões subjetivas. Portanto, a maternagem não se restringe unicamente a atender as necessidades básicas da criança, mas a uma disponibilidade dessa mãe, que perpassa pela sua história de vida, pelo investimento de desejo e tudo que diz respeito aos recursos psíquicos empregados nessa relação.

Diante da relevância da temática, alguns pesquisadores têm se dedicado a conhecer a vivência de mães de crianças com TEA no exercício da maternagem em suas diferentes facetas. Por exemplo, Constantinidis, Silva e Ribeiro (2018) publicaram um artigo com o título " Todo mundo quer ter um filho perfeito: vivências de mães de crianças com autismo", no qual d estacam a importância do diagnóstico como norteador das ações dessas mães. Já Rendón (2016), na dissertação "Vivências de mães de crianças com transtorno de espectro autista: implicações para a enfermagem", destaca o desvelamento de sentimentos manifestados por mulheres mães de pessoas com TEA, como solidão, descaso, preconceito da família e sociedade em geral.

Em função do envolvimento direto nos cuidados com o filho, o cotidiano destas mulheres sofre alterações importantes, mesmo que toda família padeça com o comportamento neuroatípico da criança no seu dia a dia, a mãe costuma ser a principal responsável por manejar e enfrentar as reações consideradas inadequadas da criança com TEA, comumente rotuladas de "birra", "tolice" (Minatel & Matsukura, 2014).

Essa realidade faz com que essas mães vivenciem o sentimento de luto ao perceberem a diferença entre o filho sonhado e o filho real. Ademais, a especificidade de demandas no cotidiano da lida com crianças com TEA – como a dificuldade na realização de tarefas próprias de sua fase de desenvolvimento, o nível de dependência e a imposição de maiores exigências relacionadas à administração da rotina pessoal e familiar – evidenciam ainda mais esse contraste (Sifuente & Bosa, 2010). Levando em conta a noção de que este fenômeno envolve uma série de fatores interatuantes, intra e extrafamiliares, os quais afetam a família e, principalmente, as mães dessas crianças, este artigo aborda os resultados de uma pesquisa que dedicou a identificar como se constitui a maternagem de um grupo de mães de crianças com TEA e compreender os sentidos da maternagem para essas mães.

 

2. Metodologia

Segundo Dartigues (1973), a fenomenologia pretende descrever os fenômenos, e não os explicar ou buscar relações causais. Trata-se de uma atitude que investiga as coisas mesmas tal qual elas se manifestam. Logo, voltar às coisas mesmas significa voltar ao mundo da experiência, considerando que antes da realidade objetiva, há um sujeito que tem vivência e, antes de tudo, há uma vida que o fundamentou. Nesse horizonte, propõe-se um estudo qualitativo de orientação fenomenológica e hermenêutica voltado para o significado que as pessoas atribuem às suas vivências.

Segundo Oliveira (2007), a pesquisa qualitativa apresenta como mérito compreender os fenômenos de forma profunda, abrindo-se para apreender o conhecimento subjacente que os circunda. Neste caso, a abordagem do objeto de estudo, pela via hermenêutica Ricoeuriana (Ricoeur, 1999), envolve pessoas apoiado no que é o manifestado em seus discursos, com a intenção de acessar as significações atribuídas às vivências de determinados fenômenos.

O presente estudo se ampara no referencial teórico-metodológico da Fenomenologia Existencial Heideggeriana, que busca a compreensão da experiência vivida para a interpretação e elaboração dos conhecimentos, enfatizando a dimensão existencial do viver e os significados atribuídos pelo indivíduo a partir de seus modos de estar no mundo (Heidegger, 2014).

No que se refere à inclinação hermenêutica aqui ancorada, Paul Ricoeur (2008) anuncia um método próprio que considera não haver desvelamento do fenômeno sem discurso, ou seja, sem a compreensão da linguagem. Neste caminho, o filósofo propõe analisar o sentido do discurso, interpretando o fenômeno através da efetuação do discurso como texto e como ato no propósito de obter a descrição do mundo da vida dos participantes da pesquisa com relação à interpretação do significado do fenômeno descrito.

Procedimentos

A pesquisa foi realizada com mães cujos filhos frequentam o Espaço Terapêutico Amira Figueiras - ARIMA, um centro de diagnóstico e tratamento para crianças com transtorno de desenvolvimento neuropsicomotor, dentre eles: o TEA. O espaço, que se situa no município de Ananindeua, região metropolitana de Belém, iniciou suas atividades em 2015 e atualmente atende aproximadamente a 150 clientes de vínculo privado ou filantrópico.

Participaram da pesquisa seis mães de crianças com TEA, contudo, é importante salientar que o número de participantes da pesquisa não foi determinado previamente ou estatisticamente, pois obedeceu ao critério de saturação das informações, como salienta Fontanela, Ricas e Turato (2008): "O fechamento amostral por saturação teórica é operacionalmente definido como a suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados".

Noutras palavras, as informações fornecidas por novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam ao material já obtido, não mais contribuindo significativamente para o aperfeiçoamento da compreensão do fenômeno através dos dados que estão sendo coletados.

Considerou-se como critério de inclusão: ser mãe, maior de 18 anos, que aceite e assine o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE, que possua filho com diagnóstico de neuroatipicidade exclusivo em TEA sem a presença de comorbidades associadas. Adotou-se como critério de exclusão: ser mãe de crianças que apresentem comorbidades e possuir algum comprometimento cognitivo, ou de alguma outra ordem, que impeça a emissão de consentimento livre e esclarecido, assim como de compreender as intenções da pesquisa.

Seguindo as orientações governamentais e sanitárias acerca das medidas de prevenção diante da Pandemia de Covid-19, avaliou-se inapropriado o contato direto com as mães no espaço institucional. Assim, as mães foram contatadas por telefone, a partir do cadastro disponibilizado à pesquisadora pela instituição. Por esse canal, foram convidadas a participar da pesquisa, ocasião em que foram esclarecidos sobre os objetivos e os procedimentos previstos no estudo.

As mães, que aceitaram participar da pesquisa e atenderam aos critérios de inclusão e exclusão, foram convidadas a fazer uma entrevista semidirigida de orientação fenomenológica. A entrevista teve como propósito aprofundar questões acerca dos aspectos particulares relacionados aos sentidos da maternagem para essas mulheres.

Turato (2008) apresenta a entrevista semidirigida como aquela que é parcialmente direcionada pelo pesquisador, na qual há a possibilidade de o participante apontar o caminho da entrevista em alguns momentos, sendo esta conduzida a partir de um roteiro de questões.

De acordo com as orientações de Paul Ricoeur, a entrevista visa compreender/interpretar o significado do fenômeno em estudo. Para isso, o investigador atua como intérprete e registra tanto o que é dito como o que não é dito, no intuito de obter as nuances dos atos do discurso, permanecendo atento as vocalizações, expressões faciais, posturas corporais, hesitações, choro, raiva etc. (Melo, 2016).

Ao longo da análise temática dos discursos transformados em texto, considera-se o registro do "tom da voz, o gaguejar, o tartamudear, a vacilação, a insegurança, ou a segurança, a convicção, a presteza no responder, o tom jocoso, rancoroso, apaixonado, displicente ou reverente do falar" (Santos, 1995, p. 9).

Os temas elencados foram analisados de acordo com os Atos do Discurso conforme Paul Ricoeur (2008). Os atos do discurso ocorrem por meio de três níveis hierárquicos de atos de fala: o ato locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário. O locucionário resume-se ao ato de dizer; o ilocucionário refere-se às manifestações não-verbais que se faz ao dizer, como as expressões gestuais e fisionômicas; e o perlocucionário é o que se faz pelo fato de falar, ou seja, o efeito provocado pelo que foi dito, caracterizando-se como um estímulo que gera uma resposta. Tais aspectos da linguagem estão atrelados e permitem a exteriorização e expressão de intenções através do discurso (Ricoeur, 2008).

Desse modo, a partir do discurso das mães entrevistadas, transformados em texto, foi realizado o procedimento de leitura e identificação dos sentidos possíveis das colaboradoras, utilizando como aporte teórico-filosófico a fenomenologia hermenêutica para compreender os sentidos, a partir da criação de unidades de significação que possibilitaram a compreensão do fenômeno em foco: os sentidos da maternagem para mães de crianças com TEA.

É importante dizer que a pesquisa foi submetida à apreciação ética por Comitê de Ética em Pesquisa com seres humanos (CEP), e somente após sua aprovação sob parecer número 4.059.484, efetuou-se o contato com as colaboradoras e a obtenção das informações.

Todas as participantes da pesquisa registraram seu consentimento assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, previamente à coleta de dados e tiveram resguardados seus direitos à discrição, à preservação da identidade e à possibilidade de desistência de participar da pesquisa a qualquer momento, sem qualquer tipo de prejuízo. Vale ressaltar que os participantes terão acesso aos resultados deste estudo após sua finalização.

Com base no compromisso ético assumido em relação ao sigilo da identificação das participantes, utilizou-se nomes fictícios e foram feitas alterações em quaisquer dados que pudessem identificá-las. Nesse sentido, tem-se o uso de pseudônimos baseados em nomes de heroínas escolhidas pelas próprias participantes.

 

3. Resultados e Discussão

O processo analítico envolveu a apresentação dos temas em evidência no conjunto dos discursos foram organizados em três unidades de significação: a) a experiência do descobrir e do adaptar-se; b) o ser mãe de uma criança com TEA: expressão da vivência; c) Ser mulher e mãe de uma criança com TEA: enlaces entre a conjugalidade e o preconceito.

A experiência do descobrir e do adaptar-se

Ter um filho com deficiência pode representar uma experiência de intensa frustração. Carswell (1993) relata que as mães dessas crianças vivem uma espécie de luto pelo filho "perfeito" que não nasceu. Assim, o diagnóstico de deficiência confunde sonhos e planos, fazendo emergir sentimentos de angústia, culpa, raiva, perplexidade e a procura por justificativas e culpados, o que pode iniciar um processo de desequilíbrio familiar, já que esses sentimentos são vividos de forma distinta por todos os membros desse sistema relacional.

Miller (1995) trata da questão de como famílias de crianças com deficiência conseguem criar seus filhos frente a tantas dificuldades inesperadas. Esta autora observa que, com o nascimento do filho, as famílias passam frequentemente pelo que ela denomina de "fase de adaptação" à nova realidade. As fases de adaptação seriam quatro: sobrevivência, busca, ajustamento e separação, que geralmente acontecem nessa ordem, podendo, no entanto, coexistirem em um mesmo momento ou terem sua ordem alterada.

Essa categorização pode ajudar a compreender a experiência da descoberta do diagnóstico de TEA por estas mulheres que, após a fase de impacto inicial, passam a buscar equilíbrio emocional que permita a criação do filho inesperado.

No relato da mãe Capitã Marvel, a fase de sobrevivência pode ser constatada nos excertos a seguir: "Nesse dia eu chorei, eu desabei, eu chorei muito. Eu fiquei muito mal, eu olhava pro meu filho e só conseguia chorar. (...) acho que eu não aceitava, eu tava vivendo aquele luto assim, diário, e era muito ruim [pausa, choro]" (Capitã Marvel);

Ao fazer uso do verbo "desabar" e "aceitar", Capitã Marvel expressou com intensidade a aflição da descoberta do diagnóstico e o descontentamento vivido, ao se deparar com a nova realidade de ter um filho diferente do desejado. Sem entender e aceitar o fato, ela não conseguiu atribuir significado ao vivido naquela ocasião.

Já Elsa disse "No início eu senti culpa porque depois lendo, sabendo mais sobre o autismo, fazendo uma retrospectiva, eu me culpo por eu não ter descoberto antes, por quê? (Elsa). Ela trouxe a veemência da ilocução evidente no substantivo "culpa", que em seguida surge como ação "eu me culpo". Durante o ato de falar, ela demonstrou tristeza, abaixou o olhar e mexeu nas mãos, repreendendo-se por não ter descoberto a atipicidade do filho antes e se sentindo responsável por ele não ter evoluído como desejava. Entretanto, apesar da evidente angústia manifestada por essas mulheres naquele momento, é nítido o esforço para adaptação ao novo contexto de vida, independentemente das adversidades enfrentadas.

A fase de sobrevivência é vivida à medida que a família procura continuar caminhando, apesar do choque inicial de um filho inesperado. Procuram reagir, enfrentar o desespero de perceber que algo fora do controle está acontecendo e fazendo com que seu filho não tenha o desenvolvimento esperado. Sentimentos como medo, confusão, culpa, vergonha e raiva são comuns nessa fase e, dizer que se sobreviveu a esta facticidade é reconhecer a possibilidade de continuar vivendo a partir de um novo propósito, confiantes de poder encontrar meios de superar o que ainda está por vir (Miller, 1995).

As mães Super Girl e Anna falaram sobre um movimento que evidencia a reação adotada diante da imprecisão diagnóstica. Assim, lançaram-se em busca de ajuda como reação à imprevisibilidade do transtorno do filho com deficiência.

Foi assim um mês bem difícil. Eu fiquei assim, fiquei aquele período assim, mas depois eu disse: "Não. Vamos trocar o pânico, porque não dá pra ficar assim, fazer consultas" e já entramos logo com terapia sem diagnóstico fechado. (Super Girl).
[...] eu tava triste, mas era muito pequeno perto da minha força de vontade para lutar pelo tratamento dele. Falei: não! Vou atrás de um tratamento, vou atrás de alguma coisa. (Anna)
.

Observa-se que o relato dessas mães se assemelha à fase da busca externa proposta pela Miller (1995). A fase da busca no processo de adaptação, segundo a autora, é dividida em dois momentos: busca externa e a busca interna. A busca externa tem início quando ainda se está à procura de um diagnóstico preciso e por serviços de saúde para o atendimento do filho com deficiência.

Essa fase de adaptação chamada de busca interna me parece ser a mais difícil. Caracteriza-se por questionamentos e conflitos que acontecem demarcados por perguntas do tipo "Por quê?", "O que isto significa para a minha vida?", implicando na busca pela compreensão das razões de se ter um filho nessa condição (Miller, 1995).

A busca da razão e da natureza do TEA tem como marcadores os sentimentos de incerteza/alívio da notícia. Incerteza diante da incongruência das expectativas que opõem o filho idealizado e o filho real, das dúvidas sobre como cuidá-lo e sobre o futuro, uma interrogação constante. A única certeza de que se têm está relacionada à mudança que acontecerá nas suas vidas. O alívio acontece junto com a tomada de consciência de que, ao ter um diagnóstico definido, poder-se-á desenvolver estratégias para contribuir com o desenvolvimento de seus filhos (Jerusalinsky, 1984).

O período seguinte é chamado de fase de ajustamento, o qual seria o momento de acomodação e equilíbrio que levaria à percepção de que mudanças levam tempo para acontecer. Há espaço para preocupações com outros filhos, com o parceiro, a carreira, amigos, lazer etc. Ressalta-se que a família está mais habituada à sua condição, tendo desenvolvido habilidades e obtido informações sobre a situação, além de segurança e autoconfiança (Miller, 1995).

Os relatos da Super Girl e Elsa descritos abaixo revelam esse momento de adaptação à nova realidade, chamado de fase de ajustamento. O futuro é visualizado de forma mais tranquila, com a certeza de que o filho está bem assistido e amparado.

E aí no primeiro ano foi ruim. Realmente não fiz nada pra mim. Aí depois que comecei, ah, poxa, não é bem assim... Aí eu comecei ver de outra forma. Eu vi que eu já tô fazendo um bom trabalho aqui (...). Ele começou a dar respostas muito boas no tratamento. Aí eu fui me aliviando, me aliviando. (Super Girl).
Como eu trabalhava muito, meu estresse era muito grande. Cuidar dele e trabalhar (...). Então, agora eu tenho cuidado das coisas do apartamento novo, vou lá, vejo o que tá faltando, material que precisa comprar, falo com a arquiteta e aí eu separo um tempo pra eu ir pra ginástica que na brecha eu vou. Agora eu já me sinto mais calma de deixar ele. (Elsa).

Elsa mencionou o verbo "cuidar" por duas vezes no seu discurso, referindo-se ao filho e a si mesma. Revela-nos um olhar de quem passa a perceber a si mesma e a necessidade que surge de se olhar a partir de papéis distintos do maternar. A Super Girl citou o verbo "aliviar" – "eu fui me aliviando, me aliviando" –, como se nos confidenciasse o abrandamento do peso que carregava diante daquela realidade.

Os achados mostram que, com o passar do tempo, ainda que as demandas sejam significativas, a sobrecarga vivenciada é minimizada, bem como o processo das fases de adaptação propicia a busca e renovação de estratégias de enfrentamento das dificuldades.

A última fase de adaptação, de acordo com Miller (1995), é a da separação. Corresponde ao processo de deixar a criança mais livre, sem cuidados excessivos, propiciando que ela aprenda com seus erros. Esse processo, em condições isentas de deficiência, aconteceria induzido pelo próprio filho, ávido por explorar o mundo a sua volta. Contudo, não foi possível identificar em nenhum relato das mães que correspondesse à fase de separação no processo de adaptação à nova realidade, conforme proposto por Miller (1985). Isto ocorre provavelmente em virtude da idade das crianças, que gira em torno de 3 e 5 anos, o que os torna mais dependentes de cuidados e dificulta o distanciamento da mãe.

A incredulidade da família quanto ao diagnóstico do filho é outra vertente da experiência da descoberta do diagnóstico de TEA. Esta realidade favorece que o luto pela criança idealizada seja vivido também por outros membros da família, que não aceitam o diagnóstico e se mostram resistentes ao tratamento, realidade que impacta na vivência do maternar dessas mães.

Os discursos de Anna e Mulher Elástica revelaram a dificuldade de conviver com familiares que não aceitam o diagnóstico dos seus filhos.

A minha família não aceita até hoje. Eles ficavam em cima de mim, dizendo que não. Que eu, como uma Fono, não podia dizer isso (...). E aí eu tenho que aceitar, né?! É minha família. [toma um gole de água e faz um breve silêncio] (Anna).
E nessa parte, foi horrível, porque os meus familiares foram em cima de mim mesmo. "Tu é louca, tu sempre botou na cabeça que teu filho tinha alguma coisa, tá vendo? (...) a minha mãe é médica e trabalha pra caramba, então quase não vê meu filho. Ela não acredita de jeito nenhum. Só posso contar com o meu marido, mas sei que no fundo ela sabe e não quer acreditar. É o luto dela, né?! Ela é vó também. (Mulher Elástica).

As consequências da descoberta do diagnóstico e a negação por parte de familiares parecem imprimir repercussões que atingem não apenas as mães das crianças, mas todo o sistema familiar envolvido, podendo impactar as relações, de tal modo, que esses sujeitos necessitam de apoio especializado (Sprovieri & Assumpção Jr., 2001).

De acordo com Fiamenghi Jr. e Messa (2007), esses sistemas familiares permeados de sentimentos ambíguos dependerão das estratégias individuais de enfrentamento para determinar o significado dessa experiência.

O ser mãe de uma criança com TEA: expressão da vivência

A busca pelos sentidos desvelados no conjunto dos discursos, das participantes da pesquisa, apresenta um contexto em que as mães-cuidadoras de filhos com TEA assumem um papel próximo ao de uma profissional do cuidado. Isto se deve, principalmente, pelo envolvimento, quase que em tempo integral, na atividade do cuidar.

Acerca disso, Super Girl exprimiu que: " Vou te dizer que é bem chato, viu? [suspiro, um breve silêncio]. Porque, às vezes, me irrita. [voz embargada, tom de raiva.]. É muito rotina, é terapia todo dia, o Lucas faz terapia todo dia, de segunda a sábado. E eu que faço tudo, eu que cuido" (Super Girl). Este trecho evidencia que a rotina com o filho é chata e que às vezes a irrita, ela demonstra, em sua experiência, a sobrecarga e o cansaço da lida em uma rotina cheia de afazeres com o filho com TEA. O silêncio, a voz embargada e o tom enfático, manifestos nos atos ilocucionários, apresentam sua dificuldade em narrar sobre o vivido.

Pocahontas, apesar de referir cansaço pela dedicação aos cuidados com os filhos com TEA, parece significar esta vivência como algo recompensador, considerando os progressos adquiridos pelas crianças.

Agora, é sim, uma rotina pesada, uma rotina cansada. Não foi fácil chegar com ele a onde ele está hoje. Esse ano, assim, ele teve um desenvolvimento fantástico, fantástico [enfatiza e demonstra alegria]. No início do ano ele não falava uma palavra; a gente já tá no final do ano e ele já faz perguntas, mas assim, muito suado, tive que me dedicar muito. Parei minha vida para cuidar deles dois. (Pocahontas).

Em vista disso, o ato de cuidar do filho neuroatípico também pode repercutir nas disputas pelo poder familiar, social, econômico e político na vida conjugal. Super Girl e Elsa indicam a multiplicidade de significados dessas demandas em decorrência da sobrecarga de tarefas na maternagem do filho neuroatípico. Elas destacaram o fato de esquecerem de si mesmas e abandonarem a vida profissional, os interesses pessoais, o lazer, o investimento nas relações afetivas e a dedicação aos outros papéis ocupacionais que antes exerciam.

Eu larguei tudo o que eu tinha que fazer, curso, tudo. Fiquei só pra ele mesmo. Esse ano foi difícil assim, porque eu queria estimular, estimular, estimular até ver se ele conseguia evoluir bastante e tal. (Super Girl).
Eu anulei a minha profissão. Eu parei, nem procurei mais emprego, nem nada. Desde que eu comecei a perceber que o Luís tava estranho, diferente, com comportamentos diferentes. (Elsa).

A reclusão materna é uma realidade observada no cotidiano das mães de crianças com TEA participantes desta pesquisa, tanto pelos obstáculos materiais, quanto pelos sociais para a organização de uma vida exterior ao mundo da maternagem atípica.

Não consigo ter um tempo exclusivo, tipo assim: "Ah, vou tirar um dia", até porque não tenho tempo mais, né? Eu lembro que antes do diagnóstico do Caio eu já tava me preparando pra fazer academia à tarde (...), com vários planos, mas com o diagnóstico dele, aí parou… parou tudo. Não faço nada, há tempos que eu não vou no salão e quando eu vou fico super angustiada. (Capitã Marvel).

No relato acima, nota-se que estas mulheres se percebem impedidas de cuidar de suas próprias vidas, para cuidar da vida dos filhos, que perpassa pelas intensas rotinas de tratamentos e necessidades especiais. Isto posto, é perceptível um cansaço sem possível descanso e a impossibilidade de investimento em si mesmas, aumentando a percepção de uma existência aprisionada ao cotidiano estressante. Acrescenta-se ainda um sentimento de culpa, quando se permitem vivenciar experiências diferentes da maternagem.

Outro aspecto mencionado pelas entrevistadas diz respeito a aceitar ou não auxílio de outras pessoas na tarefa de maternar, o que pode ser visto sob perspectivas diferentes. Capitã Marvel, por exemplo, relatou que " Hoje consigo ir na casa da minha mãe e deixar ele pra fazer as minhas coisas. Ela limpa ele, ela faz tudo do jeito dela e eu não fico dizendo "faz isso mamãe, faz assim" (...). Ele quer fazer cocô?" Leve ele para fazer cocô então, por favor" (...). Vou dando a responsabilidade às pessoas, dividindo esse peso " (Capitã Marvel).

Nota-se que ela se sente mais segura em delegar o cuidado do filho a outras pessoas e, como consequência, passa a realizar atividades de seu próprio interesse. Conforme Welter et al. (2008), muitas mães de crianças com deficiência conseguem perceber a vida por outro viés a partir do momento em que superam o fato de ter um filho com alguma deficiência.

Pocahontas, por sua vez, apresentou dificuldade em reconhecer a capacidades de suas redes de suporte em auxiliá-las no cuidado com os filhos: "E eu não aceito certas coisas. Ele não me ajuda nas questões da Terapia, ele faz tudo errado, sabe? Já não basta minha mãe fazer tudo errado (...). Então prefiro fazer sozinha, por mais que me sinta cansada" (Pocahontas).

Por esse ângulo, o cuidado exprime a maneira do próprio ser estruturar-se. É um modo-de-ser que perfaz a sua essência. Heidegger (2014) diz que o cuidado do ponto de vista existencial está, a priori, o que significa dizer que para essas mulheres, cuidar está em toda atitude, ou seja, está relacionado a uma dimensão originária, ontológica, portanto, impossível de ser desvirtuada.

Diante desta realidade, as participantes demonstraram se sentir responsáveis pelos avanços no desenvolvimento do filho deficiente, por isso, dedicam-se arduamente à rotina intensa de tratamento. Elas estudam e fazem cursos na tentativa de compreender o comportamento do filho neuroatípico, mesmo quando não possuem formação na área da saúde. Em algumas ocasiões fazem uma nova graduação ou uma pós-graduação no intuito de auxiliar na evolução do tratamento da criança.

Hoje eu não estou trabalhando. Tô fazendo fono por conta exatamente do Caio. Porque como eu comecei a estudar muito, comecei a fazer pós em TEA para auxiliar, curso de treinamento de pais, cursos do instituto Farol, livros enfim. E aí eu vi que o Caio precisava de uma pessoa que cada vez entendesse mais sobre o assunto e pudesse estar mesmo envolvida. (Capitã Marvel).

Seus discursos revelam que muitas vezes elas fazem o papel de "terapeutas", dando continuidade às estimulações em casa, mostrando, outra vertente da maternagem de crianças com TEA. O cuidado é para elas uma preocupação que não lhes dá folga nem pausa.

Nas entrevistas, as mães contaram que estão em contínuo esforço em busca de informações para melhor atender aos seus filhos. Desta forma, é possível dizer que essas mães manifestam e interpretam seu mundo a partir do cuidado com seus filhos, constituindo esse o seu modo de existência. Seus conceitos se modificam e fazem com que elas passem a olhar a deficiência com outros olhos, uma vez que percebam as potencialidades do filho.

Ser mulher e mãe de uma criança com TEA: enlaces entre a conjugalidade e o preconceito

Nesta categoria, discorre-se sobre percepção das entrevistadas acerca de ser mulher e suas vivências associadas ao papel de mãe de uma criança com TEA. A partir desse contexto, apresenta-se suas relações com o mundo e com os outros, como na dinâmica da relação conjugal, sobretudo, consigo mesmas.

O afastamento dessas mulheres e/ou de seus filhos do convívio social em determinados contextos é notado nos relatos de Mulher Elástica e Elsa, apresentados adiante. Tal afastamento aconteceu como consequência do sentimento de não pertença ao grupo social, motivado pelo temor diante da possibilidade de discriminação do filho.

[...] me afastei dos amigos. Era como se a minha realidade fosse outra. Porque eu via as minhas amigas saírem com os filhos e parece que nada era dificultoso. 3 filhos e iam pro cinema, iam não sei pra onde… Pô, eu não consigo levar o meu filho no cinema, porque primeiro ele nem entra, né? Então era tudo muito difícil, sabe? E aí eu me afastei. (Mulher Elástica).
[...] eu tinha pouca informação. Eu não sabia o que ia acontecer, o que seria o futuro, como seria, se ele... eu fico com medo de ele ser excluído, discriminado, sofrer bullying. Então... o que as pessoas vão falar quando ele tiver uma crise? Aí preferi me afastar um pouco. (Elsa).

Essa atitude parece demarcada pela intuição de que ser mãe neuroatípica é ter que lidar sempre com a incompreensão do outro, portanto, o isolamento seria o caminho a ser trilhado.

Algumas entrevistadas desta pesquisa, dentre elas: Anna, mostra que dificilmente essas mulheres realizam atividades rotineiras para além do espectro das ações de cuidado para com o filho com TEA.

A gente acaba ficando antissocial, né? Porque tu passas a semana inteira trabalhando... só eu e meu marido que cuida dele e sai para fazer as coisas pra ele. Quando a gente sai com ele não é fácil, porque é todo tempo manejando o comportamento. Então, às vezes, a gente tá tão cansada que a gente fala "não, gente não vai sair". Porque, poxa, tu sabes que não é fácil sair. (Anna).

Estas narrativas apontam para uma organização familiar centrada no membro autista, um processo que também foi observado por DeGrace (2004). A autora destaca, nessas situações, que a organização de toda família tende a girar em torno da criança autista, o que gera repercussões em várias áreas da dinâmica relacional dos entes que compõem esse sistema. Acrescenta ainda que o autismo parece ser uma entidade própria, mais do que uma deficiência, pois transcende o ambiente familiar, controla a vida das pessoas da família e faz com que parte significativa da vida familiar seja envolvida nos eventos associados à neuroatipicidade de um de seus membros.

A conjugalidade é sentida por essas mulheres de maneira muito distinta do período "antes do autismo", pois as transformações ocorridas refletem no modo de ser de cada um, pois as questões enfrentadas pelo casal reverberam na vida de ambos. Entretanto, é necessário um estudo aprofundado acerca da subjetivação de gêneros para compreender a complexidade que envolve esta relação.

Pois é, esse meu lado "mulher" é que tá anulado, entendeu? Hoje em dia eu me vejo mesmo mais como mãe, como cuidadora deles, assim, sempre tudo em função deles. (Mulher Elástica).
(...) quando tô em casa e eles dormem, é pra fazer alguma coisa mesmo pra eles, entendeu? Fazer algum material que eu achei interessante, ou então tá treinando com o menor (...) Parece que eu não tenho tempo pra nada, nem para o marido. (Pocahontas).

Mulher Elástica mencionou em seu discurso o verbo "anular", quando se refere ao "Ser mulher", encerrando qualquer possibilidade de existência da apresentação da vivência do ser feminino. Pocahontas expôs o pensamento de que não há possibilidade de vir a ter, em qualquer tempo e espaço na sua vida, a existência de experiências que não estejam atreladas à maternagem.

Para Super Girl e Capitã Marvel, exercer os papéis de esposa, de mãe e cuidadora dos filhos assume o sentido de obrigação.

Mas ele ajuda muito. Se ele tiver que levar para terapia, ele leva. Se eu deixar alguma material lá e disser: "corta isso", ele faz. Ele fica acordado até mais tarde, ele faz. Se eu pedir pra ele dar um banho nele, ele dá. Se tiver desocupado, mas não entende muito as coisas, sabe? (Super Girl).
Meu marido ajuda, mas a responsabilidade de cuidar e do tratamento e tudo, é minha mesmo, porque eu trabalho fora. (Capitã Marvel).

É nítido que Super Girl e Capitã Marvel apresentam o cuidado que os seus maridos têm para com os filhos como "uma ajuda" nas tarefas, visto que não consideram esta ação como responsabilidade dos homens. Deste modo, os pais aparecem nos discursos como coparticipantes da maternagem, dando a entender que possuem participação secundária no cuidado com os filhos e que essa responsabilidade caberia à mãe.

Também são significativos os relatos de participantes a respeito de atitudes preconceituosas e discriminatórias frente à deficiência. Estas situações provocaram nas mães uma reflexão sobre as dificuldades de ser-com-o-filho-com-TEA nos dias atuais, também sobre o passado, antes de serem acometidos por esta facticidade.

Quando saiu o diagnóstico dele eu falei pra escola que eu queria, porque tem um grupo de WhatsApp das mães, de todas. Tem um grupo, aí eu disse: "Ah, eu queria falar no grupo das mães do diagnóstico dele", aí a diretora da escola: "Olha, eu se fosse tu não falava", eu disse: "Por que?", ela disse: "Não, porque tem umas mães que podem não entender, sabe como é?", Aí assim, eu não falei, mas eu fico pensando por que que eu não vou falar? E o meu intuito de falar é de repente caso ele não tenha um comportamento padrão, digamos assim, elas entendam que isso foi por conta... que isso pode ser por conta do autismo. Então eu me afastei das mães da escola com medo de preconceito, né?! [demonstra-se muito ansiosa ao falar sobre o assunto, se arruma na cadeira como se estivesse procurando as palavras certas para relatar o acontecido]. (Anna).

Em um mundo de comportamentos pragmáticos, de rendimento e de produção, o que saí do "padrão" precisa ser explicado, não é aceito. Noto que a reflexão dessas mães é alimentada pelo temor de que seu filho neuroatípico possa ser passado para trás, possa sofrer e que não consiga se defender sozinho.

O preconceito perpassa, em muitos aspectos, pela questão da deficiência em nossa sociedade, pois comumente as deficiências são associadas a significações de desvantagem e de descrédito social (Omote, 1994), comprometendo a elaboração de um olhar mais amplo sobre a criança com TEA, a qual não pode ser vista apenas a partir da perspectiva da neurodiversidade ou dos atributos socialmente valorizados.

Apesar da indignação de algumas participantes frente à desvalorização da pessoa com TEA pela sociedade, referências ao transtorno também emergiram na fala das mães como uma condição que inferioriza, infantiliza e torna dependente, mostrando que elas também podem estar sujeitas às concepções arraigadas no ideário social, como observado no relato da Mulher Elástica.

[...] porque pra mim ele sempre vai ser um bebê, ele sempre vai depender de mim de uma forma ou de outra, eeee assim, eu não posso morrer!!! Por mais que ele melhore no tratamento, ele tá melhorando, né? Eu já sei que ele nunca vai ser normal, né? [fala com tom triste, baixa o olhar]. (Mulher Elástica).

Outro aspecto interessante diz respeito ao engajamento dessas mães nos dilemas pessoais que envolvem o TEA conduz, muitas delas, a colaborar entre si em uma espécie de rede de colaboração em prol de pautas comuns, estabelecendo uma espécie de militância ou ativismo em benefício das crianças com TEA.

Os relatos a seguir demonstram que o ativismo materno está presente na vida das participantes desta pesquisa, logo, isto constitui uma nova forma de ser para essas mulheres. Colocar-se no mundo como mãe ativista também representa uma nova forma de relação com este mundo. Perceber-se como militante desta causa pode representar, para estas mulheres, o surgimento de um novo desígnio que lhes configura valoração pessoal.

[...] essa questão da luta, o sentimento de frustração, o sentimento de alegria, é tudo misturado, gosto muito de me engajar nessas coisas. (Elsa).
[...] porque quando a gente luta junto por uma causa, a gente consegue. Estou me organizando pra me dedicar mais ainda. (Capitã Marvel).

Nesse sentido, cabe citar a noção de mãe-ativista elaborada por Nunes (2014, p. 42), que define tal conceito como a transformação da maternagem em um ato político que "[...] envolve largo processo de expertise política, aprendizagem de termos médicos, técnicos, legislativos e jurídicos, assim como de trâmites burocráticos e negociações junto a vereadores, deputados, senadores e ministros". Na percepção, a mãe-ativista é aquela que reivindica direitos não apenas para seus filhos, mas para todos.

Através das reflexões apresentadas, percebe-se a trajetória das mães em busca do significado de suas próprias existências, trilhando, a "carreira de mães de filhos com deficiência" (Omote, 1980, p.14), que pode ser longa e trabalhosa, não só no que se refere à busca de assistência e tratamento específicos de acordo com suas necessidades, mas na procura de um lugar onde possam coadunar a condição de mães desses filhos inesperados e de mulheres com necessidades e desejos próprios.

 

4. Considerações Finais

Durante o desenvolvimento da análise das entrevistas de cada participante, os temas evidentes destacaram, dentre outras coisas, a experiência do descobrir e do adaptar-se à rotina do cuidado de um filho neuroatípico, o modo peculiar como essas mães expressam suas vivências e as dificuldades encontradas para o exercício de múltiplos papéis, como o de mulher, mãe, esposa, profissional etc. Os enlaces entre a conjugalidade e o preconceito figuram entre as principais demandas que demarcam existências limitadas pela maternagem de crianças com TEA .

Os achados do presente estudo mostram que, para essas mulheres, parece ser inconciliável o envolvimento em ocupações significativas que não estejam relacionadas à maternagem. Dessa maneira, tem-se modos de existência demarcados pela autoanulação e sacrifício, estruturado em torno do que parece ter se tornado o propósito de suas vidas – o cuidado com filho com TEA.

É possível dizer, portanto, que essas mães manifestam e interpretam seu mundo a partir do cuidado com seus filhos, constituindo esse o seu modo de existência. Entretanto, os "fracassos" e os "sucessos" adquiridos por seu filho com TEA são sentidos por essas mães como se fossem dirigidos a elas próprias.

Ao estudar sobre a maternagem das mães de crianças com TEA é perceptível o quanto elas necessitam de acolhimento e cuidado especializado que ajude a compreender as questões que envolvem a maternagem do filho neuroatípico e suas relações com o mundo, com os outros e, sobretudo, consigo mesmas.

A descrição e a compressão fenomenológicas contidas neste artigo expressam, dentre outras coisas, um caminho de transformação no modo de significar e viver a maternagem das mães de crianças com TEA que, a despeito de existências limitadas por essa experiência, destacam-se pelo protagonismo e empoderamento que reivindica a participação ativa dos companheiros e de suas redes de suporte no cuidado com a criança neuroatípica.

Agradecimentos

Ao meu amado filho, Rafael, cuja existência inspirou cada uma destas linhas.

Em especial, agradeço as mães que participaram deste trabalho, as quais gentilmente se dispuseram a compartilhar suas histórias de vida comigo de forma tão generosa. De todas as experiências que tive durante a construção deste trabalho, ouvi-las foi a mais rica e gratificante.

 

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Endereço para correspondência
Amélia Belisa Moutinho da Ponte
E-mail: belisadaponte@gmail.com

Lucivaldo da Silva Araujo
E-mail: lucivaldouepa@gmail.com

Recebido: 10/04/2022
Revisado: 03/06/2022
Aceito: 15/07/2022
Publicado: 21/08/2022

 

 

1 Amélia Belisa Moutinho da Ponte: ORCID: https://orcid.org/ 0000-0001-7643-7979
2 Lucivaldo da Silva Araujo: ORCID: https://orcid.org/ 0000-0002-8974-0886

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