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Revista de Psicologia da IMED

versão On-line ISSN 2175-5027

Rev. Psicol. IMED vol.10 no.2 Passo Fundo jul./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.18256/2175-5027.2018.v10i2.2992 

RESENHA

 

Reflexão sobre as raízes históricas da psicologia social

 

Reflection on the historical roots of social psychology

 

Reflexión sobre las raíces históricas de la psicología social

 

 

Kairon Pereira de Araújo SousaI; Emerson Diógenes de MedeirosII

IUniversidade Federal do Piauí - UFPI. E-mail: kaironpereira@hotmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0779-343X
IIUniversidade Federal do Piauí - UFPI. E-mail: emersondiogenes@gmail.com | ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1407-3433

 

 

Resenha

Farr, R. M. (2013). As Raízes da Psicologia Social Moderna. Petrópolis, RJ: Vozes.

Provavelmente, uma questão que emerge ao se estudar a história de uma disciplina como a Psicologia e, especificamente, a Psicologia Social (PS), é: por que estudar a história desta disciplina? Lembro-me que esta foi uma das perguntas formuladas ao me deparar com a história da Psicologia Social.

Recordo, também, que em busca de respostas para a indagação acima, constatei que a história nos perpassa, de modo que para se compreender o presente, e lançar luzes sobre o futuro, não temos como ignorar o passado (a história cumulativa). Isso vale quando falamos da psicologia social. Estudar sua história é conhecer como essa área da Psicologia se desenvolveu (quando e por quê?), suas bases epistemológicas, teóricas e metodológicas.

Registrar a história de um campo do conhecimento, entretanto, não é uma tarefa fácil, uma vez que a história é suscetível a erros e vieses de quem a conta. Isso significa que os fatos históricos vêm marcados por distorções e imprecisões em seus relatos, em certos casos, produzidos de modo intencional.

Partindo deste pressuposto, o professor e chefe do Departamento de Psicologia Social da London School of Economics and Politica Science, Robert M. Farr, insatisfeito com versões parciais, produzidas e editadas em solo americano, realiza de forma crítica uma análise das obras históricas, em seu livro As Raízes da Psicologia Social Moderna, apontando vieses e distorções presentes.

A proposta de Farr é apresentar um quadro mais amplo e detalhado sobre o desenvolvimento histórico da psicologia social, destacando seus ancestrais/fundadores e os desdobramentos desta área ao longo dos anos, pontuando como a psicologia social psicológica e a sociológica foram moldando suas pesquisas, resultando na utilização de métodos inerentes à visão epistemológica de ciência de cada uma delas (por um lado a psicologia social psicológica com predominância da experimentação, e do outro, a sociológica, adotando métodos mais qualitativos).

Revisando a literatura disponível acerca da história da disciplina marcada, segundo Farr, por inadequações, ele se propõe a "apresentar uma explicação histórica alternativa da Psicologia Social moderna" (Farr, 2013, p. 31). Para esse empreendimento, o autor desenvolve uma estratégia argumentativa, na qual expõe os erros presentes na historiografia dos principais manuais disponíveis nos Estados Unidos.

A obra é composta por dez capítulos, em que o autor, em alguns momentos, lança mão de temas superficialmente em um capítulo, aprofundando-o em outro à parte. Por exemplo, no primeiro capítulo, o período da Segunda Guerra Mundial é indicado como contexto favorável ao surgimento da Psicologia Social moderna, aprofundando tal discussão no capítulo nove intitulado "A guerra e a história da psicologia social".

Entretanto, existe um encadeamento lógico entre os capítulos, de modo que Farr conduz, gradualmente, o leitor à compreensão global da obra. Isto é, parte do simples ao complexo, intensificando, a cada capítulo, a compreensão sobre determinado tema.

No primeiro capítulo, Farr caracteriza a Psicologia Social moderna como um fenômeno tipicamente americano, iniciando com o trecho creditado a Gordon Allport: "Embora as raízes da Psicologia Social possam ser encontradas no solo intelectual de toda a tradição ocidental, seu atual florescimento é reconhecido como sendo um fenômeno caracteristicamente americano" (Farr, 2013, p. 19).

Neste sentido, Farr corrobora esta ideia de Allport, contudo, discorda do modelo histórico, considerado por ele como simplista, principalmente sobre a indicação de Comte como o fundador da Psicologia Social. Ainda critica o relato histórico de Jones, pois para Farr, Allport se concentrou na história das ideias, enquanto Jones, na das instituições, existindo vieses em ambos relatos.

Ainda neste capítulo, o autor começa a expor as causas da individualização da Psicologia Social moderna. Destacando o período da II Guerra Mundial que, no seu entendimento, "propiciou um tipo de impulso ao desenvolvimento da Psicologia Social semelhante ao que a I Guerra Mundial tinha propiciado para os testes psicométricos" (Farr, 2013, p. 19).

Neste contexto, o autor mostra que as duas perspectivas da Psicologia Social (psicológica e sociológica) estiveram ligadas no início do pós-guerra, existindo colaboração interdisciplinar em pesquisas sobre a adaptação de soldados à vida no exército. Todavia, elas foram se distanciando gradualmente no decorrer dos anos, assumindo formas epistemológicas e metodológicas distintas.

Um ponto importante é a discussão sobre a movimentação imigratória, principalmente de psicólogos da Áustria e Alemanha para os Estados Unidos, culminado em um conflito de perspectivas psicológicas (Gestalt e Behaviorismo), que resultou em uma Psicologia Social Cognitiva. Cabe mencionar que o paradigma de psicologia social, nesse momento, é marcado pela individualização, com foco na experimentação.

Além disso, Farr mostra como essa forma de psicologia social foi expandida para o cenário europeu, reforçado pela criação da Associação Europeia de Psicólogos Experimentais. Na parte final do capítulo, o autor discorre, brevemente, a respeito da influência do positivismo na história da Psicologia Social moderna, retomando o assunto em outros capítulos, com ênfase no sexto "A individualização da psicologia social na América do Norte".

O capítulo dois trata sobre "A emergência da psicologia como ciência natural e social na Alemanha". Aqui, o autor intenta começar a expor as raízes da psicologia social, refletindo a respeito da emergência da psicologia como ciência na Alemanha, a partir da criação, em Leipzig, do laboratório de Psicologia Experimental por Wundt.

Ele busca demonstrar que Wundt não produziu apenas psicologia de cunho experimental, ou seja, sua contribuição não se reduz em separar a psicologia da metafísica. Ao contrário do que muitos estudiosos da psicologia destacam, Wundt também desenvolveu uma Psicologia Social, sendo esta uma das três metas que este pesquisador se propôs em 1962 (a criação de: uma psicologia experimental, uma metafisica da ciência e uma Psicologia social).

Farr tenta descrever o cenário acadêmico na Alemanha, com o aparecimento das universidades modernas. Discute-se entre duas formas de ciências: naturais e humanas ou sociais. O autor destaca a separação realizada por Wundt entre sua Psicologia Experimental e Social, indicando o reconhecimento deste em relação as limitações do método experimental na investigação de fenômenos mentais complexos.

Para Farr, Wundt entendia a linguagem, a religião, mitos e magias como produtos sociais e/ou coletivos, portanto, construídos socialmente. Por isso argumentava que sua psicologia era apenas em parte um ramo das ciências naturais. Ao defender tal posição, gerou descontentamento de pesquisadores, a exemplo de Watson, que compreendia a Psicologia como uma ciência totalmente natural e a declara "a ciência do comportamento".

No transcorrer do capítulo, são esclarecidos os motivos que levaram Wundt a separar sua Psicologia Social da Experimental, e por que a psicologia social deste foi esquecida, denunciando os desvios e recortes tendenciosos na história do pensamento de Wundt, realizados por escritores da história da psicologia enviesados pelo espírito do positivismo na ciência psicológica.

Para o autor, esse repúdio "em grande parte (. . .) se deve ao fato de que a história que realmente importava, aos olhos da geração subsequente, era a história da psicologia como um ramo da ciência natural" (Farr, 2013, p. 42). O capítulo finaliza com a discussão referente às influências da filosofia positivista da ciência, nas distorções do pensamento de Wundt e na história da Psicologia Social em solo americano.

A psicologia das massas e da cultura é o título do capítulo três. Chama atenção na parte inicial, a afirmativa de Farr de que o estabelecimento de diferenças é um dos primeiros passos para a origem de outros campos, ademais, também é importante porque permite a outros teóricos tentarem solucionar os problemas identificados por outrem, como o caso de Mead que tenta resolver a dicotomia wundtiana.

Neste capítulo, discute-se a distinção (antítese) efetuada pelos teóricos, como Wundt, Durkheim e Le Bon, entre o individual e o coletivo, sem, entretanto, proporem uma síntese para essa dicotomia. Cita-se o trabalho de Mead (self entre a mente e sociedade), e ainda a contribuição de Freud ao campo da psicologia social (individual e o coletivo), enfatizando-se distorções em relação ao trabalho deste autor, bem como a tentativa de esvaziamento da teoria freudiana pelos positivistas de Viena que aspiravam serem vistos como cientistas naturais. Farr finaliza o capítulo relatando o caráter reducionista da obra de Allport, que tenta explicar o coletivo tendo como base o individual.

O quarto capítulo, George Herbert Mead: filósofo e psicólogo social, como o próprio título sugere, é destinado à análise das contribuições de Mead para a Psicologia Social. É descrita a trajetória acadêmica de Mead, destinando tópicos específicos para tratar sobre o Mead filósofo e o Mead psicólogo social.

Nesse interim, discute-se as contribuições deste pensador para a psicologia social, aprofunda-se a questão abordada em outros capítulos a respeito da solução apresentada por Mead ao problema da antítese wundtiana, na qual o self é intercalado entre a mente e a sociedade, representando uma síntese a essa dicotomia.

Outro ponto relatado é a distorção efetuada no pensamento de Mead e sua ausência nos manuais da história da Psicologia Social moderna. Por um lado, Mead aparece como um behaviorista social (Morris), por outro como interacionista simbólico (Blumer). Mead é apontado como um teórico relevante, cujo legado influenciou a Psicologia Social de cunho sociológica.

No capítulo cinco, O manual de Murchison de 1935: uma autentica psicologia comparativa, Farr destaca o manual multidisciplinar de Murchison. O autor cita as partes que compõem o manual, fazendo uma comparação com outros manuais de história. Aborda-se também o declínio do darwinismo em solo americano, bem como da Psicologia Comparativa, a partir da emergência do comportamentalismo de Watson.

O sexto capítulo da obra, A individualização da psicologia na América do Norte, faz menção às causas da individualização da PS moderna. Farr introduz o contexto histórico que moldou a cultura americana, com o individualismo como traço característico (cita-se o período do renascimento - pontuado por ele como uma das raízes dessa individualização -, a reforma protestante e o surgimento da imprensa).

Ainda segundo ele, este individualismo sofre variação de região para região (ou países), por exemplo, nos Estados Unidos, é marcante, enquanto que na Rússia, é menos intensa. Ainda indica como fatores da individualização:

1.o dualismo cartesiano (apontado como a principal raiz da individualização); a definição da disciplina apresentada pelos irmãos Allport;

2.a hegemonia do behaviorismo; o contexto social ou cultural americano ["o individualismo é em si mesmo o produto de um tipo particular de sociedade" (Farr, 2013, p. 141)];

3.o contexto político (também contribui para individualização, uma vez que era necessário o rótulo de ciência do comportamento, de modo a atrair verbas e não ser confundida com o socialismo);

4.a subida de Hitler ao poder em 1933, que provocou a emigração de psicólogos alemães para o novo mundo, culminando em um conflito de perspectivas diferentes com o mesmo paradigma individualizante (Gestalt e Behaviorismo - cujo resultado foi a Psicologia Social Cognitiva);

5.além do cenário da Guerra Fria.

As formas sociológica e psicológica de psicologia social é o título do capítulo sete. Nele, o autor inicia assinalando que as pesquisas nas ciências sociais eram feitas de forma conjunta, ou seja, de forma interdisciplinar. Porém, na modernidade, as formas de psicologia social se distanciaram, formando campos distintos ou independentes como sociologia e psicologia, existindo, para Farr, pouca ligação entre elas na atualidade.

Um ponto relevante para o leitor é perceber que este afastamento não ocorreu de forma imediata, mas gradual. Farr compara a Psicologia Social a uma planta com duas subespécies diferentes: a forma psicológica e a sociológica. O autor declara que Descartes e Hegel são influentes no tocante à individualização do social, sendo o primeiro identificado onde predomina a individualização, e o segundo onde a forma sociológica é marcante.

Ainda são ressaltadas as distorções no pensamento de Mead, realizadas por Morris, que o denominou de behaviorista social, além daquelas de Blumer que preferiu chamá-lo de interacionista simbólico. Para o autor, estas definições estão enviesadas por interesses particulares de cada um deles, ou seja, eles descreveram um Mead conforme suas convicções epistemológicas.

Demonstra-se como as críticas ao modelo individualizante americano, realizadas na França por Moscovici, reproduz a forma sociológica de PS no âmbito europeu e, posteriormente, em outros países. Enquanto nos Estados Unidos a ênfase era nas atitudes, na França, investigavam-se as representações sociais. Neste contexto, as disciplinas mães (PS psicológica e sociológica) passaram a reger as formas de Psicologia Social, num claro contraste.

Farr, no capítulo oito, Ancestrais e fundadores: reconstruindo o passado, traça uma distinção entre esses dois conceitos, explicando a diferença entre ancestral e fundador. No caso, o primeiro está localizado em um tempo mais remoto em relação ao segundo, o fundador, ao contrário do ancestral, é responsável por ter criado algo tangível (laboratório, revista, etc.), ou seja, ele não criou apenas ideias, desenvolvendo também algo concreto.

Nessa perspectiva, Farr chama atenção para o fato de Wundt ter sido aceito como fundador da Psicologia Experimental de modo inquestionável, sendo, contudo, rejeitado em termos de Psicologia Social.

Neste capítulo é feito referência a alguns ancestrais e fundadores da psicologia social, como: Comte (marco do positivismo delegando ao método experimental e ao método comparativo as bases para alcançar o conhecimento sociológico), Durkheim (teoria das representações coletiva, base para o desenvolvimento da teoria das representações sociais de Moscovici), Wundt (distinção entre psicologia experimental e psicologia dos povos, utilização de métodos que caracterizam a forma psicológica e sociologia de psicologia social).

Ainda são citados Freud (mal-estar da cultura), Vygotsky (estudo da linguagem), W. James (sua obra Princípios de Psicologia foi uma publicação importante para a história da psicologia) e Kurt Lewin (considerado o fundador da psicologia social experimental nos Estados Unidos), dentre outros.

Tendo como referência a diferenciação entre ancestral e fundador, Farr questiona a nomeação de Comte, por Allport, como sendo o fundador da PS, indicando que ele se aproxima mais de um pai teórico (um ancestral) do que um fundador. Cita-se também os dois modelos de se fazer história: grandes nomes e Zeitgeist. Quanto a este último, para Boring (historiador da psicologia), o behaviorismo foi fruto do clima intelectual da época.

Na parte final do capítulo, o autor afirma que os motivos pelos quais os historiadores da psicologia social na era moderna, como Jones, não terem mencionado os pais teóricos (as raízes da psicologia social) em seus textos, justifica-se pelo fato de que história que eles se propuseram a cobrir é a história da ciência, desvinculada da metafísica: "a história, aqui, significa a história de uma ciência, e o passado da disciplina é excluído como sendo metafísica. Este fato leva a criação de uma clara ruptura entre passado e presente" (Farr, 2013, p. 180).

No capítulo nove, cujo título é A guerra e a história da Psicologia Social, o autor retoma alguns pontos descritos no primeiro capítulo, discutindo como o contexto da emergência da Segunda Guerra Mundial e o nazismo influenciaram o desenvolvimento da psicologia social moderna.

Adicionalmente, o autor reflete sobre a reversão no fluxo de migração nos dois lados do Atlântico. Em período anterior, segundo Farr, eram os norte-americanos que se deslocavam para Alemanha em busca de uma titulação acadêmica em novas áreas do conhecimento, como a psicologia. Contudo, no contexto da guerra e do autoritarismo de Hitler, foram os alemães que migraram para a América.

Essa movimentação de pessoas entre culturas, que acabou desencadeando um encontro de perspectivas divergentes em solo americano, foi fértil para a psicologia social cognitiva. O autor finaliza o capítulo apresentando os efeitos das guerras no desenvolvimento da PS, ressaltando que, na conjuntura da guerra fria, a ideologia do individualismo contra a ideologia do coletivo caracterizou a polaridade vivida durante o momento.

O último capítulo apresenta O passado longínquo e a curta história da Psicologia Social. Farr reforça que a psicologia social tem um longo passado (raízes) no solo de toda a tradição ocidental, e uma curta história (flor), representando um fenômeno caracteristicamente americano.

Novamente ressalta a influência do positivismo na história da Psicologia Social moderna, responsável, em seu julgamento, por promover uma ruptura com seu passado, criando, na tentativa de identificar o marco desse campo particular de investigação, falsos mitos, como é o caso da nomeação realizada por G. W. Allport, de Comte como fundador desta disciplina.

Na obra As raízes da psicologia social moderna, Farr promove uma ruptura na análise histórica da PS. Indo às suas raízes, traz à tona a história ignorada ou mesmo rejeitada por uma tradição individualizante de Psicologia Social.

A partir da leitura desse livro é possível ter um panorama mais detalhado a respeito dessa área da Psicologia, visto que o trabalho de Farr não se limita a uma determinada visão de mundo, ou mesmo ao zeitgeist de uma época. Trata-se de uma obra indispensável àqueles que pretendem estudar a PS, uma vez que a partir dela é possível o entendimento de como esse campo de estudo se desenvolveu, e das influências, na contemporaneidade, exercida pelas duas formas de se fazer Psicologia Social (psicologia e sociológica) em diferentes países, como o Brasil. Assim, sugere-se a leitura dessa obra aos estudantes, professores e pesquisadores da Psicologia.

 

 

Recebido: Outubro 04, 2018
Aceito: Novembro 10, 2018

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