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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.2 no.2 São Paulo  2009

 

Artigos originais

 

Reflexões sobre o ensino de psicologia fora da academia a partir de um curso destinado à comunidade

 

 

Teo Weingrill Araujo1; Marília Marra de Almeida2; Danilo Silva Guimarães3

 

 


Resumo

Estudantes da pós-graduação do IPUSP, interessados na discussão sobre a formação em psicologia, constituíram um grupo com o objetivo de elaborar um curso de introdução à psicologia fora da academia. A partir de leituras e debates, o grupo chegou a duas noções fundamentais em sua concepção de psicologia: ética e singularidade. Em vista disso, foi elaborado um projeto de extensão universitária no qual foi concebido e oferecido um curso destinado à comunidade de um Centro de Educação Unificada. O curso contou com a participação de alunos de diversas idades. As aulas versaram sobre os seguintes temas: a morada, a coletividade, as coisas, a solidão, a sexualidade e a loucura. Ao final, avaliamos que a realização do curso caminhou entre o ensino e a prática da psicologia. Constituiu-se um espaço de compartilhamento no qual foi possível conceber noções de uma psicologia próxima a aspectos fundamentais da condição humana.

Palavras chave: Ensino de psicologia, Introdução à Psicologia, ética, singularidade.


Abstracts

IPUSP's master degree students, interested in the quarrel of psychology's degree, had constituted a group with the objective of elaborating an introductory course of psychology outside the academy. From readings and debates, the group arrived at two grounding grasps of its psychology conception: ethics and singularity. So, a university extension's project was elaborated. This project consisted of conceiving and offering a course destined to the community of a Unified Education Center. The course had participation of pupils of diverse ages. The lessons had turned on the following subjects: the dwelling, the collective, the things, the solitude, the sexuality and madness. At the end, we evaluated that the course's realization goes between psychology teaching and practicing. It constituted a shared field in which was possible to conceive psychology grasps that makes approaches to the basic aspects of the human being condition.

Keywords: Education of Psychology, Introduction to Psychology, ethics, singularity.


 

 

Introdução

 

No ano de 2006, estudantes da pós-graduação do IP-USP, interessados na discussão sobre a formação em psicologia, constituíram um grupo para refletir sobre o tema através da leitura e debate de textos considerados relevantes para essa questão. Em certo momento do percurso, já em 2007, o grupo elaborou o projeto para um curso de introdução à psicologia destinado a um público não acadêmico4. No mesmo ano, o curso, composto por 8 encontros, foi oferecido em um Centro de Educação Unificada (CEU)5, localizado na região oeste do município de São Paulo.

A proposta do curso esteve apoiada na perspectiva de que a Psicologia pode lançar luz sobre a inter-relação entre a constituição da subjetividade e os contextos em que vivem os sujeitos. Acreditamos que a psicologia situa-se em um lugar paradoxal, uma vez que ela procura possibilitar que os sujeitos se aproximem e se apropriem das condições concretas que os constituem sem, no entanto, afirmar essas condições concretas como explicação do modo como eles são.

Desse modo, propúnhamos noções de uma psicologia ancorada na perspectiva de que o humano escapa a qualquer tentativa de previsão e classificação e de que o que caracteriza a ação humana é justamente o seu caráter imprevisível. A partir de Lévinas (2003), compreendemos o outro ser humano como abertura para o que excede o eu, abertura para aquilo que está além de mim. Está no berço da relação ética a possibilidade de acolhermos o rosto e a palavra do outro em uma relação que não é de poder. Isso implica abertura para o outro, em um permanente inventar e reconstruir as relações.

Para constituir a proposta de curso, realizamos discussões nas quais, a partir do percurso singular de cada um do grupo, ou seja, da nossa formação, estabelecemos os temas que seriam abordados. Um dos resultados dessa discussão foi a concepção de ética e a singularidade como eixos centrais dessa noção de psicologia6. Nossa identidade como grupo se constituiu em torno desses eixos, ainda que cada um de nós transitasse por diferentes abordagens da psicologia. Assim, no curso de Introdução à Psicologia, destinado à comunidade de um CEU, pretendíamos apresentar uma, dentre muitas possíveis concepções de psicologia.

Para apresentar essa noção de psicologia, buscamos constituir um ambiente em que os alunos pudessem se aproximar dos temas a partir de suas experiências concretas e pudessem criar para si mesmos noções que fazem parte de uma tradição.

O objetivo do presente artigo é relatar o curso de extensão universitária que foi ministrado por nós em um CEU e discutir de que modo essa experiência pode contribuir para a reflexão sobre o ensino da psicologia.

 

Metodologia e Descrição do Curso

O curso foi realizado no prédio de atividades culturais do CEU Butantã. Foram oferecidas 20 vagas. Na primeira aula, havia 14 alunos. A partir da segunda aula, 12 alunos passaram a freqüentar as aulas e não aconteceram mais desistências.

As idades dos alunos eram muito díspares. Havia uma adolescente, adultos e algumas mulheres da terceira idade. Apenas um dos alunos era homem. As ocupações dos participantes também eram as mais diversas: estudantes, donas-de-casa, educadoras, aposentadas e um grupo de colegas de trabalho de uma cooperativa.

O curso teve 8 aulas com duas horas de duração cada. A primeira aula visou apresentar a proposta do curso e sua origem.

As seis aulas seguintes versaram sobre os temas: a morada, a coletividade, as coisas, a solidão, a sexualidade e a loucura. Na última aula, com o objetivo de obter subsídios para uma avaliação mais sistemática do curso, propusemos aos alunos três questões a serem respondidas por escrito.

Cada aula foi dividida em dois momentos distintos. No primeiro, propúnhamos uma atividade, na qual os alunos relatavam uma experiência significativa, ouviam uma música ou assistiam a um filme. A partir disso, discutíamos. O segundo momento consistia na exposição de nossas reflexões sobre o tema pelo vértice da psicologia.

Para cada uma das aulas, produzimos previamente um texto que pretendia sistematizar as nossas concepções sobre o tema em questão, as quais, por sua vez, dialogavam com autores que fizeram parte da nossa própria formação. A partir desses textos, preparamos explanações que foram apresentadas no segundo momento das aulas. No final do curso, os alunos receberam uma apostila que continha os textos produzidos para cada uma das aulas.

 

Descrição das aulas

Aula 1 - Apresentação do curso

Na primeira aula do curso, pretendia-se: 1 - que os participantes se apresentassem e contassem os motivos que os trouxeram ao curso; 2 - apresentar para eles como e por que havíamos encampado a proposta de oferecer esse curso no CEU. 3 - Apresentar a concepção de psicologia que nos norteia, além de fazer uma apresentação inicial dos conceitos fundantes dessa concepção: a ética e a singularidade.

Durante a aula, os alunos foram muito participativos e dialogaram com a nossa apresentação. Ao final, acabaram expondo algumas questões pessoais ou de pessoas próximas, como se esperassem uma resposta de nós ou como se estivessem ‘desabafando' em um grupo terapêutico.

Aula 2 – A morada

Com o objetivo de nos aproximarmos de um tema tão complexo e fugidio como a ética do ser, propusemos aos participantes que pensassem em situações em que se sentiram em casa. O sentir-se em casa é uma expressão que se refere à experiência de viver o mundo criativamente, de fruir a relação consigo e com os outros de um modo que fortalece o sentido de ser si mesmo. Pressupúnhamos que os alunos já conheciam essa experiência, ainda que não necessariamente a tivessem nomeado. De fato, quando os alunos relataram as situações em que se sentiram em casa, essa pressuposição foi confirmada.

Dentre os comentários realizados, percebemos que muitos alunos afirmaram que não se sentiam em casa quando se encontravam em suas próprias casas. Sentir-se em casa apareceu associado à idéia de sentir-se capaz, útil, poder ajudar os outros, aproximando o sentimento à esfera do trabalho. A grande maioria das colocações dos alunos referiu-se à relação com outras pessoas, ajudando-as, sendo ajudadas ou simplesmente estando na presença delas. Um aluno afirmou nunca se sentir em casa. É possível supor que, pelo negativo, essa pessoa saiba do significado de se sentir em casa.

Percebemos que essa atividade inicial aproximou os alunos de um tema que, a princípio poderia parecer abstrato e distante. Sentir-se em casa, nas colocações deles, apareceu sempre ligado ao contato com outras pessoas, o que remete ao fato de que a singularidade não é um acontecimento de um sujeito isolado, mas se dá na relação com os outros.

No segundo momento, fizemos uma exposição sobre o tema. A partir de Winnicott (1979/1983), discutimos as condições necessárias para que se constitua a possibilidade de se sentir em casa. Para isso, apresentamos a noção de que, no início, o bebê precisa de um outro devotado, capaz de sustentar a ilusão de que não há distinção entre aquilo que ele cria e aquilo que ele percebe.

Nos termos de Figueiredo (1996), a experiência de se sentir em casa é a possibilidade de organizar as paredes e telhados da morada, para que o indivíduo possa abrir as portas e janelas e fruir o contato com o mundo e com os outros. Para que essa experiência possa se constituir, é preciso que, no início, o mundo seja apresentado de maneira suficientemente simples pela mãe, caso contrário, o bebê se vê arremessado no infinito caótico e sem contorno. De maneira gradual, o mundo apresentado pode ir se alargando, ganhando complexidade, sem que isso ameace a continuidade desse ser que está surgindo.

Aula 3 – A Coletividade

Pretendíamos discutir a condição fundamental para a constituição da subjetividade, a partir de Safra (2004): a existência de uma coletividade como ambiente de acolhimento necessário à manifestação do singular; o paradoxo humano de ser singular que abriga o coletivo.

Iniciamos por uma exposição teórica, na qual discutimos as marcas de uma comunidade no processo de desenvolvimento da singularidade de uma pessoa, do seu nascimento até o caminho rumo à maturidade. Para tratarmos da articulação entre os dois pólos - singular e coletivo - utilizamos a metáfora da tessitura de uma colcha. A colcha é algo que vai sendo tecido, inicialmente, pelas pessoas próximas, as quais, por sua vez, lançam mão de materiais que fazem parte de determinada tradição, comunidade. Com o tempo, o próprio indivíduo apropria-se das materialidades tornadas disponíveis pela comunidade e passa, ele próprio, a tecer a sua colcha. A colcha pode aninhar, acolher, aquecer e ser compartilhada. Enfim, é algo que se constitui na relação com os outros, numa base de tradição. Ao mesmo tempo, ao acolher, constitui um lugar a partir do qual o indivíduo pode se relacionar com esses outros e com essa tradição.

Entretanto, dadas as violências históricas que vivenciamos no Brasil, foi necessário tratarmos também das violências generalizadas dessa civilização, que pode recusar um lugar simbólico humano a qualquer um. Desse modo, pretendíamos situar as impossibilidades de tessitura da colcha no contexto atual de desenraizamento cultural e de vigência da ideologia capitalista.

Após a exposição, os alunos trouxeram a questão da dificuldade das crianças, que crescem sem os pais, para tecerem suas colchas. Lamentaram a existência de pais muitos jovens e as dificuldades decorrentes dessa estrutura de família, tanto para as crianças como para os pais que "nem bem teceram suas colchas e já precisam tecer novas colchas". Outro aspecto comentado foi a importância da família e dos sobrenomes; falou-se, com certa nostalgia, dos tempos em que os nomes tinham significado e diziam quem era quem, podendo proporcionar confiança entre as pessoas. Tentamos dizer que a coletividade não necessariamente corresponde a famílias e sobrenomes.

Notamos que os alunos associaram muito rapidamente a idéia de comunidade à família. Isso aponta para uma concepção aparentemente dominante de que o único espaço coletivo é a família. Outras instituições e espaços coletivos não foram por eles considerados. A preocupação de alguns alunos com a "desestruturação" das famílias na atualidade revela que, para as pessoas, o último resquício de coletividade está se esfacelando. Por outro lado, é um discurso homogeneizante que busca estabelecer a maneira como as pessoas deveriam viver a vida.

A respeito do tema central da aula, parece necessário sustentar o paradoxo do singular no coletivo. Quando se fala da singularidade ou de estilo pessoal, observamos uma tendência a uma compreensão psicologizante, que atribui qualidades e defeitos aos indivíduos, como se essas qualidades e defeitos fizessem parte de suas essências.

A metáfora das colchas que se misturam e das marcas dos outros deixadas em nossas colchas chamou a atenção de alguns alunos. Comentaram que percebem que isso realmente ocorre em suas relações, sendo uma forma interessante de compreender os ambientes sociais.

No segundo momento da aula, trouxemos a música "Vida Loka – Parte II" do grupo de rap Racionais MC´s para que os alunos pudessem ouvir e discutir sobre ela. Escolhemos essa música porque ela ilustra os meandros entre um ideal de vida norteado pelo consumo e uma vida que preza pelo convívio fraterno numa comunidade. Nessa tensão, realçada pela precariedade de condições materiais que há na periferia e toda a violência que a acompanha, encontramos um Rap como criação cultural que possibilita experiência de reconhecimento da coletividade. A música é uma criação que faz das fraturas do ethos motivo de expressão, que preserva o estilo de ser e a história das pessoas que ali vivem, criando um coletivo possível ao vir a ser humano.

Um breve silêncio seguiu-se à escuta da música. Ouvimos mais uma vez. Uma aluna disse que, por ser uma homenagem a uma pessoa falecida, a música é triste. Outra comentou que a letra é muito dura e choca, mas que a vida das pessoas que a fizeram deve ser dura também, para que façam uma letra assim. Comentaram que a música também é triste, não só a letra. Fomos perguntados sobre o que achamos do movimento Rap. Falamos, então, sobre compreendê-lo como um exemplo de coletividade existente no mundo atual.

Aula 4 – As coisas

Na aula, pretendíamos trazer a idéia de que as coisas significativas são aquelas impregnadas pela memória das relações humanas e do trabalho que as produziu. As coisas presentes em nosso cotidiano falam da presença humana, articulam histórias e preservam as tradições de uma comunidade.

Para aproximarmos os alunos dessa dimensão das coisas, propusemos que pensassem em um objeto que fosse importante para eles. Os objetos apresentados pelos alunos foram: a cama ("quando eu chego cansada, a cama está me esperando de braços abertos", a cama possui vinte anos, dela veio o filho, a cama traz lembranças de muitas histórias boas); o computador; um anel (este era como um elo que ligava as pessoas); o rádio (a faz viajar no passado); a escova de cabelo (a acompanha nas viagens); a Bíblia e o véu (que são símbolos religiosos); o livro; os móveis da casa; uma coleção de canetas; um berimbau.

Tínhamos a expectativa de que os alunos relatariam objetos que tivessem uma história familiar transgeracional, mas isso não apareceu em nenhuma fala. Notamos que muitas vezes quando as pessoas falaram de seus objetos, trouxeram aqueles que as definiam como pertencentes a determinada comunidade (por exemplo, religião, profissão e grupo social). Pensamos que isso pode ter relação com o fato de que a aula anterior havia sido sobre a coletividade.

No segundo momento da aula, fizemos uma exposição sobre o tema. Discutimos que as coisas produzidas pelo trabalho são manifestações da possibilidade humana de criar e de transformar a natureza. Essas coisas satisfazem as necessidades e os desejos dos humanos e são dotadas de características sensíveis. Entretanto, no modo de produção capitalista, que confere primazia ao valor de troca das coisas em detrimento do valor de uso, o mundo sensível perde suas nuances e singularidades e se torna abstrato e quantificável. Assim, o que se pretendia era discutir a questão da reificação e suas repercussões na constituição da subjetividade.

A exposição foi constantemente enriquecida pelos alunos, que comentaram suas experiências pessoais em relação ao trabalho assalariado e a falta de sentido do mesmo. Ao final, a turma permaneceu discutindo o tema e chegou à constatação de uma dimensão da experiência humana contemporânea segundo a qual o velho tem um valor sentimental enquanto o novo tem um valor utilitário. Além disso, os alunos apontaram o conforto propiciado pelos objetos que são frutos desse modo de produção que reifica. Ao mesmo tempo em que destitui as marcas humanas nas coisas, a produção em massa possibilita uma diminuição de sofrimento, gerando coisas que facilitam a vida cotidiana.

Aula 5 – Solidão

No primeiro momento da aula, escutamos com os alunos a música "Só (Solidão)" de Tom Zé. Escolhemos a música porque ela apresenta diferentes facetas da experiência de estar só, sem, no entanto, integrá-las em torno de um único eixo organizador.

Ao serem questionados a respeito das dimensões que a música suscitava sobre a solidão apresentaram diversos elementos. Discutiram a idéia de que a solidão é uma experiência pesada associada ao luto. Apontaram para a possibilidade de se sentir só mesmo em presença de outras pessoas. Chamaram a atenção para o caráter impregnante da solidão, daí a metáfora da solidão como poeira leve proposta pela música. Por último, falaram sobre a necessidade de estar só, e sobre a possibilidade de estar só sem se sentir isolado. Avaliamos que a música utilizada foi muito adequada porque suscitou muitas perspectivas sobre a solidão.

No segundo momento da aula, a exposição tinha como objetivo discutir diversas facetas da solidão. Em primeiro lugar, apresentamos a concepção proposta por Winnicott (1979/1983) de que ser só é uma capacidade conquistada gradualmente. Para o autor, torna-se possível viver a experiência de ser só enquanto permanece viva a memória de ter estado em companhia dos outros. Em segundo lugar, discutimos a necessidade de ser só, de não ser completamente compreendido pelos outros. Trata-se de uma dimensão da experiência que remete à angústia de ser só e, ao mesmo tempo, à importância de preservar em si um núcleo incomunicável, impossível de se tornar coisa apreensível. Em terceiro lugar, discutimos os mecanismos psíquicos que visam negar a solidão. Tais mecanismos fazem com que sejam depositados no outro aspectos de si ameaçadores e destrutivos ou excessivamente bons. Com isso, negam a distância entre eu e outro. Por último, falamos da solidão como falta de esperança de contato com os outros. Isso se dá na experiência do vazio, quando se sente que não há nada dentro de si e que não há o que ser comunicado.

Durante a exposição, alguns alunos trouxeram lembranças como, por exemplo, de relações amorosas marcadas pela possessividade e da morte de parentes. Uma aluna propôs a existência de dois tipos de saudade: uma delas que se manifesta como dor e a outra que surge como uma lembrança gostosa de ter podido estar em companhia de alguém que não está mais próximo.

Nessa aula, os alunos fizeram muitos comentários pertinentes. Supomos que, pelo fato da solidão ser um sentimento, as pessoas puderam se aproximar mais do tema por já terem um conhecimento pessoal desse tipo de experiência.

Aula 6 - Sexualidade

No primeiro momento da aula, tocamos as músicas "Cotidiano" e "Valsinha" de Chico Buarque com o objetivo de abrir uma discussão em torno do tema em questão. A música "Cotidiano" apresenta a perspectiva de um homem sobre a relação dele com a esposa. Escolhemos essa música porque ela ilustra uma situação em que a esposa já se tornou plenamente previsível para o homem e que, ao invés de encontro erótico entre eles, o que há é mesmice e repetição. O marido se sente invadido por uma rotina para a qual não consegue dizer não. A música "Valsinha", por sua vez, retrata uma situação em que o homem redescobre a mulher e isso cria a possibilidade de um encontro erótico, que é descrito na música.

Depois de ouvirmos as músicas, iniciou-se a discussão. Apontou-se que elas são opostas. "Valsinha" fala de amor e "Cotidiano", da falta de amor. Em relação à música "Cotidiano", os alunos falaram que a mulher não tem criatividade, enquanto o homem não tem atitude. Falaram também que a paixão da mulher é vivida como sufocante pelo homem. Especulou-se muito sobre as supostas patologias da mulher da música "Cotidiano". Entretanto, a isso foi contraposta a idéia de que a música só apresenta a versão do homem sobre a relação. O fato do homem se sentir sufocado não permite supor que a mulher seja sufocante.

Na música "Valsinha", ressaltou-se que o homem tomou a atitude, declarou-se, olhou para ela de um jeito diferente e ela, a partir disso, se sentiu amada e se fez bela para ele. Há aí uma distinção entre o papel que é assumido pelo homem e o papel assumido pela mulher. A mulher estava esperando (o vestido decotado, cheirando a guardado de tanto esperar) e ele tomou a iniciativa. Ressaltou-se que, no momento em que os personagens da música "Valsinha" estavam se amando, não havia mais nada nem ninguém no mundo, só os dois. Os gemidos e gritos mencionados na letra indicam que houve relação sexual. Os alunos ressaltaram que, na música, o casal deu os braços e foi para a praça. Com isso, a música parece estar se referindo a um amor antigo e ingênuo. "Hoje em dia, as pessoas não costumam mais dar os braços, nem ir para a praça. Tudo é mais direto".

Depois de conversarmos sobre as músicas, apresentamos uma aula na qual discutimos que o encontro erótico, que não precisa necessariamente ser uma relação sexual, carrega consigo uma tensão entre um intenso desejo de compartilhar, de fundir-se e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de haver esse compartilhamento. Também propusemos que a impossibilidade de apreender o outro completamente permite que a relação continue sendo permanentemente inventada. Além disso, apresentamos um esquema dos movimentos implicados no encontro erótico: atração – tensão – relaxamento. O interesse pelo outro surge da possibilidade de percebê-lo. Instaura-se, então, a ilusão de compartilhamento para, em seguida, haver o relaxamento. No relaxamento há um desligamento em relação ao outro e o interesse pode se voltar novamente para o mundo.

A partir da aula, os alunos discutiram sobre os tipos de paixão. A paixão pode ser tanto um intenso desejo sexual quanto uma idealização sublimada do outro, na qual não se consuma o ato sexual. Também se iniciou uma discussão sobre as formas de viver a sexualidade. Argumentou-se que atualmente o início da vida sexual é precoce, as pessoas casam e descasam muitas vezes, o sexo se torna banalizado e com isso não há mais espaço para o verdadeiro encontro entre as pessoas. A isso, foi contraposta a idéia de que as formas de viver a sexualidade variam de época para época e de cultura para cultura e não dá para afirmar que uma é mais legitima ou mais verdadeira do que as outras. Ao contrário, é possível conceber diferentes maneiras de viver a sexualidade sem estabelecer de antemão a distinção entre certo e errado.

Aula 7 - Loucura

Nessa aula, escolhemos exibir o documentário "Imagens do Inconsciente - I" porque ele aborda muito bem as discussões que pretendíamos fazer sobre o tema. A parte introdutória do documentário faz uma apresentação histórica breve do Museu de Imagens do Inconsciente e sua inserção no panorama da psiquiatria da época. A segunda parte retrata a vida do artista plástico Fernando Diniz, por muitos anos interno em um hospital psiquiátrico, no qual freqüentou o ateliê de pintura oferecido por Nise da Silveira. No documentário, é apresentado um retrospecto da vida de Diniz, antes e durante a internação e propõe-se uma leitura de sua trajetória de vida a partir da análise de sua obra.

Após a exibição da parte inicial do documentário "Imagens do Inconsciente - I", abrimos para a discussão sobre os temas suscitados pelo trecho. Debateu-se a perspectiva da psiquiatria tradicional. Nessa perspectiva, o paciente é observado a distância e com neutralidade, para que se possa chegar ao diagnóstico o qual, por sua vez, orienta a escolha das substâncias a serem ministradas para controlar os sintomas. Nesse tipo de tratamento, a experiência que o paciente vive no hospital não é levada em conta. As atividades ocupacionais são meras auxiliares da terapia medicamentosa.

O documentário também nos forneceu subsídios para discutirmos uma outra forma de abordar o fenômeno da loucura. A proposta de oferecer ateliês de pintura para os pacientes psiquiátricos parte da compreensão de que a loucura é expressão de um indivíduo singular. Para esse indivíduo, a pintura e outras formas de expressão artística podem ser um meio importante de expressão. Essa compreensão origina um método de estudo a partir da série d imagens produzidas por cada indivíduo. Nela, podem ser observados motivos que se repetem, objetos retratados que mantém relação com a história de vida. Nessas séries de pinturas, pode-se acompanhar as fases vividas pelo paciente, seus momentos de maior ou menor organização. Observa-se uma dupla função da pintura, uma fonte de pesquisa do inconsciente e, também, um agente terapêutico no tratamento da loucura. Essa compreensão da loucura entende que a experiência vivida pelo paciente no hospital é fundamental para seu estado atual e, nesse sentido, oferece os ateliês de pintura como espaço terapêutico.

No debate, os participantes falaram sobre o ambiente do hospital psiquiátrico apontando seu aspecto triste e feio. Enquanto o lado de fora parece bonito e arborizado, o lado de dentro é mal cuidado. Vários participantes comentaram que já visitaram pessoas em hospitais psiquiátricos, falaram também sobre casos de loucura na família.

Após essa primeira discussão, assistimos um trecho da segunda parte do vídeo, sobre Fernando Diniz. A série de suas pinturas é apresentada e discutida, assim como sua história de vida.

Os participantes apontaram o fato de ele ter conseguido vencer apesar de sua mãe não ter ajudado muito, colocando que ele devia ser submisso aos brancos. Surgiram questões a respeito da cura da loucura. Retomamos os diversos pontos de vista sobre a loucura para problematizar a questão. Uma das participantes mencionou o caso de uma pessoa que se acidentou, perdendo parte do cérebro. A partir disso, falamos sobre as diferenças, nem sempre claras e bem estabelecidas, entre a loucura, a deficiência mental e a lesão neurológica.

Discutimos também a relação de Fernando com a monitora do ateliê, relação terapêutica cuja interrupção surtiu efeitos desorganizadores na personalidade de Fernando, que puderam ser acompanhados em suas pinturas. Os vários momentos de Fernando retratados em sua obra constituem seu ciclo de vida. Dessa forma, suas pinturas aparecem como expressão que conta uma história, deixa marcas, fala sobre uma experiência de ser. Uma experiência que excede um nome que a determine. A loucura é fenômeno presente na vida de Fernando, mas não reduz sua singularidade a um rótulo.

Aula 8 – Finalização do curso

Nessa aula, pretendíamos ter subsídios para avaliar o curso que oferecemos. Após tantos esforços na tentativa de tratar de assuntos centrais para psicologia em linguagem não acadêmica, precisávamos verificar de forma mais explícita o que o curso produziu na perspectiva os alunos. Pensamos em avaliar a apropriação das aulas pelos alunos e também a noção de psicologia que um curso desse tipo é capaz de produzir. Para tanto, elaboramos uma folha de avaliação com o título "Reflexões sobre o Curso de Introdução à Psicologia destinado à Comunidade do CEU". Esta primeira folha pedia a identificação do aluno e apresentava duas questões:

1. Escolha um dos temas trabalhados nas aulas para relatar o que lhe chamou a atenção e o que você pensou sobre o tema a partir da aula.

2. A partir das discussões realizadas nas aulas, que impressões e idéias ficaram sobre a Psicologia?

Além disso, pretendíamos propiciar um espaço livre para críticas e sugestões. Com esse objetivo, elaboramos outra folha de avaliação. Esta vinha com a pergunta: O que você achou do curso e o que você sugere para melhorá-lo? Na segunda folha, não era preciso que os alunos se identificassem.

No final, foi realizada uma festa de confraternização para a qual cada um dos participantes contribuiu com comes e bebes.

 

Avaliação do curso por parte dos alunos

Ao analisarmos as respostas dos alunos, optamos por não avaliá-los individualmente. Com as respostas, pretendíamos ter subsídios para avaliar o curso e o modo como o grupo apreendeu os temas discutidos.

Questão 1 - "Escolha um dos temas trabalhados nas aulas para relatar o que lhe chamou a atenção e o que você pensou sobre o tema a partir da aula"

Agrupamos as respostas dos alunos a essa questão e as resumimos abaixo (os trechos transcritos literalmente encontram-se entre aspas):

Aula 2 – A morada: O aluno que destacou a aula sobre "a morada" parece ter se aproximado da idéia de que o bebê é um sujeito e que, como tal, percebe o mundo de uma maneira própria. O bebê desconhece o mundo e precisa se abrir para o novo, abrir-se para uma travessia que demanda esforço e apresenta riscos. A partir disso, o aluno fez uma associação entre a experiência do bebê e as experiências que acontecem na vida adulta.

Esse tema e a comparação feita nele mostra alguns processos que ocorrem na vida de algumas pessoas quando essas começam a traçar novos horizontes em suas vidas, pois todo começo tem seus desafios e dificuldades que precisam ser superados (...). Muitas vezes esses desafios devem ser enfrentados com a inocência, a sinceridade e a pureza de um bebê, pois nunca devemos pensar que já somos grandes o bastante (...).

Aula 3 – A coletividade: A aluna dialogou com o paradoxo apresentado na aula sobre coletividade: o homem é um ser singular que abriga o coletivo. Além disso, propôs uma articulação da discussão da aula sobre coletividade com a discussão da aula sobre as coisas.

Nós expressamos aquilo que vivemos e sentimos nas condições que estamos, mas mesmo assim somos únicos ou seja singular. E quando um objeto se torna significativo pra gente é porque tem valor emocional.

Aula 4 - As coisas: A aluna que destacou a aula sobre "as coisas" afirmou que os objetos trazem consigo a memória e, por isso, são dotados de dignidade e sentido. A aluna destacou o paradoxo de que um objeto pode ou não ter sentido dependendo das relações que os homens estabelecem com ele.

Fator fundamental é o saber e o sentir. Saber o significado de determinada coisa/ objeto para alguém (...).Em suma, as coisas e os objetos pode não ter importância para mim, mas meu próximo de repente necessita de algo material para assim fazer-se um ser melhor.

Aula 5 – A solidão: A aluna que destacou a aula sobre "a solidão" afirmou que a experiência de solidão não tem a ver só com tristeza, mas também com criatividade. "O desenvolver este tema, ouvindo outras pessoas foi muito bom. Pensei que seria um tema amargo, frio, foi contrário, foi criativo, construtivo animado e valoroso".

Aula 7 – A loucura: Alguns alunos destacaram a aula sobre a loucura. Sintetizamos alguns aspectos do que eles escreveram:

- A loucura é um fenômeno eminentemente humano que tem a ver com a história de vida das pessoas e com o ambiente em que elas vivem. Para não enlouquecerem, é preciso que as pessoas vivam a inteireza e a beleza do mundo. "Se o local onde vivo me mostra coisas belas, inteiras, isso me leva a paz".

- É preciso demorar-se antes de fazer julgamentos em relação aos "loucos". "Sempre temos que pensarmos antes de criticar o comportamento dos seres humanos".

- Apareceu uma concepção assistencialista do louco como carente, necessitado.

- Ficou evidente uma confusão entre cérebro e psique; entre doença mental e loucura. "Por mais que uma pessoa tenha uma desorganização em seu cérebro ela deve ser observada e ajudada pois tudo o que está acontecendo é o que se reflete de tudo que ela passou em sua vida".

Questão 2 - A partir das discussões realizadas nas aulas, que impressões e idéias ficaram sobre a Psicologia?

Destacamos alguns aspectos trazidos pelas respostas dos alunos a pergunta acima. Agrupamo-los da seguinte maneira:

O curso como abertura para novas significações sobre os fenômenos:

Afirmou-se que os conteúdos propostos durante o curso fazem parte do cotidiano e que as discussões propostas contribuíram para abrir novas significações sobre eles. A psicologia contribui para que o pensamento se torne "volúvel", nos termos utilizados por uma das alunas. Outro aluno passou a compreender a psicologia como uma janela, um espaço de abertura: "A psicologia não nos dá uma definição das situações e temas abordados, penso que são sempre janelas que vão se abrindo e nos mostrando sempre coisas novas sobre vários temas ou situações".

Uma das alunas afirmou que, antes do curso, tinha a expectativa de que a Psicologia poderia orientar para o "bom" comportamento e solucionar problemas. Ao fim do curso, contudo, chegou à concepção da psicologia como uma ferramenta para descrever as coisas, como uma linguagem. "A psicologia é mais uma ferramenta que auxilia o ser a pensar melhor(...). Ela não nos dá solução, ela sugere, diferencia, referencia.(...)Para mim é mais algo que soma e somará, desenvolve idéias, leva a outras dimensões". Afirmou-se que o curso abriu espaço para a participação de todos e centrou foco no processo de pensar e não em conteúdos cristalizados, sendo que esse processo se dá em grupo.

A Psicologia como propiciadora de uma reflexão ética sobre a relação com o outro:

Uma das alunas propôs a psicologia como estilo (postura) de vida caracterizado pela escuta e pela aceitação do outro, que pode ser praticada no dia-a-dia e que nos permite ajudar os outros a construírem suas colchas (singularidade).

Alguns alunos destacaram uma dimensão terapêutica do curso, como se ele tivesse contribuído para melhorar a relação com os outros e consigo.

Visão "instrumental" de que o curso foi um espaço para aprender lições de vida, para aprender como lidar melhor com os outros ou consigo ou para desabafar:

Alguns alunos destacaram várias lições de vida aprendidas durante o curso. A idéia de que aquilo que se aprende serve para tirar lições de vida pareceu bastante arraigada e forte.

Compararam-se as aulas com sessões de psicoterapia porque, durante o curso, foi possível expor idéias que não podem ser expostas no núcleo familiar e em nenhum outro ambiente.

Abaixo, apresentamos uma síntese das respostas dos alunos à questão "O que você achou do curso e o que você sugere para melhorá-lo?".

Os alunos ressaltaram a aproximação entre os temas do curso e experiências concretas de vida. Para alguns participantes o curso foi vivido como experiência terapêutica, para outros, como espaço de convivência, de conhecimento mútuo e de formação de grupo. Reconheceram que os temas foram propostos de uma maneira muito pessoal e lamentaram a curta duração do curso. Enfatizaram a possibilidade de se expressar sem serem julgados. Valorizaram o espaço coletivo de discussão e convivência. Fizeram referência aos recursos didáticos utilizados (filmes, músicas etc.). Propuseram que os diálogos em grupo fossem realizados ao redor da mesa (como na aula 8) e que houvesse avaliação contínua com a produção de textos sobre cada aula. Também sugeriram outros temas a serem adicionados.

 

Discussão

A proposta do curso, debatida diversas vezes com os alunos, era apresentar os aspectos que aquele grupo de três psicólogos identificara como questões essenciais às psicologias. Cada um de nós percorreu um caminho singular ao longo da formação e os nossos percursos, em um dado momento, cruzaram-se e fertilizaram-se mutuamente. Foi daí que surgiu a proposta.

Os alunos chegaram até nós com motivações diversas. Como se tratou de uma proposta vinculada ao Núcleo de Ação Cultural de um CEU, que funciona como espaço de lazer e socialização para os diversos atores da comunidade, alguns alunos chegaram com a expectativa de que o curso fosse um espaço de convivência com novas pessoas e, talvez, porque não, com novos conhecimentos. Além disso, ficou evidente que muitos deles vieram em busca de algo que tradicionalmente se encontra em espaços de psicoterapia. Outra fonte de motivação foi buscar lições para a vida. De qualquer modo, os alunos chegaram. A partir da segunda aula, todos que vieram permaneceram até o final, o que indica que, por algum motivo, o curso fez sentido, caso contrário, eles não viriam.

Consideramos que ensinar é ampliar horizontes, é promover mudanças a partir de experiências. Uma aprendizagem significativa ocorre quando aquilo que se aprende faz sentido a partir da experiência daquilo que se aprendeu. Acreditamos que ensino-aprendizagem é um processo que não tem a ver apenas com acúmulo de informações. Quando concebemos esse projeto, partimos dessa concepção de ensino, bem ilustrada por Simão(2004):

Entende-se aqui por conhecimento não apenas os aspectos de informação a respeito do que é tematizado como conteúdo do diálogo, mas principalmente a significação cognitivo-afetiva que os atores fazem, a partir do diálogo, com respeito à realidade, compreendida como versão pessoal datada e culturalmente contextualizada, onde habitam os objetos significativos, os outros, o si mesmo e a própria relação eu-outro de cada interlocutor. (p. 51)

No primeiro momento das aulas, a partir de situações, músicas, etc, pretendíamos proporcionar um campo em que os alunos participassem trazendo suas próprias experiências relativas ao tema da aula. Este momento foi concebido justamente por acreditarmos que algum aprendizado significativo em relação ao tema ocorreria apenas se estivesse enraizado na experiência do aluno. Assim, o que preparamos para expor em relação ao tema poderia ser construído a partir de um campo coletivo de discussão com nomes, cores e texturas reconhecíveis pelos alunos, porque recolhidos de suas próprias experiências.

Em diversas aulas, surgiram desabafos, longos dramas pessoais foram narrados, alguns dos quais não se vinculavam a nenhum dos temas que estavam sendo discutidos. Diante deles, nós, professores, interrogávamo-nos: o que fazemos com isso? Interromper, comunicar a inconveniência desses relatos, procurar estabelecer alguma relação com o tema da aula? Algumas vezes, simplesmente esperávamos o relato terminar para tentar retomar o prumo da discussão.

Entretanto, quem quer que tenha lido a nossa proposta terá compreendido que, em diversos momentos, a nossa postura foi a de tentar evocar os relatos de experiências de vida. Exemplos de relatos pessoais dos alunos que ampliaram os horizontes das discussões sobre os temas não faltam. Entretanto, também não faltam exemplos de relatos de experiências ou de desabafos que, para nós, apareciam como corpos estranhos ao curso, sem uma relação manifesta com aquilo que estava sendo discutido no momento, inviabilizando uma discussão coletiva.

Se estávamos propondo que os alunos se aproximassem dos temas a partir de experiências concretas, seria contraditório não abrir espaços para que elas pudessem ser expressas. Com isso, passamos, em certo sentido, a caminhar no fio da navalha. De um lado, estimulávamos a expressão dessas questões e, de outro, nos esforçávamos para manter o foco na discussão sobre os temas.

Nosso papel era o de distinguir quando as experiências particulares poderiam se tornar matérias encantatórias das nossas discussões e quando eram convites para embarcarmos nos dramas biográficos daqueles que ali estavam, o que certamente não era o caso. Em outros termos, procurávamos extrair, daquilo que era biográfico, algo a respeito da condição humana. Nem sempre isso era possível, mas, às vezes, já vinha pronto.

Desse modo, nossa proposta pedagógica não pode ser considerada de maneira dissociada do conteúdo do curso, ou seja, da psicologia. Possivelmente por isso sempre esteve presente a tensão do campo entre o ensino e a prática da Psicologia. Questão esboçada desde a primeira aula do curso, formulada por um dos alunos: "O objetivo deste curso é ensinar ou praticar a Psicologia?". A emergência dessa questão, na primeira aula, traduz a ambigüidade por nós sustentada entre essas duas esferas. Permanece a questão: A que distância fica de uma psicoterapia de grupo, propor, como fizemos nas aulas, que as pessoas falem de situações em que se sentiram em casa ou pedir a elas que falem de um objeto significativo num espaço coletivo?

As aulas pretendiam constituir uma ambiência a partir da qual os alunos pudessem se aproximar de aspectos que estão aí desde sempre e que caracterizam a nossa trajetória no mundo. Isso embaralha a distinção entre o ensino da psicologia e a prática do psicólogo. Entretanto, isso embaralha também a distinção entre o ensino da psicologia e o espaço de convivência e socialização, em busca do qual vieram alguns alunos. Utilizando os termos de Safra (2004), estávamos lá na condição de companheiros de viagem pelas intempéries da existência, em comunidade de destino uns com os outros.

Nós, professores, assumíamos o papel tradicionalmente atribuído ao professor. Nós comunicávamos aos alunos algumas reflexões nossas sobre os temas, a partir de um texto preparado previamente. Entretanto, também se criava espaço para a nomeação de certas experiências e a aproximação em relação a outras, algo que costuma caracterizar a atividade terapêutica. Ao mesmo tempo, estávamos lá a compartilhar a mesma condição em relação à existência. Talvez possamos afirmar que, em um curso dessa natureza, que pretendia aproximar os alunos de questões que, a nosso ver, dizem respeito à própria condição humana, as fronteiras entre espaço de convivência, espaço de ensino de psicologia e espaço terapêutico tenham necessariamente que ficar embaralhadas.

Como resultado da sustentação dessa tensão entre campos, observamos nas avaliações que o curso possibilitou que ficasse para os alunos a impressão da Psicologia como "uma janela, um espaço de abertura para surpresas". A Psicologia também foi entendida como "uma ferramenta para descrever o mundo", o que revela, de maneira perspicaz, o entendimento da Psicologia como um saber compreensivo e não de previsão e controle do mundo. A Psicologia foi caracterizada, ainda, como um "pensamento volúvel". Assim, com suas próprias palavras, os alunos conseguiram traduzir questões fundamentais de uma psicologia fundada nas noções de ética e singularidade.

Entretanto, há que se terminar o artigo com algumas ressalvas. Em primeiro lugar, avaliamos que poderíamos ter dedicado mais tempo para problematizar certas concepções bastante arraigadas em nossa sociedade e que apareceram nas falas de alguns dos alunos ao longo das aulas. Por exemplo, atribuir a violência que caracteriza a nossa sociedade à desestruturação familiar, perspectiva que impossibilita uma visão mais abrangente sobre o fenômeno e que culpabiliza as famílias por uma condição estrutural da sociedade brasileira. Na mesma linha, supor que os indivíduos são a causa dos problemas sociais, como se, em sua essência, eles fossem portadores de defeitos ou qualidades que os levassem a agir de tal ou qual maneira. Por último, no campo da sexualidade, percebeu-se uma idealização de certos aspectos de um passado imaginário, em relação ao qual às experiências do presente poderiam ser compreendidas como deterioradas.

Em segundo lugar, as respostas de alguns alunos às perguntas propostas na última aula indicam que alguns deles compreenderam o curso de maneira divergente às concepções que nos norteavam. Alguns deles indicaram que o curso foi um espaço para se apropriar de uma ferramenta utilitária, outros não conseguiram expressar uma apropriação pessoal dos conteúdos apresentados. Isso pode revelar tão somente uma dificuldade de expressão escrita desses alunos. Pode também indicar que oito aulas são insuficientes para um curso dessa natureza. São questões a serem consideradas quando um curso dessa natureza for oferecido novamente.

 

 

Referências

Chico Buarque (1971). Cotidiano. In Construção [LP]. Rio de Janeiro: Marola Edições Musicais.

Figueiredo, L.C. (1996). Ética, saúde e as práticas alternativas. In L.C. Figueiredo, Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos (pp. 41-69) São Paulo: EDUC.         [ Links ]

Lévinas, E. (2003). O Eu e a totalidade. In E. Lévinas, Entre nós: Ensaios sobre a alteridade (pp. 34-65). Petrópolis: Vozes.         [ Links ]

Racionais Mc's (2002). Vida Loka (parte II). In Nada Como Um Dia Após O Outro [CD]. São Paulo: Cosa Nostra.
Safra, G. (2004). A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias e Letras.         [ Links ]

Silveira, N. (1986). Imagens do Inconsciente I – Em busca do espaço cotidiano. (Fernando Diniz [Filme-vídeo]. Leon Hirszman, dir.) Rio de Janeiro: Funarte. 1 cassete VHS/NTSC, 80 min., son. color.

Simão, L. M. (2004) Alteridade no diálogo e construção de conhecimento. In Simão; L. M. e Martínez, A. M. (2004). O outro no desenvolvimento humano: Diálogos para a pesquisa e a prática profissional em psicologia. São Paulo: Thomson.         [ Links ]

Tom Zé (1976). Só. In Estudando o Samba [LP]. São Paulo: Gel Continental.

Vinícius de Moraes & Chico Buarque (1970). Valsinha. In Construção [LP]. Rio de Janeiro: Marola Edições Musicais.

Winnicott, D. W. (1983). O Ambiente e os Processos de Maturação. (I. C. Ortiz, trad.) Porto Alegre: Artmed (Trabalho original publicado em 1979)        [ Links ]

 

 

1 Estudante do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - teoaraujo@hotmail.com
2 Estudante do Programa de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
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Estudante do Programa de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
4 Este projeto foi financiado pelo Fundo de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo. Agradecimentos especiais a José Augusto Mochel, que participou de toda a concepção do projeto e a Maria Luiza Sandoval Schimdt, orientadora do projeto.
5 Os CEU são instituições presentes em diversas regiões do município de São Paulo. Além de oferecerem ensino regular, os CEU são espaços em que a comunidade pode praticar esportes e ter acesso a diversas atividades culturais.
6 A justificativa da escolha desses dois temas como eixos teóricos do curso e o percurso que nos levou até eles é assunto para outro artigo, devido ao limite de espaço para essa edição.
10 O conceito de porta-voz, pilar da teoria pichoniana, conjuga o que chamamos verticalidade e horizontalidade grupal, entendendo-se por verticalidade aquilo que se refere à história pessoal do sujeito, e por horizontalidade o processo atual que acontece no aqui e agora, na totalidade dos membros. É o sujeito que em um momento denuncia o acontecer grupal, o conjunto de fantasias inconscientes, as ansiedades e necessidades da totalidade do grupo. (Scarcelli, 1998)..