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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.2 no.2 São Paulo  2009

 

Resenha

 

A singularidade humana na formação e atuação dos psicólogos

 

 

Luciana Rodrigues Vasconcellos1

 

 

Cada ser humano é capaz de criar artefatos culturalmente significativos se receber, de outros seres humanos e de instituições sociais, um montante significativo de assistência (Tomasello, 2003).

Michael Tomasello é psicólogo comparatista, norte-americano, co-diretor da Max Planck Institute for Evolutionary Antropology, em Leipzing, Alemanha e autor do livro "Origens culturais da aquisição do conhecimento humano", publicado em 2003. Em suas pesquisas, Tomasello (2003) atua no campo das ciências cognitivas aplicadas à aprendizagem social, aprendizagem da linguagem e na comparação de crianças com os grandes símios (Castro & Rodrigues, 2006).

O primeiro capítulo do livro de Michael Tomasello é intitulado "Um enigma e uma hipótese". Nele, o autor lança as bases para explicar como adquirimos conhecimento e o que há de exclusivo na cognição humana. Ao longo do livro, Tomasello (2003) esclarece como a vivência sociocultural promove a aquisição da linguagem e de capacidades cognitivas únicas da espécie, como a metacognição e a redescrição representacional. Optamos por abordar somente esse capítulo, porque, precisamente ele, nos proporciona bases sustentáveis para a articulação com o tema: formação e atuação dos psicólogos brasileiros.

Desse modo, existem problemas que intrigam os psicólogos e despertam a curiosidade dos graduandos em Psicologia. Um deles é saber como o ser humano desenvolveu artefatos culturais, produtos tecnológicos, sistemas simbólicos e institucionais complexos, que tanto nos distanciam dos outros animais, inclusive primatas. Junte-se a isso um fator que dificulta a solução do problema: segundo Tomasello (2003), somente seis milhões de anos nos separam dos primatas de grande porte. Esse tempo constitui um prazo muito curto para que ocorressem as várias mudanças biológicas necessárias para o desenvolvimento de nossa cognição, capaz de propiciar a magnitude de conhecimento que possuímos hoje.

No primeiro capítulo do livro, Tomasello (2003) elabora uma hipótese com o propósito de solucionar o problema mencionado acima. Para ele, a solução está em uma maneira, ou modos exclusivos da espécie humana em transmitir conhecimento, culturalmente, capaz de proporcionar uma evolução cultural cumulativa. Essa transmissão de conhecimento ocorre através da aprendizagem cultural e sobre isso o autor afirma que: "o peso esmagador das evidências empíricas sugere que apenas seres humanos compreendem co-específicos como agentes intencionais iguais a eles mesmos e, portanto, apenas os seres humanos envolvem-se numa aprendizagem cultural" (Tomasello, 2003, p. 8).

Para tanto, foi necessária só uma mudança biológica que promoveu a capacidade única da espécie de compreender seus co-específicos como seres intencionais iguais a si próprios. A partir desse ponto, a espécie pode evoluir no tempo histórico, em que acontecimentos se dão de maneira muito mais rápida do que no tempo evolutivo. A esse respeito Tomasello (2003) comenta que:

Seres humanos desenvolveram uma nova forma de cognição social que favoreceu algumas novas maneiras de aprendizagem cultural, que favoreceram alguns novos processos de sociogênese e evolução cultural cumulativa. Esse resumo resolve o problema do tempo porque postula uma, e só uma, adaptação biológica – que poderia ter acontecido a qualquer momento, até mesmo muito recentemente (Tomasello, 2003, p. 9).

Sendo assim, por que a capacidade humana de relacionar-se empaticamente com outros membros de sua espécie, compreendendo-os como agentes intencionais, pode ser tão significativa, a ponto de ser a solução para o enigma proposto por Tomasello (2003)? A resposta que autor nos dá é que essa capacidade proporcionou-nos três tipos básicos de aprendizagem: por imitação, instrução e colaboração, e isto significa que somente nós nos envolvemos no processo de aprendizagem social, a ponto de promover uma verdadeira "catraca cultural" (Tomasello, 2003, p. 7) e por esse motivo não aprendemos com o outro mas "através do outro" (Tomasello, 2003, p. 7).

Não somos os únicos animais que vivem em sociedade, nem tampouco, os únicos a transmitirem conhecimento culturalmente. No entanto, seres humanos constituem a única espécie animal que transmite conhecimento de forma cumulativa, o que Tomasello (2003, p. 6) chama de "catraca cultural". Catraca cultural, ou efeito catraca significa que quando algo é criado por uma pessoa ou um grupo de pessoas, essa criação é transmitida culturalmente através dos três tipos de aprendizagem, que mencionamos no parágrafo anterior. Com o passar das gerações, novos indivíduos vão fazendo modificações, seja em ferramentas, instituições sociais, ou sistemas simbólicos criados por seus antecedentes. Essas modificações vão aperfeiçoando o conhecimento construído historicamente, tornando-o cada vez mais complexo. Nossa diferença em relação aos outros animais, portanto, é o que Tomasello (2003) chama de estabilizador da catraca permitindo que uma invenção seja transmitida fielmente, assim como foi criada, até que possa ser aperfeiçoada.

No entanto, Tomasello (2003) alerta em seu texto que se faz necessária cautela ao interpretar sua hipótese, para não a interpretarmos de maneira reducionista. Dado que seria simplista à inferência a seguir: se uma evolução biológica permitiu a compreensão dos nossos co-específicos, como agentes igualmente intencionais, e isso propiciou nos diferenciarmos dos outros animais, então, toda nossa distinção pode ser explicada de maneira biológica ou genética. Essa maneira de interpretar é reducionista por ignorar todo o trabalho sócio-histórico humano na construção do conhecimento que possuímos atualmente. Então, seria igualmente reducionista ignorar o aspecto biológico em detrimento do sócio-histórico.

Igualmente, é importante que o leitor não estabeleça julgamentos valorativos que o levem a concluir que o ser humano é superior a todas as outras espécies, caindo na falácia da Grande Escalada da vida, pois na realidade os outros animais não são piores nem melhores, são apenas diferentes. Cada espécie animal especializou-se em determinadas estratégias de sobrevivência, portanto podemos inferir que o ser humano especializou-se em formas mais eficientes de transmissão cultural de conhecimento. Tomasello (2003), por exemplo, em relação à transmissão cultural de conhecimento menciona que: "talvez cause surpresa saber que para muitas espécies animais o efeito dificultoso não é o componente criativo, e sim o componente estabilizador da catraca" (Tomasello, 2003, p. 6).

Embora não sejamos os únicos animais que vivem em sociedade, Tomasello (2003) menciona que somente nós podemos compreender as relações sociais em que não estamos diretamente envolvidos. Em verdade, a capacidade de compreender intenções, juntamente com o fato de nascermos em um contexto sociocultural, proporciona a criação de formas de representações simbólicas únicas da espécie capazes de abarcar o conhecimento acumulado ao longo do tempo. Algumas dessas representações constituem um sistema simbólico mediado pela linguagem. Para adquirirmos linguagem, é essencial a nossa capacidade de compreender a intencionalidade daqueles com os quais iremos aprender, juntamente com as cenas de atenção conjunta possibilitadas por nossa vivência social.

Além disso, a linguagem amplia a cognição humana ao nos permitir referir não só a objetos materiais de crianças, na fase sensório-motora do desenvolvimento, conforme postulou Piaget, mas também a objetos e eventos exteriores à situação comunicativa. Isso nos permite inferir sobre o mundo material e mental nossos e dos nossos co-específicos, além de proporcionar compreensão das diversas situações perceptivas, que envolvem objetos, eventos e estados mentais.

Tomasello (2003) esclarece, no primeiro capítulo do seu livro, que é impossível explicar o rápido desenvolvimento do ser humano sem levarmos em consideração os aspectos ontogenéticos, filogenéticos e históricos que promoveram um verdadeiro um avanço evolutivo significativo na espécie humana no que se refere à evolução cultural, que ocorre em escalas de tempo históricas. O autor lembra, ainda, que embora esses aspectos mencionados tenham sido possibilitados por uma adaptação biológica, os mesmos não foram determinados por ela e que o conhecimento humano evolui de maneira cumulativa também por nascermos em um ambiente sociocultural.

Conviver socialmente, juntamente com a capacidade de compreender intenções, possibilita a comunicação, partindo-se das cenas de atenção conjunta. Nas cenas de atenção conjunta estão presentes o adulto, a criança e o objeto ou evento ao qual ambos estão prestando atenção, sendo que, a partir dessas cenas, a criança apreende a linguagem. Participar de formas de comunicação complexas, como a linguagem discursiva, por exemplo, possibilita que as crianças criem o que o autor denomina de teoria da mente, que elas utilizam para inferir sobre seu mundo mental e dos seus parceiros comunicativos, podendo inferir, ainda, sobre o que estes últimos esperam dela. Posteriormente, a criança passa a internalizar o discurso instrutivo dos adultos e começa a refletir sobre seus pensamentos e comportamentos, ou seja, desenvolve a metacognição. Portanto, a proposta principal do livro de Tomasello (2003) é abarcar os processos cognitivos exclusivos da espécie humana.

Assim como são os aspectos exclusivos do ser humano que interessam a Tomasello (2003), é também a inquietação sobre a singularidade humana, que permeia a formação, atuação profissional, bem como a prática científica dos psicólogos. Nesse sentido, podemos mencionar que se trata de um livro indispensável para a compreensão da cognição humana. Além disso, esperamos que a inquietação acerca das singularidades impulsione realizações científicas dos psicólogos brasileiros no sentido de não só problematizar o que nos faz humanos, mas que também estimule a contribuição para solução de problemas que assolam a sociedade brasileira.

Em relação à formação dos psicólogos brasileiros, ela perpassa a compreensão dos estudantes a respeito da singularidade do conhecimento acumulado ao longo da história da Psicologia, visto que, são muitas as áreas de atuação profissional que o psicólogo divide com outros profissionais. No entanto, ao final do processo de formação, os psicólogos devem saber o que torna sua abordagem diferencial. E somente através da compreensão do que faz seu conhecimento singular, com o devido respaldo epistemológico, os psicólogos poderão vislumbrar todas as suas possibilidades de atuação que, atualmente, são negligenciadas. A negligência por certas áreas de atuação ocorre, sobretudo, pela rigidez da representação social que persiste ao psicólogo como um profissional clínico, liberal, voltado para as classes abastadas. O modelo de atuação profissional do psicólogo muito foi debatido e permanece em crise, como Ferreira Neto (2002) menciona:

A formação em psicologia no Brasil vem passando por grandes mudanças desde o final da década de 1970, na esteira de um conjunto de transformações políticas, econômicas, sociais e subjetivas. O modelo prevalente de atuação e formação em psicologia, baseado na atuação clínica de cunho liberal e privado, entrou definitivamente em crise (Ferreira Neto, 2004, p. 2)

A partir de então, ocorreram sucessivas mudanças curriculares nos cursos de psicologia na tentativa de comportar as mudanças sociais que vinham ocorrendo e ampliar o campo de atuação profissional do psicólogo. Sílvia Lesser Pereira (1975), citada por Ferreira Neto (2004), demonstra sua preocupação com o despreparo do graduando em Psicologia no seguinte trecho:

Vamos supor que o mercado de trabalho sofra uma inesperada expansão e que os profissionais sejam chamados para trabalhar: com escolares, em escolas públicas de periferia..., com menores órfãos e abandonados..., com delinqüentes..., com policiais e juízes, com migrantes e suas famílias..., com todos os problemas de caráter psicológico de uma comunidade pobre (Pereira, 1975, citado por Ferreira Neto, 2004, p. 117)

Diante disso, vemos que o que Lesser (1975) previa já é o nosso presente, o que não se modificou é a representação enrijecida que o psicólogo ainda possui de si mesmo.

De fato, é na universidade que essa representação tem potencial para ser eliminada e, nós, estudantes temos um papel ativo nessa empreitada. Deste modo, o primeiro passo para tornar finda essa representação é a nossa conscientização de sua existência. O segundo passo consiste em uma atuação mais ativa dos graduandos em Psicologia no processo de ensino e aprendizagem em suas universidades. O graduando possui o potencial de atuar de maneira organizada na reestruturação da representação social do psicólogo participando ativamente do Centro Acadêmico de Psicologia em suas universidades, para que, dessa forma, possam assumir um compromisso com sua formação, questionando-a e contextualizando-a dentro dos acontecimentos sociais e políticos do país.

Um dos contextos sociais, geralmente negligenciados, é a falência da escola pública de ensino fundamental e médio. Propomos, então, aos graduandos em Psicologia o desenvolvimento de projetos de pesquisa com intuito de compreender realidades sociais como essa que, sem dúvida, clama por maior atenção dos futuros psicólogos brasileiros. Fernando Cesar Capovilla, professor e pesquisador da Universidade de São Paulo, ao ser indagado sobre quais aspectos a Psicologia deveria focalizar atenção, em entrevista concedida a Isabella Bertelli, graduanda do curso de Psicologia da mesma universidade e responsável pelo blog Científica Mente, respondeu:

Precisamos de pesquisa científica em educação e saúde capaz de orientar políticas públicas de modo embasado sobre alfabetização e prevenção de fracasso escolar, sobre educação de surdos, sobre prevenção e tratamento de dislexia, sobre prevenção de distúrbios de comportamento e desenvolvimento, sobre prevenção e tratamento eficiente de seqüelas de lesões cerebrais, dentre tantas áreas completamente carentes de psicólogos competentes (Capovilla, 2008).

Partindo, ainda, da nossa reflexão sobre as singularidades, perguntamo-nos: será que as escolas públicas levam em consideração a singularidade humana, no sentido de valorizar aquilo que é individual em cada aluno no processo de ensino e aprendizagem?

Segundo Dalsan (2007), Conselho de Classe é uma reunião que ocorre no final de cada ano letivo nas escolas públicas, com o propósito discutir o rendimento escolar dos alunos, bem como o seu destino para os anos que se seguirão. De acordo com Dalsan, Roman (2007) considera que o Conselho de Classe sintetiza com clareza o cotidiano da uma escola pública que este último pesquisou. Portanto, a citação que se segue responde se as escolas públicas consideram ou não a singularidade humana.

Seguindo a cadência de atribuição de sentenças jurídico-escolares, os alunos, na maioria transformados em números, são passados em exame rápido e conciso. As sentenças ganham formas exatas, como exigem os protocolos: se o aluno foi transferido, coloca-se TT; se é desistente coloca-se "-" e registra-se o total de ausência às aulas; se nunca veio, apenas "-"; retidos, IS; promovidos, S (suficiente). Obviamente o objeto do Conselho é o aluno, nunca o serviço oferecido ou o processo de ensino-aprendizagem enquanto interação. (...) Tão distantes da realidade concreta quanto implacáveis, são esses signos que determinam o destino escolar do aluno. Dessa perspectiva, a escola assemelha-se a uma grande máquina de sujeição e esmagamento de individualidades, tendo o Conselho como um dos desfechos desse processo (Roman, 2001, citado por Dalsan, 2007, p. 49).

Podemos supor que o esforço das instituições educacionais na promoção da homogeneização de seus discentes castra também grandes possibilidades de intervenções criativas destes em relação ao conteúdo que estão assimilando. E isso ocasiona exclusão daqueles que não podem ou não querem suprimir sua diferença. Logo, uma possível intervenção seria promover o compromisso com a diversidade institucional, observando os processos de aprendizagem de cada aluno e levando isso em consideração na prática didática.

Assim, os professores serão capazes de despertar envolvimento e curiosidade nos alunos. Estes teriam maior liberdade para realizarem contribuições e aperfeiçoamentos na própria didática de ensino, já que segundo Tomasello (2003), aprendemos não só por imitação e instrução, mas também por colaboração.

Como análise final, perguntamos: que profissional, senão o psicólogo é apto a mobilizar os profissionais da educação e junto com eles promover as mudanças necessárias para consolidação de uma escola pública de qualidade? Mas, antes, para essas mudanças serem iniciadas na educação pública brasileira, transformações na formação do psicólogo também devem ser efetuadas. O caminho é o desenrolar dessas idéias, aqui articuladas, apenas teoricamente, com a hipótese retratada no primeiro capítulo do livro de Tomasello (2003), na prática acadêmica de estudantes de Psicologia empenhados em torná-las palpáveis.

 

 

Referências

Capovilla, F. (2008). Entrevista com Fernando Capovilla concedida a Isabella Bertelli. Recuperado em 15 de janeiro, 2009, de: http://cienciaemente.blogspot.com/2008/12/entrevista-professor-fernando-capovilla.html.         [ Links ]

Castro, L.C.C. de & Rodrigues, J.E. (2006). A internet como um recurso didático para aprendizagem da língua estrangeira. Recuperado em 23 de maio, 2009, de: http://www.ufpe.br/nehte/artigos/Luiz%20Carlos%20Carvalho%20de%20Castro%20%20ok. pdf.         [ Links ]

Dalsan, J. (2007). O enfrentamento do fracasso escolar em uma escola pública: análise crítica na perspectiva do cotidiano escolar. Tese de mestrado. Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Recuperado em 23 de maio, de 2009, de: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-20042007-111747/.         [ Links ]

Ferreira, J.L. Neto (2004). A formação do psicólogo: clínica, social e mercado. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Tomasello, M. (2003). Origens culturais da aquisição do conhecimento humano. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

1Estudante de Graduação em Psicologia pelo Instituto de Ensino Superior e Pesquisa da Universidade do Estado de Minas Gerais – lcn.vasconcellos@gmail.com