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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.3 no.1 São Paulo  2010

 

Artigos originais

 

Desatando o Ato Médico

 

Unknoting the Medical Act Bill

 

 

Giovana Del Prette1; Leandro Luis Santos Nascimento2

 

 


Resumo

Ato Médico é o nome dado a projetos de lei atualmente em tramitação no Congresso Nacional. Ele se constitui em um dos temas mais polêmicos para as profissões de saúde – inclusive a psicologia – sendo alvo constante de manifestações e protestos. Ainda assim, estudos sobre os projetos são escassos e grande parte das produções que o criticam, o fazem de modo infundado. Este ensaio tem como objetivos: (1) esclarecer a origem e a história da criação desses projetos, (2) analisar alguns pontos dos projetos que teriam implicações à classe dos psicólogos, esclarecendo se eles interferem, ou não, nas atividades da profissão; (3) apontar sugestões de melhoria na redação do projeto que está em análise no Congresso, que minimizariam interpretaçoes controversas e (4) discutir os principais vieses presentes nas críticas feitas aos projetos, na visão dos autores. Por fim, instigamos a necessidade de maior atenção à regulamentação da própria carreira de psicólogo.

Palavras chave: Ato Médico; Conselhos das Profissões de Saúde; legislação; psicologia


Abstracts

Medical Act is the name given to a group of bill projects currently under study in Congress. It is one of the most polemic discussion themes to all health care professionals – psychology including –, constant target of demonstrations and claims against it. Yet, studies about these projects are scarce and most material criticizing it presents unfounded arguments. In this essay, we have the current goals: (1) clarifying upon the origin and history of these projects, (2) analyzing some of the most relevant project aspects wit consequences to the psychology profession, clarifying if they interfere, or not, in its activities (3) pointing suggestions to improve the bill's compositions ,in currency study in Congress, that could minimize interpretation issues and (4) discussing the main critics' biases made to these projects, in the authors' opinions. Finally, instigate for the necessity of a greater attention to our same psychologist career regulations.

Keywords: Medical Act Bill; CRP; legislation; psychology


 

 

Muito tem se falado sobre o Ato Médico - especialmente contra o Ato Médico - em campanhas, manifestações e reivindicações que perduram há alguns anos. Entretanto, o primeiro efeito deste movimento (não importando aqui sua intencionalidade) é que os profissionais da saúde têm recebido constantemente, de pronto, as informações (fatos) juntamente com as opiniões (interpretações sobre fatos). Quando isso acontece, aumenta-se a probabilidade de reagirmos em função das opiniões, mais do que das informações, às vezes nem sequer se distinguindo uma da outra.

É possível que a maioria dos psicólogos e outros profissionais de saúde já tenham recebido, normalmente por email, abaixo-assinados e artigos diversos, em grande parte contra o Ato Médico. É importante ler e estudar a lei, tomando um posicionamento de classe, enquanto "psicólogos" e "profissionais de saúde". Porém, o objetivo deste ensaio não é argumentar "contra" ou "a favor" do Ato Médico, mas sim analisar o comportamento de quem lê (ou não lê?) sobre ele e as divulgações encontradas a respeito.

No Apêndice A, ao final, está disponível uma tabela comparativa contendo os artigos, na íntegra, das duas versões mais recentes do Ato Médico, de modo a permitir uma leitura desprovida de vieses. Aconselhamos que, antes do leitor prosseguir pelo corpo deste ensaio, os projetos de lei (Projeto de Lei do Senado - PLS 268/2002 e Substitutivo da Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei do Senado - SCD 268/2002) ali dispostos sejam lidos cuidadosamente. A seguir, vamos apresentar o que é o Ato Médico, esclarecer alguns dos principais itens (especialmente aqueles que geraram maior polêmica na comunidade dos profissionais de saúde), demonstrar como a redação dos mesmos poderia ser aperfeiçoada e, por fim, discutir vieses encontrados em alguns dos principais sites de posicionamentos sobre esse projeto.

 

O que é o Ato Médico?

O primeiro projeto de Ato Médico (Projeto de Lei do Senado – PLS 25/2002) foi proposto em fevereiro de 2002, pelo Senador Geraldo Althoff que, na época, alegou "que o surgimento de inúmeras profissões de saúde gerou a necessidade de se delimitar e caracterizar legalmente o campo de atuação do médico, uma vez que essas novas profissões passaram a atuar em atividades que, no passado, eram exclusivamente médicas" (Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, 2006). Nesta primeira versão, o PLS 25/2002 contava com cinco artigos e criou grande rebuliço entre os profissionais de saúde e suas respectivas entidades de classe (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, 2004). A mobilização resultante contribuiu para a alteração de alguns artigos deste e, em dezembro do mesmo ano, para a criação de um projeto de lei concorrente, o PLS 268/2002, na busca de "preservar o campo de atuação das demais profissões de saúde" (Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, 2006).

Após o devido trâmite, o PLS 25/2002 foi rejeitado e arquivado em favor do PLS 268/2002, este "bem mais amplo que o anterior, pois, além de definir o campo de atuação do médico, regula o trabalho médico em seus aspectos trabalhistas e éticos, trata dos conselhos profissionais de medicina e do processo e das sanções disciplinares" (idem), além de já conter, em sua origem, um conjunto de garantias para outras profissões de saúde já regulamentadas e apresentando, portanto, menos conflito com as mesmas.

Em 2006, a matéria foi encaminhada à Câmara dos Deputados, sofreu mais alterações e deu origem a um projeto concorrente, denominado Substitutivo da Câmara dos Deputados (SCD 268/2002). Este foi retornado ao Senado Federal (em 26/02/2010) e encontra-se na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da casa, onde aguarda parecer3 do relator nomeado, o Senador Antonio Carlos Valadares. As últimas notícias publicadas no site (em 02/03/2010) referem-se ao agendamento de uma votação para decidir se a matéria será remetida também à Comissão de Educação, Cultura e Esporte.

Após o processo no Senado, restará a esta matéria ser submetida à Sansão Presidencial para que se torne lei e é este um dos principais motivos pelos quais, anos após sua criação e alteração, acompanhamos um ressurgimento da mobilização política em torno deste tema. Embora, em teoria, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania atenha-se apenas ao mérito legal daquilo que julga, este é um órgão onde, historicamente, ocorrem grandes negociações e alterações de projetos, devido a pressões populares e de classe. Além disso, o SCD 268/2002 precisará passar pela Comissão de Assuntos Sociais antes de ser votado; comissão esta que, em 2006, organizou consultas públicas e propôs alterações ao PLS 268/2002, que representariam "o consenso obtido entre a Coordenação em Defesa do Ato Médico e o Movimento Contra o PLS 25/02" (Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, 2006). Portanto o SCD 268/2002 ainda pode ser alterado e melhorado antes que o Senado Federal decida qual dos dois projetos será escolhido e submetido ao Gabinete Presidencial.

Do mesmo modo que os projetos citados nos últimos parágrafos são frutos de uma constante alteração e aperfeiçoamento (resultado para o qual o processo bicameral foi criado), destacamos que não há necessidade de dicotomia na discussão sobre o Ato Médico. O projeto inicial (PLS 25/2002) pode ter, em sua criação, razões para forte rejeição, mas o processo aqui descrito demonstra que a forma e a função do projeto se alteraram e passaram a melhor atender aos direitos de todas as classes envolvidas, longe da perfeição, mas dentro do devido processo democrático.

Muito tem se falado sobre o Ato Médico - especialmente contra o Ato Médico - em campanhas, manifestações e reivindicações que perduram há alguns anos. Entretanto, o primeiro efeito deste movimento (não importando aqui sua intencionalidade) é que os profissionais da saúde têm recebido constantemente, de pronto, as informações (fatos) juntamente com as opiniões (interpretações sobre fatos). Quando isso acontece, aumenta-se a probabilidade de reagirmos em função das opiniões, mais do que das informações, às vezes nem sequer se distinguindo uma da outra.

 

Desatando o Ato Médico

Neste ensaio, estudaremos somente os projetos ainda em discussão no Senado, o PLS 268/2002 e o SCD 268/2002. Há uma mudança perceptível entre estes dois projetos de lei, apresentados em tabela comparativa no Apêndice A, o que nos fornece alguns pontos de discussão. Iremos dar, aqui, especial atenção aos pontos que poderiam trazer implicações à profissão de psicólogo.

A redação de uma lei segue regras específicas, cujo objetivo facilita a compreensão e consulta ao conteúdo da mesma. Segundo o Decreto 4716/2002, que atualizou tais regras, a unidade básica de articulação de uma lei é um artigo (Art.), que desdobra-se em parágrafos (§) e incisos (ex: I, IV); estes parágrafos podem desdobrar-se em incisos; os inscisos em alíneas (ex: "a)", "d)") e as alíneas, por fim, em itens (ex: "1.", "4."). Cada artigo deve ser restrito a apenas um assunto ou princípio, enquanto seu parágrafos devem expressar aspectos complementares e exceções à regra enunciada e, por último, discriminações e enumerações devem ser promovidas por meio dos incisos, alíneas e itens (Decreto 4716/2002). O Art. 23 do mesmo decreto afirma que "As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica..." (p.6) e não há qualquer outra menção sobre o ordenamento dentro de uma lei. Exceto pelo primeiro artigo de cada lei, que deve indicar objeto e âmbito de aplicação da mesma, não há hierarquia entre suas unidades: compreeende-se que um parágrafo segundo (§2º) não é mais forte do que um §7º, ou §45º, e que o mesmo vale para artigos ou incisos. Partindo da compreensão destes conceitos, descreveremos, resumidamente, o conteúdo dos artigos dos projetos de lei, comentando aqueles mais significativos.Em ambos os projetos de lei, nos Art. 1 a 4, descrevem-se as atividades privativas (como intubação traqueal, sedação) e não privativas do médico (como fazer cateterizaçao, punção, aplicar injeção etc). Com a descrição das funções que não são privativas do médico, compreende-se sobre o que não há exclusividade. No Art. 4, descrevem-se as especificações técnicas das doenças, práticas privativas ao médico e as exceções para as mesmas. Em ambas as versões, o §2º do Art. 4 é o primeiro momento em que o psicólogo ou sua atividade são citados na lei: "Não são privativos dos médicos os diagnósticos psicológico, nutricional e socioambiental e as avaliações comportamental e das capacidades mental, sensorial e perceptocognitiva e psicomotora." (SCD 268/2002)

A existência do §2º do Art.4, embora alvo de críticas, garante ao psicólogo (e a outros profissionais) as atividades de sua função. Ele afirma que tais tarefas não são privativas ao médico, e isso é diferente de defini-las como "tarefas não privativas". A segunda expressão afirmaria que são tarefas do médico, mas compartilhadas com outras profissões; já a expressão "não são privativos", contida no §2º, nem afirma nem nega que essas sejam atividades médicas. Apenas define que esta lei não garante exclusividade do médico sobre as atividades descritas no parágrafo, texto esse que permite que outras leis definam um posicionamento sobre essas práticas.

Como já explicado, o §2º descreve exceções às atividades médicas de diagnóstico nosológico, definido no §1º do Art.4:

Diagnóstico nosológico é a determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes critérios: I – agente etiológico reconhecido; II – grupo identificável de sinais ou sintomas; III – alterações anatômicas ou psicopatológicas. (SCD 268/2002, Art. 4, §1º)

Podemos observar, então, o motivo da existência do §2º pois, sem ele, o diagnóstico nosológico incluiria o psicológico. Ainda assim, com relação às atividades de diagnóstico, existiriam possibilidades de melhoria na redação destes parágrafos, conforme será discutido mais adiante.

Ainda no Art. 4, a profissão de psicólogo é implicada novamente no §7º, aqui com diferenças entre os dois projetos:

O disposto neste artigo será aplicado de forma que sejam resguardadas as competências próprias das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia. (PLS 268/2002, Art. 4º, §7º)

São resguardadas as competências específicas das profissões de assistente social, biólogo, biomédico, enfermeiro, farmacêutico, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, nutricionista, profissional de educação física, psicólogo, terapeuta ocupacional e técnico e tecnólogo de radiologia e outras profissões correlatas que vierem a ser regulamentadas. (SCD 268/2002, Art. 4º, §7º)

O objetivo deste parágrafo é deixar explícito que as funções médicas não vem alterar os atos dos outros profissionais de saúde providos de curso superior (graduação), cujas atividades estão regulamentadas por lei. No caso da psicologia, o Decreto 53.464 de 1964 regulamenta a Lei 4.119 de 1962 e contém a seguinte descrição:

São funções do Psicólogo: I - Utilizar métodos e técnicas psicológicas com o objetivo de: a) diagnóstico psicológico; II - Dirigir serviços de Psicologia em órgãos e estabelecimentos públicos, autárquicos, paraestatais, de economia mista e particulares; III - Ensinar as cadeiras ou disciplinas de Psicologia nos vários níveis de ensino, observadas as demais exigências da legislação em vigor; VI - Realizar perícias e emitir Pareceres sobre a matéria de Psicologia (Decreto 53.464/64, Art 4)

Ou seja, além do Decreto 53.464/64, os projetos de lei PLS 268/2002 e SCD 268/2002 garantem ao psicólogo, em dois momentos diferentes (§2º e §7º do Ar.4), sua atividade. Bem, o Decreto 53.464/64 não explicita que o diagnóstico psicológico é prática privativa do psicólogo, apenas os métodos e técnicas que tenham tais objetivos. Isso é uma brecha que permite ao médico o tal diagnóstico? Sim, mas apenas em parceria com um psicólogo, pois ele não pode aplicar qualquer método ou técnica com esse objetivo. A lei torna o médico dependente do psicólogo, no campo da psicologia, e os projetos de lei em discussão não modificam tal estrutura.

Dando prosseguimento ao estudo dos dois projetos de lei, o próximo artigo, Art. 5, lista cargos privativos do médico (direção, chefia, coordenação e ensino em cargos ou instituições médicas), com melhora da redação no SCD 268/2002. O § Único (presente, de modo idêntico, em ambos os textos) esclarece: "A direção administrativa de serviços de saúde não constitui função privativa de médico". É importante a distinção entre "cargos, instituições ou serviços médicos" e "cargos, instituições ou serviços de saúde" pois, com este parágrafo, a lei não submete os outros profissionais a uma hierarquia médica, ao enfatizar que não é função privativa do médico a direção em serviços mais abrangentes – de saúde. Além disso, descrições semelhantes são frequentes e encontradas nos atos administrativos privativos de outros profissionais da saúde (como no referido Decreto 53.464/64, das funções do psicólogo).

Mesmo após a análise realizada até o momento, seria possível pensar que o Ato Médico constitui uma "atadura" aos demais profissionais de saúde? Então, qual poderia ser a sua função? Em que medida essa função nos seria útil? Evidentemente, para o médico, pode se tratar de uma defesa, onde a descrição de suas atividades poderia contribuir para evitar a prática ilegal de medicina (disfarçada de prática alternativa nova). Certamente o caráter dessa defesa é discutível: reserva de mercado ou proteção da saúde comum, mas é fato que as funções do médico ficariam agora estabelecidas em lei (mais rígida, melhor fiscalizada) e não somente pelo Conselho Federal de Medicina (vale lembrar que este órgão é administrado por médicos). Isso é reafirmado no Art. 6: "A denominação de Médico é privativa dos graduados em cursos superiores de medicina e o exercício da profissão, dos inscritos no Conselho Regional de Medicina com jurisdição na respectiva unidade da Federação" (SCD 268/2002). Por último, os projetos finalizam com um artigo (Art. 7) a respeito de procedimentos experimentais em Medicina.

 

Melhorias na redação do Ato Médico

A melhoria da redação do Ato Médico é algo que deve ser buscado e, como demonstramos, já vem acontecendo desde o PLS 25/2002, sua primeira versão. Essa melhoria contribui para a redução da possibilidade de brechas na lei; brechas que podem ser utilizadas não necessariamente para prejudicar um grupo de profissionais, mas para interesses diversos como, por exemplo, na administração de planos de saúde. Alguns pontos dos artigos poderiam ser melhor definidos e, aqui, damos destaque para aqueles cujas críticas teriam implicações diretas para a classe de psicólogos.

No Art. 4 (SCD 268/2002), temos: "São atividades privativas do médico: I-Formulação do diagnóstico nosológico e respectiva prescrição terapêutica"; no §1º, a definição de diagnóstico nosológico: "(...) restringe-se à determinação da doença que acomete o ser humano, aqui definida como interrupção, cessação ou distúrbio da função do corpo, sistema ou órgão, caracterizada por no mínimo dois dos seguintes critérios: I-agente etiológico conhecido; II-grupo identificável de sinais ou sintomas; III-alterações anatômicas ou psicopatológicas" e, no §3º, "As doenças, para efeito desta Lei, encontram-se referenciadas na décima revisão da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde".

O primeiro problema, nesse conjunto de trechos, é que não fica claro como situar problemas de saúde que seriam da competência de outros profissionais. Uma vez que o CID-10 inclui, por exemplo, transtornos psiquiátricos (que atendem aos critérios II e III), esse ponto poderia ser interpretado como uma obrigação para que o paciente do psicólogo consulte-se antes, necessariamente, com um médico (e este que poderia encaminhar, ou não, ao psicólogo). Isso causou grande estardalhaço em torno do projeto de lei, muito embora tal afirmação seja negada nos §2º e §7º, como demonstramos nesse artigo. Mas, no fim das contas, ainda assim, os trechos destacados podem gerar margem para diferentes interpretações da lei.

Outra questão é que, usualmente, grande parte dos psicólogos já faz encaminhamentos à psiquiatria para solicitação de diagnóstico mas, com esse texto, aparentemente, ficariam proibidos, por exemplo, de chamar de Transtorno Obsessivo-Compulsivo um conjunto de padrões de comportamentos de seu cliente, a despeito de evidências suficientes para isso. Possivelmente, uma abertura legal para um plano de saúde restringir o acesso de seus clientes a psicólogos e a terapias mais longas como forma de baratear seus gastos, algo que já ocorre a despeito da criação dessa lei.

Este ensaio não pretende esgotar todos os pontos do projeto de lei que precisariam ser revistos, apenas aqueles que, na visão particular dos autores, causaram maior polêmica ou aqueles cuja imprecisão de redação poderia gerar conseqüências graves para o conjunto das profissões de saúde. Para exemplificar outro aspecto controverso, podemos citar também a importância de diferenciar o que significa "direção administrativa de serviços de saúde" que, no § Único do Art. 5 (SCD 268/2002), é definida como não exclusiva do médico, mas pode ser confundida com "direção, chefia e coordenação", dos itens I e II do mesmo artigo, que seriam privativos do médico, o que também é fonte de interpretações dúbias.

 

Vieses sobre o Ato Médico

Identificamos algumas variáveis que parecem contribuir para os vieses no discurso a respeito do Ato Médico, vieses estes que podem ser encontrados tanto entre os grupos que se posicionam a favor do ato, como entre aqueles contra o mesmo.

Uma primeira busca no Google, conhecida ferramenta de pesquisa (www.google.com.br, busca realizada em 25 de fevereiro de 2010), com a expressão "sim ao ato médico" gera 1930 resultados, contra 14400 resultados para "não ao ato médico". Na primeira página dos resultados encontrados com a primeira expressão ("sim ao ato médico"), observamos que grande parte dos links direciona a sites opositores ao ato médico e há um único link para um site favorável ao projeto, uma página do www.portalmedico.org.br (acessado em 25/02/2010). Notamos, porém, que o conteúdo apresentado nesta baseia-se no PLS 25/2002 (rejeitado e arquivado há mais de três anos) e não apresenta qualquer menção aos projetos que estão ainda em estudo. Não sabemos se é um site desatualizado ou se, mesmo hoje, há dificuldades para se compreender que o PLS 25/2002 não tem mais valor e que todos os posicionamentos, seja a favor ou contra, atualmente deveriam basear-se somente nos outros dois, PLS 268/2002 e SCD 268/2002. Em parte, é provável que tal confusão também esteja relacionada à peculiaridade dos termos legais e organização apresentados pelo site do Senado. Já na busca, no Google, com a expressão "não ao ato médico", surgem questões de ordem prática. A primeira página da pesquisa apresenta links para textos desatualizados em mais de cinco anos e que ainda se referem ao PLS 25/2002, o qual já foi arquivado pelo Senado, e sequer citam o PLS 268/2002, já existente na data em que os textos foram escritos. Ainda nos resultados da primeira página do Google, encontramos dois sites atualizados e reconhecidos, o www.atomediconao.com.br e o www.naoaoatomedico.org.br.

No site www.atomediconao.com.br, o número um na busca do Google, acessado em 25/02/2010, podemos perceber diversos pontos que contribuem para distorcer as informações sobre os projetos de lei, desde a maneira como as páginas estão estruturadas e o modo como os projetos são apresentados ao leitor, até questões referentes à forma e ao conteúdo dos argumentos apresentados. Não é demais salientar: aqui discutimos o viés presente nos sites, e não se este viés é intencional.

Na primeira página do site www.atomediconao.com.br, o primeiro link é "Como dizer não". Ou seja, a ordem apresentada facilita mais ao leitor dizer não do que conhecer sobre o que se está dizendo não. Tampouco há link para o PDF da lei, ou o local onde ele esteja disponível (como o próprio site do Senado). No mesmo site, ambos os projetos de lei (PLS 268/2002 e SCD 268/2002) estão disponíveis porém, a cada artigo ou parágrafo, há um comentário sobre o que deve ser modificado, e isso é um viés ao leitor. Ele pode "não ler" os comentários? Pode. Ele pode procurar no Google o PDF original? Pode. Mas essa forma de apresentação das informações diminui a probabilidade disso acontecer.

Um exemplo a respeito de vieses de conteúdo, ainda neste site, pode ser encontrado em um dos argumentos de propostas de mudanças nos artigos de ambos os projetos de lei, sobre o inciso XI do Art. 4: "XI – determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico" (SCD 268/2002). A solicitação encontrada em www.atomediconao.com.br é: "Solicitamos que seja suprimido o inc XI ou que seja mudada a redação para: 'XI – determinação do prognóstico relativo ao diagnóstico nosológico médico'." Já a justificativa para mudança é assim descrita: "Para garantir os interesses da população, o Estado deve exigir que os profissionais da saúde saibam reconhecer os problemas que colocam em risco a vida saudável. O Estado não pode admitir que os médicos realizem prognóstico em áreas para as quais eles não possuem treinamento (...)". O ponto, aqui, é que a solicitação parece bastante adequada (o acréscimo da palavra médico ao dignóstico nosológico), conforme já argumentamos neste ensaio a respeito da necessidade de melhorias na redação para diminuir a possibilidade de interpretações ambíguas. Contudo, a justificativa apresentada não procede, pois ignora a importância dos §2º e §7º que, como já destacados, garantem as atividades das profissões das áreas às quais os médicos não possuem treinamento, inclusive a realização do prognóstico.

Outro viés, talvez inclusive mais grave, foi encontrado na justificativa da solicitação de retirada dos incisos IV, V e VI do Art. 4, que afirmam ser privativo do médico "IV – intubação traqueal; V – definição da estratégia ventilatória inicial para a ventilação mecânica invasiva, bem como as mudanças necessárias diante das intercorrências clínicas; VI – supervisão do programa de interrupção da ventilação mecânica invasiva, incluindo a desintubação traqueal" (PLS 268/2002). Segundo a justificativa,

Um estudo revela que, em 90% dos hospitais do Brasil (clique aqui), o fisioterapeuta planeja, supervisiona, executa a ventilação mecânica e realiza a desintubação. Também, não raro, o fisioterapeuta realiza inclusive a intubação. Portanto, aprovar esse regramento seria privar as pessoas que recorrem aos centros de terapia intensiva de ter uma boa oportunidade de sobrevivência (...) (www.atomediconao.com.br)

O link "clique aqui" leva a um parecer (Associação Brasileira de Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia Intensiva, 2009), contendo o seguinte trecho: "Neste estudo, constatou-se que na grande maioria das UTI's (89%), a decisão a respeito da instituição, manutenção e suspensão da ventilação mecânica invasiva é de responsabilidade conjunta do fisioterapeuta e da equipe médica" (itálico nosso). Houve uma supressão, no site, da informação de que a responsabilidade pelas vidas salvas não foi única e exclusivamente do fisioterapeuta - mas também da equipe médica - o que pode induzir à impressão de que o ato médico impediria o salvamento de vidas. Em suma, os resultados desta pesquisa citada não suportam a justificativa apresentada e tal distorção leva à perda de credibilidade para a argumentação exposta. Além disso, a conclusão de que estes incisos diminuiriam a oportunidade de sobrevivência do paciente ignora o mero bom senso emergencial em prol da mobilização do leitor, sem contar que este "bom senso" está garantido nos próprios projetos, Art. 4, § 5º, "Excetuam-se do rol de atividades privativas do médico (...) VI – atendimento à pessoa sob risco de morte iminente".

Com relação ao segundo site referido, www.naoaoatomedico.org.br (o sexto na ordem de busca do Google, portanto, menos visitado do que o anterior, segundo o acesso em 25/02/2010), apresenta as informações de modo um pouco mais imparcial. Embora ele apele para uma frase de efeito logo no título da primeira página ("A saúde pública adverte: O Ato Médico faz mal à saúde") seus primeiros links são "o que é o projeto" e "projeto de lei" – neste último, o site disponibiliza todos os projetos do Ato Médico (desde o primeiro, PLS 25/2002), e alguns pareceres sobre os mesmos. Mas o texto explicativo na página "o que é o projeto" comete vieses de argumentação de modo semelhantes ao do site discutido anteriormente. Em linhas gerais, estes vieses se originam de: (a) mistura das fontes de informação que embasam os argumentos; (b) caráter alarmista dos argumentos, não condizente com o conteúdo dos artigos e (c) extrapolação das consequências práticas dos projetos de lei. A exemplo, neste site encontramos:

O Conselho Federal de Medicina - CFM afirma que a medicina precisa regulamentar o exercício de suas práticas profissionais, utilizando o argumento histórico de que há dois mil anos não existia um rol de profissões ligadas à saúde, ficando todo diagnóstico e prevenção sob controle dos médicos, num claro objetivo de retomar o controle do mercado.

Essa afirmativa, creditada ao CFM, foi apresentada no PLS 25/2002, e não é utilizada nos projetos de lei em estudo (PLS 268/2002 e SCD 268/2002), portanto constitui o viés descrito no item a, mistura de fontes de informação. Já o final do parágrafo acima citado contém os outros dois tipos de vieses: é alarmista e extrapolador.

No quarto parágrafo do mesmo texto há um exemplo ainda mais claro dos itens b e c, "O texto atual do PL propõe o retorno a um modelo falido de atenção à saúde, centrado no atendimento clínico, individual, medicamentoso e hospitalocêntrico, o qual não encontra respaldo nem nos organismos internacionais de saúde nem na legislação brasileira, que se valem de um conceito ampliado de saúde e de cuidados."

Talvez os profissionais da saúde tenham acreditado nas divulgações contra o Ato Médico e, portanto, confiaram nas informações que têm sido difundidas, sem uma análise cuidadosa que considerasse o quanto a mensagem foi se distorcendo, ao gerar sentimento de ameaça. Os textos contra o Ato Médico, com fotos de mãos cerradas e algemadas, emitidos em sites e em jornais dos Conselhos e outros, podem parecer panfletagem inflamada, aguçando nossas emoções e aumentando assim a probabilidade de adesão. O caso é que a eleição de um inimigo externo, sabidamente, fortalece o sentimento de classe e aumenta a sua coesão interna, necessária quando se deseja mobilização. Isso ainda é muito mais fácil de ser obtido quando se trata de acirrar uma luta entre "os médicos e os outros", que é ensinada desde cedo, aos graduandos de cursos de saúde, até mesmo em universidades públicas renomadas do país. Revoltar-se contra uma lei é fácil, e faz nos sentirmos ativistas politizados pertencentes à nossa classe. Entretanto, deveríamos investir em ler, compreender e, quem sabe, aproveitar a idéia para a sua melhoria.

 

Um ato psicológico?

A discussão sobre as vantagens dos projetos de lei, e também sobre as reformulações necessárias em sua redação, deve ir além do texto em si; deve abrir a oportunidade para revermos e, quem sabe, modificarmos algumas práticas que os projetos de lei descrevem e já tem ocorrido entre profissionais da saúde. Isso, em última instância, envolve diversas questões, como a definição de métodos científicos de intervenção, do que tem sido ensinado na formação desses profissionais, e do que nossa cultura tem aceito como prática.

Que bom seria se tivéssemos um Ato Psicológico, definindo as nossas atividades. O mais perto disso está na Lei 4.119 de 1962 (regulamentada pelo Decreto 53.464), Art.13, §1º, anteriormente referida: "Constitui função privativa do psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos: (a) diagnóstico psicológico; (b) orientação e seleção profissional; (c) orientação psicopedagógica; (d) solução de problemas de ajustamento".

Como se pode observar, o problema é que se definem (vagamente) os objetivos, mas não os meios (métodos; descrições do que o psicólogo faz de fato). Um exemplo de direção de mudança são as pesquisas que investem em produzir conhecimento no que denominamos "Psicoterapia Baseada em Evidência", ou seja, métodos de intervenção psicológica com resultados comprovados empiricamente. Nessas pesquisas, investigam-se quais são as variáveis da prática responsáveis pela mudança, e com isso é possível fortalecer, aprimorar ou modificar suas bases teóricas. Assim, instituições públicas americanas já têm contratado psicólogos que trabalham com a psicoterapia baseada em evidência, em detrimento daqueles que utilizam outros métodos com menos conhecimento sobre sua efetividade.

Discutir o que é científico no âmbito da psicologia já renderia assunto para um novo ensaio. Muitos cursos de graduação em psicologia ensinam tantas teorias quanto possível a seus alunos, simplesmente pelo fato delas existirem. Só porque uma teoria psicológica foi criada, e oferece explicação a um fenômeno, não significa que seja uma explicação científica. Não há, nos termos do Conselho Federal de Psicologia, qualquer descrição clara do que não é atividade do psicólogo. Com que base pode o próprio órgão regulador da carreira fiscalizar atividades psicoterápicas usadas como se fossem comprovadas técnicas psicológicas?. Tememos autodenominações por parte de psicólogos que se adjetivam com termos duvidosos, desde os que integram teorias que epistemologicamente não conversam entre si, aos que misturam misticismo com um quê de sobrenatural e fazem jus às críticas endereçadas à classe em geral. O leigo, com tantas adjetivações, se vê confuso e pode colocar em descrédito o trabalho do psicólogo, com razão. Se houvesse um "Ato do Psicólogo" - uma lei explicitando suas atividades, escrita com base no conhecimento acumulado sobre o quê fazemos para produzir os melhores resultados sobre os problemas dos pacientes – os psicólogos competentes teriam respaldo, os cursos universitários teriam melhores diretrizes, os estudantes teriam melhores condições de escolha e os clientes teriam mais informações para escolher um profissional e saber o que esperar do tratamento.

Ao menos, pelo Ato Médico, indiretamente os outros profissionais da saúde foram beneficiados pela listagem das profissões regulamentadas por lei, que possuem curso superior para ensiná-las. Nada foi listado sobre cromoterapeutas, terapias de vidas passadas, nem manipuladores de florais e aromas. Que se saiba quais são as intervenções sobre a saúde humana reconhecidas pela lei.

Ainda estamos longe do ideal, mas o trabalho sobre a melhora da saúde das pessoas deveria ser aquele que: (1) o profissional é apto a realizar porque estudou e consta na grade curricular do curso superior que realizou; (2) consta na grade curricular porque tem resultados comprovados e coerência teórica interna e (3) tem compromisso com a melhor resolução possível do problema de saúde que lhe compete intervir. O último item pode parecer óbvio, mas nossa cultura tem aceito trabalhos paliativos, que funcionam como "coadjuvante" de tratamentos, e que portanto um consumidor de serviços psicológicos (como o paciente) não pode cobrar pela qualidade do produto que está adquirindo (como a psicoterapia). É mais comum ouvirmos "procurei aquele tratamento porque faz bem", do que "procurei porque é o mais eficiente".

 

Referências

Associação Brasileira de Fisioterapia Cardiorrespiratória e Fisioterapia em Terapia Intensiva. (2009). Parecer Sobre a Legitimidade de Atuação do Fisioterapeuta em Ventilação Mecânica Invasiva, Ofício nº 004/2009. Carvalho, A. de C. Recuperado em 25 de fevereiro, 2010, de http://www.atomediconao.com.br/parecer_assobrafir.pdf        [ Links ]

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Decreto 53.464 de 1964. (1964, 21 de janeiro). Regulamenta a Lei 4.119, 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre a Profissão de Psicólogo. Recuperado em 25 de fevereiro, 2010, de http://www.portalsaude.net/4119_1962.htm        [ Links ]

 

 

1 Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia - gdprette@gmail.com
2
Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia - leandrosn@gmail.com
3Últimas informações fornecidas pelo site do Senado (http://www.senado.gov.br), quando da data final de formulação deste ensaio, em 5 de março de 2010.
4
Extraído de www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=93956, em 25 de fevereiro, 2010.

 

 

Anexo A – Quadro comparativo entre os projetos de regulamentação do exercício da medicina em discussão no Senado Federal

 

Tabela 1 - Quadro Comparativo entre o PLS nº 268/2002 e o SCD nº 268/20024