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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.3 no.2 São Paulo  2010

 

ENTREVISTAS

(ENT)Revista Transformações em Psicologia: Cesar Ades

 

 

Revista Transformações em Psicologia

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo

revistatransformacoes@gmail.com

 

 

Revista TransFormações: Professor, o curso de Psicologia funcionou muito tempo na Rua Maria Antônia. Como era ser estudante de Psicologia naquela época e naquele lugar?

Cesar Ades: É difícil transmitir a sensação de exaltação que eu senti, quando entrei pela primeira vez no prédio da Maria Antonia, com suas colunas gregas, era enorme a expectativa que eu tinha de ter contato com grandes professores e grandes idéias. Uma diferença entre o estudante de então e o de hoje tem a ver com o caráter especial, seleto que a Psicologia tinha. Eram muito poucos, talvez três apenas, os cursos de Psicologia no Brasil, ainda não tinha sido promulgada a chamada lei do psicólogo (lei 4119, de 1962), quem se aventurasse a querer ser psicólogo era visto um pouco como excêntrico. Além disso, o vestibular do curso, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras era bastante seletivo, eram vinte vagas e, salvo engano, foram aceito doze alunos. Tive a oportunidade de ver, há pouco, nos arquivos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, o boletim com as notas dos candidatos ao curso de Psicologia, no ano em que prestei o vestibular. Eram poucos candidatos para poucas vagas, as provas do vestibular eram orais e escritas e havia notas eliminatórias. Passei um sufoco com o exame oral de matemática, mas fui bem em filosofia, diante de uma banca com os professores José Artur Gianotti, Bento Prado e Arno Engelmann, todos depois meus colegas. Nas aulas – éramos um grupo pequeno de estudantes – havia (ou pelo menos era assim que eu sentia ) um clima de pioneirismo, eram assuntos que ainda não tinham a divulgação que têm hoje, o caráter multidisciplinar era forte, dois anos de fisiologia e de biologia, aulas de antropologia, sociologia, filosofia (um de nossos professores era o Prof. Cruz Costa, muito cético em relação à Psicologia) e estatística, também dois anos, uma matéria que assustava (e reprovava) muitos. Não cito todos os nomes porque me alongaria demais. O laboratório de Psicologia Experimental era situado na Alameda Glette, num palacete que datava do começo século passado, tínhamos por território um porão: nós nos sentávamos ao redor da mesa de seminários para as aulas e fazíamos experimentos sobre percepção e outros assuntos em salas improvisadas. Walter Hugo de Andrade Cunha nos deu Psicologia Comparada e Animal, uma das primeiras vezes em que esta disciplina era ensinada no Brasil, Dona Annita de Castilho e Marcondes Cabral, formada com os fundadores Koffka e Wertheimer, nos introduziu à Psicologia da Gestalt; a psicanálise era apresentada pelo Prof. Durval Marcondes que tinha orgulho de dizer que tinha se correspondido com Freud, o Rorschach pelo Prof. Anibal Silveira, um dos introdutores do método entre nós, a análise experimental do comportamento com o Prof. Gil Sherman (e outros professores nossos) que tinham estudado com Fred Keller, colega de Skinner.

Os alunos de hoje têm oportunidades maiores, um leque de disciplinas muito mais extenso, manuais e publicações disponíveis em grande número, um conjunto maior de professores, e se encontram diante de uma Psicologia que se desenvolveu enormemente no mundo e no Brasil. O clima é diferente, mais formal e mais de massa, a Psicologia talvez tenha se tornado uma das áreas mais ensinadas no Brasil. De acordo com um artigo excelente de Lisboa e Barbosa, na revista Psicologia: Ciência e Profissão, de 1958 a 2000 foram criados 188 cursos de Psicologia, apenas de 2001 a 2007, mais 203 cursos, principalmente cursos na área do ensino privado. Um total assustador de 396 cursos. O aluno de hoje pertence a uma comunidade muito grande, acredito que aborde as disciplinas de seu curso sem o senso de pequeno grupo, de grupo seleto que existia nos primórdios, está diante de uma ciência transbordante. Se estávamos preocupados, na época em que fiz o meu curso de graduação, com a pouca abertura do mercado de trabalho, com a pouca diversificação das áreas de atuação e com a sujeição aos profissionais da medicina, os alunos de hoje se vêem diante de um mercado competitivo e no qual a qualidade da formação pode tornar-se um trunfo essencial.

Revista TransFormações: Como era esta primeira geração de professores do curso de Psicologia?

Cesar Ades: A primeira geração de professores do curso ainda não sofria a pressão da produção de artigos e livros. O título acadêmico, quando existente, não tinha necessariamente sido conquistado através de um curso de pós-graduação. Apesar disso, creio que tivemos, nas nossas aulas de poucos alunos, a justa medida de informação, de questionamentos, de curiosidade, de conflitos e de descrença natural. Nós estudantes não concordávamos quanto ao valor do que era ensinado, curti as aulas de Biologia do Prof. Frota-Pessoa, achei o máximo a Psicologia Comparada e me diverti em observar as travessuras de um rato branco na caixa de Skinner, formei até com colegas um grupo de pesquisa para resolver questões de memória e cognição em animais. Colegas meus iam encantados às fontes da psicanálise e às teorias de Freud e de Melanie Klein, não perdiam uma das palavras, sempre pronunciadas baixinho, do Prof. Aníbal Silveira. Muitos sofriam com o rigor do Prof. Severo, questões de alternativas e dedução do acaso nas provas de estatística, números no mundo qualitativo da Psicologia. O behaviorismo provocava resistências. Alguns de nós podem ter se entediado com as aulas, mas isso ocorre em qualquer época e em qualquer universidade. De qualquer maneira, o curso de Psicologia era diverso, como é diverso hoje e disso tirei a convicção epistemológica essencial de que só se pode chegar à uma compreensão do comportamento se aproveitada a convergência das perspectivas.

Revista TransFormações: Psicologia e Política: entre professores e alunos, como se posicionavam os alunos?

Cesar Ades: O ambiente da FFCL da Maria Antonia era intensamente politizado. Eu, que tinha entrado em Psicologia com gostos filosóficos e um interesse por Biologia, uma cabeça teórica, descobri que ser estudante era engajar-se (ou então ser taxado de alienado). Lembro-me das assembléias de estudantes no pátio interno da Faculdade (que minha amiga Adélia de Menezes comparou a uma “ágora”) muitíssimo acaloradas e das vaias destinadas aos que defendiam posições reacionárias. O contato entre estudantes de diversos cursos era mais frequente e estreito, não eram os estudantes da Psicologia ou da Química ou de qualquer outro curso que se manifestavam, mas os estudantes da Maria Antonia. Em 1962, em greve, invadimos a faculdade, fiz parte da comissão de greve que se reunia diariamente na Maria Antonia bloqueada. Exigíamos maior participação dos estudantes (um terço de estudantes) nos órgãos colegiados: foi a greve do “terço”. Éramos muito sérios e conscientes da responsabilidade que nos cabia, pedíamos que fossem ministrados cursos de “realidade brasileira”, queríamos que o Brasil subdesenvolvido, gigante adormecido, acordasse e se erguesse. Esta greve foi precursora do movimento muito mais intenso que ocorreu em 1968, em plena ditadura, em que se pedia uma participação paritária nos órgãos colegiados, uma universidade mais crítica. Foi um momento de louca esperança numa liberdade maior e numa universidade sintonizada com a sociedade, a época do terrível conflito entre a Maria Antonia e o Mackenzie, dos coquetéis molotov, da faculdade incendiada, da intervenção da cavalaria, da morte nunca esclarecida do estudante José Guimarães. Eu já era professor (desde 1965) mas participei com os alunos de passeatas que saiam da Faculdade e desciam pela Consolação até o centro da cidade, onde eram dispersadas à força.

O clima de ebulição política foi descrito por Olgierd Ligeza-Stamirovski, meu aluno de graduação na época: “os corredores da Maria Antônia vibravam de vida e excitação. Discussões e assembléias sucediam-se quase diárias. O trânsito entre a Filosofia e a Economia que ficava na Vila Nova se dava através do porão e corria solto. As mais diversas orientações políticas e ideológicas eram debatidas com a participação dos professores e alunos. O barbeiro, no mesmo porão, era o centro das "fofocas". Surgiam brigas e discussões ao som da bolinha de ping-pong batida e rebatida... Hoje eu diria que nenhum de nós tinha consciência daquilo que realmente estava acontecendo. Foi ali a lareira que forjou o Brasil de hoje. Ali nasceu o futuro que hoje toma forma e nós, testemunhas, nem nos demos conta.” (Psicologia USP, 1998).

Em 1968, os alunos ocuparam o Bloco 10 onde tinha se mudado a cadeira, convocavam reuniões e assembléias paritárias do curso, causando desgosto em alguns dos docentes. A mudança dos cursos da Maria Antonia para a Cidade Universitária e o longo período de repressão desfizeram o vigor dos movimentos estudantis. Em 1979, contudo, o Bloco 10, o “B10”, tornou-se famoso quando serviu de centro da greve de professores de 1979, durante o mandato de Paulo Maluf como governador.

Revista TransFormações: Como foi a criação do Instituto de Psicologia?

Cesar Ades: A reforma universitária de 1970 trouxe mudanças na estrutura da Universidade de São Paulo, desmembrou a FFCL, colocou cadeiras e catedráticos de escanteio, vieram os departamentos. Colocou-se a questão de como doravante seria a Psicologia. A Profa. Carolina Bori defendeu a proposta de um departamento único. A idéia do “departamentão” (como passou a ser conhecido o departamento único) foi discutida e aprovada em reuniões paritárias. O problema era decidir onde iria este departamentão, se para as ciências humanas (na FFLCH) ou para as biológicas (no IB). Como podem imaginar, houve partidários ferrenhos de cada uma das alternativas. A solução veio com a proposta, defendida pelo Prof. Arrigo Angelini, de que houvesse um Instituto de Psicologia. Parece que a proposta só venceu por um voto! A criação do Instituto deu à Psicologia autonomia, tanto em relação às ciências humanas e sociais, como em relação à biologia e permitiu que alcançasse a visibilidade merecida.

Revista TransFormações: Como se deu a divisão departamental?

Cesar Ades: A criação dos departamentos (calcada sobre a divisão das cadeiras da antiga FFCL) levou a um ganho de democracia. O poder, antes concentrado nas mãos do catedrático, passou a ser exercido por conselhos departamentais com representantes das diversas categorias docentes e uma representação de funcionários e alunos. O pessoal da cadeira de Psicologia Social e Experimental estava com intenções separatistas há algum tempo e a Reforma Universitária foi um bom motivo para que a cadeira se cindisse, gerando o departamento de Psicologia Experimental e o de Psicologia Social, este no início sem membros docentes suficientemente titulados para ter autonomia. Tinha de ser dirigido, de fora, por uma comissão de tutela da qual fiz parte até que fosse contratado o Prof. Dante Moreira Leite. Os outros dois departamentos seguiram o caminho de antes.

Revista TransFormações: Você tem prós e contras em relação à manutenção desta divisão departamental hoje? Como você enxerga a experiência na Escola de Artes, Ciências e Humanidades, em que esta divisão não existe?

Cesar Ades: Apesar de sua divisão em áreas tradicionais da Psicologia (experimental, social, aprendizagem e desenvolvimento, clínica), os departamentos não constituem necessariamente unidades de teoria, de pesquisa ou de atuação, têm natureza e composição histórica. Na reunião de avaliação institucional da USP, realizada há alguns dias no auditório da FEA, o pró-reitor de pesquisa, Prof. Zago, defendeu uma perspectiva trans-departamental de pesquisa em que os núcleos se formam preferencialmente a partir da lógica de seu objeto de investigação.

A EACH representa uma experiência interessante de gestão universitária. Entre outras novidades, negou-se a replicar o modelo departamental. Valeria muito a pena analisar as vantagens e possíveis problemas de uma escola sem fronteiras (e sem competições) departamentais, como a EACH, e saber se uma organização dessas é mais ágil e mais criativa. Muitos cursos de Psicologia, nos Estados Unidos e na Europa são ministrados por um único departamento, também seriam modelos a examinar.

Revista TransFormações: Como se deu sua escolha pela carreira docente? Como foi este processo?

Cesar Ades: Quando aluno de primeiro e segundo ano, pensava que eu seria um psicólogo clínico, a maioria dos meus colegas também. Talvez seja, ainda hoje, a motivação predominante, há sempre um divã no imaginário psicológico. Logo no terceiro ano, quando cursei Psicologia Experimental e Psicologia Comparada, venceu o gosto pela pesquisa. Lembro-me com muita gratificação das reuniões noturnas que Walter Cunha, Arno Engelmann e eu fazíamos, no porão da Alameda Glette, discutindo o livro de Miller, Galanter e Pribram, Plans and the Structure of Behavior, uma proposta ao mesmo tempo cognitivista e cibernética. Formar um grupo de discussão com professores como estes certamente me contagiou. Outro grupo de pesquisa, com colegas estudantes, também foi um momento de virada. Os trabalhos de curso em que planejávamos experimentos me atraíam mais do que as sessões de supervisão de trabalho clínico, embora sempre me sentisse fascinado pela complexidade do comportamento humano, uma complexidade com a qual você somente tem pleno contato numa situação clínica.

Outra experiência determinante foi ter dado aulas de cursinho durante quase toda a minha graduação. Eram cursinhos tradicionais, agora extintos, o Santa Inês e o Dreyfus. Dava aulas de Filosofia (que era matéria do vestibular de Psicologia) e aulas de Psicologia, escrevia as apostilas do curso, tudo à noite. Com isso, confirmei um gosto por expor, explicar e, na medida do possível, motivar. Depois de terminado o quarto ano, recebi várias propostas de contratação, uma do Prof. Severo (estatística), outra do pessoal da cadeira de educacional e outra da Profa. Annita, que acabei aceitando. Era em 1965, eu ainda estava no último ano de curso de graduação, e acabei dando aula aos meus colegas. Fiz a pós-graduação já contratado.

Revista TransFormações: Vale a pena ser professor universitário hoje em dia? Quais as perspectivas para a carreira acadêmica em Psicologia?

Cesar Ades: Ser professor universitário numa instituição em que é possível, além de ensinar na medida certa (com tempo para preparar as aulas e dar apoio extra aos alunos), fazer pesquisa, orientar e dedicar-se a aprender e a descobrir sempre, é uma das profissões mais gratificantes que há. Ela vicia. Não é de estranhar que muitos de meus colegas protestam quando obrigados a se aposentarem, aos setenta anos e que continuem com orientação, aulas e pesquisas depois do prazo!

Estresse há, também, pressões fortes para produzir, uma competição, uma vida de departamento nem sempre tão pacífica quanto o desejado, etc. e tal. Há até livros sobre o estresse da vida universitária.

A carreira acadêmica passa pelo mestrado e pelo doutorado, agora bastante exigentes e com prazo mais estreito de realização. Não dá para cursar sem obter experiência e gosto de pesquisar e de lecionar. Concursos são (mais raramente do que o desejável) abertos em universidades públicas, as que proporcionam melhores oportunidades. Aceitar um emprego em uma faculdade particular é um começo possível.

Revista TransFormações: Na época da greve de 2009, quando da invasão da reitoria, você assinou um manifesto em contraposição a um outro manifesto, assinado por diferentes diretores de unidade em apoio ao uso da força policial. Como você enxerga a relação do governo do estado com a educação pública de nível superior e com da universidade com a sociedade?

Cesar Ades: Em 2007, quando começava a se prolongar a invasão da Reitoria, na gestão da Profa. Sueli Vilela, houve um momento crítico em que anunciou-se que seria permitida, no dia seguinte, uma ação policial para desalojar os grevistas. Participei naquele dia, de duas assembléias, uma de estudantes, outra de professores e fui com um grupo de colegas até o IPEN onde estava a Reitora para levar-lhe a nossa preocupação e nossa posição contrária à entrada da polícia no Campus que acabou não entrando no Campus.

Em 2009, eu estava saindo da USP quando reparei num helicóptero, depois dois, depois mais um sobrevoando a Cidade Universitária. E comecei a ouvir estouros e gritos. Tive depois, de primeira mão, uma descrição do que tinha ocorrido. Em reuniões com um grupo de diretores, decidimos assinar um documento de repúdio por não acharmos que a intervenção da polícia fosse a maneira de resolver a questão e que, ao contrário, poderia inaugurar um clima muito pouco propício e afastado do espírito universitário.

A universidade pública não é um luxo, é essencial para a formação de novas gerações ativas e competentes e para a aquisição de um conhecimento propulsor. Índices mostram que ainda estamos atrás de outros países em termos da formação de pesquisadores, há campo para o desenvolvimento científico e tecnológico, sem apoio público, pouco se conseguirá. A universidade não precisa receber diretrizes do poder público, ela tem que criá-las de dentro de sua própria evolução.

Revista TransFormações: De forma geral, qual o papel político do professor/pesquisador na universidade pública hoje?

Cesar Ades: O papel político (no sentido literal do termo) do professor universitário é pequeno. A maioria dos docentes se dedicam ao seu trabalho imediato e participam, na melhor das hipóteses, de uma política universitária localizada, a política dos cargos a serem preenchidos, das verbas a serem obtidas, dos nomes a serem eleitos com chefes de departamento. Acredito contudo que deveria ser muito maior o engajamento dos professores, tanto na frente externa dos grandes problemas da sociedade como no da organização da universidade, especialmente se pensarmos na responsabilidade de sermos uma grande universidade pública, um centro gerador de conhecimento e de práticas sociais. O título de um seminário realizado em 2009 no IEA é emblemático: “A USP precisa mudar”. Há muito mesmo que se planejar e se fazer para que a USP entre plenamente como universidade do século XXI, este é um engajamento mais do que válido.

Revista TransFormações: Você chegou a ser diretor do Instituto de Psicologia. Como você a relação de atividades burocráticas e administrativas junto com o exercício da docência – aulas, orientação – na universidade pública?

Cesar Ades: É duro conciliar administração e atividades de ensino e de pesquisa. Uma verdadeira ginástica, o dia de trabalho se torna mais longo, você começa a usar o fim de semana para terminar seus artigos ou relatórios, seus orientandos começam a queixar-se de não ter reunião com você, você reduz o tempo de preparação das aulas. É comum ouvir professores declarando que por nada no mundo participariam de qualquer tipo de administação, conselho de departamento, comissão de pós-graduação, congregação... têm coisas melhores para fazer, depreciam quem se deixa eleger ou designar. É estreito e injusto este posicionamento. A profissão de docente universitário, numa instituição pública, envolve um conjunto de atividades, a serem harmonizadas de acordo com o momento da carreira e com a necessidade do grupo, envolvem uma participação ativa e inteligente nos assuntos coletivos. A cada momento estamos sendo solicitados para sermos altruistas e contribuir construindo um contexto para boas aulas e boas pesquisas. Desde 1962, quando me envolvi na comissão de greve da FFCL, reclamando uma participação estudantil de um terço (participação esta que nunca aconteceu), me envolvi sempre, fui vice-chefe e chefe departamento, representante em conselhos, congregações e no conselho universitário, participei de comitês CAPES, CNPq e outros, fui coordenador de núcleos de pesquisa, diretor de sociedades científicas, chairman de congressos, editor de revistas, etc. Além da direção de institutos. Um engajamento necessário, cuja recompensa é ver melhorada a estrutura e sentir-se contribuindo que haja inovação.

Revista TransFormações: Você é diretor do IEA. O que é o IEA e qual o papel do IEA hoje dentro da universidade? Qual sua relação com o Instituto de Psicologia?

Cesar Ades: Sempre me perguntam: o que é o IEA? É um instituto que difere dos institutos tradicionais, como o de Psicologia ou o de Física, que dizem a que vieram no próprio nome, por isso merece explicação. O nome Instituto de Estudos Avançados tem um toque de prestígio, não são quaisquer estudos, são estudos avançados. A idéia de IEAs é antiga, se remontarmos ao famoso instituto de Princeton que recebeu Einstein e outros cientistas de gênio. Ela é muito recente, se considerarmos que foram criados IEAs em excelentes universidades do mundo inteiro nos últimos vinte anos, muitos deles há apenas dois ou três anos (o nosso IEA fará 25 anos em 2011, terá uma programação espetacular de eventos, vocês não podem perder). A UNICAMP criou um Conselho de Estudos Avançados o ano passado, irei na semana que vem participar de atividades e eventos no Instituto de Estudos Avançados Transdiciplinares (IEAT) da UFMG, também relativamente recente. O que acrescenta um IEA? De um lado, e isto vale para todos os IEAs, visa oferecer um ambiente propício para a geração de idéias originais e de alto valor científico. Não resultados empíricos (IEAs não possuem laboratórios), mas novas sínteses e idéias integradoras, um passo em direção ao novo. A convergência de perspectivas diversas é um dos princípios impulsionadores. De outro (esta é a linha que, desde o começo, foi seguida pelo IEA), lidar com questões de importância social e estratégica. Estabelece o Instituto uma interface com as preocupações sociais (nós a desejámos desde o tempo de estudantes, quando defendíamos uma universidade voltada para a “realidade social”). Temos assim, no IEA, grupos de pesquisa que trabalham a fundo e agitam questões de sustentabilidade, de mudanças climáticas, de uso dos recursos energéticos, de planejamento dos serviços ambientais, nosso observatório da inovação lida com questões de desenvolvimento industrial e tecnológico, o grupo de nutrição e pobreza analisa a situação, inclusive psicológica, das camadas menos favorecidas, etc. O lado das ciências humanas também está ativo: grupos têm atuado no campo da filosofia, da educação, da psicologia socioambiental... Tivemos na semana passada um belo simpósio no IEA sobre “diálogos interculturais” em que foram abordadas as questões do contato, do estranhamento e da empatia entre indivíduos e grupos de culturas diferentes, um assunto que qualquer psicólogo acharia relevante.

Uma de minhas metas é envolver cada vez mais, estudantes nas atividades do IEA, convido todos os que lêem TransFormações a virem! Tivemos este ano, apoiada pela FAPESP e coordenado pelo Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, um curso internacional de Dinâmica Fônica. Foi uma experiência muito produtiva, gostei de ver estudantes brasileiros e de outros países em interação e busca de conhecimento, uma visão do que poderá vir a ser um ensino universitário sem fronteiras.

Revista TransFormações: O que significa produzir e publicar conhecimento hoje? Quais as dificuldades que a Psicologia encontra nesta área? O que você acha de uma série de críticas que apontam para um produtivismo desenfreado?

Cesar Ades: A ciência brasileira atravessa um momento especial de desenvolvimento, com índices positivos de quantidade e qualidade de produção. O relatório recente da UNESCO sobre ciência inclui, pela primeira vez, um capítulo especial sobre a ciência brasileira. Vale a pena conferir. A criação da pós-graduação, o sábio investimento público em instituições de fomento, CAPESP, CNPq, FINEP e a nossa extraordinária FAPESP, têm construído, ao longo dos anos, o contexto apropriado para o progresso na produção de conhecimento. Além do conhecimento em si, descompromissado, o conhecimento gerador de tecnologia e modificador do estado de coisas. A USP desponta, em particular, como a maior universidade do país, do ponto de vista de sua contribuição científica e do ponto de vista da produção de pesquisadores, sua influência tem-se irradiado pelo Brasil inteiro, em termos da implantação de grupos e programas. Ela tem estabelecido, nos últimos tempos, convênios de grande porte com outros países como o convênio Saint-Hilaire (USP, Capes e Embaixada Francesa, com apoio do IEA) para o incentivo de cooperações científicas França-Brasil, assinado na semana passada, e o Instituto de Estudos Europeus, coordenado pela USP em associação com Unesp, Unicamp e outras universidades brasileiras e um conglomerado de universidades da União Européia, assinado hoje (29-11-11) na sala do Conselho Universitário.

A publicação em revistas conceituadas tornou-se a medida generalizada da produção acadêmica, não há mais como não publicar regular e criteriosamente. Programas de pós-graduação começam a exigir a publicação ou, pelo menos, a submissão de artigos como parte dos requisitos para o exame de qualificação ou condição para o ingresso no doutorado. Como qualquer outra ciência, a Psicologia precisa ganhar visibilidade e só a obterá plenamente mediante um movimento de publicação original e construtiva.

O que é bom pode tornar-se menos bom. A busca de conhecimento pode, sob a pressão que todo o mundo sabe qual é, virar linha de montagem e busca de estratégias multiplicadoras, nem sempre interessantes. O número de coautores pode ser inflacionado, assuntos fáceis de transformar em papers podem ser preferidos a assuntos mais relevantes, mas de processamento demorado ou arriscado, um trabalho mais longo pode ser “picado” para render mais artigos. E assim por diante. Estas estratégias e a pressa em produzir têm de ser contrabalançadas por uma avaliação da originalidade e do impacto real das descobertas para a teoria em vigor. Originalidade, inovação e excelência são às vezes difíceis de se avaliar e, especialmente, de se quantificar, mas acabam sempre gerando destaque: são as características da ciência em que queremos investir.

A curva da produção de conhecimento no Brasil é algo impressionante. Há um zero por três séculos, seguido de grandes figuras, mas ainda como faróis no escuro. Mas não há a instituição da produção de conhecimento. Tudo isto acaba ocorrendo no século XX.

Mas o modo de produção de conhecimento mudou também no cenário mundial em relação a distribuição e, consequentemente, em relação à produção. O fato de você alcançar um número muito maior de leitores, muda tudo. Tomando um certo recuo, percebemos que o que conta hoje em dia é o internacional. Até quarenta anos atrás em psicologia, o papel de destaque era dos Estados Unidos: eles é que faziam psicologia. É quem tinha o saber, as revistas, o know-how, a tecnologia, enfim tudo. Mas isso se alterou um pouco, há ainda grandes centros com prestígio, e a ciência é feita a partir disto, é uma atividade social: é feita pelos que têm produção e prestígio. Mas hoje em dia é visível, mesmo para os americanos, que as boas idéias e as boas pesquisas não são exclusividade e que é melhor trabalhar em parceria. Há lucro em produzir no “próprio quintal”, acaba-se tendo todo o prestígio. Mas a vantagem da produção em parceria é mobilizar a inteligência em outros lugares.

Revista TransFormações: Mas há aí um ponto muito importante, pois a ciência não é por excelência ou em si mesma, neutra. Há um fundo político.

Cesar Ades: Claro, mas aí entra a questão da escolha da política correta. E há dois níveis políticos. Um da política, por exemplo, de um pais com mais poder do que outro e assim por diante. E isto é muito importante. Mas existe outro campo político, que é a política do saber, em si. No qual entram fatores com o prestígio e o conhecimento. E isto conta enormemente. A ciência é necessariamente política, mas o que ocorre é que a política da cooperação está se mostrando mais vantajosa do que a política do isolamento. Uma imagem: quando um animal vai forragear, ele pode forragear sozinho. Então, tudo o que ele encontra, ele come. Mas com isto ele perde, não vai poder vasculhar uma área grande, por exemplo. Agora, se ele andar em grupo, terá que partilhar, mas a probabilidade de beneficiar-se aumenta, de tal maneira que ele opta por não sair sozinho.

Além disso, parece criar-se agora uma categoria de pesquisadores. Isto inclusive deveria ser objeto de estudos. Não mais o cientista brasileiro, ou o cientista francês, mas há uma classe internacional de pesquisadores, com seus valores, seu prestígio, sua forma de comunicação interna e sua escala de mérito. Isto faz parte de um contexto novo. Há um movimento também de acesso livre à informação. Esta difusão das pesquisas e dos centro de pesquisa incentiva a participação.

Mas esta difusão traz também uma maior competitividade: seu “produto” não será mais consumido apenas pelos moradores da vila.

Revista TransFormações: Mas a inserção maior do Brasil junto às pesquisas internacionais diz mais respeito a esta nova montagem de produção em cooperação ou à posição de maior prestígio econômico e político que o Brasil vem ocupando no cenário internacional?

Cesar Ades: Sim, há esta questão, mas não apenas isto. O fato de exportarmos grãos e ganharmos com isso de fato aumenta nossas reservas.

Revista TransFormações: ... a água

Cesar Ades: Sim, a água! Há agora também o petróleo. Mas sublinho os grãos porque por vezes não fazemos ideia de sua importância econômica. A revista britânica “The Economist” chamou o Brasil de “a fazenda do mundo”. E é claro que isto dá valor ao Brasil, mas não do ponto de vista científico. Temos instituições e produção científica, não apenas quanto ao conhecimento abstrato, também quanto ao o conhecimento aplicável. Aí se trava uma dupla batalha: de um lado, no contexto do prestígio científico: ainda existem os “papas do conhecimento”, essa batalha se tornou internacional. De outro, a questão da produção. O contexto social humano é econômico, Marx sabia disto muito bem. Desde o início da era industrial, sabe-se que a inovação leva à riqueza, a máquina a vapor é um exemplo. Há um duplo desafio, o da conquista do conhecimento e o desafio tecnológico. As empresas brasileiras ainda não se conscientizaram da importância estratégica da pesquisa. A universidade no Brasil está inserida nesta encruzilhada. Noto que as ciências humanas, e a psicologia em particular, não se posicionam firmemente em relação a isso. É necessário que a psicologia possa também se inserir nestes aspectos modernos da sociedade. Para isto, a psicologia precisa se colocar como ciência, como capaz de levar a descobertas e a uma compreensão maior do ser humano. Ela tem métodos diferentes, adaptados à realidade com a qual lida, não há porque não considerá-los científicos, mesmo que não necessariamente iguais aos de outras ciências. Defender a psicologia como ciência não é defender o positivismo, nem desejar uma base epistemológica única para as ciências.

Revista TransFormações: Mas o que é ciência?

Cesar Ades: Eu acho que ciência algo que nasce do contato com o objeto que você estuda, com todas as surpresas que isto implica e com a disposição em rever posições teóricas. Não é algo que se construa a priori. E não está contida inteira nos livros ou ensinamentos de nenhum cientista, por importante e influente que seja. A psicologia tem um campo amplo, variado e espetacular que abre perspectivas para muita pesquisa. Não se trata de querer que todos sejam behavioristas ou etólogos ou psicanalistas ou qualquer outra designação tomada com exclusividade, não tem sentido. Tanto quanto outras áreas científicas, a psicologia tem papel estratégico, mas à sua maneira. Não com patentes, talvez não como nas ciências médicas, mas ela pode sim ajudar a construir uma sociedade justa e de pessoas felizes. A psicologia, na “retaguarda” de outras ciências, deve assumir uma função social fundamental, de uma forma multi e interdisciplinar, e dentro de um contexto que não seja apenas regional. Para interagir adequadamente com outras áreas, é necessário dominar a sua própria especialidade, daí a relevante de se desenvolver a psicologia como uma ciência.

Revista TransFormações: E como você vê o papel do Instituto de Psicologia da USP nesta nova configuração?

Cesar Ades: Estamos bem, estamos em uma das melhores universidades do pais. O Instituto de Psicologia desempenha importante papel na formação de pesquisadores, tem dado oportunidade, ao longo do tempo, de centros de psicologia se estabelecerem em outros estados do Brasil.

Revista TransFormações: Inclusive pelo número de doutores formados.

Cesar Ades: Exato. Acho que a USP tem boas condições para produzir e poder formar um bom número de pesquisadores competentes nas suas áreas, penso que o Instituto de Psicologia está numa direção produtiva e promissora.

Todas as formas de geração de conhecimento podem trazer aspectos, digamos, exagerados ou menos nobres. A publicação frequente e em bons veículos é importante, mas temos de resistir ao produtivismo, enquanto obsessão, como forma de classificar as pessoas, isolada de outras características que compõem o perfil acadêmico. A cientometria pode acabar por consumir a alma do pesquisador. Ela não deve ofuscar o essencial, que é a busca de bons dados e a procura de boas idéias.

Revista TransFormações: Aí parece haver uma lógica alheia, não científica, por trás da produção de conhecimento. O espaço acadêmico seria um daqueles poucos lugares que não deveriam obedecer à lógica do capital, para voltar um pouco àquela distinção entre produção de ciência e de tecnologia. Há inclusive na própria psicologia uma série de correntes que vão de encontro a uma coincidência entre ciência e técnica, em especial aquelas com raízes no utilitarismo.

Cesar Ades: Sem dúvida. São assuntos sempre presentes, são importantes mas pouco discutidos. O uso de conhecimentos científicos não significa ceder ao utilitarismo.

Revista TransFormações: Ela seria então uma ciência de gabinete, de poucos e para poucos.

Cesar Ades: A psicologia não pode ser de poucos e para poucos, qual a ciência que se definira assim? Não cabe, contudo, entrar em uma competitividade desenfreada, como psicólogos conhecemos os efeitos negativos que uma certa competição pode gerar. Neste novo cenário, há riscos para o pesquisador. E a psicologia tem espaço aí para mostrar-se uma ciência útil, evitando os velhos dogmatismos. A grande questão é como a gente pode, tendo idéias diferentes, interagir e criar linguagens comuns ou interfaces. Acho que é possível. A gente não consegue deixar de ser otimista. (risos) apesar das evidências...

Revista TransFormações: É um vício.

Cesar Ades: É um vício... (risos)