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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.4 no.1spe São Paulo  2012

 

Artigos originais

Original articles

 

Relações entre psicologia e educação: prospecções a partir de um projeto de extensão no Núcleo de Apoio Psicopedagógico - NAPP1

 

Relations between Psychology and Education: prospects from an extension project at Center for Psychopedagogical Assistance - NAPP

 

 

Fraulein Vidigal de Paula

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

 

Nota introdutória

Neste artigo relato algumas experiências vivenciadas durante o ano de 1996, enquanto cursava o quarto ano do curso de psicologia da Universidade Federal de Juiz de Fora, UFJF, como estagiária de um projeto de extensão no Núcleo de Apoio Psicopedagógico – NAPP, da Faculdade de Educação da mesma Universidade.

Integrei a equipe do Núcleo por dois anos, envolvida em atividades de atendimento psicopedagógico em grupo para crianças, encaminhadas com queixa de variados tipos dificuldades de aprendizagem, principalmente as relacionadas com a aquisição da leitura e da escrita; grupo de pais e trabalho em parceria com os professores dentro da escola em visitas periódicas e em reuniões mensais da equipe pedagógica. O núcleo promovia atividades de extensão e de pesquisa. Além das supervisões, participávamos também de um grupo de estudo, no qual obtive aprofundamento na Psicologia Sócio-Histórica de L. S. Vygotsky, na Epistemologia Genética de Jean Piaget e teorias sobre dinâmica de grupos de Enrique Pichon-Rivière e de Kurt Lewin. O atendimento à criança era feito em duplas, quase sempre formadas por um estagiário de Psicologia e outro da Pedagogia. Foi motivador ver os grupos se formando e se desenvolvendo, assim como cada uma das crianças, tanto social como individualmente.

Neste mesmo ano foi aprovado o texto da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), além de seus impactos iniciais sobre a escola, os professores, os estudantes, a sociedade e os rumos da educação no país, tais como: a introdução da aprovação continuada em Minas Gerais, o início da organização do ensino fundamental no sistema de ciclos, a ênfase sobre a adoção do construtivismo como perspectiva norteadora do ensino. Estudamos e pensamos muito a respeito desses e outros desdobramentos em plenárias realizadas por alunos e docentes no ICHL - Instituto de Ciências Humanas e Letras. Outra questão bastante debatida na Universidade nesta época, que acredito ter influenciado indiretamente as políticas de Educação Inclusiva, foi a que girou em torno da Lei da Reforma Psiquiátrica, somente aprovada em 2001, proposta pelo deputado Paulo Delgado, também professor da UFJF. Experimentava sensações paradoxais de vivermos tempos de esperanças, de transformações possíveis, bem como de temores e decepções, e de que, de alguma maneira, participávamos de uma história em processo de escritura.

No decorrer do estágio, influenciada por este contexto, pelas leituras e pelas vivências na escola e no núcleo, das angústias delas decorrentes, me deparei com questões que fomentaram projetos de pesquisas a respeito de crenças dos professores sobre ensino e aprendizagem crenças de professores e sobre a aprendizagem da leitura e da escrita pelas crianças, desenvolvimento metacognitivo, dentre outros.

Neste sentido, pude avançar na compreensão da natureza sistêmica e multideterminada das relações entre os vários elementos do contexto intra e extra-escolar, que contribuem para o sucesso ou para o fracasso na escola, para a potencialização ou inibição do processo de aprendizado. Pude perceber, por exemplo, que uma série de preconceitos cristalizados na instituição escolar contribuem para o senso de ineficácia das crianças, inibindo sua disposição e capacidade para aprender. Lembro de algumas crianças cujo sobrenome denunciava e eliciava o estigma 'da família' dos que estavam fadados a anos de repetência nas séries iniciais. Isto acontecia quando reconhecer uma criança, cujo irmão tivesse passado pela escola com histórico de repetência, era o suficiente para cristalizar expectativas de fracasso a seu respeito também. No processo de atendimento dessas crianças pude acompanhar o quanto é difícil lutar contra este tipo estigma, arraigado na constituição da auto-estima e autoconceito destas crianças. Questões sobre as relações entre aprendizagem, fatores de contexto, auto-estima e autoconceito foram as que inicialmente me levaram a pensar na realização do mestrado, um pouco depois. Ao me envolver nas atividades do NAPP com as crianças, e a escola aprendi que para iniciar um processo de mudança efetiva é preciso mobilizar e atuar junto a toda a comunidade escolar. Porém, muitos termos e interpretações sobre os acontecimentos seriam hoje reinterpretados, como por exemplo,o uso do termo 'resistência' da professora, da família ou da criança.

Em suma, foi uma experiência muito interessante e importante na minha formação, por vários motivos. Um deles, pela compreensão mais ampla dos fatores envolvidos na dinâmica escolar produtora de (não) aprendizagens; da riqueza de se conciliar na formação do psicólogo, a prática de atendimento, à formação teórica, da supervisão, e das possibilidades que uma universidade pode oferecer para esta formação em diferentes áreas do conhecimento em diálogo com a psicologia. Este estágio representou uma guinada nos temas de pesquisa que passei a investir daquela época em diante, até o presente.

 

Relatório dos resultados obtidos e atividades realizadas no ano de 1996 no NAPP - Núcleo de Apoio Psicopedagógico2

Objetivamos neste relatório apresentar os resultados obtidos e observados, dentre o conjunto de atividades desenvolvidas pelo NAPP durante o ano de 1996, por duas estagiárias ligadas ao projeto de extensão "Atendimento a crianças com dificuldades de aprendizagem".

Como veremos a seguir, trataremos do conjunto das ações desenvolvidas naquele projeto, desde 1993, com a finalidade de estudar e compreender os interstícios das relações e fatores responsáveis pelas dificuldades encontradas por algumas crianças em dar continuidade a seu processo de aquisição do conhecimento e a aprendizagem escolar, além de delimitar e desenvolver ações capazes de contribuir de forma significativa para a reverter este quadro.

Para que se possa compreender melhor o desenvolvimento destes trabalhos, apresentaremos um breve histórico das ações e dos princípios que norteiam este projeto desde sua criação. Em seguida, apresentaremos uma caracterização do espaço psicopedagógico onde essas ações vêm sendo desenvolvidas envolvendo uma escola municipal de Juiz de Fora – MG.

Posteriormente, serão apresentados os resultados obtidos especificamente em um dos grupos de atendimento, caracterizando-o primeiramente de uma forma geral e em seguida, esclarecendo especificamente sobre o desempenho de cada um de seus membro ao longo do ano. Finalizando, faremos um resumo das principais atividades desenvolvidas e um balanço final sobre os efeitos deste trabalho ao longo do ano em questão.

 

I - Histórico do Projeto

Os resultados aqui apresentados fazem parte do trabalho iniciado em julho de 1993, com alunos de escolas públicas de 1º grau, a partir do projeto de extensão "Atendimento Psicopedagógico a Crianças com Dificuldades de Aprendizagem" da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF. Seus resultados permitiram que ele se estendesse ao longo dos anos seguintes até então, com projeção de sua continuidade para 1997.

As razões que fomentaram o início deste trabalho pautam-se na observação de que a incapacidade de algumas crianças de seguir o ciclo de aprendizagem poderia ser vencida com um trabalho paralelo que atendesse às questões que estariam impedindo o vínculo destas com a aprendizagem.

Os motivos da escolha da população a participar do projeto referiam-se, num certo sentido, à possibilidade de interferir no processo seletivo, presente em nosso contexto escolar, com relação às camadas populares, uma vez que os alunos de classes mais favorecidas têm acesso a um trabalho diferenciado e especializado para tratar de suas dificuldades de aprendizagem, o que não acontece às primeiras. Mesmo que um investimento no aperfeiçoamento docente pudesse a médio e longo prazo resolver parte desta questão, enquanto isso as crianças não devem ficar à mercê do sofrimento e da possibilidade de abandono da vida escolar.

Essas dificuldades de aprendizagem, atualmente compreendidas como resultado de diversos fatores, oferece-nos, como seus resultados mais evidentes, os altos índices de evasão e repetência na escola pública. Este último, aliás é um fator que provoca na criança a diminuição de sua auto-estima e para quem a idéia de repetência é sentida como punição ou seleção.

Neste empenho, sentiu-se a necessidade de se desenvolver um trabalho de pesquisa e intervenção psicopedagógico que compreende a instituição escolar dentro de uma visão mais totalizadora que - ao invés de identifica-se no domínio da inadaptação - procura oferecer possíveis alternativas de ação para a melhoria da prática psicopedagógica nas escolas.

Para uma melhor compreensão deste trabalho desenvolvido, devemos considerar duas possibilidades de intervenção dentro de uma perspectiva psicopedagógica: uma de cunho curativo ou terapêutico que visa a reintegração do aluno com dificuldades a situação de sala de aula e possibilitar a continuidade de um processo de construção do conhecimento; e uma segunda, a qual se encontra mais próxima desta proposta de trabalho, que pretende uma ação preventiva, objetivando redefinir procedimentos pedagógicos, as relações vinculares professor-aluno, assessorando pedagogos e corpo docente.

Dessa forma, para além de um atendimento especializado para os problemas de aprendizagem, da questão da evasão escolar, dos fatores sociais e da falta de preparo do educador, orientou-se para o conhecimento do aluno, do seu estilo de captação, simbolização do mundo e para a sua história de aprendizagem. Buscou-se também a compreensão de como a escola e a família procedem com relação a estas questões.

Neste sentido, vêm acontecendo os grupos de atendimento às crianças, e um empenho no sentido da integração com os outros pólos envolvidos na escolarização da criança: pais, professores e a escola como um todo. Todo este trabalho vem sendo desenvolvido buscando integrar as contribuições da psicanálise, da epistemologia genética, do sócio-interacionismo e da psicologia social de Pichon-Rivière que enfatiza a importância do trabalho de grupo.

 

II - Caracterização do Espaço Psicopedagógico

Durante o ano de 1996, todas as atividades desenvolvidas com os propósitos acima descritos, foram coordenadas por uma professora orientadora do Departamento de Psicologia da Educação e Orientação Educacional da Faculdade de Educação - UFJF e acadêmicas dos cursos de Psicologia e Pedagogia, compreendendo as seguintes ações:

1 - com as crianças: o oferecimento de dois horários de atendimento em grupo, com a orientação de duas estagiárias cada um e um horário de atendimento individual, dirigido por uma estagiária. Objetivou-se em ambos o acompanhamento e avaliação do processo de aprendizagem das crianças encaminhadas ao projeto, além da viabilização da construção de vínculos positivos desses alunos com a aprendizagem. As crianças em atendimentos, para as quais sentimos a necessidade de realização de um diagnóstico mais específico, foram encaminhadas, durante o período de atendimento, ao projeto de "Avaliação de crianças com dificuldades de aprendizagem" do Departamento de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas e Letras - UFJF;

2 - com os pais: além das entrevistas iniciais, realizadas na entrada da criança para o grupo de atendimento, as estagiárias procuraram manter contato com os pais, pessoalmente ou por intermédio da criança e da escola, sempre que se fez necessário para informá-los ou adquirir informações. Além deste contato individual, foi desenvolvido ao longo do ano, o "grupo de pais". Objetivou-se com este grupo, permitir que estes pais relembrassem e refletissem sobre sua passagem pela vida escolar, compreendessem o trabalho desenvolvido com as crianças e o sentido das dificuldades encontradas por seus filhos. Tudo isto para que se sentissem mais conhecedores e integrados à equipe de atendimento e à escola e para contribuírem de forma mais eficiente com a superação das dificuldades de aprendizagem de seus filhos. Estes encontros aconteceram com uma periodicidade mensal e através do desenvolvimento de dinâmicas, exercícios e brincadeiras que permitiram aos pais uma melhor compreensão do espaço de atendimento às crianças e das dificuldades de seus filhos. Fomentou também a emergência e discussão dos problemas encontrados no relacionamento e na educação das crianças. Os resultados desta experiência foram animadores. Estuda-se a possibilidade de condicionar a manutenção vaga da criança nos grupos à presença de um familiar nestas reuniões;

3 - com a direção da escola e os professores das crianças em atendimento: além do contato individual estabelecido por diversas vezes ao longo do ano, para o acompanhamento e troca de informações sobre o processo de aprendizagem da criança, aconteceu o "grupo de professores". Neste momento os professores tiveram a oportunidade de vivenciar e conhecer as atividades desenvolvidas no atendimento. Dessa forma, puderam compreender melhor o sentido deste trabalho e o processo de aquisição do conhecimento vivido por seus alunos. Com a direção da escola este contato foi também freqüente, principalmente através do intermédio da supervisora e da orientadora da escola. Nas reuniões do grupo de pais, a direção da escola também esteve presente;

4 - entre a equipe do projeto: foram realizadas reuniões semanais onde foram desenvolvidos o grupo de estudo - sobre os referênciais teóricos que têm permitido a orientação e reflexão dos trabalhos de atendimento e das questões que emergem deste trabalho -, e a supervisão dos grupos de atendimento e troca de experiências das estagiárias envolvidas no projeto.

 

2.1 - Grupo de Atendimento

Os encontros do grupo de atendimento, com o qual trabalhamos no decorrer de 1996, aconteciam às terças e quintas feiras no horário de dez às onze. Participaram deste grupo, desde o início do ano, o total de sete crianças da Escola Municipal Tancredo Neves: W, E, J.C., L.C., L (1ª série), L.E., M.V. (2ª série), além de mais duas que foram encaminhadas a partir do segundo semestre: C. (2ª série) e T.S. (1ª série). Todas estavam matriculadas entre a 1ª e a 2ª séries do ensino fundamental. Apenas quatro crianças permaneceram no projeto até o final do ano: W., J.C., E., L.C..

W. já freqüenta o grupo desde agosto/95, retornando este ano em função de suas dificuldades ainda presentes, como por exemplo, baixa auto-estima, agressividade, dificuldade em compreender o processo de leitura e escrita e pouca resistência a frustrações.

Com relação ao primeiro semestre deste ano, W. apresentou um considerável amadurecimento, demonstrando um grande desejo para aprender e apresentando-se bastante empenhado nas tarefas. Embora esteja estabelecendo um vínculo positivo para dar continuidade ao seu processo de construção do conhecimento, notamos que, especialmente com a aproximação do fim do ano, deu-nos demonstrações do que Alícia Fernandez chamou de vínculo de rejeição. Às vezes, quando solicitado para executar uma tarefa, se recusava dizendo "Eu não vou fazer não, eu não sei", "Eu sei, mas não vou fazer", "Eu sou burro tia". Notamos que este comportamento pode estar associado ao medo de nova repetência. Em certos momentos W. não se engajava nas atividades por senti-las infantis, afinal já se encontra com 12 anos.

No contexto escolar, este comportamento manifesta-se de forma diferente. Quando lhe é pedido para realizar determinada tarefa, recusa-se a fazê-la por si mesmo, respondendo na vez de outra criança - por exemplo, para avaliar sua leitura, a professora chama outra criança para ler, enquanto isso W. lê atrás do colega. Acreditamos que, por não ser a sua vez, W. reconhece que seu desempenho não está sendo avaliado naquele momento, assim não se compromete pelo que está sendo dito, resguardando-se de um possível fracasso.

Com relação ao seu processo de construção da escrita e da leitura, percebemos, no decorrer do ano, um considerável avanço - o que pode ser percebido também na escola. Ele se encontra próximo do que Emília Ferreiro denominou de "período alfabético". No início do ano, quando pedíamos que W. escrevesse uma determinada palavra, ele só identificava as vogais ( "cavalo": ao), "preenchendo" com consoantes, à medida que era questionado pela estagiária. Posteriormente, apesar de ainda omitir algumas letras, já escrevia as palavras correspondendo o som com a grafia ("cavalo": cavlo). Neste segundo semestre, percebemos um enorme salto no seu desenvolvimento tanto no que se refere aos conteúdos matemáticos - superando dificuldades com relação a quantidade, análise-síntese, associação de números, soma e subtração -, leitura e escrita. Com relação a estes últimos fatores, pudemos observar maior facilidade para se aproximar e lidar com conteúdos trabalhados.

Em vista de seu grande desenvolvimento e proximidade dos níveis exigidos para a aprovação escolar, W. foi encaminhado para um atendimento individual de apoio, concomitante ao trabalho desenvolvido no grupo. Ao contrário do que esperávamos neste trabalho individual, W. apresentou um retrocesso na leitura e escrita, voltando a soletrar as palavras, como era de costume no início do ano, sem apreender o sentido total do texto. Percebemos que W. possa ter agido desta forma por ter associado o atendimento individual com a avaliação escolar de fim de ano, feita pela supervisão da escola - onde o aluno é solicitado a ler para a supervisora um texto - para averiguar se as crianças já estão lendo.

Esse processo é muito angustiante tanto para a criança quanto para as acadêmicas que estão trabalhando com a mesma, pois há momentos em que parece que ele está indo muito bem, mas de repente, volta tudo a estaca zero. De acordo com os resultados obtidos numa avaliação psicológica, feita em parceria com a Faculdade de Psicologia, não se descarta a possibilidade de que W. tenha algum déficit cognitivo, o que pode estar colaborando para dificultar o seu entendimento do processo de leitura e escrita. Na escola, W. foi finalmente aprovado após quatro anos de repetência. Ainda assim julgamos ser conveniente sua continuidade no projeto no ano de 1997, como forma de apoio e prevenção de maiores dificuldades na 2ª série.

E. também está no grupo desde agosto/95, repetiu a 1ª série pela segunda vez, não tendo sido aprovada também neste ano. Foi encaminhada ao projeto pelas dificuldade relacionadas a leitura e escrita. Atualmente, percebemos que ela se encontra num período de transição entre as fases "silábica" e "silábico-alfabética" no que diz respeito ao desenvolvimento da escrita. Notamos uma certa insegurança e baixa auto-estima, embora tenhamos podido observar que foi na esfera afetiva que E. apresentou maiores progressos. E. troca algumas letras na linguagem escrita e falada. A professora diz nunca saber quando vai bem: " (...) de repente acho que sabe, mas depois ...". Notou também que no início do semestre E. se encontrava mais próxima de um grupo de bons alunos de sua sala de aula, tendo se afastado um pouco com a aproximação do final do ano.

E. é irmã de W., o que, num primeiro momento, nos fez questionar a respeito de sua freqüência no grupo ser no mesmo horário de seu irmão, mas como constatamos que não era possível que viesse sozinha para o atendimento, permitiu-se que freqüentassem o mesmo grupo e horário. Este questionamento se fez pelo fato de E. ser um tanto submissa ao irmão e de delegar a ele um papel de autoridade e proteção. No segundo semestre no entanto, E. chegou a comparecer sozinha ao atendimento algumas vezes, evidenciando dessa forma uma crescente independência com relação ao irmão. Este processo de independência e diferenciação com relação ao grupo pôde também ser constatado sobre outros aspectos.

No início do ano E. parecia não sustentar no grupo um lugar próprio. Seu irmão era quem respondia e a defendia perante as outras crianças. Com o tempo, E. passou a reivindicar mais autonomia no grupo.

E. é uma criança que manifesta comportamentos de carência afetiva, necessita e reivindica atenções particulares. Durante as reuniões de atendimento, dependendo da tarefa desenvolvida, não se vincula ao que está acontecendo ao seu redor, buscando executar enquanto isso, atividades alternativas. Às vezes, quando é cobrada sua atenção responde de forma aleatória, dispersa-se com muita facilidade, e quando acontece algo no grupo que não a agrada, logo se fecha.

Acreditamos que esta forma de E. se portar dentro do grupo é também ajudada pelo fato de ser a única menina. Ao contrário, na escola ela mantém uma postura diferente, enturmada em um grupo de meninas de sua sala E. não reivindica atenções especiais. Segundo a professora faz as atividades sem questionar muito. É sociável e solicitada pelas outras crianças, embora esta sociabilidade tenha se alterado com a proximidade do final do ano.

Levantamos no início do ano a hipótese de que E. necessitava de atendimento fonodiológico em função das trocas de letra que efetuava enquanto falava (Como xia, ao invés de Tia). Outra hipótese que nos ocorreu a esse respeito, é de que essas trocas se assemelhavam muito a uma fala infantil que antecede a sua faixa etária. Dessa forma, pensamos que tal comportamento poderia estar ligado a um desejo de angariar mais atenções. Com a evidência dos fatos no decorrer deste segundo semestre, a segunda hipótese firmou-se para nós como a mais provável. De uma família de 14 irmãos, E. é a décima terceira e possui uma irmã mais nova, portadora de necessidades especiais, sobre a qual lhe foram delegadas algumas responsabilidades. Suas trocas lingüísticas, que fazem lembrar uma fala infantil, podem ser uma forma de manter o lugar que teve por pouco tempo.

Sua professora nos relatou que na semana da criança desenvolveu uma brincadeira onde os alunos deveriam dizer pontos positivos e negativos a respeito de ser criança. E. levantou que só é bom ser criança, porque quando se é pequena recebe-se mais carinho, o que não acontece quando se está crescendo. Outro fato que nos chamou atenção, durante uma atividade no grupo onde as crianças contavam historinhas através de fantoches, E. pegou duas bonecas dizendo que uma tinha 8 anos (sua idade atual) e outra dois, que se chamava E., que possuía 2 anos. No decorrer de sua apresentação, suas personagens emitiam perguntas ao grupo tais como: "sou bonita? Vocês gostam de mim?". Toda ação acontecia ou era sofrida pelas duas ao mesmo tempo. Compreendemos esta representação como uma simbolização de seu conflito interno: crescer ou não crescer. De um tempo para cá constatamos no entanto um esforço de E. para corrigir seus erros enquanto fala. Soubemos também de seu interesse por um colega da escola, o que estaria reforçando seu desejo de crescer, de parecer mais mocinha.

No que tange seu desenvolvimento na área da linguagem escrita, E. já relaciona os sons com a grafia, escreve palavras simples e quando está motivada já lê apesar da lentidão e de alguns erros.

Consideramos importante evidenciar seus progressos, embora acreditemos ser necessário que E. permaneça no projeto durante o próximo ano, para podermos trabalhar aspectos específicos de suas dificuldades, uma vez que já se encontra num processo positivo em direção à aprendizagem dos conteúdos da 1ª série.

J. C., atualmente com 8 anos, está no grupo desde maio de 1995 e repetiu pela primeira vez a 1ª série. Foi encaminhado ao grupo pelo seu comportamento hiperativo, e por estar distante das exigências da 1ª série no que se refere à leitura e escrita. Seu comportamento agitado pode ser um fator desencadeador de suas dificuldades, em função de ser um dos obstáculos para manter-se atento e vinculado a uma tarefa durante todo o tempo. Às vezes dispersava-se do grupo, mas notamos que isto acontecia porque às vezes ele realizava as atividades mais rapidamente do que as outras crianças. Entretanto, mesmo nestes momentos, sabia o que se passava no grupo.

Observamos um crescente interesse de J. C. pela leitura, buscando sempre os livros infantis e até mesmo o dicionário. Gostava também de contar histórias e as desenvolvia segundo uma ordem lógica e coerente. Costumava responder em primeira mão as perguntas direcionadas às outras crianças, evidenciando sua rapidez de raciocínio. Em geral, apresentou bom desempenho principalmente neste fim de ano, tanto com relação à escrita quanto à leitura, embora às vezes ainda troque algumas letras (t e d, p e b). Sua continuidade no grupo depende em parte de sua aprovação na escola.

T.S., 8 anos, repetiu pela primeira vez a 1ª série, e participou de alguns encontros neste segundo semestre, embora não tenha permanecido até dezembro. Chegou ao grupo por uma queixa da mãe de que ele tinha dificuldades com a escrita. Observamos no entanto que o principal motivo do encaminhamento refere-se a uma dificuldade afetiva em função de problemas familiares circunstanciais.

Entendemos que seu distanciamento pode ter acontecido em função dele ter percebido que não necessitava deste apoio. As atividades eram sempre fáceis para ele, que não tinha problemas em realizá-las, mas também não mostrava muito entusiasmo. Esta observação foi confirmada pela professora quando relatou que T.S. estava acompanhando bem a turma. Além disto, seus problemas familiares estavam próximos de serem resolvidos.

L. C., 9 anos, participa do projeto desde 1995 tendo repetido a 1ª série duas vezes. Foi encaminhado por apresentar dificuldades na leitura e escrita e por ser muito tímido devido à sua baixa auto-estima. No primeiro semestre, L.C. foi encaminhado para uma avaliação psicológica. Entretanto, confundiu este trabalho com o do grupo de atendimento, tendo se ausentado deste até o início do segundo semestre. L. C. nunca foi muito freqüente no grupo.

Nesta volta, ele apresentava comportamentos que oscilavam entre os de "vítima" e os de "agressor". Especialmente no início, L. C. era sempre objeto de chacota das outras crianças por ser o mais suscetível. Assim, assumia o papel de vítima, isolando-se e esperando proteção das estagiárias. Abandonava as atividades quando percebia que não seria capaz de cumpri-las adequadamente.

Com o tempo, principalmente por ter progredido muito na escola, passou a ser agressivo, com relação aos colegas, mas principalmente com relação às estagiárias e ao material da sala de atendimento. No limite, incitamos o grupo a posicionar-se com relação ao que estava acontecendo. Foi decidido então que L. C. teria uma chance de continuar conosco se melhorasse seu comportamento, do contrário não poderia comparecer aos encontros seguintes. Foram as próprias crianças a lhe transmitir a decisão do grupo, o que ajudou L. C a mudar de atitude.

L. C. alcançou um nível bom de desenvolvimento na leitura e escrita, estando muito próximo do que Ferreiro descreveu como "nível alfabético" e tendo sido aprovado para a 2ª série. Concluímos que L. C. não necessitará permanecer no grupo durante o ano de 1997.

C., 9 anos, estava cursando a 2ª série com muita dificuldade e por isso foi encaminhada ao projeto. Sua família resistiu em reconhecer a necessidade deste apoio, o que prejudicou a freqüência da criança no grupo, levando-a posteriormente ao abandono deste trabalho. L., L.E. e M.V. não retornaram ao atendimento no segundo semestre.

2.2 - Atividades realizadas

No decorrer dos encontros com o grupo, ficou estabelecido que além das tarefas planejadas pelas estagiárias, haveriam os dias em que as crianças teriam a oportunidade de escolher a brincadeira ou atividade a ser desenvolvida, mas em ambos os casos procuramos relacionar e aproveitar o conteúdo emergente e o interesse das crianças para trabalhar os aspectos necessários para a superação de suas dificuldades. Assim, as atividades que descrevemos abaixo, tinham um objetivo explícito quando planejadas, mas no seu decorrer outros conteúdos emergiam, sendo também trabalhados.

Teoricamente podemos dividir as atividades em dois grupos: aquelas que enfatizam a leitura e a escrita, e aquelas que enfatizam conteúdos matemáticos. Dentre as atividades do primeiro grupo, podemos citar o computador - onde foram manipulados o editor de texto, o jogo de forca, quebra-cabeça e de memória e editores de desenho -; o teatro com fantoches; os livros de história lidos pelas estagiárias ou pelas crianças, cujas histórias eram recontadas oralmente, pela escrita ou através de desenhos; o jogo dos opostos, montar palavras de acordo com figuras apresentadas, bingo de letras, tabuleiro de histórias, e a mímica de animais. No segundo grupo, podemos enquadrar o jogo de varetas, o material dourado, o bingo, fecha-caixa, lego, supermercado, mankala, rami, além de desenhos, pinturas livres, entre outros.

Subjacente aos conteúdos citados anteriormente, vários aspectos foram trabalhados de acordo com a dificuldades e as necessidades das crianças, tais como: constância de percepção, discriminação visual e auditiva, lateralidade, seriação, análise-síntese, coordenação motora fina, grossa e coordenação viso-motora.

A questão afetiva, tanto no âmbito individual como grupal, também foi objeto de observação e intervenção.

 

Considerações gerais

Em vista do desenvolvimento deste trabalho ao longo do ano de 1996, pudemos chegar a algumas conclusões tanto no que se refere ao atendimento às crianças no grupo, quanto da interação das estagiárias com a instituição escolar, com os pais e com o núcleo de atendimento como um todo, através das reuniões de supervisão e grupos de estudo.

No que se refere ao atendimento às crianças, percebemos que ao longo do ano encontramos períodos em que o número de membros no grupo se torna flutuante, principalmente no início dos semestres. No decorrer dos mesmos, as presenças se tornam mais constantes e os abandonos tendem a cessar. Percebemos que estes abandonos ocasionais devem-se em geral ao desinteresse ou impossibilidade das famílias em manter suas crianças em atendimento, ou raramente, por chegarmos à conclusão de que a criança não necessita deste tipo de apoio.

Reafirmamos a validade e a necessidade de se dar continuidade a este projeto em função dos ganhos obtidos pelas crianças que permaneceram freqüentes no decorrer do ano, tanto no nível de desenvolvimento individual, quanto no aspecto social - evidenciando seus progresso com relação à socialização, respeito às regras, interação, vínculo positivo com relação às atividades e desenvolvimento afetivo em situação de grupo.

Embora o contato individual com os familiares das crianças tenha sido reduzido, os encontros com o grupo de pais vêm se mostrando essenciais para um melhor desenvolvimento do trabalho, que requer a interação de todos os envolvidos na educação da criança.

Buscamos ao longo do ano manter contato com as professoras das crianças em atendimento. O mesmo foi fundamental para acompanharmos as divergências e os momentos do processo de aprendizagem da criança nos dois ambientes. O conhecimento de sua situação em sala de aula tornou-se, em alguns momentos, fundamental para que compreendêssemos algumas atitudes, progressos e retrocessos das crianças.

Ao todo, quatro estagiárias passaram por este grupo no ano de 1996. A primeira modificação sofrida pela dupla ocorreu no segundo encontro do primeiro semestre, e uma segunda alteração foi feita no início do segundo semestre, permanecendo essa nova dupla até o final do ano.

Com relação a essas mudanças ocorridas em termos da dupla e dos membros do grupo, pudemos perceber que a cada alteração o grupo sofria uma desestruturação inicial com um posterior rearranjo em termos de papéis e padrões de relação. Percebemos ainda que, nestes momentos, as crianças tiveram oportunidade de reavaliar seu lugar no grupo ou acelerar seu processo de aprendizagem.

Ressaltamos dessa forma, que o grau de freqüência das crianças nas reuniões do grupo é um fator de fundamental importância a influenciar o seu desenvolvimento individual e do grupo. Por isso atentamos para o fato de que é necessário também haver uma certa constância na presença das crianças no grupo. Daí a necessidade de se trabalhar no sentido de obter dos pais um maior comprometimento em relação a disponibilidade de manter a criança freqüente no grupo e de criar meios para que este compromisso seja estabelecido próximo ao início do atendimento à criança .

No que se refere às reuniões com a equipe do projeto, concluímos que este foi sempre um lugar de crescimento, onde pudemos compartilhar os erros e as angústias e ao mesmo tempo repensar nossas ações, encontrar novas soluções para os problemas e dificuldades do atendimento. Tornou-se também um lugar onde pudemos nos dedicar ao aprofundamento teórico e assim enriquecer nossa prática e fomentar novas idéias.

Observamos que embora a presença das crianças freqüentes durante o ano no grupo não tenha significado para todas sua promoção na escola, devemos reconhecer que em todas pudemos observar um considerável progresso em relação as suas próprias limitações e dificuldades de aprendizagem.

 

1 Agradeço à estimada Profa. Dra. Léa Stalshimidt Pinto Silva pela supervisão formadora e a Maria Isabel Hippert, minha querida colega pela parceria e cooperação na realização do trabalho de atendimento no âmbito do estágio no NAPP/FE-UFJF em 1996.
2
De autoria compartilhada com Maria Isabel S. Hippert, também graduanda do curso de Psicologia - ICHL/ UFJF e Léa Stahlschmidt Pinto Silva Professora Orientadora - Departamento de Psicologia da Educação e Orientação Educacional da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora.