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TransFormações em Psicologia (Online)

On-line version ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.4 no.1spe São Paulo  2012

 

Artigos originais

Original articles

 

Guerrilhas contra os fantasmas da mundialização: Os Inconscientes Protestam!!!!

 

Guerrilla against the globalization ghosts: The Unconscious Protests

 

 

Marcelo Afonso Ribeiro

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

 

Nota introdutória

Este ensaio foi realizado como trabalho final de uma disciplina da graduação no ano de 1992 e conta com vários problemas formais, estéticos e estruturais, por ter não sido pensado como um artigo, mas mostra o início de algumas reflexões teórico-práticas acerca do fenômeno da globalização, tão naturalizado na contemporaneidade, e suas relações com posições distintas sobre a subjetividade, inclusive com exemplos e preocupações datadas sócio-historicamente, que retrataram um momento histórico do mundo e um momento intelectual do autor. Contou com o apoio intelectual e reflexivo de Luís Antonio Gomes Lima.

 

Prefácio

Em cima do tema da mundialização, arduamente discutido em aula, tentei construir um texto pensando como um conhecimento científico pode intervir no social; pegando como linhas mestras: a Psicanálise, representada por Freud e Lacan; a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, por Adorno, Horkheimer e Marcuse, e as cartografias do desejo, por Guattari e Deleuze, que são constructos teóricos contemporâneos respeitados e configurados enquanto tal; utilizei o conceito de "subjetividade" para nortear o trabalho.

Observamos que embora a presença das crianças freqüentes durante o ano no grupo não tenha significado para todas sua promoção na escola, devemos reconhecer que em todas pudemos observar um considerável progresso em relação as suas próprias limitações e dificuldades de aprendizagem.

Foi feita uma reflexão sobre o eixo pensamento / ação (política) / filosofia, em cima de uma prática, dentre tantas possíveis, que é a da saúde mental, meu campo de atuação na época, sem perder de vista tudo que foi exposto em aula, de extrema utilidade e indispensável para pensar, como o panorama mundial afeta o Brasil, São Paulo, as políticas de saúde mental e o trabalho na enfermaria psiquiátrica onde atuo, que é o meu microcosmos. É o macro chegando no micro.

O texto segue um caminho teórico com periódicas indagações sobre a prática que, a meu ver, deve ser contextualizada diante de um panorama mais amplo e deve conter sempre uma reflexão sobre a ação política envolvida.

 

Subjetividade: a história de uma invenção

A partir do século XVII declinou o modo de pensar aristotélico, a física de Newton nos transportava "do mundo fechado ao universo infinito" e Descartes se propunha a investigar os domínios da subjetividade - referencial central para a verdade e o conhecimento .

"A verdade habita a consciência" - proclamavam racionalistas e empiristas.

Platão é o grande inspirador e guia dessa jornada, ou pela via da razão, ou pela da experiência, da constituição da ciência: verdadeiro conhecimento e conhecimento da verdade. O mundo das idéias foi substituído pela subjetividade com o intuito de reduzir a horizontalidade dos acontecimentos à verticalidade do conhecimento, como nos preconiza Deleuze, pensador francês contemporâneo, apontando três diferentes imagens do filósofo: as duas primeiras ligadas ao eixo da verticalidade e a terceira ao da horizontalidade.

A primeira corresponde ao platonismo e aspira atingir a altura das idéias do inteligível. A segunda, valorizando a substância, a profundidade, é representada pelos pré-socráticos. E a terceira, priorizando o acontecimento, a superfície, vem guiada pelos estóicos e sofistas.

Platão via o domínio da representação, do discurso universal; discurso esse "neutro", refletindo desejo nenhum, mas sendo a realização da razão - revelação do ser em sua totalidade, numa "dialética ascendente" da particularidade sensível à universalidade das essências, essas últimas distintas das aparências. Daí vem sua definição de ciência como revelação e expressão do ser pelo discurso.

Já os estóicos tinham uma linha de pensamento oposta, onde o real só poderia ser individual, sumindo com a diferença entre realidade e aparência, mas que foi ultrapassada pelo platonismo, que prevaleceu na filosofia ocidental, com toda sua trajetória de repressão ao perdedor.

Escolhido um vencedor nesse embate, e com um germe da subjetividade brotando, eis que Descartes no século XVII, formula pela primeira vez uma questão sobre a mesma, nos dizendo o que é o pensamento, mas não quem é o Eu, expressada pela sua máxima:

"Penso, logo sou".

O cartesianismo supunha uma universalidade do espírito como fundador do cogito, onde o logos individual é pura manifestação do logos universal.

Em pleno platonismo, Descartes nos prega que a razão é a grande mediadora entre as várias subjetividades, mas não deixando passar a idéia de que o "penso" é ameaçado pelo "eu", pois a subjetividade permanece ligada a um sujeito individual.

Hegel, perpetuando o platonismo, nos diz que o desejo é responsável pela gênese humana, e que o indivíduo só se constitui enquanto tal, sendo desejo de outro desejo, via uma "certeza subjetiva". (Lacan vai beber dessa fonte mais tarde). A passagem dessa certeza subjetiva à verdade objetiva é feita pelo código, pelo simbólico, que Hegel não explica de onde surgiu. A antropogênese pressupõe o simbólico. A idéia platônica persiste.

Hume, representando o movimento empirista, tenta romper com o ideal platônico, ao afirmar que as "relações são exteriores aos termos" e que não há sujeito, sendo este mero efeito das articulações as quais as idéias são submetidas, mas peca ao não estabelecer um novo princípio e sim colocar-se a distância de qualquer um.

A fenomenologia, através de seu pai Husserl, continua reverenciando Platão ao identificar a subjetividade com a consciência, e esta sendo o lugar da verdade, mesmo com seu processo de não reduzir explicando, mas descrever extraindo. A intencionalidade continua na consciência.

A identificação da subjetividade com a consciência nos denota ser questão inabalável da filosofia moderna e herdeira de todos os novos filhos da ciência, como nos diz Althusser:

"O pré-natal é institucional. Quando nasce uma nova ciência, esta já é círculo de família preparado para o espanto, o júbilo e o batismo" (GARCIA-ROZA, 1988, p. 20).

 

Onde situar a psicanálise?

Epistemologicamente, ela não se encontra em continuidade com saber algum, mas arqueologicamente está ligada à todo um conjunto de saberes sobre o homem, que se formou a partir do século XIX, e gerou a quarta grande ferida narcísica do saber ocidental.

A primeira veio com Copérnico, ao enunciar que o homem não estava no centro do universo; a segunda com Darwin, ao dizer que o homem não era o centro do reino animal; a terceira com Marx, pois o homem deixou de ser o centro da história (que aliás não possui centro); e, finalmente, com Freud, o homem deixou de ser o centro de si mesmo, ao produzir o conceito de inconsciente, que resultou uma clivagem da subjetividade, agora dividida em dois grandes sistemas em eterna luta, onde a razão é mero efeito de superfície, a saber: consciente e inconsciente, que não são a ordem e o caos, mas sim duas ordens distintas (GARCIA-ROZA, 1988).

A psicanálise surge contemporaneamente ao surgimento do homem, graças ao capitalismo e sua exigência de controle de corpos e desejos (Tema que será trabalhado ao longo do texto e desembocará em duas saídas, uma epresentada pela psicanálise e sua estruturação via complexo de Édipo e castração, e a outra pelas cartografias do desejo de Guattari e Deleuze). Representa uma mudança significativa no saber moderno, ao tomar o homem enquanto ser singular, valorizando o discurso individual, e ao promover o descentramento do sujeito, que ocupava o lugar privilegiado da verdade e do conhecimento. A psicanálise coloca a questão da verdade do sujeito e não do sujeito da verdade.

Há uma fenda entre o dizer e o ser, que levou Lacan, reestruturador da teoria freudiana, a inverter a máxima cartesiana:

"Penso onde não sou, portanto sou onde não me penso".

O cogito deixa de ser o lugar da verdade do sujeito, para ser o lugar do seu desconhecimento, e a psicanálise se propõe a desvendar a lógica do inconsciente e o desejo que a anima . É somente a partir do lugar do Outro, dessa ordem simbólica inconsciente, que se pode falar em sujeito e em subjetividade, segundo Freud.

A subjetividade só ganha realidade psicanalítica retroativamente, isto é, a partir da entrada no simbólico. Do ponto de vista do desenvolvimento individual, o imaginário e o simbólico são seqüenciais e em termos lógicos o simbólico vem primeiro. É referido ao simbólico que o imaginário possui uma inteligibilidade psicanalítica. O caminho da psicanálise é o caminho do retorno, instaurada no sujeito pelo recalque originário, significativo apenas em função de uma retroatividade causal.

"De novo sobre o que?" (LACAN, 1988, p. 7).

Sobre algo que é muito geral e muito particular simultaneamente. Geral, pois a experiência analítica é significativa de um momento em que vivemos, sem um entendimento do que é coletivo, onde estamos imersos; e particular, pois temos de responder na experiência a articulação da demanda, a qual conferimos significação exata sem mínima distorção do sentido, totalmente inconsciente da demanda.

A verdade é sempre meio dita ou os meios ditos da verdade só adquirem sentido no dizer e, se um dizer não cai no esquecimento, esquece-se sempre "que se diga", que o inconsciente está aí enquanto sujeito e que é o particular que coloca o universal como possível.

A experiência moral coloca o homem frente a frente com uma relação com sua própria ação, que busca uma direção, uma tendência, não apenas obedecendo a uma lei articulada, não apenas vinculada a um sentimento ético de obrigação, mas fazendo surgir um sentimento de culpa, desagradável, mas necessário, que certamente tenta ser encoberto, mas que a dimensão ética da psicanálise tenta descobrir, e que Freud apontava no seu texto de 1913 "Totem e Tabu", no mito onde se assassinava o pai e se instaurava a origem da cultura, fincada sobre o mais profundo de si mesmo, inacessível, mas estruturante de suas relações com o mundo externo, numa temível dialética, a dialética do gozo e do desejo.

Freud descobre que é a perda do objeto que está na origem do estatuto do inconsciente, que representa uma verdadeira revolução no pensar humano, pois é a descoberta que não temos livre acesso ao conhecimento de nós mesmos, uma lacuna existe, preenchida, mas desconhecida. E este desconhecimento não é relacionado a um não-conhecimento, mas a um conhecimento que o sujeito não tem acesso, não consegue trazer ao consciente. O sujeito não sendo causa de si, dessa causa que o divide, dependendo desse objeto perdido, vive em função da falta, que é essencial ao homem e se chama desejo.

A causa do desejo, este objeto pequeno "a", segundo Lacan , estava ali no princípio do ato; sem ato não poderia haver princípio. No princípio era o ato, transmitido às gerações e que é da ordem do recalque originário instalando assim a castração, determinante da estruturação do sujeito. Ato esse que não pode ser imitado, é a experiência que cada um retira de sua própria experiência. No limite uma descoberta; daí as conseqüências que são derivadas.

Da transformação da energia do desejo, surge então a repressão, onde a falta está submetida a algo superior a qual a dimensão da civilização deve sua elaboração. É a origem do superego, que barra desejos e pulsões advindos do inconsciente, por serem fonte de prazer, mas, ao mesmo tempo, atentarem contra a moral civilizada que, baseada no ritual totêmico, fortalece esse superego e contém as pulsões básicas, Eros e Tanatos, reorientando as mesmas para um Princípio da Realidade contra um Princípio de Prazer, gerando um controle e dominação, via inconsciente. É nesse momento que há um excesso da repressão, que promove um desperdício de energia sem proveito e pode interditar o "pensar" . É o "Mal-Estar da Civilização".

Nesse ponto é que o inconsciente aparece como fonte de inculcação ideológica, que tentarei explicitar melhor a seguir, me utilizando para isso da Teoria Crítica - esse corpo assistemático de idéias sobre o homem e a sociedade agrupado em torno da Escola de Frankfurt, e cujos porta-vozes principais são Adorno, Horkheimer, Marcuse e Habermas.

Antes, porém, desta nova empreitada teórica, faz-se necessário e indispensável fechar o tema da relação "Psicanálise e subjetividade".

 

Psicanálise e subjetividade

Pensar a subjetividade do ponto de vista psicanalítico pressupõe um esclarecimento de certos limites teóricos, onde ela tem seu sentido próprio. Sem esses limites não há qualquer possibilidade de entendimento.

Esse limite é dado pelo Édipo, um conceito estrutural e não um acontecimento individual, que é o estruturador fundamental do fato analítico, e aonde a questão da subjetividade tem sua reverência, impedindo, por conseguinte, qualquer continuidade ou tratamento semelhante dado pela psicologia ou pela filosofia para ela.

Só há psicanálise a partir da clivagem da subjetividade em consciente e inconsciente, seus dois grandes sistemas; e só há subjetividade na realidade psicanalítica retroativamente, ou seja, a partir da entrada da criança no simbólico. O imaginário só adquire seu sentido referido ao simbólico. Lacan ainda refere que existe um "eu" imaginário e um "sujeito" simbólico.

O simbólico nos chega via a palavra e a linguagem. A prática psicanalítica intervém sobre o sintoma pela palavra. O sintoma está no lugar da palavra por uma falha na simbolização, gerando uma descontinuidade na história do sujeito. Cabe ao analista preencher um vazio interpretando a presença de uma ausência, ou seja, o sintoma, como presença, aponta a ausência da palavra; re-significando retroativamente suas experiências. Não basta a simples retirada do sintoma, sem colocar nada no lugar, pois senão você combate a ausência da palavra com a ausência do sintoma, que irá se deslocar e surgir num momento posterior. Seria como curar uma depressão sugerindo que o depressivo se mate. É tentar gerar uma vida promovendo uma morte.

A concepção da subjetividade como clivada é fundamental para a psicanálise, mas o que Freud fez não foi dividi-la simplesmente em duas partes, numa espécie de teoria da dupla personalidade, o que se configuraria numa continuidade do cartesianismo, mas sim postular uma ordem simbólica inconsciente, onde o reconhecimento de um pelo outro, não é o reconhecimento de dois desejos, mas apenas de um deles, que vai ocupar esse lugar de Outro, se afirmando como sujeito e alienando o desejo do primeiro. Essa relação dual imaginária justamente encontra saída no registro do simbólico onde, via linguagem, o desejo vai entrar numa relação de reconhecimento recíproco.

A coexistência de subjetividades autônomas seria impossível.

Cada subjetividade é uma mônada e, portanto, incomunicável. O que permite esse canal de ligação é o inconsciente, articulador das subjetividades individuais. Se, para o cartesianismo, incluindo a psicologia, o inconsciente é aquilo que impede a comunicação e a intersubjetividade, para a psicanálise ele é precondição necessária.

"‘Sujeito’, ‘subjetividade’, ‘intersubjetividade’ são termos que, no interior da teoria psicanalítica, perdem a significação que possuíam antes de Freud, para receberem uma nova que os torna irredutíveis a qualquer espaço teórico que não seja o psicanalítico. Assim como a intersubjetividade psicanalítica não tem seu fundamento no sujeito do enunciado, o próprio sujeito não se esgota em ser sujeito do enunciado. Se a subjetividade cartesiana (psicológica) é uma subjetividade unificada, identificada com a consciência e pertencente a um sujeito psicofísico, a subjetividade psicanalítica é fundamental e essencialmente uma subjetividade clivada, sujeita a duas sintaxes distintas, e marcada por uma excentricidade essencial. O inconsciente não é um acidente incômodo dessa subjetividade, mas o que a constitui fundamentalmente. Com ela, não estamos apenas longe da psicologia, mas em outro espaço de questões. Isso nada implica o reconhecimento de uma superioridade, mas a constatação de uma diferença (GARCIA-ROZA, 1988, p. 229).

 

 

Inconsciente e ideologia

Primeiramente, vale salientar que a Escola de Frankfurt, anteriormente citada, não poderia fazer sua crítica da ideologia e da cultura sem a psicanálise, mas que esta inclui, obrigatoriamente, a crítica da psicanálise. Apesar da violência metodológica, ela se faz necessária para assegurar a clareza da exposição e a força da dialética, marcada pela circularidade pela qual a crítica se faz através da crítica do instrumento que permite essa crítica.

Retomando um pouco a história, nós vemos nos primórdios do século XX onde os frankfurteanos se colocavam uma pergunta:

"Como é possível que a classe operária pense e aja contra seus próprios interesses?" (ROUANET, 1989, p. 70).

Reformulada na seguinte maneira:

"Como é possível que a maioria da população, nos países industrializados do Leste e Oeste, pense e aja num sentido favorável ao sistema que a oprime?" (ROUANET, 1989, p. 70).

A primeira pergunta remonta a um período onde a assimilação da classe operária ao sistema capitalista era incompleta, se via o proletariado como força-motriz da Revolução, correspondente à Grande Depressão dos EUA.

E na segunda essa assimilação já era vista como irreversível e a esperança revolucionária depositada em outros agentes históricos. Era a época da abundância pós-guerra.

Essa diferença histórica gerou uma verdadeira mutação teórica, pois, se num primeiro momento, a opressão era explícita, em seguida, ela se torna invisível e tem a complacência dos oprimidos que dizem sim a essa opressão que sofre dessa forma uma alteração qualitativa em seu conceito.

"A psicanálise é convocada para explicar a ação irracional da classe operária, isto é, a circunstância de que suas opções políticas contradiziam diretamente seus interesses de classe" (ROUANET, 1989, p. 71).

Existe um ponto comum entre o inconsciente e a ideologia, ambos têm lacunas em sua essência. No caso do inconsciente, ele esconde o conteúdo latente das pulsões, embora esse conteúdo possa se tornar manifesto através de mecanismos mentais, como os sonhos e os sintomas, demonstrando uma saída contra o superego repressor e perseguidor.

Já a ideologia apresenta um discurso parcial da realidade, onde a parte é tomada como o todo e passa a ser a verdade maior e única, escondendo elementos da natureza global, transformando-a em uma natureza lacunar e promovendo um ocultamento da visão global do todo.

Reich, autor das contribuições mais originais ao debate em torno de Marx e Freud, diz que:

"... a psicanálise, graças ao seu método, pôde desvendar as raízes pulsionais da atividade social do indivíduo, e graças à sua teoria dialética das pulsões, pôde esclarecer o efeito psíquico das relações de produção nos indivíduos, isto é, a formação das ideologias nas cabeças dos homens" (ROUANET, 1989, p. 37).

Ele ainda distingue a função objetiva e subjetiva da ideologia. A primeira diz respeito a uma metamorfose dos interesses das classes dominantes em sistemas de idéias, cujo objetivo é mascarar esses interesses e efetivar sua realização. E a segunda função fala de uma alteração no aparelho psíquico dos indivíduos a fim de torná-los mais receptivos aos interesses da ideologia dominante.

Marcuse comenta sobre isso, quando fala que o sistema interioriza nas consciências, não a aceitação da frustração de seus desejos, mas as próprias necessidades dos indivíduos, como valores em si mesmos. O sistema é visto como a objetivação da razão e fonte de gratificação. Deixa de existir qualquer tensão entre o desejo e sua realização, persistindo a introjeção clássica, que levava o indivíduo a desejar aquilo que o oprime, ou seja, o pai castrador, com a mesma forma, mas com um conteúdo diferente: o pai opressor é agora o sistema opressor.

Ocorre então a morte no desejo das pessoas, tornando-as cúmplices da ideologia e no seu lugar surge a necessidade cega, que aceita os mais diversos objetos que lhe são oferecidos, mas não os critica, pois o ego está enfraquecido. O resultado de tudo isso não é o ajustamento, mas sim a mímesis, ou seja, uma identificação imediata do indivíduo com sua sociedade, e através dela com o indivíduo como um todo. É a acomodação que mata os indivíduos, lhe cerceando seus próprios desejos.

Isso gera a passividade e o conformismo com a escolha de símbolos e imagens sem crítica do seu conteúdo, mas sim satisfação das necessidades cegas. As propostas de transformação são temidas e as idéias que apoiam o sistema vigente são perpetuadas. Essa é a necessidade que a ideologia tem de uma abolição do ego para que se possa haver a posse da consciência do conjunto/indivíduo (Tivemos há pouco tempo no Brasil a eleição de um símbolo político na figura do Sr. Fernando Collor, que vinha com uma promessa de ser o "salvador da pátria", numa típica satisfação imediata de uma necessidade cega e como nos comprovou a história representava o sistema vigente e, com todo seu ideário, deu o primeiro passo para o Brasil ser sugado pela mundialização, que é um dos temas que serão mais para frente abordados, ao escancarar as portas do nosso país para a entrada do capital estrangeiro; país que, até então, resistia bravamente a tal invasão).

O superego, ao censurar o inconsciente e implantar a consciência, conseguia, ao mesmo tempo, censurar o censor, pois o ato proibitivo era registrado pela consciência, não só no indivíduo, mas também na sociedade.

Com a despersonalização do agente repressor, que deixa de ser pessoal e passa a ser impessoal, enquanto um sistema, a dominação ideológica passa a ser racional e abstrata, podendo, portanto, ser alvo da agressividade do ego, responsável pela coação social sob a forma de violência interiorizada contra o ego e contra o id; e, novamente, o desejo some, tendo lugar uma necessidade cega.

A tecnologia, que poderia ser pensada como uma fonte de libertação, impede o acesso livre às suas produções e atende à interesses que não implicam necessariamente em um progresso, mas sim a um aperfeiçoamento de produtos como fonte de opressão. É a ideologia dando um ar de racional ao sistema e ocultando sua irracionalidade, o que mostra mais uma vez que, tanto a dimensão social, como a da interioridade psíquica, se incluindo o inconsciente, foram suprimidos por uma ordem que não admite qualquer divisão entre uma realidade exterior e outra interior.

Segundo Marcuse:

"... a produção de massa e a distribuição de massa reclamam o indivíduo inteiro (...) os processos múltiplos de introjeção parecem ter se ossificado em reações quase mecânicas (...) esse espaço privado foi invadido pela realidade tecnológica" (ROUANET, 1989, p. 38).

É a tecnologia como agente ideológico e dominador.

A ideologia, então, enquanto instrumento de dominação é que tem todo o seu poder e toda sua força na medida em que aqueles que são explorados participam dos benefícios do sistema e dizem sim a uma opressão invisível que não gera privação e sim superabundância de bens. Nesse sentido, a realidade deixa de ser intolerável e sua tensão com a ideologia é absorvida.

Adorno nos diz que, dentro desse movimento, a ideologia não tem mais a função de dissimular a realidade, nem criar uma promessa utópica de uma ordem futura que anule o sofrimento e, em tese extrema, defende que a ideologia se funde com o real, e como tal desaparece. A própria realidade vai se incumbir da mistificação e

"... a mentira assume a última de suas máscaras, que é a da verdade" (ROUANET, 1989, p. 71).

Nesse sentido, a tarefa de desmitificação torna-se impensável e impossível. Adorno elogia o exagero, pois quando você exagera, a verdade aparece.

Dissipadas as névoas da ideologia e afastadas as dificuldades afetivo-libidinais, o ego já poderia explorar racionalmente a realidade. Síntese concluída e contradição silenciada; a paz volta a reinar.

A resposta de Adorno e Horkheimer é que a síntese unidimensional é uma caricatura e não uma reconciliação autêntica, pois numa realidade que se confunde com a utopia e o real só pode ser visto como racional ao preço de reduzir o real ao mero existente e o racional ao razoável, o que existe é uma falsa consciência, que é

"... a incapacidade de distinguir a realidade, devido à cegueira socialmente necessária induzida pela ideologia" (ROUANET, 1989, p. 73).

Se no passado se aceitava uma realidade repressiva e o sofrimento e a alienação eram legitimados; no presente se aceita uma realidade não-repressiva aparentemente, mas estruturalmente repressora, onde a alienação é suprimida e a própria noção de sofrimento é obliterada.

Adorno e Horkheimer dizem que

"... a natureza não conhece o verdadeiro prazer, mas apenas a satisfação de carências. Todo prazer é social - tanto nos impulsos não-sublimados, como nos sublimados. O prazer tem sua origem na alienação" (ROUANET, 1989, p. 239).

Remetendo-nos novamente à psicanálise, vemos a alienação como única possibilidade ao sujeito de desenvolvimento mental, pois ele tem que passar de um estado insuficiente, onde a imaturidade mostra uma forma ortopédica da totalidade de seu corpo se mostrando fragmentada, para um estado de antecipação de integração que corresponde a sua realidade corporal. Isso se dá pela captação de uma imagem, que é virtual, mediada pelo Outro, que na metáfora é um espelho-outro.

Nessa linha, há um eu (ainda real, por isso não simbolizado), captado por uma imagem (imaginário) a partir de uma matriz simbólica (simbólico), representado pelo espelho.

Para se dissipar a falsa consciência, faz-se necessário redescobrir a realidade e não confrontá-la com a ideologia, não confrontar o ego com o real, mas sim com o virtual que esse real recalca e dissimula.

Mais uma vez a psicanálise é chamada para o auxílio diante da recusa da síntese unidimensional. Mas o que ela pode fazer? Pode tentar desvendar o irreal, que na cultura se apresenta com a máscara da realidade, e explicitar uma ordem que se apresenta como a encarnação da razão e única forma possível de conduta para tudo e todos.

Nessa tarefa, a psicanálise completaria a crítica marxista da cultura, mas qualquer hipótese de síntese deve ser descartada, pois geraria uma disciplina totalizante, repressiva e totalitária, um encontro entre palavras e coisas, que deve ser evitado. É preferível, na concepção de Adorno e Horkheimer, tentar salvar verdades relativas do que promover falsos absolutos. É a doutrina da não-identidade.

Popper, pensador das teorias do conhecimento e das metodologias ditas cientificas, já nos dizia em sua máxima, que "a única verdade científica é aquela que pode ser refutada" pelo caminho da intersubjetividade, ou seja, todo conhecimento deve ser posto à prova da discussão, senão não é válido (É por isso que a utilização de um CID - Código Internacional de Doenças deve ser bem pensada, pois se facilita a vida prática do profissional da saúde, promove uma uniformização das doenças e, por conseguinte, dos indivíduos, que passam a ser considerados como entidades semelhantes e são mais fáceis de controlar; processo, esse, que atinge a subjetividade de todos e tenta a universalização do desejo, tema que retomaremos adiante).

O pensamento está privado de uma linguagem científica e, igualmente, de uma linguagem de oposição, pois não há mais a possibilidade de uma expressão que não tenda a concordar com o discurso hegemônico, pois o mesmo está fundido à realidade. Há uma grande contradição entre a lógica do sujeito e o caos da sociedade.

"É impossível pensar o reino da liberdade quando se está imerso no reino da necessidade" (ROUANET, 1989, p. 75).

O indivíduo desaparece diante do aparelho a que serve, mas, ao mesmo tempo, se sente provido por ele; tenta dominar a natureza e acaba se naturalizando - essa é a dialética do esclarecimento, que deve ser solto do entrelaçamento que o prende a uma dominação cega, esta última, natureza não-conciliada do pensamento esclarecedor.

"O mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia" (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 15).

O esclarecimento é uma das saídas que Adorno dá contra o discurso hegemônico e a mundialização (e será melhor trabalhado mais adiante).

A naturalização dos homens não é dissociável do progresso social atingindo, hoje em dia, um estado de dominação onde o pensamento se converte em mercadoria e a linguagem em seu encarecimento, ambos presos ao processo global de produção. A ciência se fecha em si mesma, produzida por aqueles que refletem a dominação dentro de si, que censura qualquer resistência e impede a liberdade, ficando difícil pensar numa sociedade onde os indivíduos sejam livres, sendo que ela mesma é não-livre.

A crítica da ciência se torna crítica da sociedade, ideologia e realidade fundidas, gerando um movimento maníaco de suturar essa cisão que a domina sem chegar na origem da cisão desse objeto, explícito e diluído, não-esclarecido - a barbárie. Cisão, essa, traçada entre a objetividade da realidade e a subjetividade do sujeito; faz-se necessário uma abertura que não é óbvia, como previa Freud nos primórdios de sua obra, ao propor uma reforma social, via uma pedagogia analítica, onde a dinâmica social e individual seria explicitada e transmitida em prol do progresso, que não passa pela via da conscientização (Não basta o paciente saber, por exemplo, que ele tem uma depressão e que deve tentar aumentar seu campo vivencial, senão não vai melhorar; ou, então, usar campanhas do tipo "a AIDS mata, use camisinha" . Os resultados serão os piores possíveis, pois não temos controle, como nos diz Lacan, do mais íntimo do nosso ser e, inclusive, é aí que a ideologia e o discurso dominante tentam entrar).

Mas como o inconsciente e as pulsões dentro da natureza humana encontrariam uma saída para isso?

Para Marcuse, o que distingue a realização de um desejo, segundo um Princípio de Prazer, e a realização de uma necessidade cega é a recusa que o desejo, enquanto um impulso instintual inconsciente, tem em esgotar-se numa satisfação imediata, precisando construir barreiras para atingir a plena realização. E, assim, como essa recusa instintiva foi uma fonte que propiciou a dominação, poderá também erotizar as relações não-libidinais, deixando de ser um instrumento de alienação das atividades dos indivíduos e promovendo sua livre auto-realização, onde as barreiras que impedem a plena realização trariam elementos da liberdade humana. Os homens existiriam como indivíduos criando sua vida individualmente, guiados por si mesmos e gerando eles mesmos suas angústias, conflitos e frustrações, originários das lutas individuais pela gratificação absoluta realizada pelo Princípio do Prazer. E essas lutas teriam um valor libidinal, defendendo o id e o inconsciente, tanto do ego, como do mundo externo. É nesse momento que se instaura o estado de "gratificação constante", onde não sente tensão alguma, um estado sem carências, quando o sofrimento retrocede e o Princípio do Nirvana poderá se reconciliar com o Princípio da Realidade, razão e pulsão, consciente e inconsciente se unem, formando uma só força de batalha.

Essa é a visão de uma cultura não-repressiva, desvendada através de uma tendência evolutiva marginal na mitologia e na filosofia, onde se estabelece uma nova relação entre a pulsão e a razão e onde a moral civilizada é invertida pela harmonização da liberdade pulsional e da ordem: libertas da tirania da razão repressiva, as pulsões tendem para relações livres e duradouras, isto é, geram um novo Princípio de Realidade. A luta do indivíduo contra as forças repressivas é uma luta contra a razão objetiva, contra o discurso hegemônico.

A emergência de um princípio de realidade não-repressiva envolve a libertação das pulsões e uma regressão tanto psíquica, quanto social, para além do nível alcançado de racionalidade civilizada. Essa regressão reativaria estágios anteriores da libido que tinham sido ultrapassados no desenvolvimento do ego e da realidade e dissolveria as instituições em que eles subsistem. A liberação pulsional significa uma recaída na barbárie, condição necessária para a inversão do processo de civilização, da subversão da cultura e da assunção de uma nova ordem não-repressiva, se é que podemos conceber uma ordem que não implique numa alienação, numa anulação do indivíduo; essa é a utopia de Marcuse que propõe, não uma suspensão do progresso, mas sua liberação, para que o homem possa novamente ter a chance de indagar o que é bom e o que é mau, chance essa tolhida pelo capitalismo. Se a culpa acumulada na dominação civilizada do homem pelo homem pode alguma vez ser redimida pela liberdade, então o "pecado original" deve ser cometido de novo. Como nos diria Heinrich von Kleist: "Devemos comer de novo da árvore do conhecimento, para retornarmos ao estado de inocência".

 

Saídas para o "mal-estar da civilização"

Baseado na Teoria Crítica, que se utiliza da psicanálise como instrumento de crítica da cultura e exploração dos mecanismos pelos quais a dominação se interioriza e se perpetua, tentarei mostrar os dois caminhos possíveis para a libertação do homem e a conquista de uma autonomia tão almejada.

Adorno e Horkheimer sustentam a tese de que não existe possibilidade de sequer pensar um reino de liberdade quando se está mergulhado no reino da necessidade e que a melhor maneira de preservar a verdade subversiva da utopia é excluí-la do campo da reflexão, mantendo-se dessa forma a cisão entre sujeito e objeto, o que exprime, em negativo, a realidade da mutilação e aponta para uma reconciliação futura. Já para Marcuse, o advento da utopia deve ocorrer, e da sua reflexão deve amadurecer uma práxis revolucionária que efetue a junção sujeito/objeto e instaure o reino da existência pacificada.

Adorno e Horkheimer, seguindo o postulado da não-identidade, recusam a utilização da psicanálise como forma de fundar uma ordem não-repressiva, enquanto que Marcuse decifra em Freud essa possibilidade. Os primeiros vêem no discurso de Freud a inevitabilidade do antagonismo entre o particular e o universal, entre o indivíduo e a cultura, e, se admitem a reconciliação, é como em pontilhado, como uma virtualidade irrealizável, inscrita na própria contradição e que deve ser mantida na íntegra e protegida contra as tentativas de mediação histórica (Guattari vai criticar esse ponto mais para frente). Marcuse, ao contrário, vê no discurso do dualismo estrutural, a possibilidade do reencontro com a Origem, em que a tensão entre Eros e Tanatos se dissolverá na unidade final de uma ordem regida por um novo Princípio de Realidade.

"Para Adorno e Horkheimer, o logos psicanalítico é aliado da razão negativa; para Marcuse é negação, mas também perspectiva de síntese e, se funda o discurso crítico, funda também o discurso da utopia" (ROUANET, 1989, p. 200).

Essa é a perspectiva da síntese de Marcuse, que propõe a reflexão sobre um novo projeto histórico, que vai contrapor à falsa consciência, uma forma nova de percepção e a lógica da dominação. Tanto objetiva, como introjetada, a idéia de uma ordem além da dominação.

Essa é uma forma de pensar saídas para a dominação alienante da civilização, via um saber psicanalítico, aliado a uma reflexão sobre a cultura e o social, tomando como base o inconsciente freudiano e sua estruturação em cima do "Complexo de Édipo" e de uma subjetividade clivada e virtual.

Tomaremos agora um outro rumo, que também vai tentar achar saídas para a civilização, só que através da idéia de uma produção de subjetividade criada tanto em nível interno, como externo, e que pressupõe um inconsciente para além da subjetividade humana, inspirado mais no modelo da psicose do que no das neuroses a partir das quais foi construída a psicanálise. É uma tentativa de aumentar a abrangência do inconsciente, não se restringindo apenas a uma mera entidade intrapsíquica. Esse inconsciente foi postulado por Guattari e Deleuze através de um tratado intitulado de "Anti-Édipo", e nomeado de "Inconsciente Esquizoanalítico".

São as contribuições desses dois grandes filósofos contemporâneos, que nortearão o trabalho a partir de agora.

 

O inconsciente maquínico

O homem civilizado, como já foi visto anteriormente, vive imerso num mundo, que se lhe oprime, ao mesmo tempo, lhe supre e faz com que ele aja contrariamente aos seus interesses manifestos, se constituindo um avesso da racionalidade humana, que pode ser abordada de duas maneiras: ou se nega o problema e tenta reduzi-lo ao domínio da lógica habitual, da "normalidade" e da boa adaptação social; ou se encara de modo inverso e considera que esses comportamentos advém de uma lógica outra, diferente, mas ao invés de abandoná-los a sua irracionalidade aparente, vamos tratá-los como uma espécie de matéria-prima de onde se extrai elementos essenciais à vida humana, a saber, sua vida de desejo e suas potencialidades criativas.

Creio que era esse o objetivo que Freud tinha quando criou a psicanálise, ou seja, que a análise do inconsciente subsista como prática, mas que ele não fique entregue na mão de especialistas, que deteriam o domínio do seu manejo e de seu saber, mas que, pelo contrário, ele possa transitar livremente e não se torne uma propriedade privada, onde se faz necessária a permissão de alguém para visitá-lo.

Guattari e Deleuze propõem uma concepção de inconsciente um pouco diferente. Não um inconsciente de especialistas, mas de um campo ao qual cada um poderia ter acesso tranqüilamente e sem preparo especial, um território aberto de todos os lados às interações sociais e econômicas, diretamente ligado às grandes correntes históricas e, portanto, não exclusivamente centrado num eixo mestre, numa estrutura base, que permeia a vida e a ela tudo se remete, como nos proporia Lacan com a teoria do significante.

Este novo conceito de inconsciente foi denominado de "esquizoanalítico", por se basear mais no modelo das psicoses do que no das neuroses, como nos postulava Freud; e também recebe a qualificação de "maquínico", porque não está essencialmente centrado na subjetividade humana, mas participa dos mais diversos fluxos de signos, fluxos sociais e fluxos materiais. Os antigos territórios do ego desfazem-se uns após os outros e se desterritorializam, não deixando mais nada evidente no registro do desejo, porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos equipamentos coletivos, pelos especialistas de todo tipo, não dependendo que as suas problemáticas pertençam aos domínios exclusivos das ciências "psi" e nem sendo reduzidos em termos de entidades intrapsíquicas.

A missão desse novo inconsciente é a de abranger cada mais singularidades individuais e também amarrá-las mais intensamente às forças sociais e às realidades históricas. É tentar entender como viver numa sociedade transpassada em todos os sentidos por sistemas maquínicos que tendem a expropriar toda singularidade, toda vida de desejo.

Cabe aqui lembrar que o modelo freudiano do inconsciente resultava num duplo movimento: por um lado, uma repulsão das representações pulsionais e pelo outro, uma atração originada a partir de formações psíquicas recalcadas desde sempre no inconsciente: recalque primário. Nada, nesse duplo movimento, autoriza a possibilidade de processo criativo. Tudo é previamente determinado, num jogo de cartas marcadas do destino, como uma programação de computador. O inconsciente maquínico está aberto a todos percursos possíveis e:

"No lugar de uma pesada maquinaria de dois tempos - sistema de recalque-atração do inconsciente clássico -, o inconsciente esquizoanalítico faz proliferar todo um conjunto de máquinas desejantes. Agora não se trata mais de objetos parciais tipificados - o seio, as fezes, o pênis, etc. -, mas de uma multidão de objetos singulares, heterogêneos uns em relação aos outros, articulando-se em constelações funcionais nunca redutíveis a complexos universais" (GUATTARI, 1987, p. 168).

As principais características do inconsciente maquínico seriam:

a) Não se constitui enquanto sede exclusiva de conteúdos representativos, mas o lugar de interação entre componentes semióticos e sistemas de intensidade os mais diversos;

b) Seus diferentes componentes não dependem de uma sintaxe universal;

c) As relações inconscientes que se estabelecem entre indivíduos também não dependem de estruturas universais. É absolutamente essencial que nele se encontre de tudo; só sob essa condição se poderá dar conta de sua sujeição à sociedade de consumo, bem como de sua riqueza criativa e de sua infinita disponibilidade às transformações do mundo;

d) O inconsciente pode voltar-se para o passado e retrair-se no imaginário, mas pode igualmente abrir-se para o aqui e agora, ter escolha em relação ao futuro;

e) O inconsciente maquínico, evidentemente, não é o mesmo em todo o mundo, e não para de evoluir no decorrer da história;

f) A análise pode ser um empreendimento individual ou coletivo, mas os processos inconscientes não podem ser analisados em termos de conteúdo específico, ou em termos de sintaxe estrutural, mas, antes de mais nada, em termos de enunciação, de agenciamentos coletivos de enunciação, que por definição não coincidem com as individualidades biológicas.

Vale salientar que essa não é uma linha de pensamentos contra a psicanálise, mas sim a idéia de um projeto para além da constructo psicanalítico que não dá conta de uma série de questões em nível do coletivo, que também permeiam a vida psíquica das pessoas, e nos levam a repensar qual é o papel dos profissionais que tentam dar conta da psique, e que não adianta se utilizar um dado constructo teórico, se sua práxis não tiver uma postura política e ética, expressão tão em moda hoje em dia. Guattari tenta, nesse sentido, ser um autêntico filósofo da práxis e encerrarei esta parte com uma idéia sua.

"Todas essas considerações (...) me levam a afirmar que a análise do inconsciente deve se tornar assunto de todos. Significa que ela terá que renovar seus métodos, diversificar suas abordagens, enriquecer-se em contato com todos os campos da criação. Em resumo, fazer exatamente o contrário do que a psicanálise oficial faz atualmente" (GUATTARI, 1987, p. 172).

 

Micro e macropolíticas do desejo

A distinção que Guattari propõe estabelecer entre micropolítica e macropolítica do desejo deveria funcionar como algo que tende a liquidar a pretensa universalidade de modelos aventados pelos psicanalistas, e que lhes servem para precaver-se contra contingências políticas e sociais. Considera-se como óbvio que a psicanálise concerne ao que se passa em pequena escala, apenas a da família e da pessoa, enquanto que a política só concerne a grandes conjuntos sociais. Queria mostrar que, ao contrário, há uma política que se dirige tanto ao desejo do indivíduo quanto ao desejo que se manifesta no campo social mais amplo. E isso sob duas formas: seja uma micropolítica que vise tanto os problemas individuais quanto os problemas sociais, seja uma macropolítica que vise os mesmos campos (indivíduo, família, problemas de partido, de Estado, etc.). O despotismo que, freqüentemente, reina nas relações conjugais ou familiais, provém do mesmo tipo de agenciamento libidinal que aquele existente no campo social. Inversamente não é absurdo abordar um certo número de problemas sociais em grande escala, por exemplo, os do burocratismo e do fascismo, a luz de uma micropolítica do desejo. O problema, portanto, não é o de construir pontes entre campos já constituídos e separados uns dos outros, mas de criar novas máquinas teóricas e práticas, capazes de varrer as estratificações anteriores e estabelecer as condições para um novo exercício do desejo. Não se trata mais, neste caso, simplesmente de descrever objetos sociais preexistentes, mas de também intervir ativamente contra todas as máquinas de poder dominante, quer se trate do poder do Estado burguês, do poder das burocracias de toda e qualquer espécie, do poder escolar, do poder familial, do poder falocrático no casal, e até mesmo do poder repressivo do superego sobre o indivíduo.

 

Cultura: um conceito reacionário?

O conceito de cultura é extremamente reacionário, pois separa as mais diversas atividades semióticas em esferas as quais os homens são remetidos e tais atividades são isoladas e padronizadas, ou melhor, capitalizadas para o modo de semiotização dominante, ou seja, totalmente cortadas de suas realidades políticas. São os modos de produção capitalísticos, que funcionam através de uma sujeição econômica, via capital, mas também uma sujeição subjetiva, via cultura (GUATTARI & ROLNIK, 1992).

"É a própria essência do lucro capitalista que não se reduz ao campo da mais-valia econômica: ela está também na tomada de poder da subjetividade" (GUATTARI & ROLNIK, 1992, p. 16).

A cultura de massa é elemento principal e indispensável da "produção de subjetividade capitalística", pois produz indivíduos normalizados e articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, de valores, de submissão, que não é explícita, é dissimulada. Guattari defende que esses sistemas não são internalizados, o que implica uma idéia de subjetividade como algo a ser preenchido, como nos preconizava Adorno e Marcuse anteriormente, mas que simplesmente ocorre uma produção de subjetividade, e não somente uma subjetividade individuada, mas também uma subjetividade social que pode se encontrar em todos os níveis da produção e do consumo. E mais ainda: uma produção de subjetividade inconsciente.

Contra essa idéia de uma máquina de produção de subjetividade, Guattari diz que é possível desenvolver "processos de singularização", onde é recusado todo modo de telecomando e manipulação, fazendo surgir modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular. Uma singularização existencial, que recuse o instituído para construir, num movimento constante.

Essa produção de subjetividade capitalística é muito poderosa e totalizante, fazendo com que qualquer resquício de identidade cultural singular possa aflorar, sem que seja englobado pelas dimensões de semiotização do campo social normalizado. A situação, por exemplo, é idêntica no caso da produção de um indivíduo que perdeu suas coordenadas no sistema psiquiátrico, ou no das crianças antes de sua integração ao sistema de escolarização. Elas brincam, articulam relações sociais, sonham, mas uma hora acabam entrando no campo de semiotização dominante, onde tem hora para tudo: agora é hora de brincar, agora é hora de sonhar, agora é hora de associar livremente, e assim por diante. (Um exemplo disso é a proteção do paciente numa instituição psiquiátrica).

Segundo Guattari & Rolnik (1992), a produção dos meios de comunicação de massa, a produção da subjetividade capitalística, gera uma cultura com vocação universal, orientada pelo CMI (Capitalismo Mundial Integrado), que visa uma industrialização da produção de cultura tentando homogeneizar o campo social; é o processo de mundialização, que agora está assolapando o solo brasileiro, após a abertura das portas para o capital estrangeiro, mas, felizmente, o Brasil é um país resistente e vive numa cultura transformacionista, onde os processos de singularização ainda são possíveis. No entanto, o que se omite com a mundialização é que o campo social que recebe a cultura não é homogêneo.

Cabe aqui novamente uma crítica ao CID (Código Internacional de Doenças) e ao DSMR (feito nos EUA), pois ambos visam uma uniformização dos indivíduos através da produção de um campo semiótico, que não é criado no campo social onde é utilizado, mas sim num outro, e que provavelmente está à serviço do CMI. É necessária uma reflexão em cima dos vieses ideológicos e políticos dessa unificação, pois nem sempre uma solução tão maravilhosa e de uma facilitação prática sem igual, é a melhor. Existe o argumento que com a uniformização as pesquisas e as terapêuticas podem avançar melhor, mas será que é um avanço ou uma simples forma de controle? Quem está por trás da ciência? Ou melhor, ao que serve a ciência?

Retomando um pouco de história, vemos no começo uma criação dos bens de consumo de forma artesanal e transmitido de geração em geração. Na Primeira Revolução Industrial, a técnica ainda era separada da ciência, ou seja, o executar e o pensar eram dissociados; existiam dois poderes paralelos, a saber, a técnica e a ciência, que negociavam para a produção. Com a invenção da engenharia (Segunda Revolução Industrial), técnica e ciência se unem, e se inventa de propósito pela primeira vez; começa a produção em série e o uso do conhecimento é represado, só servindo ao discurso hegemônico. Surgem os grandes projetos, tanto políticos, como sociais. Com o advento da Terceira Revolução Industrial, o próprio conhecimento é que é barrado, ou seja, a ordem do real, fundido à ideologia, se apresenta como a encarnação da razão, dando origem a civilização, eternamente legitimada pela ciência, que é na modernidade o principal AIE (Aparelho Ideológico do Estado) junto às escolas, como nos prega Althusser. Fazemos coisas achando que são novas, mas que são mera perpetuação do discurso hegemônico, do modo de semiotização dominante, que penetra no nosso inconsciente. A ciência é a revelação do mundo contemporâneo. (ROUANET, 1989).

O próprio campo semiótico da medicina discrimina a psiquiatria, pois, esta, não tem ainda uma verdade uniformizada, de fácil controle e previsão e, justamente, essa não-uniformidade da psiquiatria, assim como da psicologia, é que lhes designa um caráter nobre e autêntico; uma possível tentativa de singularização. Tentativa, essa, que colocaria em prática um tipo de processo de subjetivação diferente do capitalístico, com seu duplo registro de produção de valores universais por um lado, e de "reterritorialização" em pequenos guetos subjetivos, por outro lado (GUATTARI & ROLNIK, 1992).

Os processos de singularização subjetiva colocam em prática a produção de uma subjetividade que não vai confinar as diferentes categorias sociais (minorias) no esquadrinhamento dominante do poder e podem se configurar em um ideal de objetivo para a atuação (em saúde mental).

Concluindo, não existe uma cultura popular e uma erudita, como nos é exaustivamente outorgado, mas só uma cultura: a capitalística; que é sempre etnocêntrica e intelectocêntrica (ou logocêntrica), "pois separa os universos semióticos das produções subjetivas" (GUATTARI & ROLNIK, 1992, p. 23).

 

Subjetividade: linha de montagem no capitalismo

A Escola de Frankfurt nos preconizava a ideologia como marca da dominação, Guattari ao invés de ideologia, prefere falar sempre em subjetivação, em produção de subjetividade; sempre de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida. Subjetividade enquanto produzida por instâncias individuais, coletivas e institucionais, o que não implica absolutamente em voltar aos sistemas tradicionais de determinação do tipo infra-estrutura material - superestrutura ideológica, ou então, pela oposição clássica sujeito individual e sociedade.

A produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção, mas reforçando, apesar de se encontrar no seio daquilo que Marx chama de infra-estrutura produtiva, é apenas um caso de superestrutura dependente das estruturas pesadas de produção das relações sociais. No sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional (mundialização) e a produção de subjetividade é muito mais importante do que qualquer outra (Marx não se apercebeu disso). Um exemplo prático é a força da produção de subjetividade capitalística no Japão, onde há uma paixão pela produção, que promove relações de complementaridade entre as diferentes categorias sociais, impede qualquer aliança de classe e consegue com isso um perfeito controle social, mas também uma afirmação da economia japonesa no mercado mundial, o que nos mostra claramente que a subjetividade se produz tanto ao nível dos opressores, como dos oprimidos.

"Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística - tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam - não é apenas uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identificações com pólos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI & ROLNIK, 1992, p. 27).

A corrente freudo-marxista não dá conta desses problemas do desejo em escala coletiva, apesar de constituir subsídio para tal empreendimento. Para Guattari, a subjetividade coletiva não é o resultado da somatória de subjetividades individuais, mas sim do confronto com as maneiras com que, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária.

Ele prefere falar em agenciamento coletivo de enunciação, ao invés de sujeito, porque não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada. A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação, ou seja, os processos de subjetivação, de semiotização, não são referidos nem a agentes individuais, nem a agentes grupais, pois eles são duplamente descentrados e implicam em um funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal (sistemas maquínicos, econômicos, tecnológicos, etc.), quanto de natureza infra-pessoal (sistemas de percepção, de afeto, de desejo, de representação etc.). Nesse sentido, a subjetividade é plural, polifônica e não conhece nenhuma instância dominante de determinação que guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca.

Mas como a subjetividade é produzida na linha de montagem do capitalismo?

O CMI produz uma dupla opressão, a saber:

a) Há uma repressão direta no plano econômico e social, pelo:

"controle da produção de bens e das relações sociais através de meios de coerção material externa e sugestão de conteúdos de significação" (GUATTARI & ROLNIK, 1992, p. 39).

b) Instala-se na própria produção de subjetividade:

"uma imensa máquina produtiva de uma subjetividade industrializada e nivelada em escala mundial tornou-se dado de base na formação da força coletiva de trabalho e da força de controle social coletivo" (GUATTARI & ROLNIK, 1992, p. 39).

As máquinas ganham uma importância cada vez maior nos processos de produção, tudo está cada vez mais adjacente aos processos maquínicos e também a produção de subjetividade capitalística se torna maquínica, assegurando um controle cada vez mais despótico e desterritorializante. Essa produção pelo CMI é serializada e normalizada e centralizada sobre uma imagem que promove um consenso subjetivo referido e codificado por uma lei transcendental que se propaga rapidamente como uma peste, que deve ser combatida em nível profilático, senão vai exterminar qualquer possibilidade de um processo de singularização, tentando igualar tudo através de grandes categorias unificadoras, que, em última instância, tentam desesperadamente a universalização do desejo, o que significa que não se reprime mais o desejo singular, mas se extingue qualquer possibilidade dele sequer existir.

Toda criatividade no campo social e tecnológico, tradições milenares, pretensas identidades culturais residuais, entre tantas coisas, são contaminadas ou esmagadas pelo CMI, que usa da culpabilização, da segregação e da infantilização como meios de conseguir seus fins.

Os procedimentos de culpabilização consistem em tecnologias onde é necessário sempre uma imagem de referência que nos cobra uma singularidade de máxima consistência. Só que isso é impossível de ser realizado de forma individual, pois uma posição implica sempre um agenciamento coletivo. Um mínimo vacilo dessa exigência de referência nos abre um buraco, gerando um sentimento de desabamento do nosso próprio direito de existência. Nesse ínterim, o indivíduo se cala e cede à pressão da subjetividade capitalística, produzida sistematicamente por todos os sistemas de modelização.

A segregação é uma função da economia subjetiva capitalística, diretamente vinculada à culpabilização, e se reflete de forma clara nas ciências da psique, como a psiquiatria e a psicologia, através da sujeição econômica, ou seja, um capital muito aquém dos esforços despendidos, e uma sujeição subjetiva, por exemplo, pela falta de status de um médico psiquiatra, dentro da medicina como um todo e pela constante depreciação e ocultação do papel do psicólogo, realizada por certos programas de televisão e certas revistas, contando logicamente com a conivência do profissional convidado, que ou é opressor, ou é oprimido, ou aceita o que está acontecendo e numa posição, diria perversa, age segundo o modo de semiotização dominante rege, ou, então, não se dá conta do que está acontecendo, mas se mantém numa posição semelhante a anterior, por não conseguir estabelecer um foco de resistência devido ao encobrimento ideológico a que está submetido. Em compensação, aqueles que se vêem dominados por um crescer de reivindicações de singularidade subjetiva são meramente excluídos e ficam sem chances.

É o coquetel subjetivo contemporâneo a que o mundo atual está submetido, ou seja, de um lado temos uma tendência à homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade (mundialização), que é do reino da inclusão; e do outro lado, uma tendência heterogenética de reforço da heterogeneidade e da singularização de seus componentes (minorias), que é do reino da exclusão.

Para completar, a outra função da economia subjetiva capitalística, é a infantilização, que pressupõe uma relação de dependência com o Estado, pois tudo deve passar ou ser mediado pela ordem capitalística, que é projetada na realidade do mundo e na realidade psíquica. Pensam por nós, organizam por nós a produção e a vida social; situação semelhante a um paciente internado em uma enfermaria psiquiátrica, que não consegue (Psicose), ou não quer (Perversão) entrar no sistema de significação dominante, pois tem uma percepção do mundo inteiramente diferente da dos esquemas dominantes - o que não significa dizer que a natureza de sua percepção dos valores seja caótica. Nesse rumo, será a psicose uma doença, ou ela só é doença porque vai de encontro a essa ordem capitalística? E o delírio e a alucinação, seriam uma pressão para entrar nesse sistema de significação dominante? A psicose seria, nesse caso, um foco de resistência dos mais poderosos e, diante desse perigo eminente, condenada à exclusão eterna. Será que Fidel Castro em Cuba e Lula aqui no Brasil, estariam também condenados a esta triste exclusão?

Guattari, comentando sobre o trabalho com psicóticos, nos diz:

"É somente com a condição de que seja desenvolvida em torno dela (psicose) uma vida coletiva no seio da instituição apropriadas, que ela pode mostrar seu verdadeiro rosto, que não é o da estranheza e da violência, como tão freqüentemente ainda se acredita, mas o de uma relação diferente com o mundo" (GUATTARI, 1992, p. 162).

Os adultos é que são infantis; as crianças conseguem resistir por um curto período de tempo, até sucumbirem à produção de subjetividade capitalística, se infantilizando, então.

A ordem capitalística produz os modos das relações humanas até em suas representações inconscientes, que não aceitam outra ordem possível de mundo, porque partem do pressuposto de que esta é a ordem do mundo, e qualquer tentativa de mudança comprometeria a vida social organizada (Um pouco como já preconizava Adorno ao postular uma fusão entre a ideologia e a realidade).

Vale salientar que a produção maquínica de subjetividade pode trabalhar tanto para o melhor, como para o pior. O melhor seria a criação, a invenção de novos universos de referência; e o pior seria a mass-mídia, a mundialização embrutecedora, que leva ao caminho da universalização do desejo e do controle total das máquinas desejantes.

Três pontos básicos da teoria de Guattari e Deleuze devem levar à reflexão sobre nossa práxis:

a) Reconhecimento da produção da subjetividade capitalística como indústria de base do sistema capitalista;

b) Sensibilidade aos pontos de ruptura desse complexo industrial da subjetivação, onde se localizam muitos dos movimentos sociais atuais;

c) Reconhecimento de tais pontos de ruptura como focos de resistência política da maior importância, já que atacam a própria raiz do sistema.

 

Revoluções moleculares: o atrevimento de singularizar

O termo singularização é usado por Deleuze e Guattari para mostrar todo e qualquer processo de quebra no campo da produção do desejo, é o movimento de protesto dos inconscientes contra a subjetividade capitalística, através da afirmação de outras formas de ser. São subjetividades dissidentes, fora da poderosa fábrica de subjetividade seriada, e produtora de algumas seqüências da linha de montagem do desejo. E, a cada vez que os inconscientes protestam, a raiz desse sistema, que tem por base a padronização do desejo, sofre um golpe.

Tais processos de diferenciação permanente, que se chocam contra os fantasmas da mundialização, são focos de resistência consideráveis e Guattari os batiza de "Revoluções Moleculares".

Geralmente esses processos se fazem presentes pelas minorias e pelos movimentos sociais - enfim, desvios de todas as espécies, que além de irem contra esse processo geral de serialização da subjetividade, ainda tentam produzir novos modos de subjetivação originais e singulares, e, a partir do momento que esses grupos adquirem a liberdade de viverem seus processos sem sempre se remeterem ao poder global, sem serem mediados, eles vão ser capazes de ler sua própria situação e ter um mínimo de capacidade criativa.

Mas a apropriação da produção de subjetividade pelo CMI esvaziou todo conhecimento da singularidade e tenta desesperadamente dominar qualquer espécie de ruptura, tentando encaixá-la em algum registro de referência dominante. A engenharia genética, nesse sentido, serve à dominação, pois impede o diferente de emergir com seu ideário de seleção genética, além de se configurar como uma espécie de segregação, que no futuro pode escolher quem poderá nascer e quem não poderá, manipulando assim a raça humana.

São exemplos de Revoluções Moleculares:

- rádios livres e o movimento de redemocratização dos meios de comunicação;

- contestação do sistema de representação política;

- questionamento da vida cotidiana;

- reações de recusa ao trabalho em sua forma atual.

A via de viabilização das Revoluções Moleculares é a crítica da onipotência da produção de subjetividade capitalística, pois isto deixa o indivíduo totalmente livre para essa produção, em uma busca dos próprios modos de referência, suas próprias cartografias, a fim de criarem brechas no sistema de subjetividade dominante, inventando uma nova práxis. Há dois tipos de atitudes possíveis:

- Normalizadora, que consiste em ignorar ou aceitar os agenciamentos que podem construir seus próprios modos de subjetivação e integrá-los ao nosso cotidiano;

- Reconhecedora, que possibilita uma articulação e uma mudança efetiva da situação, ao reconhecer os traços comuns dos modos individuais de subjetivação.

É a escolha ética crucial, ou seja: ou se objetiva, se reifica, se cientificiza a subjetividade, ou pelo contrário, tenta-se apreendê-la em sua dimensão de criatividade processual. Esse deveria ser o verdadeiro caminho de uma análise, onde um método cartográfico multicomponencial se somasse a um processo de singularização e possibilitasse uma reapropriação dos meios de produção da subjetividade, que leva em conta muito a postura ético-político do analista, no sentido de reconhecer tudo o que foi dito até o presente momento.

Diante disso, vale esclarecer que não há objetividade científica alguma no campo da psique, nem uma suposta neutralidade na relação. Para o profissional dessa área, tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os agenciamentos de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano micropolítico.

Guattari vai definir uma análise como:

"Complexificação desterritorializante essencialmente precária, porque constantemente ameaçada de enfraquecimento reterritorializante, sobretudo no contexto contemporâneo onde o primado dos fluxos informativos engendrados maquinicamente ameaça conduzir a uma dissolução generalizada das antigas territorialidades existenciais" (GUATTARI, 1992, p. 31).

 

Algumas considerações finais

"A psicologia ou a psiquiatria, quer dizer que são várias, e mais do que uma diferença de campo ou de teoria, método ou técnica, trata-se de uma diferença de escolha ética que cada um faz em seu trabalho. Ambas trabalham com a subjetividade, e o ponto importante é se encaram a subjetividade como um todo já dado ou em seu movimento permanente de constituição.

As diferenças destas posições não são meramente especulativas ou ideológicas: está em jogo uma posição ético-política no pensamento e na existência; está em jogo a relação que se tem com a processualidade, se estamos ou não abertos a ela, se queremos ou não guardar um pé nela, ou se, ao contrário, negamos esta dimensão, por medo do outro, do caos e do tempo;

a) Quando abertos, nossa subjetividade é efeito de um processo de recriação permanente: processo de subjetivação, trabalhado por uma heterogênese, onde a individuação é um processo que se faz como efeito do encontro com o outro; nosso pensamento, nesse caso, funciona como instrumento que permite o mergulho no invisível movimento e a criação de sentido e de forma, que viabiliza a atualização do movimento. É um pensamento a serviço da expansão da vida. Homem da ética.

b) Quando fechados, nossa subjetividade se imagina como uma unidade fechada em si mesma, miragem de uma homogênese, construída como armadura defensiva contra o outro e o tempo; esta armadura é feita de um conjunto de fantasmas que criamos para nos apaziguar do susto que as turbulências causadas pelo encontro com o outro geram em nós: os fantasmas trazem uma explicação para esta experiência que a consciência não alcança, dão uma ilusão de consistência onde sentimos que corremos o risco de desabar. O pensamento, nesse tipo de subjetividade, funciona fechado sobre si mesmo ou num sistema conceitual, partindo e desembocando no conceito, e quanto mais bem feita esta construção, melhor funciona a defesa; só usamos a consciência para pensar e não o inconsciente. É um pensamento a serviço da defesa contra a vida: pensamento-armadura do homem da moral.

A sociedade moderna e contemporânea se sustenta, entre outros, num certo tipo de subjetividade que é a do homem da moral. A luta política hoje não é apenas ideológica e pela conquista do direito à cidadania, questões que passam por um trabalho pela consciência; a luta política hoje é também ético/estética: uma subjetividade de cidadão e ideologicamente "correta" e progressista pode estar fechada ao outro, em seu potencial de heterogênese. Respeitar o outro em sua diferença não implica necessariamente em abertura para a alteridade do outro, ou seja, para o seu efeito de heterogênese em nós. Mas esta abertura não é óbvia, depende só de consciência ou conscientização:

a) Esta abertura depende de suporte para experimentarmos o medo que o outro e o caos nos geram, experiência de ordem afetiva e não representativa; experimentamos este medo para superá-lo, ao nos darmos conta de que o outro, o caos e o tempo, não são fatais, mas que, ao contrário, fatal pode ser não reconhecê-los e não buscar sentido para sua passagem;

b) Esta abertura depende também de podermos investigar os fantasmas que construímos para explicar situações produtoras de turbulência, agora que não precisamos mais deles; identificar nossos fantasmas e lutar contra seu poder devastador, ou seja, tomar posse de nossos fantasmas para anular seu poder sobre nossa subjetividade.

Por estas razões, concluo dizendo, que é da maior importância, tanto para os indivíduos, quanto para a sociedade, todo e qualquer trabalho que funcione a favor das forças de criação na subjetividade, todo e qualquer trabalho que colabore com o desaparecimento do homem da moral e a afirmação do homem da ética. Por estas razões é que eu dizia que as psicologias, as psiquiatrías, se definem e se distinguem pela escolha ética implicada nas práticas de cada um" (ROLNIK, 1992, p. 3).

Com as palavras de Rolnik (1992), concluo esse ensaio sobre os fantasmas da mundialização indicando que a psicologia é... a psiquiatria é... a terapia ocupacional é... o serviço social é... o que cada um de nós faz.

 

Referências

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