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TransFormações em Psicologia (Online)

On-line version ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.4 no.1spe São Paulo  2012

 

ARTIGO

 

Um sonho de final de mestrado ou a transferência e o saber na institucionalização da psicanálise

 

A graduation ending dream or the transference and the knowledge in the institutionalization of psychoanalysis.

 

 

Daniel Kupermann1

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 


Resumo

Pretende-se, nesse ensaio, problematizar as relações que se estabelecem ao longo do processo histórico de institucionalização da psicanálise, entre a transferência e o saber. Modus operandi da clínica psicanalítica, a transferência produz efeitos bem mais complexos e de difícil manejo quando instalada no âmbito das instituições psicanalíticas, ou seja, nas relações tecidas entre os psicanalistas e seus pares, mestres, teorias e rituais que compõem o processo de formação psicanalítica - o que o autor ilustra por meio da análise de um sonho referente ao processo de elaboração do seu mestrado. Nesse contexto, assiste-se à produção de sintomas presentes no campo psicanalítico que configuram autênticos núcleos de resistência à própria psicanálise.

Palavras-chave: História da psicanálise, psicanálise - instituição, transferência, saber, sonho.


Abstract

In this essay, it is intended to problematize the relationships, established throughout the historical process of institutionalization of psychoanalysis, between transference and knowledge. Modus operandi of the psychoanalytic clinic, transference produces much more complex effects and of difficult management when installed in the scope of psychoanalytic institutions, that is, in the relationships weaved among psychoanalysts and their peers, masters, theories and rituals that compose the process of psychoanalytic formation. The author leans on the analysis of a dream that is referred to his ongoing master’s program dissertation to demonstrate the way transference is likely to trespass the strict limits of the therapeutic relationship, reverberating in the psychoanalytic field. In this context, it is experienced the production of symptoms that configure authentic cores of resistance to psychoanalysis itself.

Keywords: History of psychoanalysis, psychoanalysis - institution, transference, knowledge, dream.


 

 

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Nota Introdutória

Esse ensaio foi escrito a partir do convite recebido pelo Movimento Freudiano - Escola Brasileira de Psicanálise para uma participação em uma jornada de cartéis que adotara como tema "O mal-entendido", e foi baseado na pesquisa então em curso para a dissertação de mestrado realizada junto ao Departamento de Psicologia da PUC-Rio, entre 1989 e 1992.

Relê-lo, depois de quase vinte anos, provocou o mesmo estranhamento que sentimos ao olhar uma foto da juventude: um certo orgulho pelo élan vital que salta aos olhos - que aqui mereceria o nome de atrevimento -, porém cabelos demais. Talvez devido a essa mescla de sentimentos ambivalentes o texto tenha permanecido inédito.

Na ocasião, escrevi como abertura da conferência: "Gostaria de agradecer ao Movimento Freudiano o convite para participar como conferencista desta jornada de cartéis. O convite me deixa ainda mais feliz pelo fato de a Escola ter sido um lugar onde eu pude me aproximar de Lacan, à minha maneira". Provavelmente, a expressão "à minha maneira" foi inspirada no epitáfio imaginado pelo tenista Jimmy Connors para a sua tumba, declarado durante uma entrevista, do que tomei conhecimento, na época, em um livro de François Roustang (1980): "Ele nasceu em 1952. Morto em ... à sua maneira". Como se pode perceber, cada escrito era efetivamente um caso de vida ou morte.

Naquele contexto, minha inserção universitária foi crucial para que eu pudesse me interessar pela psicanálise e tornar-me psicanalista. Minha intuição, uma vez formado em psicologia, fora a de que a pesquisa universitária me permitiria escapar dos efeitos indesejáveis das cumplicidades presentes na maior parte das instituições psicanalíticas. Não deixei, no entanto, de participar, posteriormente, de uma instituição psicanalítica à qual, até hoje, permaneço vinculado. E ainda que o foco atual dos meus interesses de pesquisa resida nos questionamentos mais estritos acerca da clínica na contemporaneidade, as idéias aqui expostas estão presentes no meu posicionamento frente à psicanálise.

O convite recebido de Transformações para publicar esse ensaio - que me foi transmitido por Pedro Ambra e Thiago Abrantes - me alegrou muito. Primeiro, porque é uma revista editada (e lida) pelos alunos de graduação e de pós-graduação do Instituto de Psicologia da USP, hoje os meus interlocutores privilegiados. Sendo um dos responsáveis pelas disciplinas de introdução à psicanálise no curso de graduação em psicologia, dedico grande parte do meu investimento na transmissão da psicanálise aos alunos do IPUSP, e é atraente a idéia de que me conheçam quando eu estava em um momento do meu processo de formação intelectual mais próximo ao que eles mesmos estão atravessando. Além disso, acredito que esse escrito possa despertar o espírito crítico que sempre acompanhou minha relação com a psicanálise - muitas vezes encontro jovens estudantes fascinados com as manobras de uma teorização que pretende dispor de todas as respostas para as perguntas que, assim, nem chegam a ser enunciadas.

No entanto, para além da pretensão de que esse escrito possa ser inspirador, há também a aposta de que o reconhecimento dos seus excessos contribua para o necessário trabalho de desidealização das mestrias, condição para a apropriação de um saber afinado à moda de cada leitor.

 

Mal-entendido e ilusão

O objetivo deste ensaio é o de preparar o terreno, através da ferramenta "história da psicanálise", para a hipótese de que, a partir de seu movimento de "retorno a Freud", e através de um efeito de "mal-entendido", Lacan se torna, efetivamente o último freudiano em sua Escola2. Assim, ele se inscreve no desafio lançado aos psicanalistas pelo próprio Lacan (1967) no final da "Proposição de 9 de Outubro de 1967", como o segundo ponto de fuga no horizonte da psicanálise em extensão: o estudo da instituição psicanalítica, e da relação que o psicanalista com ela estabelece.

O sentido de mal-entendido residiria no apontamento da emergência de uma verdade (Lacan, 1980b). Ao formular que a psicanálise explora o mal-entendido, Lacan sugere que o mal-entendido é um instrumento de acesso a uma verdade. O mal-entendido não seria, portanto, um fim em si, mas um meio pelo qual a psicanálise pode e deve exercer a sua ética. Apontar o mal-entendido estaria no horizonte da ética psicanalítica. Seria preciso, portanto, deixar-se traumatizar com o mal-entendido. Arrisco, assim, um primeiro postulado: se a psicanálise não explorar o mal-entendido, é o mal-entendido que irá explorar a psicanálise. Afinal, a palavra que tem o dom de unir pode também servir apenas para enganar e separar.

Em "La chose feudienne ou sens du retour à Freud en psychanalyse", parece haver um mal-entendido: Lacan afirma ter recebido da boca do próprio Jung a informação de que Freud teria lhe dito, ao avistar o porto de Nova York, na célebre viagem de 1909 para a América: " eles não sabem que lhes estamos trazendo a peste" (Lacan, 1955/1966, p. 403). A imagem da psicanálise como a peste vem sendo utilizada, no campo psicanalítico, como uma máxima freudiana incontestável. No entanto, encontramos em Roudinesco (1988, p. 196) que apenas Lacan parece ter tido acesso a esta informação. Freud nunca empregou o termo, e Jung, em sua autobiografia, conta que Freud teria dito simplesmente: "eles ficarão surpresos ao saberem o que temos para lhes dizer". Surpreendente. Lacan cria uma ficção mais verídica que a própria história, para indicar três "verdades": 1) a verdade da própria mensagem freudiana - "o sentido do retorno a Freud é um retorno ao sentido de Freud" (Lacan, 1955/1966; p. 405); 2) que Freud teria se iludido quanto aos efeitos que a psicanálise promoveria na América; e 3) que havia, portanto, uma outra "peste" a ser combatida, a "doença americana" chamada psicologia do ego, que retornava do outro lado do Atlântico de "primeira classe". Assim, Lacan nos convida a uma nova viagem transatlântica, uma vez que "as coisas chegaram a tal ponto no movimento psicanalítico que a palavra de ordem retorno a Freud significa uma inversão" (op.cit., p.402); quer dizer, é preciso retornar ao ponto de partida. Não por acaso, o escrito de Lacan é baseado em conferência pronunciada em Viena.

Essa exploração de um mal-entendido, bem-vinda, denuncia como o mal-entendido pode explorar a psicanálise: pela sua captura por uma lógica da ilusão. No caso, a ilusão adaptativa, a ilusão do conforto, a ilusão egóica. Esse perigo sempre esteve presente no campo psicanalítico, e Freud não se cansou de combatê-lo - seja na forma da ilusão medicalizante discutida em "A questão da análise leiga" (Freud, 1926/1980); da ilusão religiosa, tratada em "O futuro de uma ilusão" (Freud, 1927/1980); ou da ilusão política, como indicado em "A questão de uma Weltanschauung" (Freud, 1933[1932]/1980). Grosso modo, pode-se dizer que a ilusão por excelência, para Freud, é a religião, cuja estrutura todas as outras formas de ilusão obedecem, ou seja, o complexo paterno ativo.

A ilusão no sentido freudiano seria, portanto, um efeito possível do mal-entendido, e a peste representaria a psicanálise que Freud desejava preservar - a psicanálise iconoclasta, underground, o terceiro grande golpe do narcisismo humano. A psicanálise cujo destino era o de provocar oposição e despertar rancor. Em A história do movimento psicanalítico, Freud (1914/1980) escreve que sua descoberta o havia colocado no grupo dos homens que perturbaram o sono do mundo, junto a Copérnico e Darwin. E o sono do mundo, então perturbado, é decorrente do entorpecimento promovido pela ilusão egóica de que eu é o senhor da sua casa (Freud, 1917/1980). Assim, a ilusão teria a constituição de um sonho, um sonho acordado... do qual não se quer despertar.

Na ilusão, a problemática paterna está no centro da questão, o que vai nos remeter, por um lado, à transferência, e por outro, no que se refere às sociedades psicanalíticas, às vicissitudes da transferência na história da institucionalização da psicanálise. Afinal, Lacan não pretendia que a IPA (International Psychoanalytical Association) havia se transformado numa igreja ou num exército?

Mas é possível viver sem o sono da ilusão? Feitas essas considerações, peço que o leitor faça, por um breve período, dos meus interesses os seus próprios, para uma breve análise de um sonho. Trata-se do sonho de um psicanalista.

 

Sonho

Ele estava em um auditório onde teria início uma jornada de cartéis, na qual iria apresentar um trabalho. O auditório estava lotado, havia uma varanda onde ele conversava com algumas pessoas enquanto aguardava a abertura do evento. Uma mulher vai ao microfone, dá início formal à jornada, e chama o primeiro trabalho, anunciando, para sua total surpresa, o seu nome. Ele é tomado de pânico, porque não tinha o texto que iria apresentar. Em nenhum momento havia cogitado a possibilidade de ser o primeiro a falar. Resolve ir ao microfone e explicar a situação, sugerindo que alguém o substituísse, trocando seu lugar no programa. Ele não está pronto para falar e, assim, teria tempo para providenciar o texto. Se ninguém quisesse "ajudá-lo", faria a apresentação de improviso. Uma jovem aceita a troca, para seu alívio. Mas um conhecido "mestre", diretor de uma também conhecida Escola de psicanálise, que estava sentado frente a algumas anotações vestindo um paletó de terno remendado de fita durex, o olhava com reprovação, o que lhe causou medo, angústia e culpa. O mestre era também um velho, era Lacan. Uma outra pessoa está apresentando seu trabalho, mas todos estavam conversando.

Para a análise desse sonho, dois pontos chamam de imediato a atenção: o fato de eu não estar preparado para apresentar meu trabalho, e o paletó remendado com durex do mestre/ chefe de Escola e/ou Lacan, junto ao seu olhar de reprovação. Comecemos pelo paletó.

No dia do sonho, eu escrevia em folhas de um bloco de formulário contínuo um capítulo da dissertação de mestrado que, na época, vinha desenvolvendo. Ao terminar de escrever uma folha, puxei-a bruscamente de forma a destacá-la de bloco, conseguindo assim rasgá-la ao meio. Não me ocorreu outra solução senão remendá-la com a fita durex que tinha sobre a mesa. Tinha assim uma dissertação de mestrado em elaboração remendada com durex. O mestre, assim como depois Lacan, veste um paletó de terno remendado com durex. Ele veste o saber e a autoridade que lhe fazem mestre, o equivalente, mas minhas associações, ao mestrado.

Eu não estou pronto para falar, esqueci o texto em casa. Por um lado, ainda não defendi a dissertação e a espera me angustia. Mas no que se refere à jornada de cartéis, a pergunta que me ocorreu foi: como apresentar um trabalho crítico referente ao lugar e à autoridade de Lacan no campo psicanalítico, em uma instituição que se quer lacaniana? Mesmo que o tema do evento se refira ao mal-entendido, abrindo, no meu entender, uma brecha para a reflexão crítica, eu podia imaginar que a minha abordagem seria bem diferente daquela que, regra geral, se encontraria. Vou ao microfone me desculpar, e pedir que alguém me substitua. Isto evidencia a culpa, e ao mesmo tempo a solução de compromisso encontrada em adiar a apresentação, ou em improvisar, o que de toda forma diminui a responsabilidade. Alguém me substitui, e isto me alivia. Mas o olhar reprovador do mestre, que vem em seguida, é terrível, suportável somente pelo disfarce do alívio anterior. Este olhar me causa medo, e também culpa. Lacan, com seu inseparável paletó, junto a seu representante terreno, o conhecido mestre, encarnam o Outro para apontar que eu não posso falar, uma vez que não estou pronto e não tenho o texto - não tenho o saber. Não estou autorizado (não tenho paletó) e não tenho garantias. Só me restava parafrasear o grande improvisador Groddeck e dizer: "eu sou um analista selvagem"!

Interrompo aqui a análise do sonho. O que nos interessa na sua interpretação é sublinhar a dimensão transferencial que não é redutível apenas a um sujeito singular, mas ao próprio campo psicanalítico. O sonho em questão operaria em quatro níveis distintos (cf. Mezan, 1990): como revelador dos conteúdos inconscientes do meu psiquismo singular, que se fosse apenas por isso não mereceria ser contado; como amostra de um processo universal de elaboração onírica; como foco para o qual convergem meus interesses intelectuais e afetivos, indissoluvelmente ligados; e, finalmente, como ponto de interseção entre uma análise e a psicanálise, que indica os efeitos de retorno do processo de institucionalização da psicanálise - sua história, sua difusão - sobre a própria psicanálise, ou ainda, como ponto de interseção entre a "psicanálise em intensão" e a "psicanálise em extensão", do qual os sonhos e as análises dos próprios analistas são testemunhos privilegiados.

Não há um analista para o qual se transfere neste sonho. A transferência vai para Lacan, para o conhecido mestre, para o campo lacaniano, enfim, para um pai ideal aí produzido. A pergunta que proponho é: o que faz um analista sonhar com a própria psicanálise? A resposta provisória está no fato de que a psicanálise se institucionaliza e se transmite via transferência (cf. Kupermann, 1991). Vejamos o que pode nos esclarecer acerca disso o período freudiano da história da institucionalização da psicanálise.

 

Freud e a Institucionalização da Psicanálise

Desde quando os analistas sonham com a psicanálise? O primeiro relato de que os psicanalistas sonhavam com Freud, não apenas como analista, mas como líder do movimento psicanalítico, encontramos em "De l'historie du mouvement psychanalytique", apresentado por Ferenczi (1911/1968) no 2º Congresso de Psicanálise, em Nuremberg, contento a proposta de fundação da Associação Psicanalítica Internacional. Freud havia incumbido Ferenczi de elaborar a proposição, garantindo a presidência do movimento psicanalítico para Jung.

Ferenczi, antes de propor a criação da instituição, faz um exame crítico das patologias das associações. Trata-se de uma análise edipiana, na qual a estrutura das associações é compara à da família, com um presidente no lugar do pai e a hierarquia entre os membros reproduzindo a hierarquia entre irmãos. "Amor e ódio pelo pai, afeição e inveja entre irmãos" (op.cit., p. 167), resume, profetizando com dois anos de antecedência "Totem e Tabu" (Freud, 1913[1912-13]/1980). Como essas idéias ainda não estavam suficientemente difundidas, Ferenczi comprova que sua analogia não é forçada:

Uma prova dentre outras é fornecida pela regularidade com a qual nós mesmos, analistas selvagens e desorganizados, condensamos em nossos sonhos a figura paterna com aquela de nosso chefe espiritual (Ferenczi, 1911/1968, p. 166, grifo nosso).

Segundo esse testemunho, Freud, além de chefe espiritual, ocupava o lugar de pai no imaginário dos analistas da primeira década, condição transferencial suficiente para fazer da psicanálise uma instituição (Enriquez, 1971).

Efetivamente, a fundação simbólica do movimento psicanalítico coincide com a publicação de A interpretação de sonhos, a partir de um convite à transferência formulado por Freud antes de apresentar a análise de seu sonho modelo, o sonho da injeção de Irma. Lemos:

Agora devo pedir ao leitor que faça dos meus interesses os seus próprios por um período bastante longo, e mergulhe juntamente comigo, nos menores detalhes de minha vida, porquanto uma transferência (Übertragung) dessa natureza é peremptoriamente exigida por nosso interesse no significado oculto dos sonhos (Freud, 1900/1980, p. 113, grifo e parênteses nossos).

A formação da Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras, em 1902, a partir de um convite pessoal feito por Freud a quatro médicos de Viena, foi a concretização, em ato, deste convite à transferência.

A partir de 1907, Freud inicia o contato com os estrangeiros que deram novo rumo ao movimento psicanalítico. Dentre eles, Jung terá papel predominante, seja antes do rompimento com Freud, seja depois. Freud inicia, então, um movimento de "transferência" do centro do movimento psicanalítico para Jung, que culminou com a criação da Associação Psicanalítica Internacional em 1910.

As razões para a criação da IPA e para a "nova ordem" suíça podem ser encontradas na própria versão freudiana da História. A liderança oprimia Freud que, além disso, via uma desvantagem sobre a sua pessoa, "por causa das manifestações de admiração e de ódio provenientes das diferentes facções" (Freud, 1914/1980, p. 56). Assim, Freud julgou poder resolver a transferência maciça que recaía sobre si "transferindo-a" a Jung. Como se dissesse: "a partir de agora não transfiram mais a mim, transfiram a Jung". Além disso, é conhecida também a influência da questão judaica nesta escolha. Jung, um não-judeu, seria mais indicado para promover a aceitação da psicanálise em uma Europa anti-semita. Esse gesto de Freud indica um certo temor da transferência já na origem do movimento psicanalítico, que mais tarde vai ser explicitado com a ameaça de um Lacan excessivamente carismático na psicanálise francesa.

A escolha de Jung como líder mostrou-se logo desacertada, o que exigiu de Freud um movimento de retorno transferencial a si mesmo, que caracteriza o primeiro movimento de retorno a Freud na psicanálise - o segundo foi, justamente, o de Lacan. Este retorno se deu em dois tempos: a criação, em 1912, de um comitê secreto ao redor de Freud, cujo objetivo maior era a proteção da causa a partir da destituição de Jung; e a publicação, em 1914, de "A história do movimento psicanalítico", considerada a "bomba" lançada por Freud contra Jung, e também Adler. Em "A história...", Freud reivindica o lugar de fundador, aquele que sabe o que é psicanálise e o que são tolices que com ela nada tem a ver. As palavras são contundentes: "(...) a psicanálise é criação minha (...) acho justo continuar afirmando que ainda hoje ninguém pode saber melhor do que eu o que é a psicanálise (...) e o que seria melhor chamar de outro nome qualquer" (Freud, 1914/1980, p. 16).

A última etapa da institucionalização da psicanálise no período freudiano foi a padronização da formação, impulsionada pelo Instituto de Berlim. Autores da história da psicanálise apontam dois motivos principais que teriam conduzido a esta padronização, e que passaram ao status de recalcado da história (Gay, 1989; Roudinesco, 1988; Safouan, 1985): o primeiro foi o trauma do rompimento com Jung. Acreditava-se que com uma formação mais rígida, outros rompimentos seriam evitados. O segundo foi o câncer de Freud, descoberto em 1923, o que na época causou muita angústia entre os psicanalistas, uma vez que todos pensavam que Freud não resistiria muito tempo. A ambivalência perante a morte do pai primevo teria levado os psicanalistas a uma "atuação" que proibia a todos e a qualquer um o lugar do mestre. Nesta leitura, a padronização da formação é considerada uma repetição do mito de "Totem e Tabu", onde o vazio deixado por Freud torna-se um lugar falsa e neuroticamente proibido, e onde o desejo de reconhecimento expresso reativamente nos ataques à análise leiga colocava-se como um álibi para o crime cometido por todos.

Percebe-se, assim, que é possível elaborar uma história da transferência no processo de institucionalização da psicanálise em seu período freudiano. O último movimento dessa história, referente ao "assassinato do pai", inaugura a padronização da formação psicanalítica e o início do período dura lex, sed lex3 da psicanálise, e que não haja exceções! As sociedades psicanalíticas tinham evoluído da barbárie de "Totem e Tabu" para a bem comportada psicologia de grupo. O circo estava montado para o surgimento de Lacan, furando a lona do silêncio sobre as questões transferências.

 

Situação da psicanálise em meados do século XX: o candidato "normal"

Em 1953, em Londres, é realizado o 18º Congresso internacional de psicanálise. Esta data é muito significativa para a história de Lacan no movimento psicanalítico. Neste mesmo ano, junto a Lagache e Dolto, Lacan fundava a Sociedade Francesa de Psicanálise, a partir de uma dissidência da tradicional Sociedade Psicanalítica de Paris. Neste congresso discute-se, pela primeira vez de forma sistemática, os problemas da formação psicanalítica, que não eram poucos e, paralelamente, em termos políticos, começava a ser decidido o destino de Lacan.

Como indicado acima, Ferenczi havia feito a primeira referência aos sonhos dos psicanalistas com Freud e a psicanálise. Para ilustrar a situação do movimento psicanalítico em meados do século XX, o trabalho de Maxwell Gitelson (1954), "Therapeutic problems in the analysis of the ‘normal'candidate", é exemplar, e mostra como a psicanálise havia adormecido de vez os psicanalistas, tornando-se uma poderosa Weltanschauung. Gitelson analisa o surgimento do chamado candidato "normal" a psicanalista. Nostalgicamente, lembrava que, ao contrário da antiga geração - que era composta por pessoas excêntricas, neuróticas, criativas, pouco conformadas e de espírito pioneiro -, os candidatos a analista da nova geração (seu relato se refere primordialmente aos Estados Unidos) eram jovens médicos bem adaptados aos ideais do american way of life que não apresentavam conflitos psíquicos, ou seja, eram excessivamente "normais", buscando a formação psicanalítica pelo status profissional que proporcionava. Gitelson explica que esses candidatos foram criados em uma "atmosfera psicanalítica" na qual a psicanálise tinha se tornado "respeitável e normal" aos olhos da cultura vigente, produzindo uma camada adicional de resistências ego-sintônicas pela influência de leituras, aulas, análises-selvagens difundidas na cultura, ou seja, por uma maneira "psicanaliticamente correta", para usar uma expressão atual, de ser, de aceitar e de entender os fatos da vida. Gitelson escreve:

O que pode passar despercebido é que esta aparente aceitação dos fatos da vida pode ser na verdade o sinal indicativo dos efeitos de resistências de caráter baseados na submissão e na aquiescência à autoridade. Parece de fato, que uma das imagos inconscientes da autoridade é agora o próprio campo psicanalítico (1954, p.178, grifo nosso).

Conclui-se: o campo psicanalítico havia se tornado superegóico, responsável por uma nova ilusão onde o complexo paterno é atualizado por um modo "psicanaliticamente correto" de ser.

Apesar da nostalgia dos velhos tempos, Gitelson, que era analista didata e que seria futuro presidente da IPA, só conseguia ver essas manifestações como externas à "boa" psicanálise, e não como uma produção do próprio sistema de formação e da teoria que o sustentava na época. Foi Michael Balint (1948), herdeiro dos questionamentos ferenczianos ao establishment psicanalítico, o autor que deu o pulo do gato na compreensão desse fenômeno, percebendo que a formação psicanalítica tornara-se superegóica, fazendo com que os candidatos à psicanalista fossem "excessivamente respeitosos aos seus analistas", ou seja, demasiado reverentes. E, claro, os "não-normais" não passariam na seleção prévia e, se passassem, seriam submetidos a uma "intropressão de um superego" que os tornaria, por fim, obedientes. A outra saída possível - bastante penosa - seria abandonar definitivamente o projeto de tornar-se psicanalista.

No meio deste burburinho Jacques Lacan, analista didata da Sociedade Psicanalítica de Paris, afirmava sua diferença - o que era efetivamente proibido na IPA - ao utilizar a chamada técnica das sessões de duração variável com seus analisandos, que em breve passaria a ser chamada técnica das sessões curtas. Lacan havia se comprometido, desde 1951, a respeitar as normas da formação psicanalítica, mas não cumprira sua promessa. As negociações com a direção da IPA duraram dez anos, Lacan foi acusado de ser carismático e destituído do título de analista didata, o que culminou no rompimento de 1964 e na fundação da Escola Freudiana de Paris.

 

Do retorno a Freud ao último freudiano

Após cerca de dezessete anos de funcionamento a Escola fracassou, nas palavras do próprio Lacan, e seu fracasso se deve, sobretudo, ao efeito de um mal-entendido. Vejamos dois momentos em que o mal-entendido em questão é revelado. O primeiro pode ser atribuído a Serge Leclaire, cuja importância para o movimento lacaniano é inestimável. Em março de 1977, Leclaire escreve a Lacan:

Hoje, o senhor segura de mãos cheias as cordas e as tripas para compor nós com outros fins que não o estrangulamento das vozes. É perturbador percebê-lo tentando dar língua às tripas, corpo às palavras, ainda atrelado a produzir a psicanálise. Mas, em vez do percebido, é o mal-entendido que reina... vá em frente, um abraço (citado por Roudinesco, 1988, p. 58, grifo nosso).

O mal-entendido apontado por Leclaire refere-se, portanto, ao "estrangulamento das vozes". Em 1978, numa visita ao Rio de Janeiro, Leclaire concede uma entrevista à imprensa onde diz que Lacan deveria dissolver a Escola, mas acrescenta, "isso não passa de minha fantasia" (idem).

O segundo momento em que o mal-entendido é revelado na história do movimento lacaniano é obra do próprio Lacan (1980b, p. 60). Em "O mal-entendido", Lacan anuncia sua viagem à Caracas, no continente "lacano-americano", para ver o que acontece quando, escreve, "minha pessoa não opacifica o que ensino. É bem possível que meu matema ganhe por lá". Uma vez em Caracas, Lacan dirige-se à platéia anunciando: "Venho aqui lançar minha causa freudiana. Vocês vêem que me atenho a esse adjetivo. Cabe a vocês serem lacanianos, se quiserem. Quanto a mim sou freudiano" (citado por Roudinesco, 1988, p. 720).

Esse chiste (é, evidentemente, de um chiste que se trata aqui) vem apontar o mal-entendido. Ele tem um nome: Lacan. E dá origem a um novo adjetivo. Como se, a partir de seu retorno a Freud, o destino de Lacan tivesse sido o de ser o último freudiano em sua Escola. Um pouco depois, Lacan dissolve a Escola assim como a fundou: sozinho como sempre esteve.

Isso porque o retorno a Freud não foi apenas um retorno ao sentido de Freud, como queria Lacan, mas também um retorno a uma dimensão mítica de fundação. O "sozinho como sempre estive na minha relação com a causa psicanalítica" proferido por Lacan (1964, p. 17) na Ata de fundação da escola Freudiana de Paris remete à posição inaugural de Freud. Jacques-Alain Miller expressa bem essa posição referindo-se ao deslocamento que "nos obriga a dar conta da transferência que hoje nos leva a pôr Lacan no lugar que antes fora de Freud: o de quem sabe do que se trata na experiência da psicanálise" (1988, p.55).

Entretanto, o lugar que antes fora de Freud é também, como vimos, o lugar falsa e neuroticamente proibido do pai assassinado. No caso de Lacan, esse lugar é o do leitor de Freud. O mal-entendido parece impedir que se façam novos mal-entendidos na obra de Freud sem ser através do mal-entendido Lacan.

A guisa de conclusão: toda análise se inicia por um mal-entendido chamado transferência. Moeda de duas faces, doença produzida, a transferência é o modus operandi da análise, o mal-entendido a seu serviço. Mas é preciso que, ao final, o mal-entendido seja desfeito. Senão, trata-se de hipnose. Mas o que fazer com a transferência na psicanálise em extensão? Apesar de Lacan pretender, referindo-se ao saber, que "o terno não cabe no psicanalista", o que garante contra o temor de que ele "faça aí suas pregas cedo demais" (1967, p.34), no meu sonho ele cabe, e pregado com durex - dura lex. A Lei é dura. É possível a nós, "lacano-americanos", explorar esse mal-entendido?

 

Referências

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1 . Professor doutor do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), psicanalista membro da Formação Freudiana do Rio de Janeiro e autor dos livros Transferências cruzadas: uma história da psicanálise e suas instituições (editora Revan), Ousar rir: humor, criação e psicanálise, e Presença sensível: cuidado e criação na clínica psicanalítica, ambos publicados pela editora Civilização Brasileira. Endereço: Avenida Professor Mello Moraes, 1721 – bloco F – sala 28. CEP: 05508-030 - São Paulo – SP. Telefax: (11) 3091 4173. Email: dkupermann@usp.br
2. O que demonstrei posteriormente em Transferências Cruzadas. Uma história da psicanálise e suas instituições (Kupermann, 1996).
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. A lei é dura, mas é a lei.