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TransFormações em Psicologia (Online)

versão On-line ISSN 2176-106X

TransForm. Psicol. (Online) vol.4 no.1spe São Paulo  2012

 

Artigos originais

Original articles

 

De quem é a vida afinal? (o filme): uma apreciação inspirada em Reich e Bergson

 

Whose life is it anyway? (the movie): an appreciation inspired by Reich and Bergson

 

 

Paulo Albertini

Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

 

 

Nota introdutória

No dia 25 de novembro de 1991 participei, como Expositor e Debatedor, de uma mesa-redonda sobre o filme "De quem é a vida afinal?" (1981), do Diretor John Badhan. O evento foi promovido pelo curso do Instituto de Psicologia da USP "A Pessoa Portadora de Deficiência e o Psicólogo", juntamente com o Laboratório Interunidades de Estudos sobre as Deficiências (LIDE).

"De quem é a vida afinal?" está centrado na estória de Ken Harrison, um escultor que, ao sofrer um acidente de carro, fica tetraplégico. Hospitalizado, o paciente acaba solicitando que sejam desligados os aparelhos que o mantém vivo. A equipe médica não concorda em fazer a eutanásia e o caso vai a julgamento.

Em termos concretos, trata-se de um manuscrito em linguagem corrida, voltado para uma exposição oral, algo pessoal e informal. Ele contém duas partes: a) o texto que norteou a fala inicial que proferi na mesa-redonda; b) um conjunto de notas e comentários esparsos sobre cenas do filme. Minha participação no evento foi inspirada nos enfoques de Wilhelm Reich (1897-1957) e Henri Bergson (1859-1941).

Agradeço a Pedro Eduardo Silva Ambra pelo esforço empreendido para decifrar e digitalizar esses confusos alfarrábios. Apreciação do filme "De quem é a vida afinal?" do diretor John Badham tendo por base o pensamento do médico austríaco Wilhelm Reich (1897-1957) e o pensamento do filósofo francês Henri Bergson (1859-1941). (dia 25/11/91)

Filme tem início com uma cena de trabalho que envolve riscos, há algum perigo permeado por pedidos de cuidado. Isso me recorda o fato da vida ser frágil e a concepção de que o viver sempre envolve riscos. Na sequência, feito o trabalho, observa-se um clima alegre, lúdico, com gritos expressivos e bom humor. Parafraseando Bergson, a alegria é sinal de "triunfo da vida". Em seguida, depois da separação do casal, onde cada um toma seu carro, acontece o acidente. Imprevisível, que apenas ocorre, sem possibilidade de ser evitado.

Já no hospital, um tapa e uma fala imperativa sobre um paciente meio "sonolento" vão representar o protótipo da relação acidentado-instituição. Ou seja, essa cena antecipa uma falta de contato, onde os desejos do acidentado nunca vão ser ouvidos pela instituição hospitalar. Em vez disso vai haver, em termos reichianos, um contato substituto definido pelo seu caráter estereotipado, formal, que não se transforma, mas apenas se repete. Depois desse verdadeiro "ritual de iniciação" começa a sobrevida do paciente na instituição. Mas é importante observar que também existem algumas "brechas" para um contato humano no hospital. Uma dessas brechas ocorre na relação com uma atendente estagiária, jovem ainda não moldada pela persona institucional. Com essa estagiária existem algumas cenas interessantes. Numa delas ele pede para ela arrumar adequadamente a sua mão, isso sob os olhares de sua antiga companheira. Contato mão a mão possível metáfora de um contato pessoa-pessoa. Outra cena é a do derrame de algum líquido (café) na cama. Evento que representa alguma novidade no automatismo, na monotonia da rotina do tratamento. Nesta cena Harrison, além de ser o único a se preocupar com a estagiária, comenta algo mais ou menos assim: "Como alguém que não mexe nem um músculo, consegue sujar a cama toda". Ou seja, apesar da imensa impotência que sua situação acarreta, se sente feliz por ter conseguido gerar lguma coisa. Pena que todos, apenas sintonizados com sua sobrevivência física, não tenham comemorado com ele a possibilidade, o vislumbre de alguma potência possível,

Outro personagem que gera um relacionamento não estereotipado e previsível é o atendente negro. Com este trabalhador existe um contato de sinceridade cortante, espécie de contraponto do sorriso "caloroso formal" que sente por parte de uma instituição que tem por norma "bem querer" os seus pacientes. Desse contato sincero nasce a possibilidade de uma relação pessoal criativa que é materializada na apresentação musical. É interessante perceber que esse atendente, acho que não por acaso negro, representa na estruturação de classes do hospital a voz da classe mais baixa, nesse sentido menos comprometida com o discurso dominante da instituição.

Mas a dinâmica do filme se concretiza muito nas transformações de consciência que vai sofrendo a médica que nos diversos diálogos com Harrison é surpreendida pela lucidez dele a respeito de toda situação do tratamento. Quanto a esse tratamento, em termos reichianos, é como se a instituição exigisse um processo de encouraçamento do acidentado, isto através de uma contenção absurda sobre quem já se encontra com restritas possibilidades de expressão. Assim esse "tratamento" ocorre sempre no sentido de evitar a agitação, acalmar, abaixar a energia. O que falta é possibilidade de vivencia emocional, pois só essa vivência pode gerar algum processo de transformação. É como uma mãe que impede o choro ou a raiva de uma criança depois de uma frustração sofrida pela mesma. Não há espaço para essas emoções, nem disponibilidade emocional para esse contato, para esse estar junto.

Cabe aqui comentar que tanto para Bergson quanto para Reich a vida é anti-entrópica, isto é, tende para o aumento, para o crescimento. A instituição, a todo momento, procura evitar isso.

Uma idéia seria a de incluir outro título ao filme (além de "De quem é a vida afinal?", que aponta para a discussão da liberdade humana), ou seja: Como definir a vida afinal? Ou, O que é a vida afinal? Essa é a discussão entre paciente e instituição no julgamento. Para essa última a vida é a sobrevivência cerebral, para Harrison ela deveria incluir certo grau de auto-suficiência. Há também a dimensão do sofrimento humano possível de ser suportado de forma a ainda valer a pena continuar vivendo.

Com relação ao conceito de vida, acho a contribuição de Bergson valiosa. Para ele, vida é possibilidade de auto-criação, indeterminação, invenção, criação de formas, elaboração contínua de inteiramente novo. Talvez Harrison tenha sentido o fim de qualquer possibilidade de auto-criação devido a sua condição de deficiência. Mas considero que o filme permite outra pergunta final, qual seja: será que em um local com um tratamento mais adequado a sua decisão teria sido a mesma?

 

Notas sobre as cenas1NE

Cena 1 – No alto, executando algum serviço. Há um perigo, várias recomendações, por parte da companheira, de cuidado.

1) A vida é perigosa... "há um perigo em cada esquina".

2) A deles é perigosa. Envolve riscos. Há coragem.

 

Cena 2 – Abraço na companheira. Contato, alegria no ar, brincadeira, gritos.

1) Parafraseando Bergson "a alegria é sinal de triunfo da vida".

2) Brincadeira – contato criança-criança – espontaneidade – gritos – capacidade de expressão verbal.

3) Homem cozinhar – atual, não opressor. O que ela quer que ele cozinhe?

4) Carros diferentes: novamente atual. Juntos mas independentes. Ela tem o seu carro.

 

Cena 3 – Acidente

1) Há perigos em cada esquina.

 

Cena 4 – Levado para o hospital. Médico? Você tem que lutar, lute!

1) Um pouco estranha essa fala. O que no comportamento do acidentado indicava que ele não estava lutando? Os olhos fechados? Soa como uma recomendação de fora, sem contato com o outro. Pode estar servindo para aliviar a tensão do atendente. Fala muito imperativa, tem até um leve (?) tapa.

 

Cena 5 – Conversa entre dois médicos. "Eu quero ele vivo!" "Tudo bem, mas acho que o melhor para ele seria a morte".

Falas, fortes, tensas. Poder médico sobre a vida e a morte. Eu quero ele vivo... acho que o melhor para ele seria a morte. E ele o que deseja?

 

Cena 6 – Atendentes vão virar uma espécie de cama onde ele está todo preso. Tratamento difícil. Violência necessária? Certa ironia e certo bom humor ao conversar com a companheira. Brinca "Quer alguma coisa?" "Um Martini, por favor!" Depois "esse gim está com gosto de água!"

Bom humor das atendentes, será que não percebem a violência necessária? Bom humor: forma de mascarar a dor, não deixar aparecer o sofrimento?

Pede, ironizando, Martini e gim – quer o prazer ou a anestesia daquela situação. Continua de certa forma a cena com o 1o médico. Preferiria estar sem consciência , dormindo ou alcoolizado.

 

Cena 7 – Música que lembra parada militar, algo como um hino patriótico. Enfermeira vai cumprir seu trabalho. Algo duro, marchando?

• O obsessivo é o que tem menos contato interno ou externo

 

Cena 8 – Limpeza nele. Continua "brincando" conta piada do cirurgião plástico.

• Está no "alto" ainda não entrou em contato com a situação. Não deprimiu.

 

Cena 9 – Namorada percebe algo no contato dele com a estagiária. Ciúmes? Afirma que tem que ir. Pouco contato. O mundo lá fora exige, chama.

• Ciúmes? Contato de mão com mão. Encontro entre pessoas. Ele pede pra enfermeira estagiária uma série de detalhes na postura da mão, ela atende. Metáfora de uma relação mais profunda individualizada?

 

Cena 10 – Acidente2 e contato com o médico que informa (de maneira "direta") sobre seu estado. Nunca vai andar, mover braços... Ouve também que havia sido aumentado o seu valium. De certa forma o "acidente" foi uma revolta contra ser drogado e aceitar tudo.

Não tem espaço para viver a sua dor, a sua revolta. Não tem espaço para expressar a sua real situação interna, que é completamente compreensível e não neurótica. Novamente falta a voz do paciente. Alguém que o ajude a elaborar o que vive. O esquema institucional, encarnado na figura do médico chefe, impede isso. Só o desejo da instituição existe.

 

Idéias:

1. Não o deixam deprimir. Mostrar a curva orgástica reichiana e falar sobre a necessidade de viver o que estiver para ser vivido. Psicologia da intensidade, do ritmo. Só a vivência intensa poderia propiciar se livrar daquela emoção e viver outra coisa.

2. Substituir o título do filme por: "O que é a vida afinal?" Instituição está querendo o encouraçamento – matar a vida, o movimento. Há nele uma resistência a esse encouraçamento, há muita vida nele. Essa medicina tem uma falsa concepção de vida, apenas como sobrevivência, não como movimento.

Cena 11 – Valium (enfermeira quer dar e ele ñ quer tomar). Tudo fica claro, afirma ser contra a substituição da estagiária: "pelo menos eu tenho alguém aqui para conversar" e interpreta o comportamento da enfermeira. Dar valium para ele é uma forma de aplacara a impotência dela. Ele se expressa (como deseja) ela ñ aguenta isso.

"Seu corpo ñ pode suportar toda essa agitação". Interessante. Vida para Bergson e Reich é anti-entrópica, tende para o crescimento.

"Remedinho prá ajudá-lo a relaxar." Paralisado do pescoço prá baixo, as únicas formas de expressão que sobraram foram as do rosto. Se inibem essas, prá onde vai essa carga?

"A única coisa que sobrou foi a minha consciência e eu ñ quero que ela seja paralisada também."

Cena 12 – O médico vai e dá a medicação, mesmo contra a vontade do paciente. Harrison manifesta que quer morrer.

Encouraçamento – inibir a capacidade de reação. Reich: ñ por que o faminto rouba, mas por que ele não rouba?

Cena 13 – Imaginação e sonho da vida anterior dele. Sua namorada nua dançando e ele desenhando e esculpindo o movimento.

Cena 14 – Conversa com a namorada. Argumentos para ela se afastar dele. 1. Por ela – encontrar um novo homem. Ela -"eu ñ posso esquecer isso". 2. Por ele – ele sofre quando a vê e percebe tudo que fazia e que ñ pode fazer mais!

"Eu ñ suporto isso". Ela sai e o vaso de flor se quebra. Está chovendo, é uma tempestade. Há movimento na natureza, ela está se manifestando (assim como ele).

 

Nota adicional

E nós, o quanto nos auto-criamos? Ou apenas repetimos? E o país como um todo, quando somos violados em nossa conta bancária pela instituição Estado? Que real possibilidade de movimento temos hoje?3

"Só acredito no amador"4

 

 

1 NE Nota da edição: no manuscrito original a descrição das cenas foi escrito à tinta azul e seus respectivos comentários em vermelho. Nossa transcrição optou pelo itálico como forma de destacar os comentários da descrição das cenas.
2 Acidente ocorrido no hospital, durante as difíceis manobras com o paciente.
3 Referência ao chamado Plano Collor 1, decretado em 16 de março de 1990.
4 Frase proferida pelo professor Frederico Lucena de Menezes, durante aula sobre a Psicologia Analítica de Carl Jung, no curso de Psicologia em Ribeirão Preto.