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Trivium - Estudos Interdisciplinares

On-line version ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2011

 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

Geração, fratria e gênero: um estudo de mandato transgeracional e subjetivação diferencial

 

 

Luiz Fernando Dias Duarte

Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Museu Nacional

 

 


RESUMO

A memória de quatro gerações de uma família brasileira de classe média abastada é apresentada e interpretada, em busca de compreensão sobre os desvios de trajetória pessoal que afetaram as diversas linhagens e, particularmente, o que caracterizou o destino de um personagem marcado por evidente perturbação físico-moral. O interesse analítico se centra na percepção dos mecanismos de "mandato transgeracional" ativos nesse processo de construção diferencial da subjetividade, em obediência a definições culturais de diferenças de geração, de ordem de nascimento nas fratrias e de gênero.

Palavras-chave: família, geração, gênero, mandato transgeracional, subjetividade


ABSTRACT

Four generations of a wealthy middle-class Brazilian family have their memoirs presented and analyzed in search of understanding for the divergent personal destinies within the lineages - and, especially, the deviant career of a mentally disturbed member of the family. The analytic focus centers upon the process of "transgenerational mandate" that flows perceptibly in the family history and in the development of the selves, in obedience to cultural definitions of generation, birth order and gender differences.

Keywords: family, generation, gender, transgenerational mandate, selfhood


 

 

Jeremias, 31:29 "Naqueles dias, nunca mais dirão: os pais comeram uvas verdes e prejudicados
ficaram os dentes dos filhos. (...)
"Talvez algum dia lhe fosse concedido olhar o passado de um canto
tranquilo e assistir ao renascimento do tempo antigo, o tempo do trisavô de
Hanno! Seria essa esperança, afinal de contas, inteiramente vã?"

(Thomas Mann, Buddenbrooks, p. 477; tradução livre do autor)

A análise da história de uma família brasileira de classe média abastada entre meados do século XIX e o final do século XX permite colocar em relevo e submeter a discussão as condições nas quais as identidades pessoais se constroem em relação às características e dinâmicas familiares. O fato de que essas identidades devam necessariamente afirmar rumos e sentidos específicos é aqui chamado de "subjetivação diferencial". O fundo comum contra o qual se vêm desenhar essas diferenças se arma sobre os eixos da sucessão das gerações, da organização das fratrias (no sentido do conjunto de irmãos e irmãs em uma unidade doméstica) e do contraste de gênero. Sublinha-se, destes eixos, particularmente, o da acidentada transmissão de projetos identitários através das gerações: o "mandato transgeracional".

A pesquisa assim proposta é de caráter antropológico - e quero com isso dizer que busca unir a compreensão das dimensões mais "sociológicas" dos fenômenos examinados com questões de sentido e experiência que podem ser, à primeira vista, associadas aos saberes psicológicos. A emergência das ciências sociais no século XIX foi fortemente marcada pela distinção em relação às ciências psicológicas, estabelecidas de mais longa data no sistema dos saberes ocidentais modernos. Essa partilha ecoou a oposição cosmológica entre o "indivíduo" e a "sociedade", construída e estabilizada como suporte da ordem moderna desde o século XVII. Os ideólogos originários do individualismo, como Locke e Adam Smith, tinham se inquirido sistematicamente sobre as condições "psicológicas" da vida em sociedade, conformando mesmo um capítulo fundamental do desenvolvimento desses saberes. As exigências disciplinares de afirmação da especificidade do "social" levaram, no entanto, a uma busca sistemática de distinção, particularmente na tradição francesa decorrente do positivismo de Comte. Essa tendência mais objetivista nutriu-se de um diálogo sistemático com a tradição expressivista alemã, desenvolvida no âmbito do pensamento romântico, dando origem ao que se considera hoje como uma "antropologia", complexamente organizada e tensamente estruturada entre essas linhas de força empiristas e românticas.

A ambição de se colocar a cavaleiro sobre a oposição indivíduo x sociedade não garante à Antropologia uma habilitação universal e absoluta no trato das coisas humanas(1). Há ordens de conhecimento construídas sobre determinadas dimensões da experiência humana que são mais especializadas e proficientes em seus respectivos níveis. Para a análise dos processos de subjetivação, é especificamente desafiadora a relação com a Psicanálise, cujo objeto é justamente o da dinâmica intrapsíquica, sua estrutura e funcionamento. As duas disciplinas, que soem ser aproximadas no quadro das ciências humanas ocidentais, têm vocações abrangentes que não lhes permitem um regime de complementaridade mecânica. Compartilham interesses homólogos na interpretação do "sentido" da experiência humana, mas o fazem a partir de focos inversos, com uma vasta área de franjas superponíveis. A subjetividade ou o sujeito não são, assim, o mesmo fenômeno à luz de uma e de outra. Ainda assim, pode-se dizer que há entre elas um perceptível entreolhar, uma disposição de complementação ou articulação, que suas histórias não negam(2). Não se fará aqui a revisão desse regime de enfrentamento, mas se procederá a uma aproximação muito oblíqua da estratégia interpretativa antropológica com a linha dos estudos de "Psicanálise Transgeracional"; mais aproximável - dentre as múltiplas vertentes daquele saber - dos recursos das ciências sociais. A distância se manterá notória, dadas as profundas diferenças da evidência simbólica decorrente de pesquisa social e de clínica psicanalítica.

O material empírico aqui utilizado é quase exclusivamente proveniente das representações espontâneas dos membros da família pesquisada, em contato direto e não dirigido; em função do fato de ser o pesquisador parte de sua rede. Os documentos e publicações consultadas são também apenas os que já se encontravam de posse da família; considerados como testemunhos conscientes de sua história. Não foi feita nenhuma pesquisa histórica complementar externa, no sentido de conferir ou ampliar a evidência fornecida pelos dados empíricos imediatos. A interpretação recorre a materiais comparativos de múltipla ordem, oriundos de diversas tradições disciplinares.

A condução de pesquisa de tipo antropológico por pesquisadores envolvidos diretamente no universo de análise tem sido discutida com crescente frequência, em função da necessária relativização do ideal de distanciamento associável à herança positivista. Alimenta, do mesmo modo, a ênfase crescente na reflexividade intrínseca à atividade antropológica: qualquer que seja a posição do pesquisador em face de seu universo de observação é essencial trazê-la para o cerne de sua análise, enfrentando e iluminando (quiçá!) a tensão entre subjetividade e objetividade que desafia e baliza o conhecimento humanístico. Tanto para as implicações heurísticas gerais quanto para aquelas mais específicas que envolvem a pesquisa sobre a própria "família", o autor remete a outra obra em que explorou a temática (DUARTE & GOMES, 2008).

A pesquisa foi realizada no âmbito de um projeto mais amplo, voltado para a observação e análise de processos de relação entre família e religião. Embora seu foco principal tivesse se concentrado desde o início em situações de classe popular, foi delineado um programa paralelo de comparação com situações de classe média e de elite, no qual se inseriu o presente desenvolvimento(3).

A "subjetivação diferencial" encontra-se tematizada em diversas tradições das ciências sociais. A via da socialização em papéis é certamente a mais difundida, pela via do funcionalismo, de certos desenvolvimentos da Escola de Cultura e Personalidade, e do interacionismo simbólico. Ela pode estar mais ou menos atrelada a hipóteses fortes sobre a estrutura social, desde o funcionalismo britânico até a escola de Pierre Bourdieu. Neste último caso, a referência à estrutura social combina-se com o interesse no compartilhamento diferenciado de habitus, hexis e disposições incorporadas, questões características da tradição fenomenológica. Diferentes linhas desta última, incluindo o citado interacionismo, sistematizam a descrição das formas de manifestação das identidades e identificações. O espírito de comparação que caracteriza todas essas tendências pressupõe a observação de diferentes modos sociais e culturais de construção da pessoa e da identidade, que formam a base dos desenvolvimentos específicos da escola sociológica francesa e de seus desenvolvimentos do pós-guerra (como o estruturalismo).

Há um histórico de análises de "transmissão transgeracional" nas ciências sociais, com diferentes ênfases. Prevalecem no âmbito dos estudos sobre a família, sobretudo nas sociedades complexas, considerada como um fenômeno distinto da dinâmica do parentesco "elementar" ou "segmentar" das sociedades indígenas(4). Nem sempre, no entanto, se detêm de maneira mais microscópica sobre a subjetivação diferencial ocorrente no âmbito desses processos. A integração das duas perspectivas não é usual nas ciências sociais, embora venha crescendo, sobretudo no âmbito da sociologia francesa da família. Caracteriza, por outro lado, centralmente, a área da "Psicanálise Transgeracional", de que tomo inclusive a categoria. Esse campo, oriundo de um diálogo da Psicanálise francesa com a terapia sistêmica anglo-saxã, tem produzido um rico material de interpretação de diferentes formas de perturbação, à luz de informação sobre a transmissão de articulações psicossociais, e com a proposta de um instrumental heurístico em que avultam as categorias de "mito familiar", "mandato" e "cripta"(5). O interesse dessas interpretações para uma Antropologia da Pessoa é muito grande, embora elas se limitem - como é inevitável - às séries de simbolização recuperáveis a partir de casos clínicos, muito graves em geral e afetando crianças. Toda a linha de trabalho busca referência nas indicações parciais mas instigantes de Freud sobre a transmissão psíquica em geral - ou com a questão das "influências" a distância, tão desafiadora para o pensamento ocidental moderno.

Neste trabalho, a preocupação com a transgeracionalidade se articula com a que exigem o gênero e a fratria na observação das subjetivações. Enquanto o critério de diferença de gênero tem sido uma via régia do desenvolvimento das ciências sociais por vários rumos, as propriedades ou efeitos de fratria têm tido uma voga muito discreta. Embora sejam uma dimensão importante do estudo do parentesco em situações segmentares, seu caráter ativo e pertinente nas sociedades complexas não tem suscitado investigações sistemáticas. Certamente, encontra-se aí uma dessas barreiras culturais profundas que têm caracterizado a Antropologia em geral e, mais particularmente, os estudos da pessoa, do parentesco e da família. A fratria só tem aparecido nas situações minoritárias em que o parentesco unilinear ou pelo menos com tendência unilateral (aristocracias hereditárias e campesinato) impõe um valor explícito, jural, à diferença de posição na ordem de nascimento.

Pode-se afirmar que a ideologia da igualdade, característica da cultura ocidental moderna, com sua consequente ênfase nos processos de aquisição de status (por oposição aos de atribuição), tendeu a empanar a presença e ação conjugada das três dimensões na produção dos sujeitos sociais; embora uma luta ideológica específica tenha conseguido autonomizar a dimensão do gênero, justamente a que mais imediatamente desafia o valor da igualdade.

Os efeitos transgeracionais e de fratria sofrem ainda o peso das ideologias da "naturalidade" e da "bilateralidade" na descendência. A crença na herança natural pelo sangue (hoje reduplicada na figura dos genes) tolda a percepção da atribuição social (ou psicossocial) e enseja que a crença em sua distribuição bilateral escamoteie ainda mais a distribuição diferencial de valor entre as linhagens paterna e materna, sobretudo nas sociedades cujas ordenações jurídicas acolheram o princípio ideológico da igualdade universal dos sujeitos (com a consequente herança igualitária).

A configuração ideológica da família ocidental moderna, mínima, restrita ou nuclear, também tende a empanar os efeitos transgeracionais de longo curso, ao privilegiar a autonomia vivencial e projetiva desses núcleos - em que as relações servem à produção ideal dos indivíduos livres, iguais e autônomos (DUARTE, 1995). A privatização do funcionamento dessas unidades sociais, historicamente construída, também constitui um empecilho à expressão, reconhecimento e obtenção das informações sobre sua dinâmica interna, incluindo os dados sobre as diferentes fratrias envolvidas e sobre a transgeracionalidade que a engloba diacronicamente.

É contra essas limitações epistemológicas que se constrói o presente artigo, ensejado pela participação do próprio autor no emaranhado de tantos nódulos ideológicos e processos sociais. A história familiar foi recolhida entre os membros da terceira e quarta gerações de uma família da cidade de Petrópolis (Rio de Janeiro), que se vê como descendente de dois irmãos portugueses migrados em meados do século XIX e que fizeram fortuna no comércio e na indústria. O pesquisador, nascido em 1949, é membro da quarta geração, e já existem mais duas gerações descendentes, além da sua, em relação aos ancestrais apicais.

Os dois irmãos migraram muito jovens do Norte de Portugal ("Concelho de Villa Verde, Distrito de Braga") para o Rio de Janeiro, por volta de 1860(6); tendo se estabelecido em Petrópolis em algum momento anterior a 1880, ano em que abriram um comércio de "fazendas" e "artigos finos", na principal artéria da cidade, a Rua do Imperador, ao lado do prestigioso Hotel Bragança.

Já não era claro para a terceira geração qual a situação social de origem dos migrantes. Os dados disponíveis permitem supor que se tratasse de filhos de famílias de lavradores (pequenos proprietários rurais), sem condições de herdar terra ou de seguir as carreiras militar ou eclesiástica no Reino. Por outro lado, a própria capacidade de migrar para o Brasil nesse momento (com recursos próprios) - assim como sua qualidade letrada - faz supor que se tratasse de lavradores em condições sócio-econômicas favoráveis. A boa apresentação social de um sobrinho que migrou no final do século, assim como o registro de regulares remessas de vitualhas de um irmão para os parentes migrados, contribuem para essa impressão.

Os dois irmãos se casaram com filhas de colonos alemães estabelecidos em Petrópolis. O mais velho, João José, teve seis filhos, até sua morte, precoce, em 1890 - com 39 anos. O segundo, Domingos Manuel, teve cinco filhos, até sua morte, aos 68 anos, em 1919. Dos filhos de João José apenas quatro chegaram à maioridade, assim como apenas três dos de Domingos Manuel. Uma mulher e três homens no primeiro caso; três mulheres no segundo. A família de aliança de Domingos Manuel tinha melhor situação social do que a de João José. As duas irmãs de sua mulher, Catharina Bayer, casaram-se com um industrial e com um empreiteiro locais, também portugueses, constituindo elos importantes da rede social dos irmãos Dias.

Em 1879, um ano antes da abertura da loja "O Anjo da Meia Noite", surgem os primeiros registros de compra das terras que caracterizaram a vida da família até o final do século XX: dois grandes lotes da Fazenda Imperial, no Vale do Rio Quitandinha, onde vieram a ser construídas diversas residências e prédios de uso familiar. Essas terras eram vizinhas da residência urbana de outro personagem importante da história familiar, o empresário Antonio Pereira Campos(7). Já em 1880, João José alugava ao governo da província um dos imóveis da família, construído nessa propriedade, para funcionamento de uma escola pública, inicialmente apenas feminina, onde receberam as primeiras letras as duas gerações seguintes. A escola se erguia entre as casas principais de João José e de Domingos Manuel, uma de cada lado do rio e da rua. Sobre a montanha, em um vasto platô, instalaram os irmãos uma quinta consideravelmente complexa, de ambiciosa trama, com instalações de criação, estábulos, hortas, pomares e jardins - que veio a ter um peso imaginário muito forte para a maior parte de sua descendência.

 

 

A morte precoce de João José (quando a filha mais velha tinha quinze anos e o caçula, apenas três meses) e a relativa fraqueza social de sua viúva fortaleceram a preeminência de Domingos Manuel, seu irmão, sócio, vizinho e testamenteiro. O caráter extremamente discreto do primeiro sempre contrastara com o do irmão, que se alistou aos quinze anos de idade no Batalhão dos Voluntários da Pátria para lutar na Guerra do Paraguai. Após o fim da guerra, distinguido por medalhas e menções à bravura, ainda retornara a Braga uma vez, em 1876, por motivos que se desconhece. Atribui-se a ele, frequentador dos teatros da Corte, a escolha do nome tão peculiar com que se registrou o comércio aberto em 1880. Em 1882, elegeu-se pela primeira vez vereador da Câmara de Petrópolis, iniciando uma continuada carreira política e administrativa local. No momento da proclamação da República, era o presidente da Câmara, tendo sido responsável pelas providências necessárias à implantação municipal do novo regime. Apesar de sua devoção pessoal ao imperador, ainda participou da vida política republicana até sua morte. Ao longo das duas últimas décadas do século, Domingos Manuel - assim como seu irmão - participou do intenso desenvolvimento da indústria têxtil petropolitana, tornando-se grande acionista de diversos empreendimentos de vulto(8).

Tendo perdido ainda muito pequenos seus dois filhos homens, Domingos Manuel (doravante citado como D. Manuel) estimulou o casamento de sua filha mais velha com o sobrinho primogênito, seu afilhado e xará, Domingos José (doravante D. José). Após a morte da cunhada, patrocinou a aquisição dos imóveis havidos por partilha de dois dos outros sobrinhos sobreviventes, seja em seu nome pessoal, seja em nome do genro. Concentrou, assim, a propriedade da maior parte das terras da quinta entre seus próprios descendentes - e, particularmente, dos de sua primogênita. Também os outros imóveis e participações societárias de João José acabaram agregando-se ao patrimônio de D. José e Dalila. A própria residência construída por João José passou a servir a D. José, com o grosso das guarnições domésticas, após a morte da viúva. Laura, sua segunda filha, aceitou o casamento com um dos filhos de Antonio Esteves Pereira, um amigo português, muito rico, industrial e empreiteiro da Casa Imperial. A terceira filha, Silvina, também destinada a um casamento prestigioso, apaixonou-se pelo barbeiro do pai, outro jovem e ambicioso português, e fugiu para casar-se - o que lhe valeu um prolongado ostracismo da rede familiar.

A rede completava-se com diversos colaterais importantes para a sociabilidade geral e para o cultivo de um "sentimento de família". Seu destino é importante para a comparação das trajetórias transgeracionais. Bem ao final do século, chegou de Braga um sobrinho dos irmãos Dias, com a disposição de se estabelecer também em Petrópolis. Sua beleza e elegância valeram-lhe o interesse da única filha de Antonio Pereira Campos - amigo e vizinho, tanto pelas residências, quanto pelos negócios, de D. Manuel -, com quem se casou, adotando o sobrenome da mulher, por exigência do sogro. A enorme fortuna herdada lhe garantiu uma vida de luxo e ostentação, ao ponto de comprometer a herança de seus próprios dois filhos. Ao retornar de Viena, onde serviu como cônsul por alguns anos, faleceu precocemente a mulher. Os filhos continuaram morando na residência do avô, vizinha à do tio-avô D. Manuel, criados por sua governanta francesa. Arthur se estabeleceu no Rio de Janeiro, passando a viver em companhia de Marie Lespinasse, uma personagem famosa da história da moda fluminense, que o acompanhou até a morte.

Uma das irmãs de Catharina Bayer Dias, casada com o mais importante empreiteiro de obras públicas da cidade, Antonio Avelino Barboza, teve apenas um filho, que se tornou empresário do setor de diversões, tendo inaugurado os dois cinemas mais característicos da cidade. Roldão Barboza, considerado um espírito esclarecido e modernizante, em parte por suas viagens ao exterior, não se casou, tendo morrido de modo súbito, sob suspeita de suicídio em função de um escândalo envolvendo sua identidade sexual.

A outra irmã, casada com o industrial Antonio Lemos de Vasconcelos, teve uma única filha, Leopoldina. Seu marido, João Duarte Silveira, oriundo de uma família de proprietários rurais de Capivari (Estado do Rio de Janeiro), tornou-se um personagem notável da vida municipal, como tabelião, político, historiador e colecionador de arte. Fora um dos filhos, assassinado aos dezoito anos no contexto das acirradas lutas políticas locais características da República Velha, os demais seguiram carreiras universitárias e profissionais bem-sucedidas.

Além de ser o beneficiário dos esforços da concentração fundiária e financeira de seu tio e sogro, D. José foi investido do cargo de sócio-gerente de uma das empresas têxteis de que a família era acionista; posição de que se incumbiu até sua doença derradeira. Teve quatro filhos; as três primeiras mulheres. O primeiro neto varão de D. Manuel acabou nascendo apenas seis anos antes da sua morte, tornando-se também seu afilhado de batismo. Assim como o pai e o avô materno, veio este a se chamar Domingos: Domingos José Dias Filho (D. Filho)(9).

Toda a identidade de D. José se desenvolveu atrelada à herança avuncular, inclusive em seus lazeres e preferências pessoais. Assumiu com denodo a administração da quinta (mantida indivisa até bem depois de sua própria morte) e compartilhou com o tio a experiência e o gosto intenso pela caça. Consta que o emulou até em seus hábitos mulherengos, tendo mantido uma amante oficial durante suas décadas de fastígio.

Em função das negociações sucessórias que o privilegiaram em detrimento dos irmãos, D. José perdeu completamente o contato com sua própria fratria e com a família de sua mãe, dedicando-se ao convívio constante com a parentela de sua prima-esposa, socialmente mais prestigiosa. Sua gestão do patrimônio herdado veio a ser altamente incompetente, com diversos investimentos temerários ou frustrados, que diminuíram progressivamente o capital e sua credibilidade pessoal no contexto da família.

Essas condições foram indissociáveis de sua intensa adesão à gestão da quinta. Junto com um administrador residente que acompanhou toda sua história pessoal, mantinham impecáveis as benfeitorias, trilhas, nascentes, tanques - com a sempre evocada cornucópia de frutas raras, flores cosmopolitas e animais de raça. Essa dedicação era constantemente ameaçada, aos olhos da família, pela dedicação, considerada excessiva, ao esporte da caça e pela perdulária manutenção das amantes.

De suas três filhas, uma morreu aos dezessete anos, de uma fulminante septicemia, decorrente de um desastrado cuidado cosmético no rosto. Segunda na ordem de nascimento, era considerada - num conjunto de belas jovens - a mais atraente. Era também a preferida da mãe, que nunca se recuperou totalmente da consequente depressão. A filha mais velha, Zélia, após a ruptura de um longo noivado com um Esteves Pereira, comerciante, irmão do marido de sua tia Laura, veio a se casar com um médico, proprietário de uma pequena indústria farmacêutica sediada no Rio de Janeiro, trinta anos mais velho. Sua família de origem, os Moraes de Fortaleza, era muito prestigiosa, associada a grandes famílias da elite nacional. Desse casamento, nasceu um único filho, explicitamente indesejado pelo pai, cuja carreira social foi marcada pelo distanciamento paterno (tendo sido criado pelos avôs, em Petrópolis, até o fim da infância), que ele transmutou em uma clara recusa posterior em assumir uma identidade social positiva ou ascendente, apesar da qualidade de sua educação formal e de seu importante capital social de origem.

A morte relativamente precoce de D. José (de um câncer no aparelho digestivo) deixou o núcleo muito fragilizado, em parte pelo decréscimo acentuado da fortuna(10), em parte pelo fato de recrudescerem em D. Filho - já com 28 anos a essa altura - os sintomas de uma perturbação físicomoral cujos sinais vinham se apresentando desde sua adolescência. O processo se acelerou após a morte do pai, culminando com o noivado da irmã; até que ela e a mãe foram obrigadas a abandonar a residência familiar - ameaçadas de morte em uma noite ominosa. D. Filho desenvolveu progressivamente o que poderia talvez ser descrito como uma "neurose obsessiva", caracterizada pela convicção de que poderia contaminar os outros com seus "micróbios", o que o impedia de ter contato físico com pessoas e objetos do mundo extra doméstico, a não ser às custas de diversas desinfecções e mediações "maníacas". Passou o resto de sua vida isolado na residência familiar, petrificada no tempo, mantido às custas de uma pensão por invalidez do serviço público, onde trabalhara por uns poucos anos, e das rendas da herança familiar.

A segunda filha sobrevivente, Maria Luiza, permaneceu solteira até os 37 anos, vivendo com os pais e com o irmão menor na residência familiar (onde tinham morado seu avôs paternos). Após a morte do pai e a "crise" do irmão, foi morar com um dos tios, trabalhando no escritório do outro. Quando já fazia - nos seus termos - seu "enxoval de solteira", conheceu um homem ainda mais velho (com 47 anos a essa altura), pequeno funcionário público no Rio de Janeiro e de origem social modesta, com quem se casou no ano seguinte - apesar da enérgica oposição da família e de seu círculo social(11). Esse casal, apesar da idade, ainda teve três filhos, que foram criados sob uma forte influência imaginária da família materna, passando inclusive a habitar numa nova residência construída no coração da quinta petropolitana. Nessa última fratria, vieram a concentrar-se não só heranças econômicas decorrentes da não descendência de alguns dos parentes, como para ela afluiu uma parte substancial da herança "moral" e afetiva de toda a linhagem (biblioteca, acervo fotográfico, móveis, objetos de prestígio, controle dos jazigos etc.). Dois de seus membros vieram a ter trajetórias sociais consideradas bemsucedidas, por vias diversas, fora de Petrópolis - sendo uma delas a do pesquisador.

É preciso aqui voltar à trajetória das duas filhas menores de D. Manuel. A segunda na fratria teve um "casamento infeliz". Dissuadida por seus círculos próximos de separar-se logo após o casamento, para evitar um escândalo, manteve até o fim da vida uma relação conjugal que a muitos parecia "branca", pelo fato de não ter filhos e de ostentar uma cerimoniosa relação com o esposo. Era considerada a guardiã da memória paterna, tendo herdado sua residência. Não a ocupou, no entanto; preferindo acolher em sua própria casa a mãe viúva. O marido, Clodoveu Esteves Pereira, português, rico por herança e pelo escritório de representação de seguros que mantinha na cidade, criou uma outra quinta em Itaipava, uma área ainda rural na periferia da cidade, onde veio a se concentrar a vida social do casal.

 

 

A terceira filha, que fugira de casa, enfrentou uma situação de grande tensão familiar. Apesar de uma situação econômica que veio a ser muito boa, seu status social manteve-se empanado pela sombra de seu "erro" original e pelo desprestígio da profissão do marido. Teve inicialmente uma filha, nascida em 1918, e, muito depois, um filho, temporão. Ambos tiveram destinos acidentados, marcados por perturbações físico-morais e por diversos incidentes penosos em sua vida sexual, afetiva e conjugal, que acabaram por levá-los, aos dois e a seus descendentes, a uma acentuada decadência social.

Apresentados os fios principais da trama em que se enredou a vida da família ao longo do século XX, posso agora precisar que a análise se concentrará no personagem de D. Filho; focada no processo de subjetivação diferencial que o caracterizou, articuladamente - como se propõe - com o mandato transgeracional que recolheu e interpretou. Qualquer diferenciação identificatória só pode se concretizar contra o pano de fundo das relações sociais significativas - os significant others característicos das análises interacionistas -, o que exigiu até agora a explicitação de alguns dos processos que balizaram as inflexões da singela e infausta carreira do personagem central, constituindo o panorama moral contra o qual se desenharam suas próprias ênfases, tão peculiares. As redes significativas não se constituíam apenas de parentes, mais ou menos distantes, mas eram certamente a sua ossatura central, pelo que se depreende das memórias recolhidas. Muitos vizinhos e amigos externos a essa trama que puderam ter relevância nesse contexto não terão como ser aqui evocados(12), mesmo que na condição percebida na família como de coadjuvantes.

A vida moral dos personagens da trama foi marcada por algumas características mais gerais que cumpre agora destacar - já imersas em hipóteses interpretativas. A primeira e mais profunda é a dos regimes de herança - e, portanto, de mandato - envolvidos nessas gerações. É possível compreender as manobras de D. Manuel em relação a suas descendentes como uma tentativa de - esquivando as exigências da legislação de sucessão igualitária - recompor nas mãos de seu sobrinho e genro o tronco de sua herança. Embora esta se compusesse de valores financeiros, participações acionárias e bens móveis e imóveis, parece possível supor que estes últimos estivessem particularmente em jogo, já que foram resgatados aos demais herdeiros com dinheiro sonante. A própria investidura de D. José na posição ambígua de capitalista e empregado em que foi colocado teve claramente a função (ou o efeito) de mantê-lo atrelado aos desígnios do tio e de habilitá-lo à manutenção da propriedade da quinta. Tratava-se, assim, de um mandato moral: a preservação da herança nos pontos imaginários tão cruciais do sangue, do nome de família e da terra. O fato de provir D. Manuel de algum segmento do campesinato minhoto permite supor que estivesse ativo em seus projetos o modelo de sucessão, tão comum nesse tipo de organização social, que aspira a uma continuada integridade do patrimônio fundiário. A literatura a que pude ter acesso sobre aquela região descreve variadas e complexas estratégias sucessórias, mas confirma o princípio da busca do não fracionamento(13).

Esse princípio está ancorado, na lógica camponesa, em uma unidade ideal de família e terra, como ente de produção e consumo econômico tão autônomo quanto possível. Com efeito, pode-se perceber na história da quinta um projeto original ambicioso, que lhe atribuía a capacidade de uma unidade de produção de bens de consumo e de mercado. As benfeitorias que impuseram àquelas terras arrancadas diretamente da floresta seu desenho social permitem aquilatar das ambições iniciais de cultivo sistemático de vinha, de chá, de café, de frutos cítricos, a par das instalações mais convencionais de horta, de pomar e de pequena criação. Por motivos certamente complexos, esse desenho foi sendo substituído por uma versão menos ambiciosa de uma unidade de produção, não debens de mercado, mas de bens de consumo imediato (do círculo familiar). É provável que problemas de fertilidade do solo, de escassez de mão de obra e de controles sanitários urbanos tenham inviabilizado as ambições "camponesas" do fundador da quinta. A densificação do espaço urbano também contribuía para o cerceamento das intenções produtivas locais; deslocando-se rapidamente a produção agrícola e as criações animais para a periferia da cidade. O próprio sucesso social de D. Manuel, com uma carreira política e administrativa constante, afastou-o progressivamente do trato direto com as terras, deixadas à gerência do genro. É certo também, por outro lado, que a segunda geração já apresentava expectativas sociais bem diversas da precedente, com uma crescente disposição à distinção social, infensa à condição de pequenos produtores. A quinta passou, assim, pouco a pouco, da condição de unidade de produção à de bem de lazer. Para facilitar a gestão, os caseiros eram autorizados a comercializar seus produtos sempre que o abastecimento dos proprietários estivesse garantido.

Originalmente, essas terras incluíam uma boa extensão de mata virgem, nas encostas, lindeiras de outras matas de livre acesso. Constituíam, assim, um terreno de caça próximo e prático. O adensamento da ocupação dos limites dessas terras, que se estendiam em pleno perímetro urbano, extinguiu as espécies mais cobiçadas, exigindo dos homens da família a realização de expedições mais distantes, em grupo, já motorizadas no século XX. A caça, que já estava entre os hábitos dos irmãos Dias em Portugal, continuou importante no Brasil, e foi uma atividade herdada por D. José e, depois dele, pelo neto criado em sua casa durante a infância.

Da descendência de D. Manuel, a única linhagem que não pareceu afetada pelo imaginário contido na conjugação entre quinta e caça foi a da filha casada à sua revelia. D. Filho permaneceu envolto pelo jardim da casa paterna, nas fímbrias da quinta, sempre interessado na sua manutenção. Da descendência de Zélia, o filho único, embora sustentado pelo comércio farmacêutico, manteve-se intensamente associado à caça, tendo morado por muito tempo em uma residência semirrural no entorno de Petrópolis e adquirido uma extensa fazenda em Minas Gerais. O único filho havido de sua primeira esposa, ao se aposentar de uma instituição financeira, herdou a fazenda, onde passou a residir e a manter uma pousada. Laura Esteves Pereira deslocou o interesse para a apurada quinta de seu marido em Itaipava, embora tenha se mantido também sempre ciosamente interessada na manutenção da propriedade de sua família de origem. Finalmente, a terceira filha de D. José, após a aposentadoria do marido, construiu dentro da própria quinta sua residência definitiva, onde criou os filhos e presidiu aos últimos tempos de uso e gozo da propriedade. Seu filho do meio, que teve uma carreira de renunciante típica da contracultura dos anos 1960, passou a maior parte da vida adulta vogando nos rios da Amazônia à margem da floresta. E a caçula, por sua vez, também veio a ter um sítio florestado na serra petropolitana, importante em determinado período de sua vida adulta.

A vida da família se caracterizou por tensões nos limites e formas de expressão da sexualidade e da moralidade. O patriarca era considerado um homem autoritário e violento no trato doméstico, sobretudo no contexto dos intensos ciúmes de sua mulher, motivados por seu desabrido comportamento libidinal. Considerava-se como característico dos homens Dias esse traço mulherengo, presente também, como já se viu, em Arthur (Dias) Pereira Campos e em D. José. O anátema à fuga de Silvina para se casar parecia a muitos repetir o do "casamento por rapto" que fora o do próprio D. Manuel com Catharina, já que a família desta também não vira com bons olhos o casamento com o português de carreira ainda incipiente à época no comércio local. Problemas no tocante à relação entre sexualidade e reprodução caracterizaram todos os casais descendentes, da segunda e da terceira geração; situação a que se pode agregar o celibato de D. Filho, cuja perturbação se fazia acompanhar de uma intensa e difusa disposição homossexual, confidenciada a sua irmã mais próxima e nunca levada - alegadamente - à prática. À radical indiferença conjugal de Laura se contrapuseram as exasperadas relações de Dalila e Silvina com seus respectivos maridos. Ambas eram frequentemente acometidas por crises nervosas de grande dramaticidade, desencadeadas pelo ciúme - plenamente justificado pelo menos no caso da primeira.

 

 

As trajetórias morais das três gerações iniciais se banhavam em uma disposição rigorista oficial muito acentuada, supostamente baseada nos preceitos da religião católica, e, no entanto, contrastante com alguns dos comportamentos efetivos. É possível conceber que as atitudes morais estivessem, na verdade, mais condicionadas pela crescente disposição de legitimação social do que por fortes convicções religiosas. O rapto de Catharina (no entanto muito devota) tinha sido certamente menos escandaloso do que o de sua filha Silvina, que já afetava um círculo social com mais altas pretensões(14). Na segunda geração, a única mulher da fratria de D. José, primogênita e mantida em sua herdade vizinha à quinta, em contraste com os demais irmãos, foi quase reduzida à miséria pelo marido, um jogador impenitente. A decisão de separar-se e "amasiar-se" com um homem casado valeu-lhe uma rejeição tão radical da família que os traços dessa história mal foram conservados. Isso ainda ocorrera nos primeiros anos do século XX. A decisão de Laura de manter seu casamento infeliz foi tomada no começo dos anos 1920. Por outro lado, já para o final da década de 1930, a filha mais velha de Silvina enfrentou uma situação homóloga, embora por razões inversas. Poucos dias após o casamento com um homem muito mais velho, retornou à casa paterna, alegando ter sofrido constrangimentos sexuais inaceitáveis - que levaram à formalização da separação. O que tinha sido impossível no segmento ascendente o foi no descendente.

A adesão geral e oficial ao catolicismo era, de modo geral, bastante frouxa; à exceção de Catharina e de sua neta Maria Luiza, ambas influenciadas pela piedade franciscana; institucionalizada em Petrópolis desde 1874. O único estudo admitido às mulheres - após a alfabetização na pequena escola da família - era o dos colégios de freiras, lugar importante de sua socialização. Maria Luiza, que decidira não seguir, como as irmãs, o curso "normal" no Colégio Santa Isabel, aprofundou em outra direção essa vinculação, ao se associar ao movimento das "Filhas de Maria" lá sediado.

O esgotamento do impulso empresarial na segunda geração correspondeu a uma progressiva estagnação econômica, passando os membros da família à condição de rentistas. O próprio marido de Zélia, ainda industrial ativo até o começo dos anos 1950, acabou convertendo o empreendimento em ativos financeiros, premido pela competição com a indústria farmacêutica transnacional no contexto do pós-guerra. Embora D. José e, depois, por poucos anos, seus filhos Maria Luiza e Domingos tenham sido assalariados de diferentes formas, o grosso da renda familiar permaneceu até a terceira geração decorrente dos imóveis e de participações acionárias. Estas últimas, ainda ativas na posição empresarial de D. José, tornaram-se completamente passivas após sua doença e morte. E, além de passivas, crescentemente insolúveis, com a decadência acelerada da indústria têxtil petropolitana.

A conversão a rentista é muito mais do que econômica. É também moral. Às transformações na composição e dinâmica do capital corresponderam mudanças no ethos dos membros da família, com a estetização dos hábitos e o crescimento do consumo suntuário em detrimento da acumulação. A transformação do sentido da quinta foi parte importante desse processo, mas não a única em jogo. Já durante a primeira geração, as exigências de "representação" social tinham vindo a se tornar eminentes, com repercussão sobre os hábitos e as expectativas dos descendentes. A aquisição pela família de um ethos de distinção foi substancialmente afetada pelo fato de transcorrer no ambiente petropolitano, em sua condição de capital social do país entre o Império e os anos 1950. Apesar do caráter bastante discreto da Corte, sobretudo em seus veraneios serranos, os segmentos ascendentes da burguesia local conviviam em muitos níveis com a elite nacional - e inclusive com a própria família imperial, como no caso de D. Manuel, dos Esteves Pereira e dos Pereira Campos. A emulação dos comportamentos de elite era um rumo fecundo para as ambições das fortunas urbanas emergentes.

Esgotado, porém, o período heróico da primeira geração, subiu ao primeiro plano a espinhosa ambiguidade de D. José. Sua atitude de acomodação com o status de sócio-gerente e seu recolhimento pessoal constante à quinta e à floresta contrastavam com o cultivo da figura pública de um dândi e com o requinte no trato da casa, dos jardins e da criação. Sua desastrosa gestão da fortuna selou afinal um diagnóstico de perdedor, penosamente suportado pela família.

O destino geral é inseparável de outra aparente decorrência da estratégia camponesa do fundador. A ênfase na transmissão de bens de raiz correspondeu a uma total indisposição em proceder a uma reconversão pela educação, apesar dos estímulos do meio social em que a família se desenvolveu. Os primos Duarte Silveira seguiram, por exemplo, o processo, já desencadeado pelo pai, de conversão de uma família de proprietários rurais em decadência para posições administrativas urbanas, com lastro em formação profissional universitária. Os vizinhos Amoroso Lima deram continuidade ao processo de adaptação às novas circunstâncias sociais de uma família aristocrática portuguesa migrada, passando do investimento industrial (contemporâneo ao de D. Manuel) às carreiras profissionais e ao cultivo intelectual bem-sucedidos. Já os primos Roldão Barboza e Arthur Pereira Campos, herdeiros de migrantes enriquecidos, mas não cultivados, mantiveram-se no âmbito de suas carreiras individuais socialmente brilhantes, encerrando a trajetória familiar (no primeiro caso) ou ameaçando-a severamente (no segundo).

A expectativa de acolhimento do mandato original foi incumbida, na terceira geração, diretamente a D. Filho. Não houve nenhum investimento na direção de uma reconversão econômica e simbólica, restringindo-se sua educação aos níveis disponíveis na cidade - ainda menores para os homens do que para as mulheres. Na verdade, ocorreu uma espécie de afunilamento desastroso do mandato sobre sua cabeça, uma vez que - ao atingir a maturidade - já não encontrava condições de reproduzir plenamente nem a carreira de empreendedor capitalista nem a de um rentista de alto nível. A ocupação de uma posição de pequeno funcionário em uma agência pública federal foi considerada inevitável nas circunstâncias - sobretudo em face da crescente percepção de alguma perturbação de seu "temperamento", visível desde a adolescência. A grave tensão que caracterizou sua relação com o pai pode ter tido a ver com um precoce mal-estar em face da relativa demissão paterna no tocante ao mandato familiar que percebia dever ser o seu. A relação de D. Filho com a quinta adorada pelo pai permaneceu ambígua: a ela não se dedicou pessoalmente, embora - como disse - tenha permanecido atrelado a ela, em sua periferia física, incluindo-a em suas preocupações patrimoniais.

A família associava suas "manias" às "convulsões" sofridas na infância e ao impacto da dramática morte da irmã, ocorrida quando tinha quatorze anos(15). Levantava-se o tema do risco para a progênie dos casamentos consanguíneos. Relatavam-se episódios de crueldade infantil e um certo exibicionismo, nos banhos masculinos no tanque do jardim. A atitude da família em relação a suas "manias" variou muito ao longo de sua vida ou segundo os diferentes eixos de relacionamento. De um modo geral, tendeu a crescer uma atitude de evitação prudente e relativo desinteresse, inclusive por parte da mãe e da irmã mais velha. O único parente a permanecer afetivamente muito próximo foi a irmã antecedente na fratria, sobretudo a partir de sua instalação em uma residência vizinha, no centro da quinta.

Obtido o controle exclusivo da casa familiar, a condição de D. Filho se precipitou na direção de um enclausuramento físico radical. Aposentado por invalidez mental, conseguiu, graças à atitude familiar, resistir incólume aos riscos de asilamento. Aos poucos, desenvolveu uma crescente desqualificação da apresentação corporal, com sua figura imponente e sedutora completamente desmazelada, a barba longa (como a do avô), os sinais de descuido de higiene e saúde ostensivamente visíveis. A evitação de todo contato corporal direto era garantida pelo uso obsessivo do telefone. Seu uso prático e social era complementado pela leitura de revistas e dos ingênuos jornais locais e pela frequente inserção de notícias pagas sobre os eventos comemorativos da família; além dos cartões profusamente postados. Nos dias firmes, assomava ao balcão do jardim, numa rua de grande movimento como a que se tornara a das residências originais da família, para uma animada conversação com toda sorte de passantes. Apesar da atitude de isolamento e degradação de que se cercava, mantinha uma intensa vida social a distância, marcada por um pedantismo sem pejo. Jactava-se de suas amizades prestigiosas (muitas herdadas das redes familiares), citando os sobrenomes altissonantes e mobilizando tais relações para alimentar sua paixão por cães de raça e por orquídeas. Um fluxo constante de presentes suntuários era rememorado na exposição aos raros visitantes sobre as mesas da casa, em meio à mais absoluta abjeção ambiente. Durante as últimas décadas de vida, suas únicas saídas do antro se davam à noite, em visitas rápidas e esporádicas a Maria Luiza, esgueirando-se pelos antigos caminhos da quinta. E nesse ambiente viveu até a morte, aos 68 anos, em 1981, finalmente entregue aos cuidados da irmã.

Muitos dos fios antes lançados podem ser recuperados nessa peculiar construção identitária, alguns mais óbvios, outros mais distantes e especulativos. Tudo pode ser visto como uma criativa dramatização das contradições acumuladas em múltiplos níveis. Por um lado, a renúncia radical à aceitação do mandato, rompendo com as convenções da reprodução econômica e física legítima. Isolado pelos "micróbios", pela evitação da homossexualidade, pela agressividade e pela degradação, nosso personagem tornava contundente a impossibilidade de atender à demanda herdada. Por outro lado, em sua exacerbada ânsia de sociabilidade, mimetizava deslocadamente os procedimentos e valores do círculo em que evoluíra sua família, com a manutenção das "finezas" deuma troca social cortesã, finamente elaborada e crescentemente antiquada. À degradação higiênica e sanitária pessoal contrapunha a estetização das trocas de presentes, do gosto por iguarias requintadas e por plantas e animais raros. Construído como perdedor e autoexilado da convivência familiar, acompanhava ciosamente todos os movimentos da rede, menosprezando os perdedores e regozijando-se com o sucesso dos fortes. Ao pai que tanto atormentara, referia-se, nas matérias pagas, como o "saudoso industrial". Alijado da herança da maior parte dos objetos de prestígio (como as joias masculinas), conservou até a morte, sob sua guarda, em decrepitude e cobertos por sórdida pátina, todos os móveis e objetos de uso da casa paterna. Não é impossível aproximar seu enclausuramento do modo pelo qual a quinta e a caça tinham sido apropriadas pelos demais homens de sua linhagem: modos de lazer certamente, mas de um lazer subtraído à sociabilidade comum, enfurnado nos ritmos telúricos, envolto por uma reiterada sensualidade homossocial.

Aos elementos de perturbação por contradição explícita - que poderiam ser interpretados como de "duplo vínculo", em muitos casos -, seriam acrescentáveis pelo menos três, que, embora evidentes, não assomavam nas reminiscências da família explicitamente cercados de seu potencial negativo. Penso na herança da orfandade precoce de D. José, por um lado, com as consideráveis ameaças dela decorrentes, reais e imaginárias. E, por outro, nas ameaças simbólicas de incesto comportadas pela longa dominação de D. Manuel sobre a viúva de seu irmão e pela união dos dois primos-irmãos; que tinham sido criados ademais em grande proximidade (tema que aparecia travestido pela remissão aos riscos da aliança consanguínea). Os efeitos de orfandade e de incesto foram perceptíveis na configuração psicológica de sua irmã Maria Luiza. A orfandade, transmutada na representação de um abandono afetivo da mãe, provavelmente reforçada pelo desamparo de seu nascimento prematuro; o incesto, pulsante na intensa relação afetiva que a manteve sempre ligada ao irmão. O terceiro elemento poderia ser a condição original de migrados europeus para a América dos irmãos Dias; fenômeno analisado de maneira instigante por Calligaris (1991) em seu potencial psicologicamente perturbador, em seu desafiador desenraizamento institutivo - mas o tema exigiria outro rumo da análise. Esses podem ter sido, de qualquer forma, efeitos de "cripta" na transmissão transgeracional a se presumir ativos no desencadeamento das diversas reações dos herdeiros. Mas é claro que outros poderão ter existido, irrecuperáveis nas camadas vigiadas e reelaboradas da memória familiar.

Em contraste superficial - já que não pode ser aqui desenvolvido a contento - com o desenlace dramático e penoso da transmissão por via varonil, seria possível explorar e tentar entender o relativo sucesso do ramo que veio a atender mais positivamente ao mandato do patriarca fundador. Sem dúvida, a posição na fratria de Maria Luiza, a terceira filha de D. José, pode ter sublinhada sua relativa vantagem, justamente por não lhe incumbir preferencialmente o mandato. Primeiro, em relação ao irmão, em sua condição de único neto varão, de filho caçula, e de afilhado e xará do patriarca; mas também em relação à outra irmã, em sua condição de primogênita. Pode-se mesmo aventar que certos aspectos de sua condição moral tenham decorrido de um precoce sentimento de alijamento da transmissão, de um vívido ressentimento contra o que experimentava como uma demissão de sua identidade(16). A lealdade ao mandamento da herança varonil fez com que permanecesse inicialmente submissa à ordem doméstica. Só decidiu assumir as rédeas de sua própria trajetória individual tardiamente, justo após a morte do pai e a renúncia social do irmão(17). A própria fraqueza social de seu casamento tardio, em contraste com a precocidade e prestígio do de sua irmã Zélia, pode ser vista como tendo sido capaz de evitar a imposição, ao casal e a sua prole, das prioridades identitárias virilaterais. Uma tenacidade moral particular, associável à devoção religiosa, tão diversa da maioria dos parentes, não foi estranha ao esforço de imposição de uma rigorosa "força de vontade", com que procurou afinal transmitir, em distante reverberação e não sem contradições, o mandato avoengo originário(18).

Sucesso relativo na herança do mandato, disse há pouco. Não apenas porque tenham tido seus herdeiros algum tipo de sucesso "objetivo" em suas trajetórias vitais, mas também porque estiveram atentos à linha de descendência aqui remontada, porque recolheram a maior parte dos elementos materiais transmitidos ao longo dessas gerações, e porque se dispuseram, finalmente, a proceder a um trabalho de memória específico, continuado, elaborando em suas próprias trajetórias a "lenda de família" construída através de tantos "mitos individuais"(19). As outras duas linhagens férteis, a de Zélia e a de Silvina, vistas deste ângulo, refrataram-se em direções opostas: a primeira infletida pela forte identidade social do marido e por sua devastadora atitude em relação ao filho único; a segunda minada pela desqualificação social e por uma peculiar crispação moral e sexual.

Sublinhei particularmente aqui o modo como o mandato da herança varonil de sangue, nome e terra tendeu a paralisar ou constranger a maior parte das linhas descendentes, tanto nas posições masculinas quanto femininas. Seria possível enfatizar como determinantes - entre os demais fatores arrolados - duas propriedades principais desse mandato originário: a sua excessiva linearidade e rigor (no concernente sobretudo à herança diferencial por gênero), por um lado, e a sua considerável impertinência sócio-histórica, por outro. Com efeito, a estratégia "camponesa" do patriarca dificilmente poderia ter se afirmado positivamente no contexto das intensas transformações sociais da burguesia urbana brasileira ao longo do século XX. E nem se pôde, por outro lado, beneficiar imediatamente das formas emergentes de reconversão sublimada pelo investimento no estudo e na formação profissional.

Um dos muitos aspectos delicados da utilização de um material de memória para a compreensão antropológica reside na qualidade dos dados assim trazidos para a modelização. Uma interpretação como a que aqui levantei sobre a descendência de D. Manuel não se sustenta sobre representações claras e explícitas dos informantes. O material agregado, mesmo em seus dados aparentemente mais objetivos, foi difundido de forma reflexivamente vivida e não reflexivamente elaborada ou sistematizada. Embora possa haver alguns fragmentos do argumento esparsos no discurso (ou na representação) nativo, trata-se fundamentalmente de uma construção analítica, a partir de uma complexa trama de informações, baseada - além do mais - antes na versão de uma parte dos membros da rede do que na de outros.

O grau de reflexividade sobre tais assuntos é imensamente variável entre os membros de qualquer rede familiar (segundo eixos de geração, gênero, momento do ciclo de vida, classe social etc.) e a construção de uma versão canônica do mito deveria - no limite - possivelmente incorporar suas variantes, alternativas ou transformações. Isso teria que pressupor, no entanto, que houvesse uma comum consciência ou referência a um mito originário, o que certamente não é verdadeiro. O próprio mito familiar é, nesse caso, uma construção da qual não participam todos os supostos interessados, participantes das histórias de que se pôde constituir. O que apresentei aqui está mais próximo do modelo consciente de uma das linhagens, justamente a que veio a se considerar "herdeira" (e a apresentar os sinais considerados comprobatórios desse processo). Por um lado, os "deserdados" ou "desertores" tendem justamente a não repassar a seus herdeiros a referência a um fenômeno de cujo sentido se afastaram. Por outro lado, os segmentos que se consideram em processo de afirmação social e que necessitam de uma reflexão identitária legitimadora endossam o apagamento progressivo das linhagens em decadência econômica ou sem descendentes; a não ser que se tenham inscrito de modo marcante em alguma instância legítima da memória pública. Seria impossível tratar, assim, neste registro, do modo como se constituíram as identidades dos segmentos "perdedores", relativamente a algum de seus vínculos familiares. Até porque a renúncia, deserção ou perda só se podem enunciar a partir de uma perspectiva parcial. Na mais favorável das hipóteses, os "outros" acabam provavelmente por atrelar sua identidade a um novo foco, um novo nódulo familiar, um novo cenário social, como os dois migrantes originários desta história parecem ter feito em relação à sua constelação de origem.

Um outro ponto importante no que toca a qualidade dos dados em questão aqui é o de sua frequente ancoragem na "cultura objetiva" circulante (ou represada, ou desviada) na trama familiar. A história transgeracional de certos objetos ou propriedades pode ser tão importante quanto a história de vida, no sentido estrito, ou os relatos compartilhados. Uma atitude de conservação tende a se fazer acompanhar de um trabalho simbólico de transmissão e herança; tanto quanto uma atitude de dispersão encarna uma disposição identitária demissional ou alternativa. Trata-se também aí, de qualquer forma, de uma interpretação consideravelmente arbitrária, como é a de qualquer modelo da vida social em qualquer cultura. Neste trabalho, deu-se maior atenção à herança da terra e de certos traços morais. Poderia ter sido explorado o destino dos objetos de prestígio, como as joias - masculinas e femininas -, das preferências estéticas ou das disposições corporais (a respeito de questões como elegância, violência, beleza ou competência artística). Mas acredito que, nesta história, teriam confirmado as linhas de interpretação aventadas.

O critério de pertinência da interpretação em relação à evidência empírica deve ser, no caso da Antropologia, o de sua maior explicabilidade e economia - nos termos clássicos da proposta estrutural de Lévi-Strauss. Esta é uma diferença importante da referência aqui feita a conceitos como o de "mandato familiar". No contexto psicanalítico ou sistêmico mais estrito, seu critério de validade é certamente o de uma maior explicabilidade; indissociável porém da expectativa de algum novo patamar de autopercepção e reconstrução imaginária por parte de clientes em sofrimento. Para a Antropologia, não pode passar de uma interpretação abstrata; sem a expectativa sequer de um efeito de mímese entre os leitores, como aquele a que aspira a literatura de ficção.

Quem sabe, no entanto, para mim, observador e observado, essa sensação de uma maior explicabilidade não possa comportar do mesmo modo um sentido gratificante e "terapêutico", complementar ao proposto e compartilhado efeito de conhecimento. Também o trabalho intelectual, seja ou não decorrente de materiais diretamente buscados na própria subjetivação diferencial de seu autor, opera afinal em cumprimento a determinadas, ponderáveis e complexas versões e nuances dos mandatos familiares aqui evocados.

 

Notas:

1. Na verdade, a Antropologia tem insistido na relativização da categoria "indivíduo", demonstrando seu caráter cultural e historicamente construído - o que desvenda o caráter ideológico da própria oposição (cf. sobretudo, DUMONT, 1985).

2. A aproximação é notória nas obras de Michel Foucault e de Claude Lévi-Strauss. Para duas revisões explícitas do tema, de diferentes ângulos, cf. DUARTE, 1989 e DUARTE, 2006.

3. O projeto teve financiamento do CNPq, da FINEP e da Fundação Ford. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Seminário "Mudança Social, Gênero, Gerações e Classes. Perspectivas Comparadas", organizado na Escola de Serviço Social / UFRJ, em 2007.

4. O interesse geracional está presente em análises mais antropológicas, como em PINA CABRAL, 1986, e em LINS DE BARROS, 1987; em análises psicossociais como em MAÎTRE, 1996; ou em análises mais sociológicas tais como as de LOMNITZ & LIZAUR, 1987; LE WITA, 1991; COENEN-HUTHER, 1994, e ATTIAS-DONFUT, 2000.

5. A expressão "Psicanálise Transgeracional" não é aceita por todo o campo que se move em torno da questão da transmissão psíquica entre gerações. A fórmula "Psicanálise Intergeracional" é preferida pelos que consideram a primeira excessivamente comprometida com a análise sistêmica (de família), ou é utilizada como referência a processos de transmissão elaborada ou simbolizada - em oposição aos processos "transgeracionais", não elaborados. Para os fins deste artigo, é particularmente importante a noção de "mandato": uma configuração imaginária projetiva que é transmitida aos descendentes (ou a alguns deles) de um modo não completamente explícito ou consciente (cf., por exemplo, ABRAHAM, 1987; KAËS et al., 1991; GOLSE, 1995; TISSERON, 1999).

6. A migração portuguesa nesse período ainda estava voltada para a ocupação de funções comerciais urbanas e operava por investimento dos próprios interessados e de suas famílias. Apenas posteriormente, quando se acentuou a crise da mão de obra escrava no Brasil, é que passou a ser promovida em direção ao trabalho rural, com planejamento e subsídios do Estado (cf. SERRÃO, 1982).

7. Sobre Pereira Campos, proprietário desde 1873 do Hotel Bragança, centro da vida social da cidade até o final do Império, ver AGUIAR, 1940 (assim como sobre os irmãos Dias e quase todos os demais personagens aqui citados das duas primeiras gerações). Também há informação sobre Domingos Manuel em MUSEU IMPERIAL, 1959.

8. A Companhia Petropolitana de Tecidos (a "Fábrica da Cascatinha"), fundada em 1873, foi a primeira das grandes fábricas que se instalaram na cidade. Outro marco foi a inauguração, em 1889, da Fábrica de Tecidos Dona Isabel. Em 1903, inaugurou-se a Indústria Cometa, da família Amoroso Lima e, depois, da família Amado. D. José trabalhava na Fábrica Brasileira de Lanifício de Petrópolis - considerada a "fábrica da família" (originalmente Fábrica Têxtil Nossa Senhora do Rosário).

9. Todos os nomes pessoais dos homens da família foram duplos, a partir do mais recuado de que se tem notícia, o do pai dos irmãos Dias, Bento José Dias. Se o batismo de D. José poderia ser considerado como uma homenagem ao tio D. Manuel (efetivamente seu padrinho), mas também ao pai e ao avô paterno, o de seu filho reforçou essa trama relacional. Também é relevante evocar que os dois filhos homens precocemente mortos de D. Manuel chegaram a ser batizados com esse mesmo nome de Domingos.

10. Além das perdas patrimoniais decorrentes da má gestão da família, avizinhavam-se as dificuldades que a Lei do Inquilinato, de 1942, imporia aos proprietários rentistas. Em 1944, como marcante sinal da decadência do setor, a Fábrica Brasileira de Lanifício entrou em falência.

11. Analisei em outro trabalho a trajetória familiar desse personagem (DUARTE, GOMES, 2008).

12. Embora essas memórias não sejam exclusivamente as do próprio D. Filho, as que puderam ser recolhidas no contato direto do seu sobrinho pesquisador não contradizem o desenho aqui avançado. Mais para o fim de sua vida, com a progressiva rarefação das relações com os descendentes das diferentes linhagens, avolumou-se em sua vida social a sempre importante referência à notável rede de "amizades" em que se mantinha efetivamente envolvido.

13. "Na verdade, os residentes locais manifestam uma preferência pela manutenção intacta das terras centrais à casa e explicam mesmo a frequente ocorrência de casamentos entre primos como uma tentativa de reunir as várias propriedades da casa" [meu itálico] (PINA CABRAL, 1984, p. 276).

14. O casamento por rapto era uma instituição corrente até o final do século XIX no Brasil. Era uma modalidade de arranjo matrimonial em que se desafiava a autoridade parental, garantindo, porém, uma certa preservação moral da mulher. Ela não seguia diretamente para os braços do noivo, mas sim para o abrigo de alguma autoridade pública, que se ocupava dos trâmites legais do casamento.

15. O fato de Celina ter morrido jovem permitiu uma grande exploração imaginária de sua condição "pura", virginal. É possível que a escolha por seu irmão de Santa Filomena como padroeira de devoção tenha tido a ver com sua condição de "virgem mártir". Por outro lado, o fato de ter morrido de uma infecção pode ser aproximado da referência imaginária de contaminação por micróbios que caracterizou, mais tarde, a neurose do irmão.

16. A terceira gravidez de Dalila tinha se cercado de acrescida expectativa, em face da sequência anterior de mulheres e ao envelhecimento do patriarca. O nascimento de Maria Luiza foi prematuro, e sua primeira infância, cercada de grandes cuidados com uma saúde frágil. Uma mútua desconfiança sempre cercou a relação da mãe com essa filha, parcialmente criada pela vizinha avó materna. Mais tarde, a filha externou a impressão de estar sendo prejudicada nas partilhas e heranças.

17. BOURDIEU descreve um caso fascinante de vantagem das mulheres nas estratégias de reprodução do campesinato bearnês em desestruturação - justo por serem o lado mais fraco na situação de origem (1962).

18. Seria irrelevante lembrar que foi a única das irmãs a portar um nome pessoal duplo? Pode-se evocar ainda que deu a seus três filhos nomes duplos, mas sem nenhuma referência ancestral (nem paterna, nem materna), em contraste com o filho único de Zélia, que recebera também um nome duplo, mas construído com um dos nomes próprios característicos da família do marido e não dos Dias.

19. Tomo de uma análise de PINA CABRAL (2003, p. 127) a expressão "lendas de família" e de LACAN (1954) a de "mito individual do neurótico", num artigo construído justamente a partir do famoso caso do "homem dos ratos", de Freud - uma neurose obsessiva paradigmática.

 

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Recebido em: 05/11/2010
Aprovado em: 09/06/2011

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