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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2011

 

TRADUÇÃO

 

Estados-limite e limites da confiança

 

 

Jean-François ChiantarettoI; Jean-Pierre PinelII

IPsicólogo clínico e psicanalista; atuou em vários centros de saúde, incluindo o Alfred Binet Centre, Paris. É doutor em Filosofia e professor de Psicopatologia na Universidade Paris 13. Fundou e organiza desde 1992 o grupo de pesquisa "Littérature personnelle et psychanalyse". É codiretor da Unité Transversale de Recherche en Psychogenèse et Psychopathologie. Tem publicado diversos livros sobre Psicanálise, linguagem, escrita
IIMaître de conférences em psicologia e orientador de pesquisas na Unité Transversal de Recherche en Psychogenese et psychopathologie da Université Paris 13

 

 


RESUMO

A partir de dois dispositivos terapêuticos diferentes: uma psicoterapia analítica conduzida face a face e um psicodrama psicanalítico de grupo, os autores mostram que a questão da confiança constitui uma aposta clínica específica com as patologias limite.


RÉSUMÉ

A partir de deux dispositifs thérapeutiques différents: une psychothérapie analytique conduite en face à face et un psychodrame psychanalytique de groupe, les auteurs montrent que la question de la confiance constitue un enjeu clinique spécifique avec les pathologies limites.


 

 

A questão da confiança constitui uma aposta específica com as patologias limite. Como pode este tipo de paciente confiar no analista, uma vez que ele se construiu em uma decepção fundadora com o outro primordial (a psique materna), na experiência não apenas de uma falência traumática precoce do outro, mas, literalmente, instalando-se nesta falência - a tal ponto que a sobrevivência psíquica será permanentemente investida como estando condicionada pela incessante confirmação da falência traumática do outro no seio de toda relação? E como pode o analista, com esse tipo de paciente, ter confiança em sua própria capacidade de restaurar ou instituir a confiança no outro, quando o modo relacional dominante imposto pelo paciente supõe o ataque ao pensamento do analista ou, de forma mais precisa, o ataque às disposições para investir no paciente como fonte de pensamento, afeto e emoção?

Eis as duas questões que marcam a confrontação às patologias limite, as quais se caracterizam pela expectativa desesperada em relação ao outro, uma expectativa paradoxal que, no que diz respeito à própria possibilidade de uma relação (com outrem e com o outrem em si), só se expressa na forma do ato de infligir um desespero ao outro. Disso resulta um funcionamento psíquico marcado por fronteiras do eu precárias e variáveis. Tal variabilidade dos limites do eu provém da falência de todo sistema de regulação do tipo paraexcitação e se faz acompanhar da ausência de coesão interna, com a justaposição e aglomeração de elementos psíquicos distintos uns dos outros. Seus principais sinais são: sentimento de não existir, impossibilidade de estar presente na relação com o outro, sentimento de vazio interior, pensamento esvaziado.

Gostaríamos de ilustrar as dificuldades inerentes ao tratamento analítico desses pacientes por meio da apresentação de duas situações clínicas, escolhidas a partir de sua complementaridade, ressaltando, em particular, a problemática da confiança. A primeira se baseia em uma prática clínica grupal, conduzida em estabelecimento especializado, com pré adolescentes de 11 a 14 anos cujo traço em comum são os atos violentos que apresentam sempre um aspecto autodestrutivo (ataques ao corpo, condutas de risco, autossabotagem...). A segunda situação se refere à Psicoterapia analítica de uma jovem mulher, conduzida face a face num enquadre liberal. Veremos que o contraste entre as duas situações, reforçado pela diferença dos dispositivos clínicos e das respectivas idades, não poderia mascarar profundas convergências concernentes à busca de socorro no agir.

Embora a violência infligida a outrem pareça diferente entre uma e outra situação, ela contém, nos dois casos, um aspecto autodestrutivo bastante acentuado no seio de configurações que parecem constituir um paradigma não apenas para pensar a questão dos limites, mas também para explorar as condições de constituição de uma confiança suficientemente boa. Por esse motivo, antes da apresentação das situações clínicas, situarei brevemente as configurações-limite aqui abordadas em um plano teórico específico.

 

A psicopatologia dos limites

As patologias-limite constituem um temível desafio aos praticantes, e a questão dos limites se tornou central na reflexão contemporânea dos analistas acerca da psicopatologia. Estados-limite, situações-limite, patologias-limite, Borderline...

A hesitação nosográfica expressa bem certo mal-estar da Psicanálise, quer estas categorias estejam ou não nitidamente diferenciadas das patologias ditas narcísicas ou, mais especificamente, das perversões narcísicas. Este mal-estar é redobrado por outro, com a predominância contemporânea de figuras relativamente inéditas do mal-estar na cultura, teorizado anteriormente por Freud. Essas figuras procedem fundamentalmente da possibilidade de modificar/transgredir os limites constituídos pelas invariantes sexuais, sociais e ambientais, que caracterizavam a realidade humana.

Nessas economias, a linguagem não adquiriu verdadeiramente o estatuto de elemento de intermediação e de ferramenta de comunicação. Os modos de relacionamento estão sempre submetidos ao risco da violência ou da falta de contato. O ataque aos laços subjetivos e às ligações intrapsíquicas engendra funcionamentos fechados. Com efeito, a patologia está presa na intersubjetividade: ela resulta da quebra das funções psíquicas que concernem ao objeto primordial e ao grupo de pertencimento primário (ROUCHY, 1998). Tais desmoronamentos ou desfalecimentos procedem fundamentalmente da incapacidade do respondente (KAES, 2009) para resistir ao que Winnicott designou como destrutividade primária.

Desfalecimentos que têm valor de traumatismos frios (JANIN, 1996) e que são secundariamente reproduzidos nos grupos de pertencimento secundários, opondo-se à constituição do que Balint designou como a confiança fundamental. A confiança fundamental é uma fé leiga no outro, em sua palavra. Uma crença na capacidade do outro e dos outros de se constituir como respondente confiável: uma convicção profunda na fidedignidade do vínculo e da fala. Esta confiança fundamental, encontrada-criada (WINNICOTT) na relação com as figuras parentais e com o grupo familiar deverá ser interiorizada para ser convertida em uma confiança em si e, em seu futuro, suficientemente boa, a não ser que aconteça um traumatismo ulterior.

É justamente a confiança fundamental que se vê impedida pelas patologias-limite e pelo funcionamento instável que as caracteriza. A falta de estabilidade dos limites da psique - como conjunto de capacidades e como lugar (RACAMIER, 1989) - reenvia, conforme a teorização de André Green (GREEN, 1976), à perturbação das duas áreas intermediárias: área intermediária entre o inconsciente e o sistema consciente/pré-consciente e entre o dentro e o fora, no sentido da área transicional segundo Winnicott. No lugar e no espaço dessas duas áreas intermediárias e de sua função de união e de separação, os sintomas e a atividade onírica vêm ocupar e investir literalmente nos limites - as fronteiras entre inconsciente e consciente/pré-consciente, entre o dentro e o fora ou, mais precisamente, entre a psique e o fora da psique (a realidade exterior enquanto percebida), mas também o soma -, tendo como função primordial a evacuação ou o alívio da excitação pulsional, por falta de uma regulação de tipo paraexcitação.

A função de evacuação por meio do soma ou pelo agir é característica justamente daquelas que são consideradas patologias dos limites. Mas, é preciso acentuar com Green (1999) que elas se originam em um funcionamento psíquico dominado por dois mecanismos fundamentais: a clivagem e uma forma primária de depressão. "A clivagem pode circunscrever diversas entidades, diversos setores - psique/soma, bissexualidade (masculino/feminino), pensamento/ato etc." Esse modo de clivagem corresponde a uma automutilação do ser, e a assim chamada depressão resultaria de uma autodestruição centrada no pensamento, de uma destruição do componente afetivo do pensamento.

O resultado é um funcionamento psíquico caracterizado por fronteiras do eu precárias e variáveis, "alternando entre a expansão e/ou a retração, como maneira de reagir à angústia de separação (perda) e/ou à angústia de intrusão (implosão)" (GREEN, 1976). Tal variabilidade dos limites do eu procede da falência de todo sistema de regulação do tipo paraexcitação, e se faz acompanhar por uma ausência de coesão interna, com a justaposição e a aglomeração de elementos psíquicos discretos. Seus principais sinais são: o sentimento de não existir, a impossibilidade de estar presente na relação com o outro, o sentimento de vazio interior, o pensamento esvaziado.

 

O psicodrama de grupo com pré-adolescentes limite ou a representação figurativa dos desmoronamentos dos laços de confiança

O dispositivo terapêutico

Trata-se, nesse caso, de sustentar algumas propostas de alcance terapêutico e teórico. As características desses sujeitos-limite requerem o emprego de um dispositivo terapêutico que exerce a função de dar limites, mediante a oferta de uma paraexcitação e de um continente suficientemente contínuos. O apoio de base que provém do quadro institucional se articula com o uso de um dispositivo terapêutico específico: o psicodrama psicanalítico de grupo. O método do psicodrama permite mobilizar os materiais corporais e sensoriais de tal modo que as características cindidas ou fragmentadas, em decorrência do desmoronamento dos laços, dos traumatismos frios associados às falências do respondente, podem comparecer através dos cenários que surgem de forma imprevista. A construção desses cenários resulta do enlaçamento da ressonância fantasmática com o processo associativo grupal.

O material cênico produzido pelo grupo articula diferentes modalidades de configuração e procede do trabalho da intersubjetividade que transita pela análise aprofundada de movimentos transferenciais violentos, frequentemente siderantes.

Portanto, tratar-se-á de um grupo terapêutico semiaberto e animado por dois psicodramaturgos, uma mulher e um homem. O número de participantes é limitado a cinco ou seis sujeitos que apresentam sintomatologias suficientemente diversas. Esta diversidade permite mobilizar uma pluralidade de temáticas que enriquecem uma fantasmática grupal, caso contrário, haveria o risco de o funcionamento coletivo se fixar em uma patologia dominante.

Gostaria de apresentar uma sequência clínica que pode ser qualificada de situação-limite: situação que convoca os limites do dispositivo, do que pode ou não ser encenado e de nossas capacidades de acolhimento, contenção e elaboração.

O grupo é composto por cinco pré-adolescentes - de 12 a 14 anos - muito engajados em ações violentas. A sequência clínica apresentada ocorre algumas semanas após o início do trabalho grupal e será desenvolvida durante muitas sessões.

 

Primeira sessão: a evacuação das excitações e o ataque aos laços

Mal os meninos acabaram de sentar-se, um entre eles - Fouad - começa a lançar uma espécie de grito prolongado, extremamente agudo e penetrante. O grito se transforma progressivamente em um som cíclico onde alternam os sons graves e os agudos. Ele é classificado como "insuportável" por Christian, que ameaça bater em Fouad se ele não parar imediatamente de "bancar a sirene".

A intervenção se traduz pela intensificação da potência do som emitido por Fouad. Desse modo, ele consegue cobrir a voz dos participantes, que tentam tampar os ouvidos para limitar a vivência de intrusão.

Diante da impotência em fazer Fouad ceder, os quatro meninos se unem para fazê-lo calar-se. Embora visassem permitir que os adolescentes se associassem ou propusessem um jogo a partir daquela cena, nossas intervenções conseguiram apenas facilitar um volume sonoro ainda mais alto.

Os quatro meninos tentam prender Fouad pela cintura para, como eles dizem, "fazer com que ele se cale de uma vez por todas". Nossas intervenções, com visadas protetoras, paraexcitantes e de contenção - dando nome aos afetos de cólera e impotência -,mostram-se totalmente vãs.

Depois de alguns minutos estafantes de caos grupal, em que eu e minha colega experimentávamos sensações de transbordamento e de impotência, decidimos interromper a sessão. Interrupção que comentaremos nos seguintes termos: "A sessão se tornara um pesadelo para cada um e para todos. Era preciso que interrompêssemos a sessão para sair do pesadelo. Na próxima semana, poderemos falar do que aconteceu hoje."

A interrupção inesperada produzirá um efeito: os participantes deixarão a sala em silêncio, como que siderados por nossa intervenção em forma de ato. Depois da partida do grupo, minha colega e eu nos sentimos ao mesmo tempo desconcertados e um pouco desamparados, cada vez mais submersos em um afeto de desespero.

Num segundo momento, depois que tivermos trabalhado os afetos, nos será possível proceder a um processo associativo com vistas à elaboração. O movimento de retomada irá desembocar na análise de alguns elementos que foram solicitados durante aquela sessão.

Em um primeiro tempo, as associações nos levarão a marcar os lugares das diversas efrações dos limites que surgiram na cena; citarei aleatoriamente as regras do dispositivo e do psicodrama, a de nossos limites para conter, mas também a da Lei fundamental da proibição do assassinato. Num segundo tempo, nossas associações se concentrarão mais particularmente em identificar e capturar a dupla valência daquilo que designamos a posteriori como a cena da "sirene." Esta cena busca dar forma ao alerta e ao alarme. Ela evoca, no tempo da retomada pósgrupo, a iminência de uma catástrofe e de uma aflição subjetiva, alarme que foi recebido diretamente pelos membros do grupo.

O resultado é uma resposta grupal em forma de ataque assassino, destinada a fazer cessar a ameaça e a angústia, ligadas uma à outra. Contudo, é preciso assinalar que o significante "sirene" reenvia também a uma figura fascinante e perigosa, sedutora e mortífera, que condensa as figurações maternais arcaicas com figurações do feminino, como "a Medusa e a Esfinge". A "sirene" indica a aderência e a confusão com a Imago materna arcaica e, negativamente, a impossibilidade de ter acesso ao feminino primário. A cena indica ao mesmo tempo, de forma maciça, o fracasso da função terceira em sustentar o processo de separação subjetiva. Pode-se, então, entender o jogo da sirene como um apelo transferencial dirigido a uma imago paternal protetora, no intuito de barrar a aflição de um sujeito que se sente perdido, ameaçado de submergir no outro e nos outros, ou seja, no terror de ser aspirado no grupo e assimilado a uma imago maternal arcaica.

 

Segunda sessão: do informe à constituição de um ritmo grupal e de um espaço cênico

Os sujeitos retomam a cena imediatamente após sua chegada e o fazem no próprio lugar onde ela fora interrompida na sessão precedente. Logo de saída, Fouad reproduz o som de "sirene", estridente e lancinante, penetrante e angustiante. No entanto, as características desta modulação mobilizam no grupo determinadas associações verbalizadas, deixando emergir as imagens de catástrofe, de alerta, de acidente, de incêndio e, por fim, cenas de guerra. O processo associativo grupal permite dar forma à fantasmática de perseguição e de destruição transmitida por Fouad. As associações têm efeito de paraexcitação para Fouad, que vai se acalmando progressivamente.

Propusemos aos participantes a construção de uma cena a partir das diferentes associações. Fouad se dá conta da proposta de jogo e pede para encarnar o papel daquele que reproduz artificialmente os sons naturais durante a filmagem de um filme de ação. Arnaud aceita inserir-se nesse princípio de cena e emite o desejo de exercer a função de responsável pela iluminação. Os outros três membros do grupo também se introduzem nesse projeto de encenação, distribuindo-se entre os papéis de operador de imagem e operador de som. Constróise, assim, um espaço cênico, habitado pelos sons produzidos por Fouad: sirenes, barulhos de ferragens, choques, lembrando uma cena de acidente. Esta cena sonora é repetida sem qualquer mudança, como se estivesse sendo encaixada em uma espiral interminável. Para colocar um limite no desdobramento de uma pura compulsão à repetição, propusemos aos membros do grupo que retomassem o espaço da fala. Os adolescentes concordaram muito rapidamente em interromper um cenário que adquiriu a forma de uma repetitividade esterilizante: a interrupção constitui uma modalidade de desprendimento que poupa o narcisismo de cada um.

Durante o tempo da retomada verbal, Arnaud é o único que toma a palavra para dizer que a cena continuava "vazia". Ele observa que falta uma intriga, faltam imagens e diálogos. Pouco antes do fim da sessão, ele acrescenta: "Agora é preciso inventar uma história.".

 

Terceira sessão: o processo de representação figurativa do desmoronamento dos laços de confiança

Desde o início da sessão, os participantes desejam retomar a construção do cenário iniciada anteriormente, no mesmo lugar em que ela havia sido interrompida. Fouad propõe imediatamente o seguinte tema de representação: "durante a guerra, um pai carrega em suas costas o próprio pai ferido". Arnaud solicitará o papel do pai, deixando o papel de avô para Fouad. Os outros três participantes continuarão a exercer as funções técnicas que haviam escolhido na sessão anterior.

Os dois adolescentes desempenham seus papéis com bastante espontaneidade. "O pai expressa de imediato o quanto lhe é difícil sustentar seu próprio pai. Este último se encontra tomado por um sofrimento maciço: invadido pela fraqueza, depois de uma longa agonia, ele morre, sempre agarrado às costas do filho. Este último desaba, exclamando: Não posso seguir adiante carregando meu pai morto!".

Quando se retorna ao tempo de fala, Fouad toma a palavra depois de um tempo de silêncio atravessado por uma emoção intensa compartilhada por cada um dos protagonistas. Com muita seriedade e constrição, ele evoca a privação paterna. A ausência do pai é associada a uma traição e a um ataque aos laços de confiança, realizado em dois tempos.

Ele tinha apenas um ano na ocasião em que seu pai abandonou sua mãe para ir viver com outra mulher. Deixará o filho sem qualquer notícia durante vários anos. Em um segundo tempo, será a vez da perda da confiança na palavra dada, a palavra desacreditada. Embora ele tivesse prometido várias vezes e solenemente a Fouad que iria recebê-lo, algumas semanas se passaram e ele não reviu o filho nem o recebeu em sua casa. Esta evocação autoriza os membros do grupo a fazerem suas associações sobre as circunstâncias em que cada um perdeu a confiança no pai, forma paradigmática da privação paterna. Eles declinarão diferentes figuras do pai não confiável, que não pôde exercer sua função de respondente, nem resistir à agressividade. Nas sessões ulteriores, serão evocadas e representadas as figuras do pai desfalecido, ausente, encarcerado ou violento.

Os afetos de cólera, raiva e ressentimento associados à traição paterna se tornarão progressivamente material mental e servirão de objeto para encenação. As vivências ligadas às ausências do respondente serão enunciadas e poderão ser elaboradas no decorrer de algumas sessões. Durante as sessões ulteriores, os adolescentes construirão e compartilharão a representação dos traumas transgeracionais incorporados, transmitidos no silêncio e na clivagem. Evocar-se-ão particularmente os traumatismos de guerra, o que abrirá caminho para o remanejamento dos processos de identificação e permitirá um princípio de reconciliação com um pai mais humano, ele próprio capturado em uma história trágica e caótica entre e através de gerações. Pôde-se relançar um processo de transmissão, ultrapassando a experiência de abandono ou de traição, para interrogar o enigma do sofrimento e do sintoma paternais. Podemos fazer a seguinte afirmação: o processo grupal suscita a emergência do laço fraternal. O laço fraternal testemunha o restabelecimento de uma confiança suficientemente boa na relação com o outro e com os outros, um recurso contra a privação, mas também, como assinalou Freud (1916), o índice de uma reconciliação com o pai.

O ser diferido

Trata-se de um tratamento face a face, que durou aproximadamente dez anos, porque as sessões eram semanais. A primeira característica desse tratamento é a revelação final de um traumatismo sexual precoce do tipo incestuoso - agressão sexual por um primo germano que passou ao ato o ambiente incestuoso da família, mais particularmente, os investimentos incestuosos do pai. A fala libertadora só foi possível quando a paciente já havia conseguido experimentar, ao mesmo tempo em que a atacava, minha confiança no tratamento - ou seja, minha confiança na possibilidade de ocupar uma posição de analista diante dela -, fazendo-me viver, de diferentes maneiras e em diferentes ocasiões, a iminência do seu desequilíbrio como índice do meu fracasso.

Para ilustrar a questão da confiança nos estados-limite, falarei apenas da reviravolta no tratamento, depois de vários anos de análise, durante os quais se manteve uma dinâmica cujos principais aspectos estavam em um registro predominantemente histérico, com acentuados afetos depressivos e elementos fóbicos relativamente moderados.

Os limites do analista

A reviravolta é indicada por uma queixa que, uma vez instalada, dominará progressivamente o discurso como um todo. Ela adquire a forma de um violento protesto contra a subavaliação, o pouco caso que estaria sendo dado à sua "loucura", em consequência da minha incapacidade de resistir a suas manipulações e de adivinhar o que ela procurava me esconder: pensamentos e sensações de tipo obsessivo e mais próximos das manifestações delirantes. As sessões tendem a se esvaziar de tudo que não está ligado à relação comigo. Após solicitar formalmente que eu confirme a sua beleza, sou então desqualificado como homem, para não ser identificado a um pai potencialmente sedutor - ou a um primo sedutor "real", como ela me permitirá compreender retroativamente, quando, no fim do tratamento, tiver desvelado o seu segredo. A polaridade histérica da transferência será substituída pela clivagem, de tonalidade persecutória e paranóica, entre o analista idealizado, que escreve livros, e o analista desvalorizado, que não sabe compreender nem curar.

As manipulações e as provocações se tornam cada vez mais difíceis de suportar e se desdobram em diferentes registros: demandas transgressoras (em um modelo que poderá ser assinalado, mas não verdadeiramente analisado; demandas incessantes dirigidas a uma mãe deprimida que não sabe dizer não), chantagem com ameaça de suicídio ou de ir embora (ir procurar outro analista ou um psiquiatra que receite remédios). Nestes diferentes registros, ela brinca constantemente com a palavra, para sabotar qualquer possibilidade de comunicação entre nós, ou melhor, para imprimir uma modalidade "louca" de comunicação, que lembra o universo de Alice no País das Maravilhas, onde o sim e o não são totalmente intercambiáveis.

Neste momento do tratamento, tenho que me confrontar com um sentimento de impasse e enfrentar a inquietação ligada não apenas à eventualidade de um agir autodestrutivo, mas também à tonalidade persecutória, na medida em que ela me afeta de um modo dificilmente suportável. O agir se impõe - embora, por um lado, trate-se também de um ato: levando em consideração suas próprias palavras, eu lhe proponho consultar um colega psiquiatra, para avaliar a pertinência de um suporte medicamentoso transitório.

Do agir ao ato: recorrer a um terceiro e pôr em funcionamento o Terceiro

O encaminhamento ao psiquiatra será vivido por ela como a confissão da minha impotência para analisá-la e reconhecimento formal da sua "loucura", o que manifestaria de imediato que eu errara o diagnóstico, ao não considerar devidamente a gravidade dos seus problemas. A "ocupação" transferencial será ainda mais pesada, sua vivência de ter sido deixada neste lugar - ou seja, abandonada em sua loucura (obsessões e fobias de tonalidade persecutória) sem um continente confiável no exterior dela mesma - será reforçada, em alguns momentos, por meu próprio sentimento de culpa, suscitado pela irrupção de afetos ligados ao alívio trazido pela ajuda de um terceiro. Naqueles momentos, eu tive com frequência (e depois de forma mais elaborada e inteligível) o sentimento de que era preciso que eu me sentisse destruído em minha capacidade para ocupar e investir na posição de analista e sobrevivesse a essa destruição, para que ela pudesse pôr para fora a loucura familiar (expressá-la no agir, expulsá-la) e deixá-la para trás.

O encaminhamento ao psiquiatra serviu para materializar os limites da relação analítica no sentido dos limites das capacidades do analista como continente psíquico, no sentido de fronteiras (e de suas insuficiências tanto no plano de sua função de separação quanto de sua função de intercâmbio ou de comunicação) entre a paciente e o analista e entre o interior e o exterior do espaço analítico. Abriu-se por meio dele um campo de lateralização que pôde funcionar como um campo de experimentação dos referidos limites e permitiu finalmente a elaboração progressiva da clivagem e das manipulações, o estabelecimento de uma interioridade mais segura do seu território e de um sentimento mais firme de existir na experiência da continuidade de ser e de pensar, assinalando a possível reinserção dos aspectos delirantes no quadro da Psicoterapia.

O que certamente contribuiu para isso, e de forma decisiva, foi a verificação repetida por meio de suas manipulações - da não transgressão do segredo no espaço da Psicoterapia, entre o psiquiatra e eu. O trabalho de elaboração foi acompanhado pelo superinvestimento dos limites do espaço analítico, sobretudo no sentido das bordas que o delimitam:

- lateralização transferencial com aspectos erotomaníacos no desdobramento (silencioso e sem retorno) da paixão por um homem, parcialmente interpretada;

- jogos moderados (sem encaminhamento autodestrutivo) em torno da prescrição de psicotrópicos, aliás, bem leves;

- uso ao mesmo tempo bastante regular e comedido do telefone; as chamadas telefônicas tiveram a função não propriamente de dizer o que não poderia ser dito durante as sessões, mas simplesmente de permitir ouvir a minha voz, como se isto a impedisse de cair no agir autodestrutivo, tranquilizando-a quanto à minha sobrevivência diante de seus fantasmas destruidores e quanto à constância de uma atenção acolhedora que a deixava menos inquieta.

O tornar-se mulher

Este período longo e difícil desembocará na superação dos ataques sexuais do primo durante a infância. Isto nunca foi reconhecido pela família, nem confiado a quem quer que seja, embora não tenha sido recalcado. A experiência de libertação será progressiva, passando pelo abandono de uma postura de confissão. A emergência de uma queixa concernindo seu impedimento para entrar na relação com os homens constituirá uma reviravolta, assim que lhe for possível religá-la ao agir incestuoso. A partir daí, ela poderá começar a aceitar minhas interpretações acerca da dimensão incestuosa de sua família e do estatuto que esta adquire dentro de si, sua insegurança interiorizada e recalcada, a ambiguidade paterna e a depressão materna.

No tempo terminal da Psicoterapia, a ambiência transferencial se modifica consideravelmente, o feminino adquire "oficialmente" seu lugar, ao mesmo tempo em que ela pode elaborar suas fantasias de destruição mediante o trabalho de ligação de sua própria agressividade. Ela não se reconhece mais, o que a deixa inicialmente angustiada e, em seguida, num espanto mesclado de sofrimento, exatamente como uma adolescente que começa a poder se ver como mulher aos olhos de um homem, o que supõe que tanto a mãe quanto o pai a tenham autorizado. A renúncia aos psicotrópicos se efetua a partir de sua própria iniciativa e sem dificuldades.

O trabalho evoluirá progressivamente no sentido de uma separação em forma de acompanhamento, o apoio no analista significando a possibilidade do reconhecimento de um terceiro simbólico, para além da pessoa do pai e de qualquer figura substituta. O acompanhamento consistirá em ocupar a posição do interlocutor e da testemunha que a sustenta em suas novas interrogações - as interrogações de uma adolescente que lhe haviam sido até então proibidas - acerca da sua consistência narcísica e da possibilidade de ser amada por um homem.

A espera e o adiamento

Ser ou não ser, não seria esta a questão da paciente. Paradoxalmente, sua questão seria: como não se mostrar para não desaparecer, uma vez que o olhar do outro traz à cena o insustentável constrangimento de que, para existir, é preciso que ela não se veja como objeto incestuoso. É o que está em jogo no ato de recorrer regularmente ao telefone, em particular no período da ajuda psiquiátrica: ouvir a minha voz para ter certeza de que eu existo - de que sobrevivi a suas fantasias de destruição - e de que ela existe - e pode se ver na relação com o outro sem ser vista. Enfim, o auxílio do telefone, no momento da interrupção e posteriormente, interviria como a experimentação e a prova da simbolização da ausência: resultado de uma forma permanente de se ver e de se reconhecer. Mais globalmente, as lateralizações agidas com o psiquiatra, inclusive numa relação com tonalidade erotomaníaca, por mais diversas que fossem, deveriam ser concebidas como esforços para fazer funcionar um dispositivo que lhe permitisse estar só na presença de alguém (WINNICOTT) - tratava-se, fundamentalmente, de passar da posição de remediar a falta da transicionalidade para a posição de curá-la.

Parece-me bastante útil o conceito de alucinação negativa: o sujeito não se vê no espelho, no olhar do outro, em consequência da invasão do meio ambiente na constituição do objeto fantasmático, por isso mais ou menos seriamente destituído. Nesse mesmo movimento, a linguagem é atacada como lugar de percepção do pensamento. O ataque implica a possibilidade de se ver como sujeito pensante/pensado, e advém de um modo primário de organização que consiste em se adaptar às necessidades de uma mãe deprimida.

O fato de que, durante muito tempo, a paciente tenha adiado falar sobre o trauma sexual que marcou sua infância, permitiu que o infans se expressasse na relação com o analista. Foi certamente este adiamento que permitiu o trabalho analítico, além da mobilização do que chamarei de os recursos histéricos. Em particular, sua manifestação deu acesso à falha da transicionalidade trazida por uma linguagem cujas bases narcísicas estavam fragilizadas.

Destacam-se, assim, o modo e a intensidade com que este tipo de registro vem interrogar o investimento que a análise fez na teoria e no método analíticos, a confiança na análise e na capacidade de operar a partir dos limites: os da análise, os da paciente e os que lhe são próprios...

Para (não) concluir

O negativo da confiança, a desconfiança do outro e dos outros, a falta de confiança no dispositivo terapêutico, assim como no analista, são defesas paradoxais construídas com o objetivo de ir contra a ameaça de desmoronamento. A vivência de desespero do paciente, no momento de simbolizar, elaborar e ultrapassar as repercussões da traição primária, é infligida também ao analista, retorna sobre ele, ferindo-o em seus pontos fracos e em suas zonas de sombra. Mobiliza, desse modo, a vivência de destruição da capacidade de ocupar e investir na posição de analista. A capacidade de acolher - no imprevisível, na surpresa e no mal-estar -a destruição do narcisismo profissional e sobreviver de forma suficientemente criativa constituem os principais móbiles do trabalho analítico.

A repetição dos cenários de destruição, acolhidos pelo clínico sem qualquer represália, ou seja, sem reversão nem abandono, constitui condição essencial para que possam ser expressos os elementos da patologia incorporada entre gerações e através delas. Expressão que transita inicialmente pelo agir, e depois pelos cenários preliminares à simbolização, enfim passível de ser operada.

 

REFERÊNCIAS:

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Recebido em: 31 de março de 2011.
Aprovado em: 30 de maio de 2011

 

 

Versão brasileira: Vera Pollo

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